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CONTRATO DE FORNECIMENTO
EXCLUSIVIDADE
RESTRIÇÃO DA CONCORRÊNCIA
TRATADO DE ROMA
Sumário
I - O contrato de fornecimento traduz-se num negócio de execução reiterada, em que uma das partes (o fornecedor) se obriga, contra o pagamento de um preço, a realizar fornecimentos periódicos ao outro contraente (o fornecido). II - O acordo celebrado entre uma empresa fornecedora de café e um comerciante dono de um estabelecimento, em regime de exclusividade, obrigando o comprador ao consumo obrigatório de uma determinada quantidade de café, mediante a contrapartida da disponibilização de bens do vendedor ao comprador durante o período de vigência do contrato, sendo estabelecida uma sanção para o incumprimento, enquadra-se juridicamente como contrato de fornecimento. III - A proibição estabelecida no artigo 81.º, n.º 1 do Tratado de Roma pressupõe o preenchimento cumulativo dos requisitos aí enunciados: a existência de uma coligação entre empresas (acordo entre empresas, decisão de associação de empresas ou prática concertada entre empresas); a afectação do comércio entre os Estados membros; e a existência de uma restrição da concorrência que legitime a intervenção da administração para a defesa da liberdade de concorrência no mercado. IV - Em suma, a integração da proibição prevista no artigo 81.º, n.º 1 do Tratado de Roma só pode ocorrer com negócios de ‘grande escala’, exigindo-se que a cláusula contratual obste, ainda que potencialmente, à realização do comércio entre os Estados-membros e, consequentemente, à realização do mercado único. V - Não deverá considerar-se integrada a previsão do normativo em apreço, quando não resulte provada, não tendo sido sequer alegada, factualidade da qual se pudesse concluir: qual a percentagem do mercado que este tipo de contratação absorve; se existem outros contratos de natureza semelhante envolvendo o mesmo fornecedor e marca de café; qual a sua abrangência geográfica; se há algum reflexo negativo na atividade comercial das demais empresas concorrentes neste mercado de venda de café.
Texto Integral
Processo n.º 41/14.0TBMCN.P1
Sumário do acórdão:
I. O contrato de fornecimento traduz-se num negócio de execução reiterada, em que uma das partes (o fornecedor) se obriga, contra o pagamento de um preço, a realizar fornecimentos periódicos ao outro contraente (o fornecido).
II. O acordo celebrado entre uma empresa fornecedora de café e um comerciante dono de um estabelecimento, em regime de exclusividade, obrigando o comprador ao consumo obrigatório de uma determinada quantidade de café, mediante a contrapartida da disponibilização de bens do vendedor ao comprador durante o período de vigência do contrato, sendo estabelecida uma sanção para o incumprimento, enquadra-se juridicamente como contrato de fornecimento.
III. A proibição estabelecida no artigo 81.º, n.º 1 do Tratado de Roma pressupõe o preenchimento cumulativo dos requisitos aí enunciados: a existência de uma coligação entre empresas (acordo entre empresas, decisão de associação de empresas ou prática concertada entre empresas); a afectação do comércio entre os Estados membros; e a existência de uma restrição da concorrência que legitime a intervenção da administração para a defesa da liberdade de concorrência no mercado.
IV. Em suma, a integração da proibição prevista no artigo 81.º, n.º 1 do Tratado de Roma só pode ocorrer com negócios de ‘grande escala’, exigindo-se que a cláusula contratual obste, ainda que potencialmente, à realização do comércio entre os Estados-membros e, consequentemente, à realização do mercado único.
V. Não deverá considerar-se integrada a previsão do normativo em apreço, quando não resulte provada, não tendo sido sequer alegada, factualidade da qual se pudesse concluir: qual a percentagem do mercado que este tipo de contratação absorve; se existem outros contratos de natureza semelhante envolvendo o mesmo fornecedor e marca de café; qual a sua abrangência geográfica; se há algum reflexo negativo na atividade comercial das demais empresas concorrentes neste mercado de venda de café.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. Relatório
B…, SA, intentou em 14.01.2014 no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes, ação declarativa sob a forma de processo comum, contra C… e D…, formulando os seguintes pedidos: que seja declarada válida a resolução do contrato celebrado entre as partes; que por via dessa resolução sejam os réus condenados, solidariamente, a pagar à autora a quantia global de € 8 446,82, acrescida dos juros de mora.
Como suporte da sua pretensão, alegou a autora em síntese: entre a autora e a primeira ré foi celebrado um acordo de fornecimento de café; por via desse acordo, a 1ª ré obrigou-se a adquirir à autora, em regime de exclusividade, a quantidade mínima mensal de 15 kg de café, marca «B1…», Lote «…», pelo período mínimo de 60 meses, num total de 900 kg, a fim de ser revendido como bebida, no seu estabelecimento comercial denominado «E…», sito no …, …, Marco de Canaveses; como contrapartida da convencionada exclusividade, a autora entregou à 1ª ré a quantia de € 423,00, IVA incluído, a título de desconto antecipado e no pressuposto da aquisição total dos 900 kg contratados, e, ainda, lhe emprestou, para utilização nesse estabelecimento: 1 televisor plasma, marca SANYO, no valor de € 1800,00, 1 reclamo luminoso, dupla face, 155 cm x 50 cm, no valor de € 988,57, 3 telas toldo capota, sendo uma de 505 cm x 50 cm, e duas de 410 cm x 90 cm, no valor de € 1 037,00; o preço do café contratado seria aquele que estivesse em vigor na data do seu fornecimento, de acordo com a tabela geral de preços praticada pela autora; a 1.ª ré, além de não adquirir a quantidade mínima mensal de 15 kg de café a que se obrigou, deixou de comprar qualquer quantidade de café, acabando por encerrar o estabelecimento; a autora viu-se na contingência de declarar resolvido o contrato em causa, o que fez mediante o envio de carta, sob registo e com aviso de recepção, datada de 06-09-2013, na qual liquidou o valor das indemnizações previstas nos vários pontos da clª 12 do contrato; tendo presente o facto de a 1ª ré à data do envio da carta resolutiva do contrato, do total de 900 kg que se obrigara a adquirir, só ter adquirido 451 kg faltava adquirir 449 kg; o 2º réu declarou constituir-se fiador e principal pagador à autora das obrigações que do incumprimento desse acordo resultassem para a 1ª ré; foi, também, o 2º réu, na qualidade de fiador, notificado da resolução do contrato por carta datada de 06-09-2013; foi convencionada a resolução do contrato em causa, em caso de verificação de qualquer das situações previstas pela cláusula 10ª do mesmo; tendo sido, também, convencionadas as penas aplicáveis em caso de resolução do contrato por motivo imputável ao contraente faltoso; nos termos dessa convenção, por via da resolução do contrato, motivada pelo incumprimento definitivo do mesmo imputável à 1ª Ré, ficou esta constituída na obrigação de indemnizar a A., pelas seguintes quantias: € 141,17, correspondente à indemnização prevista na clª 12, I); € 211,28, correspondente à indemnização prevista na clª 12ª, I), & primeiro; € 3.143,00, correspondente à indemnização prevista na clª 12ª, III); € 4.631,00, correspondente à indemnização prevista na clª 12ª, II), parte final, no total de € 8.446,82.
Citados, os réus vieram apresentar contestação, invocando a exceção de incompetência relativa do tribunal de marco de Canavezes, impugnando os factos alegados pela autora e alegando em síntese: o contrato em causa deverá ser considerado nulo e proibido por violação do art. 5º, al. a) do Regulamento (CE) 2790/1999, da Comissão Europeia, uma vez que impede a livre concorrência; a 1ª ré apenas contratou com a autora pelo facto de, durante as negociações, esta se ter comprometido a alterar as 4ª e 9ª cláusula, sem encargos, caso os consumos da 1ª ré forem inferiores à quantidade mensal convencionada (15 quilos mensais); a 1ª ré tentou transmitir a titularidade do contrato em causa ao atual proprietário do estabelecimento, mas a autora não se mostrou disponível para negociações; a autora enganou dolosamente a 1ª ré, aproveitando-se da sua posição de maior experiência e capacidade negocial, devendo o contrato ser anulado; caso assim não se entenda, os valores das indemnizações peticionados mostram-se exagerados, já que a autora não tem qualquer prejuízo com a não aquisição pela 1ª ré dos restantes quilos de café me falta, sendo a cláusula penal exagerada, assim como a indemnização prevista na cláusula 12ª II), que se revela infundada e desproporcional, já que a autora não teve em conta o serviço prestado pela ré na divulgação e publicitação da marca da autora.
Foi proferido despacho em 23.01.2015, no qual: se julgou improcedente a exceção incompetência territorial deste tribunal; se fixou o valor da causa em € 8.663,78; se considerou nada obstar ao conhecimento do mérito da ação; se dispensou, a identificação do objecto em litígio e a enunciação dos temas da prova, nos termos do disposto no artigo 597º do CPC; e se admitiram os meios probatórios.
Foi realizada audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: «Por tudo o exposto, julga-se: I. a presente acção totalmente procedente, por provada, e em consequência, declara-se válida a resolução do contrato em causa, e, por via dessa resolução, condenam-se os Réus, solidariamente, a pagar à Autora a quantia global de € 8.446,82 (oito mil quatrocentos e quarenta e seis euros e oitenta e dois cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal supletiva aplicável às operações comerciais, vencidos desde 11-09-2013 até à data de instauração da acção, no montante de € 216,96, bem como dos que se vencerem desde essa data até integral e efectivo pagamento; e II. totalmente improcedente a redução do pedido peticionada pelos réus. Custas da ação a cargo dos Réus.».
Não se conformaram os autores e interpuseram recurso de apelação, apresentando alegações, findas as quais, concluem:
1ª Autora e Réus celebraram um contrato de fornecimento de café contendo cláusulas que obrigavam à aquisição exclusiva de café em quantidades mínimas de 15kgs mensais por um período de sessenta meses tácita e automaticamente renovável por mais sessenta meses.
2ª As obrigações de não concorrência, conjugadas com a imposição de compra de quantidades mínimas de café, resultavam na impossibilidade prática, para a 1ª Ré, de recorrer a outro fornecedor por um período sem termo certo.
3ª As cláusulas constantes do contrato de fornecimento de café, nomeadamente as cláusulas 4ª e 9ª, violam os artigos 81º, n.º 1 do Tratado de Roma e o art. 5º, al. a), do Regulamento (CE) 2790/1999, da Comissão Europeia, de 22-12-1999, por manifestamente impedirem a livre concorrência.
4ª Donde se conclui, atendendo ao disposto no artigo 294º do Código Civil, ser o contrato nulo e proibido, não podendo desencadear quaisquer das consequências aí previstas.
5ª Entende-se, contudo, na sentença recorrida que os referidos normativos não têm aplicação ao caso concreto pelo facto de estarmos perante um contrato de exclusividade de compra de café celebrado entre uma empresa e dois particulares, figurando a 1ª Ré como segunda outorgante e o 2º Réu como terceiro outorgante na qualidade de fiador, não especificando contudo a douta sentença e, mais importante, não tendo em conta que a 1ª Ré celebra o contrato como comerciante, como empresária em nome individual, pelo que deveria a douta sentença recorrida ter aplicado os mencionados preceitos.
6ª Deveriam ainda os artigos 81º, n.º 1 do Tratado de Roma e o art. 5º, al. a), do Regulamento (CE) 2790/1999 ter sido ser aplicados pelo tribunal a quo por força do artigo 5º, n.º 3, da Lei 18/2003, de 11 de Junho, em vigor aquando da celebração do referido contrato.
7ª Era a referida Lei 18/2003 aplicável a todas as actividades económicas exercidas, com carácter permanente ou ocasional, nos sectores privado, público e cooperativo (conforme o n.º 1) e aplicável às práticas restritivas da concorrência (conforme n.º 2), aquando da celebração do contrato (26/06/2006).
8ª As cláusulas quarta e nona do contrato de fornecimento de café em análise englobam-se na prática visada pela aludida Lei 18/2003, preenchendo o n.º 1 do artigo 4.º, que estatui “São proibidos os acordos entre empresas, as decisões de associações de empresas e as práticas concertadas entre empresas, qualquer que seja a forma que revistam, que tenham por objecto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional”, sendo assim nulas.
9ª De onde se conclui novamente, atendendo ao disposto no artigo 294º do Código Civil, ser o contrato nulo e proibido não podendo desencadear quaisquer das consequências aí previstas.
10ª O contrato celebrado entre Autora e Réus é nulo, por violação do artigo 81º do Tratado de Roma, do artigo 5º, al. a), do Regulamento (CE) 2790/1999 e do artigo 4º, n.º 1, da Lei 18/2003, não devendo assim ter quaisquer efeitos entre as partes, como resulta do artigo 294º do Código Civil.
11ª Devendo ser proferido acórdão que declare a nulidade do aludido contrato, nos termos do artigo 294º do Código Civil.
Termos em que se requer seja dado provimento ao presente recurso, revogando V/ Ex.as a decisão ora recorrida, absolvendo os Recorrentes do pedido, como é de, JUSTIÇA!
Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.
II. Do mérito do recurso 1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se se verifica a nulidade do contrato por violação do disposto no artigo 81º do Tratado de Roma, do artigo 5º, al. a), do Regulamento (CE) 2790/1999 e no artigo 4º, n.º 1, da Lei 18/2003.
2. Fundamentos de facto Está provada nos autos a seguinte factualidade relevante:
1. Entre a autora (A) e a 1ª Ré (R) foi ajustado um acordo de fornecimento de café, nos termos e condições constantes do escrito particular por ambas subscrito, em 26-06-2006, intitulado «Contrato de compra e fornecimento nº2006/96», junto a fls. 9 a 11 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido por brevidade de meios e economia de termos. (art. 1º pi)
2. O 2º Réu declarou constituir-se fiador e principal pagador à A. das obrigações que do incumprimento desse acordo resultassem para a 1ª Ré. (art. 2º pi)
3. Por via desse acordo, a 1ª Réu obrigou-se a adquirir à A., em regime de exclusividade, a quantidade mínima mensal de 15 kg de café, marca «B1…», Lote «…», pelo período mínimo de 60 meses, num total de 900 kg, a fim de ser revendido como bebida, no seu estabelecimento comercial denominado «E…», sito no …, …, Marco de Canaveses. (art. 3º pi)
4. Como contrapartida da convencionada exclusividade, a A. entregou à 1ª ré a quantia de € 423,00, IVA incluído, a título de desconto antecipado e no pressuposto da aquisição total dos 900 kg contratados, e, ainda, lhe emprestou, para utilização nesse estabelecimento: 1 televisor plasma, marca SANYO, no valor de € 1800,00; 1 reclamo luminoso, dupla face, 155 cm x 50 cm, no valor de € 988,57; 3 telas toldo capota, sendo uma de 505 cm x 50 cm, e duas de 410 cm x 90 cm, no valor de € 1 037,00 (art. 4º pi)
5. O preço do café contratado seria aquele que estivesse em vigor na data do seu fornecimento, de acordo com a tabela geral de preços praticada pela A, nos termos convencionados na 7ª cláusula do dito acordo. (art. 5º pi)
6. A 1ª R., além de não adquirir a quantidade mínima mensal de 15 kg de café a que se obrigou perante a A., faltando adquirir 449 kg de café, deixou de comprar qualquer quantidade de café, acabando por encerrar o estabelecimento. (art. 6º e 10º pi)
7. A A. declarou resolvido o acordo em causa, o que fez mediante o envio de carta, sob registo e com aviso de recepção, datada de 06-09-2013, e na qual liquidou o valor das indemnizações previstas nos vários pontos da cláusula 12 do aludido acordo, “nos seguintes montantes:
a) € 141,17, correspondente ao pagamento de 1/3 do valor adiantado, a título de desconto antecipado – indemnização prevista na cláusula 12ª;
b) € 211,28, correspondente ao valor concedido pela B…, SA, deduzido da parte proporcional dos quilos já adquiridos – restituição esta prevista na cláusula vinda de referir;
c) € 3 143,00, correspondente aos quilos não comprados (449kg x €.7,00 = €. 3.143,00) – Indemnização prevista na mesma cláusula, no seu ponto III.
d) €. 4.631,00, correspondente ao valor dos equipamentos colocados no estabelecimento - indemnização esta prevista na cláusula vinda de referir no seu ponto II 2ª parte;” – doc junto a fls. 12 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido por brevidade de meios e economia de termos. (art. 7º a 9º pi)
8. A autora comunicou também ao 2º R., na qualidade de fiador, a resolução do contrato por carta datada de 06-09-2013, enviada sob registo e com aviso de recepção.
9. A 1ª R. não pagou as quantias referidas em 7 no prazo de 10 dias a contar da data do recebimento da comunicação da resolução do contrato, em 11-09-2013, Factos não provados:
Não resultaram provados os seguintes factos:
a) A 1ª Ré apenas contratou com a Autora pelo facto de, durante as negociações, esta se ter comprometido a alterar as cláusulas 4ª e 9ª do mencionado acordo, sem encargos, caso os consumos da 1ª Ré fossem inferiores aos 15 quilos mensais, e pelo facto de a Autora ter comunicado à 1ª Ré que o valor dos 15 quilos teria de constar do contrato, por ser este o que estava previsto no contrato celebrado com o anterior proprietário. (art. 19º e 20º da contestação)
b) Confrontada com a realidade das vendas, a 1ª Ré interpelou a Autora no sentido de alterar o contrato para a quantidade de café que o volume de negócio efetivamente conseguia escoar, tendo em conta o combinado nas negociações. (art. 21º da contestação)
c) A Autora, em todas as negociações tidas com a 1ª Ré bem como na celebração do acordo em apreço, induziu dolosamente a 1ª Ré em erro, enganando-a e aproveitando-se da sua posição de maior experiência e capacidade negocial. (art. 27º da contestação)
d) O montante de € 423,50 não constituiu qualquer desconto antecipado, mas sim o pagamento de uma oferta de umas prateleiras que a Autora concordou em oferecer à aqui Ré. (art. 33º da contestação).
3. Fundamentos de direito 3.1. Caracterização do contrato
Consta da sentença recorrida, no que se reporta à natureza jurídica do contrato: «Na verdade, atenta a materialidade em causa, concluiu-se que entre as partes foi celebrado um contrato de fornecimento, através da qual a ré se comprometeu a consumir em exclusivo, no seu estabelecimento, os produtos autora B…, devendo adquirir 900 Kg, durante o período mínimo de 60 meses, conforme resulta da cláusula 9ª das condições do contrato e obrigando-se a comprar a quantidade mínima mensal de 15 kg de café, nos termos da cláusula 4ª. “Na caracterização deste acordo, podemos surpreender, tal como se decidiu num acórdão do STJ, vários elementos contratuais: “O designado contrato de fornecimento reconduz-se, em regra, a um contrato de compra e venda desenvolvido por sucessivas, contínuas e periódicas prestações autónomas de coisas pelo vendedor mediante o pagamento pela contraparte do respectivo preço”, caracterizando-se o “chamado contrato de exclusividade de compra de café (…) essencialmente pela envolvência de um complexo convencional comercial envolvente de elementos próprios dos contratos-promessa, de prestação de serviços, de comodato e de compra e venda.” (Ac. STJ, de 04.06.2009, proc. 257/09.1YFLSB, disponível em www.dgsi.pt). - Vide Ac. da Relação do Porto Maria Adelaide Domingos, de 12.04.2010, disponível em www.dgsi.pt Assim, celebrou a 1ª ré com a autora, em 26 de Junho de 2006, um contrato de exclusividade de compra de café.»
Afigura-se-nos pacífico o enquadramento jurídico do contrato, preconizado na sentença sob censura, o qual tem sido sufragado por este Tribunal, nomeadamente no acórdão desta Secção, de 12.04.2010, proferido no processo n.º 8615/08.2TBMTS.P1 (acessível no site da DGSI), parcialmente sumariado nestes termos: «O contrato de exclusividade de compra de café reconduz-se a um contrato de fornecimento, embora a sua execução pressuponha a compra e venda do bem em prestações autónomas, sucessivas, contínuas e periódicas, para além de poder corporizar outros elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços e do comodato».
Como refere Carolina Cunha[1] a relação negocial entre os produtores e os grandes retalhistas tem vulgarmente por base um contrato de fornecimento, traduzido num negócio de execução reiterada, em que uma das partes (o fornecedor) se obriga, contra o pagamento de um preço, a realizar fornecimentos periódicos ao outro contraente (o fornecido). Trata-se de um contrato duradouro, no âmbito do qual a satisfação do interesse do fornecido exige que as prestações do fornecedor se realizem de forma repetida dentro de cada período temporal[2].
O contrato de fornecimento não dispõe de disciplina própria no nosso ordenamento jurídico, apesar da sua indiscutível tipicidade social, defendendo a autora citada o seu estatuto de “contrato (legalmente) nominado”, face à sua integração no artigo 230º, n.º 2º, do Código Comercial[3].
Em suma, mostra-se corretamente definido o contrato em discussão nos autos, como contrato de fornecimento. 3.2. A invocada nulidade contratual 3.2.1. No que concerne ao Tratado de Roma
Os recorrentes centram toda a sua argumentação na invocada nulidade do contrato de fornecimento em causa nos autos, por considerarem: que as cláusulas quarta e nona preenchem a previsão do n.º 1 do artigo 4.º, da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho; que as referidas cláusulas violam o disposto no artigo 81º do Tratado de Roma, do artigo 5º, e na al. a), do Regulamento (CE) 2790/1999.
Na apreciação das questões suscitadas seguimos de muito perto a argumentação expendida no acórdão desta Relação e Secção, referente a questão semelhante (fornecimento de café), subscrito por um dos desembargadores adjuntos[4].
Nos termos da cláusula 4.ª, o 2.º outorgante (recorrente C…) “Obriga-se a: I) Consumir e vender no seu estabelecimento comercial, exclusivamente, Café, Descafeinado e Açúcar produzidos ou comercializados pela 1.º outorgante (recorrida), ou por entidade por esta designada; II) Não adquirir a terceiros, mas única e exclusivamente aos Distribuidores que lhe forem indicados pela 1.ª outorgante, para fins de revenda, no estabelecimento indicado na cláusula 2.ª, os produtos produzidos e comercializados pela 1.ª outorgante (…)”.
Nos termos da cláusula 9.ª, “O presente contrato iniciará a sua vigência na data da sua assinatura pelas partes, e durará até que hajam sido adquiridos pelo 2.º outorgante a quantia de 900Kg B1… Lote … (…) sendo renovável automaticamente, nos mesmos termos, se não for expressamente denunciado por qualquer das partes (…)”.
Como contrapartida da exclusividade convencionada, a A. entregou à 1ª ré a quantia de € 423,00, IVA incluído, a título de desconto antecipado e no pressuposto da aquisição total dos 900 kg contratados, e, ainda, lhe emprestou, para utilização nesse estabelecimento: 1 televisor plasma, marca SANYO, no valor de € 1800,00; 1 reclamo luminoso, dupla face, 155 cm x 50 cm, no valor de € 988,57; 3 telas toldo capota, sendo uma de 505 cm x 50 cm, e duas de 410 cm x 90 cm, no valor de € 1 037,00 (facto 4).
Vejamos a questão à luz da invocada norma do Tratado de Roma.
Conforme resulta do artigo 81.º, n.º 1 do Tratado de Roma (que instituiu a Comunidade Europeia)[5], são incompatíveis com o mercado comum e proibidos todos os acordos entre empresas e práticas concertadas que sejam susceptíveis de afectar o comércio entre os Estados-membros e que tenham por objectivo ou efeito impedir, restringir ou falsear a concorrência no mercado comum, designadamente aqueles que as várias alíneas do preceito elencam exemplificativamente, cominando o n.º 2 do mesmo preceito com a sanção da nulidade todos os acordos ou decisões proibidos por este preceito.
O n.º 3 do citado artigo 81.º do Tratado CE permite o afastamento desta regra, caso se verifiquem os pressupostos ali mencionados.
Através do Regulamento (CE) n.º 2790/1999, de 22.12.1999, a Comissão Europeia estabeleceu os critérios de aplicação do n.º 3 do artigo 81.º do Tratado, em relação a determinadas categorias de acordos verticais e práticas concertadas, sem prejuízo de poderem ser dadas isenções individuais pela própria Comissão.
Como se refere no citado acórdão desta Relação [citando Miguel Gorjão-Henriques - Direito Comunitário, 2.ª ed., Almedina, 2003, p. 437], a proibição estabelecida no artigo 81.º, n.º 1 supõe “…o preenchimento cumulativo dos requisitos aí enunciados: a existência de uma coligação entre empresas (acordo entre empresas, decisão de associação de empresas ou prática concertada entre empresas), a afectação do comércio entre os Estados membros e, por fim, a existência de uma restrição da concorrência que legitime a intervenção da administração para a defesa da liberdade de concorrência no mercado.”.
O primeiro pressuposto enunciado cumpre-se com a existência de um acordo entre duas sociedades, no qual sejam inseridas cláusulas restritivas que podem estar relacionadas com a fixação de preços ou a imposição de condicionamentos à liberdade de escolha dos fornecedores do serviço ou dos bens, por exemplo, através da inclusão da cláusula de exclusividade com uma duração superior a cinco anos.
Quanto ao segundo pressuposto, exige-se que a cláusula obste, ainda que potencialmente, à realização do comércio entre os Estados-membros e, consequentemente, à realização do mercado único.
Finalmente, quanto ao terceiro pressuposto, exige-se que a prática concertada subjacente à cláusula de exclusividade seja relevante em face do contexto económico e jurídico onde é aplicada, ou seja, há que ponderar critérios, como seja, “… a natureza e quantidade de produtos (ou serviços) que são objecto do acordo, a importância relativa das partes no conjunto do mercado relevante, o carácter isolado do acto ou não do acordo, o rigor das cláusulas que restringem a liberdade das partes e de terceiros…” (Miguel Gorjão-Henriques, obra citada, pág. 450).
Regressando à situação concreta em debate nos autos, resta concluir que a mera aposição de uma cláusula de exclusividade, ainda que com a duração correspondente ao período de aquisição pela recorrente da quantidade de 900 Kg de café, automaticamente renovável caso não ocorra a denúncia expressa por qualquer das partes, não é susceptível de violar as regras da concorrência no sentido vertido n.º 1 do artigo 81.º do Tratado EU, porque, ainda que se entenda que, potencialmente, o comércio entre os Estados-membros possa vir a ser afectado, não se afigura que em face do contexto económico e geográfico onde o contrato é aplicado possa ser relevante em termos de restrição relevante da concorrência.
Com efeito, não resultam dos autos, não tendo sido, sequer, alegados, factos que seriam indispensáveis nesta aferição, nomeadamente: qual a percentagem do mercado que este tipo de contratação absorve; se existem outros contratos de natureza semelhante envolvendo o mesmo fornecedor e marca de café; qual a sua abrangência geográfica; se há algum reflexo negativo na atividade comercial das demais empresas concorrentes neste mercado de venda de café.
Em suma, a integração da proibição prevista no artigo 81.º, n.º 1 do Tratado de Roma só pode ocorrer com negócios de ‘grande escala’, exigindo-se que a cláusula contratual obste, ainda que potencialmente, à realização do comércio entre os Estados-membros e, consequentemente, à realização do mercado único.
Não é, manifestamente, o que ocorre na situação descrita nos autos.
Tal como se conclui no acórdão desta Relação que vimos citando, nada tendo sido alegado nem provado nos autos sobre o contexto económico em que as partes celebraram o contrato, a prática comercial subjacente às cláusulas contratuais em causa não apresentam “um grau de eficácia e prejudicialidade relevante das regras de funcionamento do mercado único e da livre concorrência nele vigente, que justifique a proibição da cláusula e determine a sua nulidade, não se encontrando, consequentemente, preenchidos os requisitos de aplicação do n.º 1 do artigo 81.º do Tratado da EU”. 3.2.2. No que concerne ao Regulamento (CE) 2790/1999
Os recorrentes invocam a violação do artigo 5.º, alínea a) do Regulamento (CE) 2790/1999.
Vejamos.
Dispõe o n.º 1 do artigo 2.º do invocado regulamento comunitário: «Nos termos do n.º 3 do artigo 81.º do Tratado e no presente regulamento, o n.º 1 do artigo 81.º não se aplica aos acordos ou práticas concertadas em que participam duas ou mais empresas cada uma delas operando, para efeitos do acordo, a um nível diferente da produção ou da cadeia de distribuição e que digam respeito às condições em que as partes podem adquirir, vender ou revender certos bens ou serviços (denominados «acordos verticais»).».
Estipula o artigo 5.º, na alínea a):
«A isenção prevista no artigo 2.º não é aplicável a nenhuma das seguintes obrigações incluídas em acordos verticais:
a) Qualquer obrigação de não concorrência directa ou indirecta, cuja duração seja indefinida ou ultrapasse cinco anos. Uma obrigação de não concorrência que seja tacitamente renovada por mais que um período de cinco anos deve ser considerada como tendo sido concluída por uma duração indefinida. Todavia, o prazo limite de cinco anos não é aplicável quando os bens ou serviços contratuais são vendidos pelo comprador a partir de instalações e terrenos que sejam propriedade do fornecedor ou tomadas de arrendamento pelo fornecedor a terceiros não ligados ao comprador, desde que a duração da obrigação de não concorrência não ultrapasse o período de ocupação das instalações e terrenos pelo comprador […]».
Na situação sub judice, a vigência do contrato não é indefinida, tendo a duração mínima de 60 meses e iniciando “a sua vigência na data da sua assinatura pelas partes, e durará até que hajam sido adquiridos pelo 2.º outorgante a quantia de 900Kg B1… Lote … (…)” [cláusula 9.ª].
Poderia, no entanto, ultrapassar os cinco anos, caso a recorrente não adquirisse a quantia de 900 Kg de café em período inferior.
Cabe, porém, referir, que são válidas nesta sede todas as considerações tecidas no ponto anterior quanto à “escala de grandeza” do negócio, susceptível de o tornar relevante e de influenciar as regras de funcionamento do mercado único e da livre concorrência nele vigente, dado que só essa escala poderá justificar a proibição da cláusula e a determinação da sua nulidade.
Com efeito, o Regulamento (CE) 2790/1999, como dele consta em epígrafe, é “relativo à aplicação do n.º 3 do artigo 81.º do Tratado CE a determinadas categorias de acordos verticais e práticas concertadas”. Foi através do referido Regulamento que a Comissão Europeia estabeleceu os critérios de aplicação do n.º 3 do artigo 81.º do Tratado, em relação a determinadas categorias de acordos verticais e práticas concertadas, sem prejuízo de poderem ser dadas isenções individuais pela própria Comissão.
Prevalece assim o que ficou dito no ponto anterior: para que se verifique a sua nulidade, à luz do Regulamento Comunitário em apreço, exige-se que a cláusula contratual obste, ainda que potencialmente, à realização do comércio entre os Estados-membros e, consequentemente, à realização do mercado único. O que, manifestamente, como se concluiu, não é o caso. 3.2.3. No que concerne ao artigo 4.º da Lei n.º 18/2003, de 11.06
Dispõe o normativo citado: «São proibidos os acordos entre empresas, as decisões de associações de empresas e as práticas concertadas entre empresas, qualquer que seja a forma que revistam, que tenham por objecto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional […]».
Não vislumbramos, com o devido respeito, que a prática comercial decorrente das cláusulas em apreço, dado que da prova não resulta que as referidas cláusulas impeçam, falseiem ou restrinjam de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional.
Acresce que se provou que: como contrapartida da convencionada exclusividade, a A. entregou à 1ª ré a quantia de € 423,00, IVA incluído, a título de desconto antecipado e no pressuposto da aquisição total dos 900 kg contratados, e, ainda, lhe emprestou, para utilização nesse estabelecimento: 1 televisor plasma, marca SANYO, no valor de € 1800,00; 1 reclamo luminoso, dupla face, 155 cm x 50 cm, no valor de € 988,57; 3 telas toldo capota, sendo uma de 505 cm x 50 cm, e duas de 410 cm x 90 cm, no valor de € 1 037,00 (facto 4).
Em suma, do negócio emergiram vantagens a que não terá sido alheia a vontade de contratar, manifestada pela ora recorrente e formalizada na subscrição do contrato cujas cláusulas vem pôr em causa nesta ação.
Em conclusão e salvo o devido respeito, revela-se manifesta a improcedência da apelação, devendo, em consequência, naufragar a pretensão recursória.
III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento, e, em consequência, em manter a sentença recorrida.
Custas do recurso pelos recorrentes.
*
O presente acórdão compõe-se de dezasseis páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
Porto, 30 de novembro de 2015
Carlos Querido
Soares de Oliveira
Alberto Ruço ____________
[1] “O contrato de fornecimento no sector da grande distribuição a retalho: perspectivas actuais”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 621-637.
[2] No referido estudo, a autora alude à “sugestiva ilustração” de um autor italiano (Mássimo Montanari), que toma como exemplo o fornecimento de café: “o dono de um bar necessita de dez quilos de café por dia durante todo o ano, não de trinta e seis quintais de café no dia 1 de Janeiro”.
[3] No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4.06.2009, proferido no processo n.º 257/09.1YFLSB, colhe-se a seguinte definição de contrato de fornecimento, num recurso em que estava em causa o fornecimento de café: «O designado contrato de fornecimento reconduz-se, em regra, a um contrato de compra e venda desenvolvido por sucessivas, contínuas e periódicas prestações autónomas de coisas pelo vendedor mediante o pagamento pela contraparte do respectivo preço.».
[4] Acórdão da Relação Porto, de 12.04.2010, proferido no processo n.º 8615/08.2TBMTS.P1, acessível no site da DGSI.
[5] Doravante abreviadamente designado por Tratado CE.