CRIME DE INFIDELIDADE
DIREITO DE QUEIXA
SOCIEDADE COMERCIAL
REPRESENTANTE
Sumário

Para apresentação da queixa em nome da sociedade comercial e para que tal seja feito por representante especial, é necessário que a sociedade tal delibere em assembleia geral.

Texto Integral

Proc. nº 3204/12.0TAMTS-F.P1
Instância Local de Matosinhos – Secção Criminal (J3) da comarca do Porto

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
No processo nº 3204/12.0TAMTS, da Instância Local de Matosinhos – Secção Criminal (J3) da comarca do Porto, com data de 15.05.201 (fls. 126) foi proferido o seguinte despacho:
“Quanto à invocada ilegitimidade no que contende com o exercício do direito de queixa, somos a entender, salvo melhor opinião, pela sua improcedência. Com efeito, e reconhecendo que, do ponto de vista literal, o art. 75.º do CSC se insere em capítulo em cuja epígrafe se lê responsabilidade civil pela constituição, administração e fiscalização da sociedade, uma tal interpretação – tendo em conta, exclusivamente, a letra da lei, não se coaduna, na nossa perspetiva, com a respetiva teleologia, sob pena de tal texto se revelar lacunar no que contende com a responsabilização em sede de processo penal. Acresce, por outro lado, que a proposta apresentada o foi no sentido da propositura da ação cível e criminal, tendo merecido aprovação em sede de AG, na qual se encontrava presente a totalidade do capital social, ainda que estando precludido aos visados o direito de voto neste conspecto, inexistindo notícia de que algum haja reagido com respeito a tal deliberação. Importa, ainda salientar não se encontrar de entre as nulidades, insanáveis ou não, previstas no Código de Processo Penal uma tal situação, pelo que, a ter-se a mesma como irregularidade, sempre se encontraria sanada por falta da sua arguição tempestiva (cfr., a propósito de situação diversa, mas que se entende aplicável ao caso concreto, o Ac. do TRP de 11/09/13, in www.dgsi.pt).”

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Inconformado com o assim decidido, interpôs o arguido B… recurso para este Tribunal, sustentando as conclusões, que se passam a transcrever:
1ª O crime de infidelidade é um crime semipúblico e, como tal, dependente de queixa do ofendido (art° 224° nº3 do Código Penal).
2ª A norma do art° 75° do Código das Sociedades Comerciais não permite a nomeação de um representante especial para a apresentação de queixa criminal contra os administradores ou gerentes de uma empresa, sendo que, tal norma é excecional e, como tal, não pode ser aplicada analogicamente à queixa criminal.
3ª Relativamente à apresentação de queixa criminal não se prevê no Código das Sociedades Comerciais que tal deliberação possa ser tomada sem precedência de assembleia geral convocada para o efeito ou sem precedência de deliberação dos sócios ou sequer que tal queixa possa ser apresentada pelo representante especial (art° 75° n.º e 76° do CSC).
4ª Na interpretação da lei não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, sendo que no sentido e no alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art° 9° nº1 e 2 do Código Civil), pelo que se o legislador não previu que a assembleia geral pudesse deliberar apresentar queixa criminal contra os administradores, é porque este órgão não tem competência para o efeito.
5ª Na verdade, para ser válida a deliberação de apresentação de queixa contra os administradores deveria ser tomada em assembleia geral designada para o efeito e por deliberação dos sócios.
6ª Inexistindo assembleia geral para o efeito convocada, a deliberação em causa é nula, nos termos do disposto no art° 56° nº1 al. a) do CSC, uma vez que não constava da ordem de trabalhos tal ponto para ser discutido e aprovado.
7ª Aliás, a interpretação que se extraia das disposições conjugadas dos art°s 113° nº1, 224° nº3 do Código Penal, dos art°s 48° e 49° nº1 e 3 do Código de Processo Penal e 75° nº1 do Código das Sociedades Comerciais no sentido de que o Ministério Público pode exercer a acção penal, impulsionado por queixa criminal apresentada por representante especial de pessoa coletiva nomeado nos termos do art° 75° nº1 do CSC, deve ser julgada inconstitucional por violação do disposto no art° 219° nº1 da Constituição.
8ª Acresce que, ainda assim, o art° 75° nº1 do Código das Sociedades Comerciais não teria aplicação tendo em conta que o voto do C… valia apenas 33,3 %, sendo que a deliberação teria que ser votada com maioria, o que não aconteceu.
9ª Na verdade, o artº 25° nº2 do Código de Processo Civil resolve a questão, deixando à decisão do juiz da causa (ou autoridade judiciária - com as necessárias adaptações ao Ministério Público no caso de queixa criminal) a designação de pessoa que represente a sociedade (cfr. neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/6/05, publicado in CJ ano XXX, tomo III, pag. 301).
10ª Assim não sendo, e tendo sido a queixa apresentada por quem não tem poderes para o efeito, o Ministério Público poderia, do mesmo passo, avançar com o procedimento criminal, nos termos do disposto no art° 113° nº 5 al. b) do Código Penal, mas só o poderia fazer quando considerasse expressamente através de despacho a tal dirigido que o interesse do ofendido assim o aconselhava, o que não aconteceu nos presentes autos (neste sentido, no caso paralelo do menor, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2/4/14, relatado por José Piedade, publicado in www.dgsi.pt).
11ª Por outro lado, ainda que nenhum dos sócios tenha reagido judicialmente contra a deliberação, esta não pode produzir quaisquer efeitos, sendo que a nulidade é de conhecimento oficioso para o Tribunal, nos termos do disposto no art° 286° do Código Civil.
12ª E, por outro lado, segundo o princípio da suficiência do processo penal, neste são resolvidas todas as questões que interessam à decisão da causa, mesmo que não sejam do foro penal (art° 7° nº1 do Código de Processo Penal), pelo que o Tribunal não podia, nem pode escudar-se no facto de não se ter impugnado a deliberação perante os tribunais civis.
13ª Acresce que, a falta de legitimidade do queixoso e, por consequência, a ilegitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal não constituem qualquer irregularidade que possa ser sanada, sendo invocável até ao trânsito em julgado da sentença.
14ª Deve, assim, o processo ser arquivado por ilegitimidade da queixosa e da sua representante e, consequentemente do Ministério Público para exercer a ação penal, com as legais consequências.
15ª O despacho recorrido violou ou fez errada interpretação das normas referidas na motivação que aqui se dão por reproduzidas, não podendo, pois, manter-se.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, serem os autos arquivados por ilegitimidade do representante especial nomeado nos termos do disposto no art° 75° nº 1 do Código das Sociedades Comerciais para a apresentação da queixa e consequente ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal, só assim se fazendo JUSTIÇA.
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A ofendida D…, S.A. respondeu no sentido da improcedência do recurso e manutenção do despacho recorrido. Formulou as seguintes conclusões:
A) Na assembleia geral, realizada em 15/06/12, quando foi deliberado apresentar uma queixa crime contra o Recorrente e demais arguidos e foi nomeada a representante especial para fazê-lo, o Recorrente esteve representado pela Drª E….
B) Assim como estiveram presentes, ou representados, todos os acionistas.
C) Tais deliberações não foram impugnadas judicialmente por nenhum dos arguidos, tendo o arguido e aqui Recorrente conformado-se com tal deliberação, que a aceitou (vide segunda parte da al. a) do nº 1 do art. 56º do Código das Sociedades Comerciais e no art. 128º, als. c) e d) do nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto).
D) Sendo evidente que tal deliberação não padece de nulidade, sendo um manifesto abuso e gritante má fé vir agora, depois de ter sido constituído arguido, tendo sido acusado e uma vez marcada data para julgamento, vir apenas agora invocar a nulidade de tal deliberação social quando nunca impugnou tal deliberação.
E) Os acionistas que eram administradores da Recorrida, aqui arguidos, não poderiam nunca votar nas deliberações em questão, por força do disposto no art. 75º, nº 3 do Código das Sociedades Comerciais, pelo que apenas um único acionista - o Fundo C1… - não se encontrava impedido de votar tais deliberações, tendo as mesmas sido aprovadas por maioria simples.
F) A norma prevista no art. 75º do Código das Sociedades Comerciais não é uma norma excecional; mas mesmo admitindo, por absurdo, que tal norma fosse excecional, certo é que na sua letra nada impõe ao intérprete que este apenas admita que a "ação de responsabilidade proposta pela sociedade ...” seja de natureza civil e não também criminal.
G) A tal não se opõe o facto de a epígrafe do Capítulo VII do Código das Sociedades Comerciais onde está inserida a norma prevista no art. 75º referir "Responsabilidade civil pela constituição, administração e fiscalização da sociedade" já que a epígrafe não contém norma jurídica e só outra norma jurídica poderia constituir norma fundamento interpretativo para a interpretação restritiva.
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O recurso foi admitido (fls. 155) e, remetidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Com interesse para a causa afere-se dos autos que:
1) Em 15.06.2012, realizou-se uma Assembleia Geral a qual tinha como ordem de trabalhos: “Ponto 1: Deliberar sobre o relatório de gestão e as contas de exercício de 2011; Ponto 2: Deliberar sobre a proposta de aplicação dos resultados do exercício de 2011; Ponto 3: Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade; Ponto 4: Análise da situação financeira da sociedade e deliberação sobre o plano de negócios da sociedade para o triénio de 2012/2014; Ponto 5: Eleição dos membros dos órgãos sociais da sociedade para o triénio de 2012/2014.”
2) No âmbito da referida assembleia, na qual estavam presentes os acionistas, previamente convocados, detentores da totalidade do capital social - os arguidos B… e F…, estando o arguido G… representado pela Dra. E…, e o C1…, representado na pessoa do Dr. H… -, este último propôs que “nos termos do disposto no nº 1 do artigo 75º do Código das Sociedades Comerciais, a destituição com justa causa, bem como a instauração de uma acção de responsabilidade da sociedade exigindo o dever de indemnização contra os administradores que no exercício de 2011 desempenharam funções executivas, G…, B… e F… propondo ainda a apresentação de uma denúncia contra os referidos administradores pela prática de atos que consubstanciam responsabilidade criminal para cada um deles”.
3) Colocada à votação a referida proposta a mesma foi “aprovada com o voto favorável do C1…, ou seja, por unanimidade, pois que, estando em causa a responsabilidade dos demais acionistas, na sua qualidade de administradores desta sociedade, os mesmos não podiam votar a deliberação em causa nos termos do disposto no artigo 75º do Código das Sociedades Comerciais”.
4) Na sequência da suspensão dos trabalhos da Assembleia Geral de 15.06.2012 reuniu em Assembleia Geral no dia 16.07.2012, na qual estavam presentes os acionistas detentores da totalidade do capital social - os arguidos B... e F…, estando o arguido G… representado pela Dra. E…, e o C1…, representado na pessoa do Dr. H… -, este último propôs no “sentido da designação da Dra. I… como representante especial nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 75º do Código das Sociedades Comerciais.
5) Colocada à votação a referida proposta a mesma foi “aprovada com o voto favorável do C1…, representado pela sua sociedade gestora J…, não podendo os restantes accionistas votar a deliberação em causa por simultaneamente serem os administradores contra quem será intentada a ação, de acordo com o disposto no artigo 75º do Código das Sociedades Comerciais”.
6) Os presentes autos iniciaram-se com a queixa apresentada, em 18.09.2012, pela empresa D…, S.A., representada para o ato pela sua representante especial Dra. I….
7) Em 29.12.2014 o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos G…, B… e F… imputando-lhes a prática, em coautoria material, de um crime de infidelidade, previsto e punível pelo artigo 224º, nº 1 do Código Penal.
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O direito.
Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objeto do recurso, artigo 412º/1 Código de Processo Penal.
No caso presente, de harmonia com as conclusões apresentadas, suscita o recorrente para apreciação, a questão de saber se a representante especial, Dra. I… tinha (como se considerou no despacho recorrido, com o aplauso do Ministério Público em 1ª instância, da sociedade D… e da Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação) ou não (como defende o recorrente) legitimidade para apresentar a queixa em sede de processo-crime, enquanto representante da sociedade D…, S.A.
Comecemos a analisar tal questão.
Estabelece o nº 1 do artigo 49º do Código Processo Penal que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.
O ofendido é que, em regra, tem legitimidade para apresentar queixa, considerando-se como tal e segundo o preceituado no artigo 113, n.º 1, do Código Penal “o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação” (in casu, o ofendido é o titular do interesse patrimonial alvo do prejuízo patrimonial importante, ou seja, a sociedade), tendo para o efeito, nos crimes de natureza particular e semipúblico, um prazo de seis meses para o exercício desse direito, sob pena do mesmo se extinguir [115.º Código Penal].
O exercício do direito de queixa é uma condição essencial de procedibilidade para os crimes de natureza semipública – como é o caso do crime de infidelidade - e particular. O exercício da queixa é um pressuposto de legitimação para a instauração do procedimento criminal, relativamente a certo tipo de crimes (semipúblicos e particulares) - arts. 113º, nº 1, do Código Penal e 49º, nº 1, e 50º, nº 1, do Código de Processo Penal. Destina-se a permitir dar início ao processo de averiguação criminal, sendo através do conjunto de diligências a realizar no decurso do inquérito instaurado com base na dita queixa que irá permitir “investigar a existência de crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade de cada um deles e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação” (art. 262º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Como refere Germano M. da Silva, in Curso de Processo Penal, 1, 2ª Edição, Verbo, 1994, pág. 235, a propósito do conceito de “ofendido”, e socorrendo-se, para o efeito, de Cavaleiro Ferreira: “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime; ofendido é somente o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato do crime. O objeto jurídico mediato é sempre de natureza pública; o objeto imediato é que pode ter por titular um particular.”
No nosso ordenamento jurídico, as pessoas coletivas (entre elas, as sociedades, mais concretamente, as sociedades comerciais) não se confundem com as pessoas singulares, nem tão pouco os seus sócios com elas se confundem, já que as pessoas coletivas, como centros autónomos de imputação de direitos e deveres que são, possuem personalidade jurídica e judiciária. Se assim é, há que concluir que o património social de uma sociedade pertence a esta e não aos sócios ou gerentes, a quem cabe apenas a administração e a representação da sociedade, não se repercutindo, na esfera jurídica de cada um deles, a violação dos bens jurídicos operada na esfera da pessoa coletiva.
Em consonância, veja-se o Ac. da Relação de Lisboa de 22/09/05, Proc. 7063/05 9ª Secção, disponível in http://www.pgdlisboa.pt, no qual se pode ler: “I- Está em causa a prática de um crime de infidelidade p. e p. no art.° 244° do C.P., de natureza semipública, relativamente a uma sociedade e verifica-se a invocação de prejuízos patrimoniais, por virtude de atos praticados pelo arguido. II - O M°P° decidiu-se pelo arquivamento do inquérito considerando, para além do mais, não estar o direito de queixa validamente exercido por ter sido apresentada a queixa por uma sócia, que não pela sociedade. III - Do despacho que admitiu a queixosa a intervir como assistente e que deferiu a abertura de instrução concomitantemente requerida, interpôs recurso o arguido, recurso este que merece provimento uma vez que '... estando em causa um alegado crime de infidelidade administrativa relativamente a interesses patrimoniais da sociedade, é o património desta o bem jurídico tutelado pela incriminação e, como tal, será esta a titular do interesse imediata e directamente tutelado pela norma incriminadora.”
Por outro lado, não escamoteamos que para haver uma ação que seja interposta pela sociedade, tem de haver uma deliberação dos sócios, caso contrário a sociedade não fica vinculada pela ação, ou seja, ela é ineficaz quanto a ela.
Carolina Cunha, in A exclusão de sócios, Problemas do Direito das Sociedades, IDET, Almedina, julho 2002, págs. 203 a 206, defende que a deliberação prévia nunca pode ser dispensada e substituída pelo reconhecimento de legitimidade processual ativa ao outro sócio: “[…] A deliberação é o instrumento de expressão da vontade da pessoa coletiva sociedade, única titular do direito potestativo cujo exercício requer a subsequente intervenção do tribunal.
No sentido desta autora veja-se o ac. do TRE de 10/05/2007, disponível em www.dgsi.pt no qual se escreveu: “I - Decorre do nº. 2 do art. 242º da CSC que “A proposição da acção de exclusão deve ser deliberada pelos sócios”. Tendo em conta este preceito legal e o disposto no art. 246º/1g), do mesmo diploma, é nítido que a ação em questão só pode ser proposta pela sociedade contra o sócio a excluir, e só por ela, após deliberação tomada pelos sócios, em assembleia geral”.
Paulo de Tarso Domingues, in A vinculação das sociedades por quotas no CSC, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, I/2004, diz (págs. 305/306): “Um mandatário judicial não terá poderes para propor uma ação contra gerentes, quotistas ou membros do órgão de fiscalização – ainda que para tanto haja sido mandatado pela gerência – sem que tenha havido uma prévia deliberação dos sócios nesse sentido [cfr. art. 246º/1g) do CSC]. Faltando essa deliberação, deverá aplicar-se o art. 25º do CPC: o juiz do processo deverá fixar prazo para a obtenção daquela deliberação, sob pena de o réu ser absolvido da instância.”
Neste sentido, veja-se também o ac. do TRC de 21/03/2006 (4316/05), disponível em www.dgsi.pt.
Pedro Pais de Vasconcelos, in Responsabilidade Civil dos Gestores das Sociedades Comerciais, Direito das Sociedades em Revista, Almedina, março de 2009, I, pág. 27, lembra que “para que a ação [de responsabilidade] seja proposta pela própria sociedade, é necessária uma prévia deliberação da assembleia geral nesse sentido. Esta deliberação é tomada por maioria simples, sem a participação dos gestores visados, se forem sócios. Este regime pode causar dificuldades a accionistas titulares de maioria absoluta, que sejam gestores e que podem ser, assim, destituídos e responsabilizados pelo voto da minoria (assim tornada maioria). Esta dificuldade tem soluções conhecidas […]”
Coutinho de Abreu e Elisabete Ramos, no CSC em comentário, vol. I, Almedina, 2010, a propósito do art. 75º/1 do Código das Sociedades Comerciais referem: “1. A acção de responsabilidade [contra os fundadores, gerentes ou administradores] proposta pela sociedade depende de deliberação dos sócios, tomada por maioria simples […]. 3. Aqueles cuja responsabilidade estiver em causa não podem votar nas deliberações previstas nos números anteriores”), dizem: “o órgão de administração e representação da sociedade é incompetente para decidir a propositura de ações de responsabilidade contra administradores […] A propositura de ação de responsabilidade pela sociedade, para ser eficaz, necessita de ser autorizada por deliberação dos sócios (art. 75º/1)” Em nota acrescentam: “o art. 246º/1g) também faz depender a propositura da acção social de responsabilidade contra gerentes de uma deliberação dos sócios. À vista desta norma específica, afirma-se igualmente que sem deliberação dos sócios a sociedade não fica vinculada quando gerente(s) propõem em nome dela a ação de responsabilidade – Raúl Ventura, vol. III, 1991, pág. 145; Tarso Domingues, pág. 295, e Soveral Martins, pág. 404. E mais à frente terminam: “A propositura da ação social de responsabilidade sem a deliberação social exigida pelo art. 75º/1, determina as consequências processuais previstas no art. 25º/1 do CPC: fixação de prazo para a tomada da deliberação e suspensão dos termos da causa. Se o vício da falta da deliberação não for sanado, o administrador demandado será absolvido da instância (arts. 25º/2, 493º/2d) do CPC) – a falta de deliberação dos sócios sobre a ação social de responsabilidade é exceção dilatória (art. 494º/d) do CPC)”.
No mesmo sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos do TRP de 23/03/1992 (9210035 - só sumário), do TRL de 29/04/1993 (0069191 – só sumário) e do TRP de 23/03/2004 (0420890), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Ora, atentas as considerações expostas e o disposto nos artigos 75º, 246º e 373º, todos do Código das Sociedades Comerciais, parece-nos que nada disto se modifica se, em vez de uma acção de responsabilidade da sociedade exigindo o dever de indemnização contra os administradores que no exercício de 2011 desempenharam funções executivas, G…, B… e F…”, estivermos perante “a apresentação de uma denúncia contra os referidos administradores pela prática de atos que consubstanciam responsabilidade criminal para cada um deles”. Isto é, para que a queixa seja apresentada em nome da sociedade, é necessária a deliberação. Igual raciocínio fazemos no que toca à nomeação do representante especial para a apresentação de tal denúncia/queixa.
Assim, fazemos nossas as palavras do tribunal a quo quando refere “Com efeito, e reconhecendo que, do ponto de vista literal, o art. 75.º do CSC se insere em capítulo em cuja epígrafe se lê responsabilidade civil pela constituição, administração e fiscalização da sociedade, uma tal interpretação – tendo em conta, exclusivamente, a letra da lei, não se coaduna, na nossa perspetiva, com a respetiva teleologia, sob pena de tal texto se revelar lacunar no que contende com a responsabilização em sede de processo penal”.
Mas será necessário, como defende o recorrente, que tal deliberação seja tomada em assembleia geral convocada para esse efeito (apresentação de queixa criminal contra os administradores) e por deliberação dos sócios?
Sabemos que, face ao disposto no artigo 75º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais “Na assembleia que aprecie as contas de exercício e embora tais assuntos não constem da convocatória, podem ser tomadas deliberações sobre a acção de responsabilidade e sobre a destituição dos gerentes ou administradores que a assembleia considere responsáveis, os quais não podem voltar a ser designados durante a pendência daquela ação”.
E que nos termos do disposto no artigo 56º, nº 1, alínea a) do Código das Sociedades Comerciais apenas “São nulas as deliberações dos sócios tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados”.
O recorrente apela a esta disposição legal para invocar a nulidade da assembleia geral realizada no dia 15.06.2012.
Vejamos.
As deliberações sociais podem enfermar de nulidade ou anulabilidade, sendo a regra a da anulabilidade, que ocorre sempre que a lei não determina a nulidade, tal como dispõe o art. 58º, nº 1, a), do Código das Sociedades Comerciais.
As causas de nulidade das deliberações sociais são as enumeradas no art. 56º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais.
Por regra, os vícios no conteúdo geram anulabilidade quando se trate da violação de uma regra do contrato ou de uma norma legal dispositiva; enquanto a consequência é a nulidade para os casos em que é afetada uma norma legal imperativa (ou a ordem pública ou bons costumes) (Cfr. Pedro Maia, in “Deliberações dos Sócios”, in Estudos de Direito das Sociedades, 5ª. ed., p. 186 e segs.
As hipóteses de nulidade são tidas como típicas (Cfr. J. Oliveira Ascensão, in “Invalidades das Deliberações dos Sócios”, p. 377, artigo inserido na Revista do IDET, “Problemas do Direito das Sociedades”, Almedina, abril de 2003 à luz do artº. 56º, do CSC, em confronto com o artº. 58, nº. 1, al. a), do mesmo Código.
No caso presente, a assembleia foi, de facto, convocada e bem convocada.
A nulidade da al. a), do artº. 56, nº.1, do Código das Sociedades Comerciais, respeita a uma assembleia não precedida de qualquer convocatória, ou seja, não precedida de qualquer convocatória, mas, ainda assim, alguns sócios reuniram-se e adotaram deliberações (vide “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Almedina, vol. I, p. 656). As deliberações aí tomadas são, pois, nulas.
Não é, de todo, o caso aqui em apreço, pois a assembleia geral foi convocada e bem. Pelo que o vício apontado pelo recorrente, a existir, diz respeito não à não convocação da assembleia geral, mas possui atinência com a figura da anulabilidade, pois argumenta que a deliberação tomada não constava da ordem de trabalhos da convocatória recebida.
Ora, as deliberações tomadas em assembleia irregularmente convocada serão apenas anuláveis (Vide “C.S.C. Jurisprudência e doutrina”, de Abílio Neto, 3ª. ed. maio 2005, p. 167, ainda atual) – cfr. artº. 58, nº. 1, al. a), do Código das Sociedades Comerciais, sendo que o prazo para a proposição da ação de anulação é de 30 dias contados a partir: a) Da data em que foi encerrada a assembleia geral; b) Do 3.º dia subsequente à data do envio da ata da deliberação por voto escrito; c) Da data em que o sócio teve conhecimento da deliberação, se esta incidir sobre assunto que não constava da convocatória (cfr. artº. 59, nº. 2 do Código das Sociedades Comerciais), prazo que já se encontra por demais ultrapassado.
Revertendo novamente para o caso em questão, verifica-se que nas assembleias em causa estiveram presentes, ou representados, todos os acionistas (da totalidade do capital social), entre eles o recorrente, tendo sido proposta a instauração de ação civil e criminal (a instauração de uma ação de responsabilidade da sociedade exigindo o dever de indemnização contra os administradores que no exercício de 2011 desempenharam funções executivas, G…, B… e F…, e proposta ainda a apresentação e a apresentação de uma denúncia contra os referidos administradores pela prática de atos que consubstanciam responsabilidade criminal para cada um deles), bem como a designação da Dra. I… como representante especial nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 75º do Código das Sociedades Comerciais, propostas que foram votadas e aprovadas com o voto favorável do C1…, representado pela sua sociedade gestora J…, não tendo os restantes accionistas votado a deliberação em causa, por simultaneamente serem os administradores contra quem será intentada a ação, de acordo com o disposto no artigo 75º do Código das Sociedades Comerciais.
Acontece que, nem o recorrente, nem qualquer outro acionista reagiu, mormente judicialmente, contra tais deliberações, apenas o fazendo em sede de contestação, apresentada ao abrigo do disposto no artigo 315º do Código de Processo Penal.
E nem se diga, conforme defende o recorrente, que a deliberação em causa teria que ser votada com maioria, o que não aconteceu, pois o voto do Fundo valia apenas 33,3%. A ser assim, quando esteja em causa a prática pela administração de uma sociedade de um crime semipúblico, e os seus administradores tiverem a maioria na assembleia geral, podem vetar qualquer deliberação que proponha a instauração de uma ação criminal contra aqueles e, assim, continuar a sua actividade criminosa.
De facto, face ao disposto nos artigos 75º, nº 3 e 384º, nº 6 do Código das Sociedades Comerciais, estando vetado ao recorrente e demais arguidos (acionistas) o exercício do direito de voto, temos por suficiente a aprovação da deliberação por um único acionista, ainda que sem maioria do capital (como já se referiu, estamos perante um caso em que os acionistas titulares de maioria absoluta podem ser destituídos e responsabilizados pelo voto da minoria, assim tornada maioria).
Assim sendo, neste contexto e face a todo o exposto, entendemos que a representante especial Dra. I…, designada por deliberação da Assembleia Geral do dia 16.07.2012, tem legitimidade para apresentar, em nome da sociedade D…, S.A., a queixa em causa, que se mostra efetuada de forma regular, sendo válida e eficaz, estando assegurada igualmente a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal.
Ainda que assim não fosse, sempre se teria de considerar que a eventual irregularidade (que não nulidade insanável uma vez que não está prevista como tal em qualquer disposição legal, nem se enquadra em qualquer das situações previstas no art. 119º do Código de Processo Penal) de representação da sociedade ofendida estava sanada, desde logo por não ter sido arguida tempestivamente. Com efeito, se pretendia arguir a irregularidade da representação da ofendida, o arguido recorrente deveria ter suscitado essa questão no prazo aludido no art. 123º, nº 1, do Código de Processo Penal, o que não fez (cfr. Ac. do TRP de 11.09.2013, citado no despacho recorrido e com relevância para o caso em apreço).
Alega ainda o recorrente que “a interpretação que se extraia das disposições conjugadas dos art°s 113° nº1, 224° nº3 do Código Penal, dos art°s 48° e 49° nº1 e 3 do Código de Processo Penal e 75° nº1 do Código das Sociedades Comerciais no sentido de que o Ministério Público pode exercer a ação penal, impulsionado por queixa criminal apresentada por representante especial de pessoa coletiva nomeado nos termos do art° 75° nº1 do CSC, deve ser julgada inconstitucional por violação do disposto no art° 219° nº1 da Constituição”. Ora, para além de nada mais acrescentar em torno de tal raciocínio, para abono da sua tese, face a todo o exposto, não se vislumbra de que forma se possa estar a bulir com as funções e o estatuto do Ministério Público, estabelecidos no artigo 219º da Constituição da República Portuguesa.
Assim sendo, está o recurso votado ao insucesso.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, mantendo o despacho recorrido.
Condena-se o recorrente, porque decaiu, totalmente, no pagamento da taxa de justiça, que se fixa no equivalente a 3 UC’s.
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Porto, 2 de dezembro de 2015
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva