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SEGREDO DE JUSTIÇA
RECORRIBILIDADE
Sumário
I - A validação a que alude o nº3 do artº 86º CPP, é materialmente um acto decisório do juiz e tais actos são, por regra, recorríveis. II – Ao proferir tal decisão de validação ao juiz está-lhe vedado elaborar um qualquer juízo de oportunidade ou de relevância sobre os interesses da investigação, pois o segredo de justiça destina-se primordialmente a garantir uma investigação eficaz e profícua que permita a recolha e preservação de prova dos crimes noticiados tendo em vista a boa administração da justiça. III – Sendo a regra da publicidade do processo, é necessário para a validação a que se refere o artº 86º3 CPP, que ocorra uma concretização das razões de facto e de direito que justificam que se afaste a regra da publicidade e se coloque o processo na face de inquérito sob segredo de justiça.
Texto Integral
Processo n.º 341/15.2T9AMT-A.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório
No âmbito do processo comum, em fase de inquérito, que, sob o n.º 341/15.2 T9AMT, corre termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Paredes, o Ministério Público, por despacho de 21.09.2015 (fls. 161-162 do processo principal, fls. 74-75 destes autos), determinou que “as investigações e os ulteriores termos dos presentes autos sejam tramitados sob o regime de segredo de justiça, durante a fase de Inquérito e pelo período de tempo máximo legalmente permitido” e, do mesmo passo, ordenou a remessa dos autos ao Sr. Juiz de instrução criminal “para validação, nos legais termos do disposto no artigo 86.º n.º 3 in fine do Código de Processo Penal”.
Porém, o Sr. Juiz de instrução, por despacho de 25.09.2015 (de que está uma reprodução a fls. 77-78 destes autos) decidiu não validar aquela decisão.
Contra este despacho se insurgiu o Ministério Público, dele interpondo recurso para esta Relação, com os fundamentos que explanou na respectiva motivação e que “condensou” nas seguintes “conclusões” (em transcrição integral):
A) «O M.P. invocou factos concretos para determinar a aplicação aos presentes autos do segredo de justiça, nomeadamente:
1. Investigam-se factos susceptíveis de consubstanciar a prática de um crime de insolvência dolosa p. e. p. pelo art. 227º nº 1 do C.P.P.
2. É suspeito da prática de crime de insolvência dolosa B…;
3. Há indícios de que o mesmo tenha alienado bens do activo tangível da sociedade insolvente em data anterior à insolvência com intuito de prejudicar credores.
4. Tais alienações foram efectuadas para as sociedades C… e D…;
5. O bom êxito da investigação do ilícito típico que se investiga e
6. A salvaguarda dos direitos fundamentais dos suspeitos e nomeadamente o bom nome do arguido e reputação dos suspeitos poderiam ficar comprometidos com a publicidade do processo,
7. O Despacho da P.G.D. do Porto nº 2/08 de 9-1-2008, mediante o qual o M.P., no início do inquérito, nomeadamente estando em causa o crime de insolvência dolosa, determina a aplicação aos autos do segredo de justiça.
Foi com base nestes fundamentos que o M.P. determinou a aplicação aos presentes autos do Segredo de Justiça, orientando tal decisão com base na sua estratégia e táctica de investigação à qual o Mmº Juiz de Instrução Criminal é completamente alheio.
B) O art. 20º nº 3 da CRP, estabelece que “a lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça”.
O legislador constitucional ao inserir esta protecção no art. 20º da CRP pretendeu não só proteger no processo penal a honra do arguido, a eficácia da investigação, mas ainda tutelar a reserva da intimidade da vida privada e familiar. Ou seja o seu alcance é bastante amplo. (cf. Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Jorge Miranda e Rui Medeiros, pág. 204)
C) A determinação do segredo de justiça nas fases preliminares do processo penal é plurissignificativa (Frederico de Lacerda da Costa Pinto “segredo de justiça e acesso ao processo” Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”) na medida em que:
a) Por um lado trata-se de um mecanismo destinado a garantir a efectividade social do princípio da presunção da inocência do arguido durante fases processuais que ainda estão cronologicamente distantes do julgamento, julgamento esse que pode inclusivamente, nem vir a ter lugar por força de um arquivamento do processo ou duma não pronúncia; b) Por outro é uma forma de garantir condições de eficiência da investigação e preservação de possíveis meios de prova, quer a prova obtida quer a eventual prova a obter… (mesma obra p. 71)
Estão assim em causa interesses públicos- a eficácia da investigação e interesses privados – a protecção dos interesses particulares, nomeadamente a presunção de inocência do arguido que poderá até mesmo nem sequer chegar a ser constituído como arguido.
D) O inquérito é da competência do M.P. a quem cabe exclusivamente (sublinhado nosso) a sua direcção.
“Competindo a direcção do inquérito ao Ministério Público, não é curial que o Juiz possa intrometer-se na actividade de investigação e recolha de provas, salvo se se tratar de actos necessários à salvaguarda dos direitos fundamentais. A direcção do inquérito pertence ao Ministério Público e só a ele compete decidir quais os actos que entende dever levar a cabo para realizar as finalidades do inquérito. Ora se a lei confia ao Ministério Público a direcção da investigação, permitindo-lhe dispor quais os actos que entenda necessários à realização da finalidade do inquérito, não se compreenderia que depois submetesse a actividade desenvolvida a fiscalização judicial. O que fica sujeito a fiscalização judicial é a decisão do Ministério Público no termo do inquérito” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal Tomo III, pág. 79).
E) Cabe então questionar com que fundamento o Ex.mo Sr. Dr. Juiz de Instrução Criminalnão validou a determinação do M.P. de aplicar aos autos o segredo de Justiça? Quais os direitos como “ juiz das liberdades” quis o Mmº Juiz proteger?
Quis, por mera hipótese académica, o Mmº Juiz de Instrução Criminal, determinar a estratégia de investigação? Pretende o Ex.mo Sr. Dr. Juiz dirigir a investigação e desde logo traçar a sua táctica de investigação dando a conhecer ao(s) suspeito(s) que contra ele corre um inquérito pelo crime de insolvência dolosa? o qual poderá mesmo numa fase preliminar ser arquivado e nem sequer o suspeito ser constituído arguido? Ou ainda, pretende o Mmº Juiz de Instrução Criminal deitar por terra toda a estratégia de investigação minando desde o início um processo que, desta feita, estará destinado ao insucesso?
F) O Mmº Juiz de Instrução Criminal fundamentou a sua decisão alicerçando-se em entendimentos pessoais “não se descortina facilmente- num caso eventual de insolvência dolosa- e à falta da invocação de facto, a necessidade dessa salvaguarda, por via do segredo de justiça (interno e externo)”desprezando por completo os argumentos do M.P. para determinar o afastamento da publicidade.
E mais, baseou o Mmº Juiz de Instrução Criminal num argumento inverídico quando declarou “…quando o decurso do próprio processo de insolvência decorreu de forma pública e onde a própria qualificação da insolvência foi ou está a ser discutida!
Tal não é verdade! Nos autos de insolvência ainda não corre o incidente de qualificação! (cf. Fls. 160). Decidiu assim, como dominus, do inquérito que o mesmo seguisse os seus termos publicamente, indiferente ao bom nome e reputação do suspeito bem como à estratégia e táctica de investigação.
G) O nº 3 do art. 86º do C.P.P. criou um mecanismo em que o titular do inquérito decide. Não é o Ex.mo Sr. Juiz que decide.
Tal decisão é da competência do Ministério Público, cabendo ao Ex.mo Sr. Dr. Juiz de instrução a sua validação ou não. A decisão é apenas do M.P.
Ao não validar tal decisão, o Ex.mo Sr. Dr. Juiz desconsiderou a função constitucional do Ministério Público de exercício da Acção Penal imiscuindo-se em função alheia e ajuizando sobre a mesma sem fundamento legal.
Note-se que a determinação ou não da aplicação aos autos do segredo de justiça ocorre, naturalmente, numa fase embrionária da investigação, pelo que, na maioria das vezes o M.P. decide com base no tipo legal de crime e dos inerentes constrangimentos que poderão surgir numa investigação pública, bem como nos inconvenientes que isso poderá eventualmente acarretar para o bom nome e reputação dos suspeitos. Corolário desta constatação é o Despacho 2/08 da Procuradoria Geral Distrital do Porto de 9-1, mediante a qual “O Ministério Público determinará, no início do inquérito (sublinhado nosso) a sujeição deste a segredo de justiça, sempre que esteja em causa nomeadamente o crime de insolvência dolosa.
H) Os interesses que estão na base da determinação pelo M.P., no início do inquérito do segredo de justiça, não mais poderão ser recuperados, caso o mesmo seja declarado público. Depois de um inquérito se ter tornado público, o feito de tal publicidade torna-se irreversível, na medida em que, o(s) suspeito(s) já viu o seu nome envolvido na prática de um facto ilícito e a estratégia da investigação, designadamente de recolha de prova foi posta em crise.
Ademais, pergunta-se que direitos o Ex.mo Sr. Dr. Juiz está a garantir se tal segredo de justiça pode, nos termos do disposto nos nºs 4 e 5 do art. 86º do C.P.P. ser levantado?
Na verdade, está na disponibilidade do M.P., oficiosamente, levantar o segredo de justiça ou mesmo na disponibilidade do Mmº Juiz de Instrução, designadamente a requerimento do arguido.
E mais, há várias possibilidades de se quebrar o segredo interno e manter o segredo externo, nomeadamente a requerimento do arguido, conforme dispõe o art. 89º do C.P.P.
I) A autonomia do Ministério Público caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade (art. 2º nº 2 do E.M.P.), a ele lhe competindo exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade.
“No sistema orientado pela legalidade o procurador ao proferir a decisão sobre o exercício da acção penal deve conhecer os casos decidendos à luz de princípios metodológicos judiciários, daí que se diga que os Magistrados do Ministério Público individualmente considerados encontram-se investidos de forma autónoma de todos os poderes inerentes ao exercício da acção penal e aí reside a mais alta expressão dos valores de legalidade e imparcialidade coessenciais à sua função” in “Direcção do inquérito Penal e Garantia Judiciária”, Paulo Dá Mesquita, p. 322, Coimbra Editora.
Conforme escreve a Ex.ma Desembargadora Drª Isabel Pais Martins, no seu voto de vencido no Ac. da Relação do Porto de 26-11-2008 disponível in itij.pt “a decisão do M.P. de sujeitar a segredo de justiça, ab initio, um inquérito numa avaliação dos interesses de investigação que são dados pela natureza do crime a investigar, não representa uma solução desequilibrada nem, como vimos, legalmente rejeitada.”. O juiz de Instrução para não validar a decisão do M.P. de afastar a regra da publicidade do inquérito, nos termos do nº 3 do art. 86º do C.P.P. terá de dispor de elementos que o levam a rejeitar essa solução do conflito. Não basta escudar-se sem mais na regra geral da publicidade do processo como valor absoluto que lhe caiba sempre defender.”.
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O recurso foi admitido (despacho a fls. 95), mas não se deu cumprimento ao disposto no artigo 411.º, n.º 6, do Cód. Proc. Penal por não haver sujeitos processuais [designadamente, não há, ainda, arguido(s) constituído(s)] por ele afectados], tendo o Sr. Juiz de instrução lavrado, de imediato, despacho de sustentação da sua decisão e ordenado a subida dos autos ao tribunal de recurso.
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Já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II - Fundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, a delimitar o objecto do recurso e a fixar os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).[1]
Nem com muito boa vontade se poderá considerar que as “conclusões” apresentadas pelo recorrente são as proposições sintéticas que emanam do que se expôs e considerou ao longo das alegações.
Com efeito, o recorrente não fez o esforço de síntese (da substância da fundamentação do recurso) que lhe é exigível, pois o que apresentou como “conclusões” mais não é que a reprodução, quase integral, do que alegou no “corpo da motivação” do recurso.
Ainda assim, não se fez uso da faculdade prevista no n.º 3 do artigo 417.º do Cód. Proc. Penal, pois é fácil a identificação das questões suscitadas neste recurso.
O ponto que aqui se discute é o de saber se o processo, nesta fase de inquérito em que se encontra, deve decorrer com exclusão da publicidade (interna e externa), ou seja, se deve vigorar o segredo de justiça, como foi determinado pelo Ministério Público.
As questões postas à apreciação deste tribunal de recurso são, por um lado, saber se o Sr. Juiz de instrução, ao recusar a validação da decisão do Ministério Público, excedeu os poderes que a lei lhe confere e, por outro, se os elementos disponíveis nos autos justificavam decisão diversa, ou seja, se o Sr. Juiz não ponderou correctamente os interesses em presença, que impunham a validação judicial daquela decisão.
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O segredo de justiça tornou-se tema recorrente de debate público e não correremos grande risco de errar se dissermos que o cidadão comum medianamente atento e informado sabe que, actualmente, a regra é a publicidade do processo penal, logo a partir do inquérito (artigo 86.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal)[2].
Excepcionalmente, nas situações definidas nos n.os 2 e 3 do artigo 86.º do Cód. Proc. Penal, pode determinar-se a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quer na sua dimensão interna (que respeita aos sujeitos e participantes processuais directamente envolvidos na concreta relação processual), quer na sua projecção externa (que se reporta à generalidade das pessoas, estranhas a essa relação processual).
Para o caso, interessa considerar, apenas, a situação contemplada no n.º 3 daquele preceito, nos termos do qual, se na avaliação que faz do caso concluir que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justificam, o Ministério Público pode determinar a aplicação ao processo do segredo de justiça.
Assim fez a digna magistrada titular do inquérito, justificando a sua opção nos seguintes termos (transcrição da parte relevante): “In casu, investigam-se factos susceptíveis de consubstanciar a prática de um crime de insolvência dolosa p.e.p. pelo art. 227º nº 1 do C.P.P.
É suspeito de tal crime B….
Há indícios de que tal suspeito tenha alienado previamente à insolvência todo o património activo tangível da sociedade insolvente eventualmente às sociedades C…, S.A.” e D…, Lda.
Tais factos indiciam a alienação/ocultação do activo da sociedade insolvente com intenção de prejudicar os credores.
Ora, o bom êxito da investigação do ilícito típico que se indicia bem como a salvaguarda dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais, nomeadamente o bom nome, reputação dos suspeitos, poderiam ser comprometidos com a publicidade do processo.
Assim, atento o teor dos indícios reunidos, a especificidade da matéria de facto a que o objecto dos presentes autos se reporta e ainda o objectivo que com as investigações se pretende alcançar, ao abrigo do preceituado no art. 86º nº 3 do Código de Processo Penal e tendo em conta o Despacho da P.G.D. do Porto nº 2/08 de 9-1-2008, determino que as investigações e os ulteriores termos dos presentes autos sejam tramitados sob o regime de segredo de justiça, durante a fase do inquérito e pelo período de tempo máximo legalmente permitido”.
Porém, a determinação do Ministério Público tem de ser validada pelo juiz de instrução, validação que aqui não aconteceu, tendo o Sr. Juiz justificado assim a sua recusa:
“Resulta do artigo 86.°/3 do Código de Processo Penal que, na fase de inquérito, o Ministério Público pode decidir a aplicação ao processo do segredo de justiça, nos termos aí expressos.
Como se sabe, nos termos do disposto no artigo 97.°/3 do Código de Processo Penal, os actos decisórios do Ministério Público tomam a forma de despacho devendo, nos termos do disposto no n.º 5, tal acto decisório ser fundamentado, especificando os motivos de facto e de direito da decisão.
No caso dos autos, após tecer algumas considerações teóricas, como fundamento para a decisão de sujeitar os presentes autos a segredo de justiça o Ministério Público invocou:
a) - o bom êxito da investigação;
b) - a salvaguarda dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais, nomeadamente o bom nome e reputação dos suspeitos que poderiam ser comprometidos com a publicidade do processo
Ou seja, vistas bem as coisas, o MP limitou-se a reproduzir os dizeres legais, considerando o disposto no n.º 3 do artigo 86.° do CPP: sempre que o ministério público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justificam, pode determinar a aplicação (...) do segredo de justiça.
Ora, relativamente ao fundamento referido em b), parece relativamente óbvio que em abstracto o segredo externo (e já não interno) se mostraria suficiente para a respectiva salvaguarda.
Mas, mesmo assim, não se descortina facilmente - num caso eventual de insolvência dolosa - e à falta da invocação de facto, a necessidade dessa salvaguarda, por via do segredo de justiça (interno e externo), quando o decurso do próprio processo de insolvência decorreu de forma pública e onde a própria qualificação da insolvência foi ou está a ser discutida.
Já relativamente ao referido em a), trata-se de um fundamento absolutamente genérico, também por isso utilizado pelo legislador, mas que não deixa de ser válido quer o processo esteja ou não em segredo de justiça, pois não se vislumbra que o legislador tem erigido uma regra (a da publicidade) que atenta contra o bom êxito das investigações.
Assim, considerando os termos em que o Ministério Público o decidiu não valido a decisão em causa - artigo 86.°/3, parte final, do Código de Processo Penal”.
A digna magistrada do Ministério Público/recorrente, invoca a exclusividade na direcção do inquérito, que compete ao Ministério Público, para pôr em causa o fundamento da decisão judicial de não validação da sua própria determinação de excluir a publicidade do processo nessa fase (“com que fundamento o Ex.mo Sr. Dr. Juiz de Instrução Criminal não validou a determinação do M.P. de aplicar aos autos o segredo de Justiça?”) – conclusões D) e E) – para logo depois (conclusão G)), afirmar que quem decide nesta matéria (de sujeição do processo, na fase de inquérito, a segredo de justiça) é o Ministério Público e não o juiz (“a decisão é apenas do M.P.”), pelo que, subentende-se, o juiz seria uma espécie de “yes man” que se limitaria a dar o seu aval à determinação do magistrado titular do inquérito[3], sob pena de “desconsiderar” a função constitucional do Ministério Público de exercício da Acção Penal, “imiscuindo-se em função alheia e ajuizando sobre a mesma sem fundamento legal”.
Com esta argumentação, se, como taxativamente afirma, o juiz nada decide, o recorrente deveria, logicamente, concluir que o despacho judicial [de (não) validação da decisão do Ministério Público] é irrecorrível.
É, aliás, essa a conclusão a que chega José M. Damião da Cunha, Prazos de encerramento do inquérito, segredo de justiça e publicidade do processo, in “As Alterações de 2010 ao Código Penal e ao Código de Processo Penal”, CEJ, coordenação de Rui do Carmo e Helena Leitão, Coimbra Editora, p. 141, como decorre do seguinte trecho da sua comunicação:
«De facto, estamos convictos de que as diversas “intervenções” (englobadas sob o nome de “validação”, “autorização”, “determinação”, etc.) judiciais na fase de inquérito, que serestrinjam estritamente à matéria de "segredos"(não contendendo, pois, directamente com direitos fundamentais), não constituem decisões de "contraditório/audiência de partes", ou decisões de resolução de conflitos de interesses, em sentido estrito ou em sentido material. Mais ainda, não sepodem sequer configurar como decisões de carácter análogo (tanto no sentido, como no procedimento), p. ex., às decisões de aplicação de medidas de coacção.
É, quanto a nós, essa a exacta razão que justifica que estas decisões não sejam sequer recorríveis (em regra; também aqui o CPP não adopta um critério de uniformidade, quanto a esta opção)».
Cremos ser inegável uma certa similitude entre a exigência de validação judicial da decisão do Ministério Público de sujeitar o processo, na fase de inquérito, a segredo de justiça e a exigência de concordância na suspensão provisória do processo (artigo 280.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal) e é sabido que o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de que “a discordância do Juiz de Instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do n.º1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, não é passível de recurso” (AUJ n.º 16/2009, de 18.11.2009).
No entanto, na validação daquela decisão sobre segredo de justiça, o juiz tem de ponderar os interesses em conflito e decidir qual ou quais devem prevalecer, sancionando, ou não, a decisão do Ministério Público. Não se trata de uma mera formalidade essencial e de conformação da decisão do Ministério Público.
A validação a que alude o n.º 3 do artigo 86.º do Cód. Proc. Penal é, materialmente, um acto decisório do juiz e os actos decisórios são, por regra, recorríveis (artigos 399.º e 400.º do mesmo compêndio normativo).
É essa a opinião expressa pelo Professor G. Marques da Silva[4], como se colhe da seguinte passagem:
“Pode questionar-se se os despachos do juiz proferidos ao abrigo dos n.os 2 e 3 são ou não recorríveis, atenta a disposição expressa do n.º 5 que dispõe que o despacho do juiz de instrução que decide o requerimento de levantamento do segredo é irrecorrível. Não vemos que haja razão para distinguir e seríamos, por isso, inclinados a considerar que também os despachos proferidos no âmbito dos n.os 2 e 3 do art. 86.º seriam irrecorríveis, não fora o princípio geral da recorribilidade de todas as decisões que não forem excluídas por lei (arts. 399.º e 400.º). Dado que a lei só exclui a recorribilidade relativamente ao despacho proferido ao abrigo do n.º 5, entendemos que nos demais casos o despacho do juiz é recorrível nos termos gerais”[5].
Ultrapassada a questão da recorribilidade, cumpre conhecer dos fundamentos do recurso e, como já se enunciou, o primeiro tema de análise é o dos poderes do juiz de instrução nesta matéria. Concretamente, ao recusar a validação da decisão do Ministério Público, o Sr. juiz de instrução excedeu os poderes que a lei lhe confere, é dizer, “imiscuiu-se em função alheia”, invadiu reduto do titular da acção penal, intrometendo-se na direcção da investigação, como acusa o recorrente? A sua intervenção põe em causa a autonomia do Ministério Público e a estrutura acusatória do processo penal?
Há quem entenda que a exigência de que o juiz de instrução valide a decisão do Ministério Público de sujeição dos autos a segredo de justiça durante o inquérito é uma excrescência legal, um corpo estranho, não só se revela desadequada e desnecessária como é inconstitucional a norma que a prevê (n.º 3 do artigo 86.º do Cód. Proc. Penal), por violação dos artigos 32.º, n.º 5 e 219.º da CRP[6].
O Tribunal Constitucional pronunciou-se, pela primeira vez, sobre a constitucionalidade daquela norma no Acórdão n.º 110/2009 e em confronto estiveram a tese (vencida) sustentada pelos Srs. Conselheiros Maria João Antunes e Carlos Pamplona de Oliveira, segundo a qual “a validação, pelo juiz de instrução, da determinação do Ministério Público em aplicar ao processo, durante a fase de inquérito, o segredo de justiça, quando os interesses da investigação o justifiquem, põe em causa a repartição constitucional das funções de investigação e acusação, por um lado, e julgamento, por outro”, sendo que a tal determinação “não corresponde um ataque a direitos, liberdades e garantias que justifique uma intervenção ulterior do juiz de instrução, no exercício da função processual que a Constituição lhe reserva em sede de inquérito”, uma vez que “considerando o que implica a publicidade do processo, (…) não é detectável qualquer limitação ou restrição do direito de defesa do arguido, quando o Ministério Público determina, em nome dos interesses da investigação, a aplicação ao processo do segredo de justiça” e a tese (vencedora) segundo a qual tendo em consideração as consequências resultantes da sujeição de um processo penal ao regime do segredo de justiça (o arguido, enquanto o processo é público, pode consultar livremente os respectivos autos e obter cópias, extractos e certidões de qualquer parte deles, mediante requerimento dirigido ao Ministério Público e a partir do momento em que ele é sujeito a segredo de justiça deixa de ter esse livre acesso), a sua determinação com fundamento em que o conhecimento das diligências de investigação pelo suspeito ou por terceiros coloca em causa os interesses da investigação, nomeadamente a definição da responsabilidade criminal, o apuramento dos factos e a obtenção de provas, implica afectações negativas do direito de defesa do arguido, cujo exercício efectivo exige o conhecimento integral do processo, pelo que da decisão de colocação do processo em regime de segredo de justiça na fase de inquérito resulta uma perda do nível de garantias da efectividade do direito de defesa do arguido. Daí que a intervenção do Juiz de Instrução nunca possa ser encarada como uma intromissão na direcção do inquérito violadora duma alegada reserva funcional do Ministério Público[7].
Embora a exigência do controlo judicial da legalidade da decisão final do inquérito (seja ela qual for) seja uma questão (doutrinária) em aberto, é pacífico que a estrutura acusatória do processo impõe que essa fase preliminar do processo seja da efectiva titularidade (se se quiser, do exclusivo domínio) do Ministério Público (sem qualquer capitis diminutio[8]) e, portanto, não pode haver interferência do juiz no modo de condução das investigações.
A função do juiz na fase de investigação é uma função de garantia: na medida em que nela estão co-envolvidos interesses potencialmente conflituantes, cabe-lhe harmonizar esses interesses (através duma compressão dos direitos em conflito, proporcionalmente distribuída), competindo-lhe, ainda, intervir em situações em que possam ser afectados negativamente direitos fundamentais dos cidadãos nessa fase processual, ou seja, “praticar, ordenar ou autorizar actos processuais singulares que, na sua pura objectividade externa, se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias das pessoas constitucionalmente protegidos” (FIGUEIREDO DIAS, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 23).
O que não reúne consenso é a questão de saber se da determinação da exclusão da publicidade do processo resulta uma tal limitação ou restrição do direito de defesa do arguido que justifique a intervenção do juiz de instrução.
Prevendo a lei essa intervenção, importa esclarecer em que termos ela deve operar-se, ou melhor, determinar os parâmetros que hão-de orientar o juiz quando tem que decidir se valida a determinação do Ministério Público.
Ao juiz não cabe aferir da bondade dos interesses invocados para justificar a determinação do segredo, está-lhe vedado elaborar um qualquer juízo de oportunidade ou de relevância sobre os interesses da investigação.
Como bem explica o Desembargador Pedro Vaz Pato (O Regime do Segredo de Justiça no Código de Processo Penal Revisto, Revista do CEJ, n.º 9),
“A função do juiz de instrução, no nosso sistema, é garantista (o “juiz das liberdades”), não de concorrência ou sobreposição em relação às funções do Ministério Público no inquérito. A responsabilidade indeclinável do juiz de instrução prende-se, antes, com o balanço e a ponderação entre as exigências da investigação (aceitando, à partida, que essas exigências são como o Ministério Público as configura), por um lado, e o direitos de defesa do arguido, por outro lado.
São este tipo de juízo e de ponderação (não o juízo e ponderação a respeito dos interesses da investigação, por si só) que são específicos da função do juiz de instrução. Portanto, o que pode levar o juiz a divergir do Ministério Público não é uma sua divergência a respeito dos interesses da investigação, como se devesse ajuizar a respeito desses interesses, mas uma ponderação entre esses interesses (aceitando-os como o Ministério Público os configura) e os direitos de defesa do arguido”.
É o que, também, propugna Sandra Oliveira e Silva (“O segredo de justiça no horizonte da reforma do Código de Processo Penal. Algumas reflexões”,in “Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias”, vol. III, pág. 1185-1186) quando escreve que o juiz de instrução, nesta intervenção, deve reconduzir a sua acção a uma tarefa de ponderação dos interesses em conflito – os direitos de defesa do arguido e a eficácia da investigação criminal – não discreteando sobre este último interesse e reconduzindo-se à sua função de juiz das liberdades.
Não inteiramente coincidente com estas posições é o entendimento do Professor José M. Damião da Cunha, Loc. Cit., assim expresso:
“Com efeito, estando em causa a fase de inquérito, qua tale - fase esta que é (repetimos) predeterminada por um certo escopo/finalidade e é (relembre-se) da titularidade do MP - é óbvio que, quando a decisão/opção sobre a permissão de acesso aos autos (no todo ou em parte) seja relevante para a correcta e eficaz prossecução das finalidades do inquérito (isto é, no fundo, o verdadeiro "tema" do segredo em processo penal), não será legítimo ao juizcolocar-se, por qualquer forma, na posição de "obstáculo" ou então na de substituir-se à direcção do inquérito pelo MP. Neste sentido, há sempre que reconhecer um certo poder, rectius, um certo “privilégio/preferência de avaliação”que ao MP deve caber, na determinação sobre a opção pelo acesso ou não aos autos (ou a alguns deles), na estrita medida em que tal opção assuma relevo para a prossecução das finalidades do inquérito. Interpretação que obviamente não afasta o recurso aos princípios atrás referidos, como p. ex., os da proporcionalidade, da concordância prática, da precariedade, etc; antes os pressupõe necessariamente.
Assim, a intervenção do juiz, nesta concreta matéria, não deve ser equiparada à de um terceiro "resolutor de conflitos"; de facto, nestas questões, a função dojuiz consistirá sobretudo em averiguar sobre sea recusa/oposição de acesso aos autos (ou então a determinação da não publicidade), por parte do MP, é desproporcionada, injustificada ou sem qualquer fundamento razoável”.
É tempo de nos determos sobre a situação concreta que é posta à nossa apreciação.
O segredo de justiça destina-se, primordialmente, a garantir uma investigação eficaz e profícua, que permita a recolha e preservação de prova do(s) crime(s) noticiado(s), eventualmente cometido(s), tendo em vista a boa administração da justiça[9].
É, geralmente, reconhecido que na primeira fase do processo penal os interesses da investigação, por um lado, e, ainda que de forma indirecta ou mediata, os direitos das pessoas (sejam os suspeitos agentes dos crimes, sejam os ofendidos[10]) podem justificar a exclusão da publicidade.
Mas, se ninguém nega que na investigação da criminalidade grave, violenta, organizada ou complexa a publicidade do processo, inevitavelmente, compromete o êxito (ou conduz mesmo ao fracasso) da investigação e por isso se impõe o segredo de justiça[11], já quanto à pequena e média criminalidade não existe idêntico consenso, embora tenda a prevalecer o entendimento de que para a generalidade dos crimes que se situam nesse segmento não se justifica o segredo de justiça.
Isto sem prejuízo de se considerar que a avaliação deve ser casuística.
É nessa linha de entendimento que se posiciona a Directiva do PGR, de 9 de Janeiro de 2008, em que se determinou que o Ministério Público, no início do inquérito, sujeite o processo a segredo de justiça quando esteja em investigação criminalidade grave, especificando-se que se trata dos crimes previstos no artigo 1.º, alíneas i) a m), do Código de Processo Penal, na Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, e na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro[12].
Como, pertinentemente, se sublinha no despacho recorrido, a decisão do Ministério Público é, necessariamente, fundamentada, não pode limitar-se a reproduzir os termos da lei.
Aliás, se a regra é a publicidade do processo (e, portanto, existindo um direito dos sujeitos processuais de acederem aos autos), toda a limitação tem de ser fundamentada.
No entanto, também neste ponto, existe alguma controvérsia jurisprudencial.
Para uma corrente, a intervenção do juiz de instrução na definição do regime de segredo de justiça na fase de inquérito teria, necessariamente, como limites a autonomia do Ministério Público e a eficácia da investigação, bastando a indicação da natureza do crime para uma avaliação dos interesses da investigação[13].
Defende-se mesmo que na investigação dos crimes a que alude a referida Directiva “o MP procede automaticamente e ab initio à determinação da sujeição a segredo de justiça do inquérito, não se admitindo qualquer ponderação sobre a necessidade do segredo de justiça”[14].
Porém, é, claramente, dominante o entendimento de que tem de haver uma concretização, mínima que seja, das razões, de facto e de direito, que justificam que se afaste a regra da publicidade e se coloque o processo, na fase de inquérito, sob segredo de justiça, sob pena de se estar a transformar em regra o que é excepção[15].
Assim, havendo uma possibilidade séria de prejuízo para a investigação, o despacho do Ministério Público deve discriminar se o perigo respeita à aquisição, à conservação ou à veracidade da prova (sem que tenha que mencionar as concretas diligências a realizar); recaindo a possibilidade de prejuízo nos direitos de qualquer sujeito ou participante processual, deve discriminar o tipo de prejuízo em causa[16].
No caso, o Ministério Público invocou os interesses da investigação (o “bom êxito da investigação”) e “a salvaguarda dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais, nomeadamente o bom nome, reputação dos suspeitos”.
No entanto, não se enxerga como é que a investigação de uma possível insolvência dolosa pode pôr em causa o bom nome e a reputação do(s) visado(s), tanto mais que, como bem se faz notar no despacho em crise, já houve um processo de insolvência que decorreu de forma pública e, a haver razões para crer que esses bens podem ser atingidos, o segredo interno não seria, seguramente, a melhor forma de evitar essa consequência.
Na realidade, como decorre da parte decisória do despacho do Ministério Público (“atento o teor dos indícios reunidos, a especificidade da matéria de facto a que o objecto dos presentes autos se reporta e ainda o objectivo que com as investigações se pretende alcançar”), não foram os direitos do suspeito que estiveram no horizonte das preocupações da digna magistrada do Ministério Público ao determinar a colocação do processo em segredo de justiça.
Foram, isso sim, os interesses da investigação ou o “bom êxito da investigação”.
E como é que, na perspectiva do recorrente, a eficiência da investigação pode ser irremediavelmente prejudicada pela publicidade do processo?
De acordo com o que se pode ler no despacho do MP, suspeito do crime de insolvência dolosa é B…, pois haverá indícios de que este, previamente à insolvência da “E…, L.da”, alienou “todo o património activo tangível da sociedade insolvente” às sociedades “C…, S.A.” e “D…, L.da”.
Haveria que apurar se, efectivamente, a alienação/ocultação do activo da sociedade insolvente ocorreu e se o suspeito agiu com intenção de prejudicar os credores.
Impõe-se, então, concluir que, de acordo com o Ministério Público, a investigação dos factos indiciados será muito simples e célere.
Por isso não se vislumbra que finalidades, que actos e procedimentos de investigação, neste caso em que está em causa a eventual prática de um crime de insolvência dolosa, são incompatíveis com um processo aberto desde o início.
Dir-se-á mesmo que este é um caso em que, manifestamente, não existe fundamento razoável para a exclusão da publicidade do processo e se limite as garantias de defesa do arguido que o ocultamento pretendido implicará.
III – Dispositivo Pelo exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao presente recurso e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).
Porto, 09-12-2015
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
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[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Embora, a cada passo, tenhamos de ouvir nos órgãos de comunicação social verdadeiros dislates sobre a matéria proferidos por pessoas que se acham habilitadas a falar sobre o assunto.
[3] A suposta “automaticidade” do acto do juiz (a par da pretensa colocação do juiz “numa função de defesa dos interesses da investigação e não de defesa dos direitos e liberdades fundamentais”) era a justificação alinhada na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 12/XI, que esteve na origem da Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto, para a proposta de eliminação da necessidade de validação pelo juiz da decisão do MP de sujeitar o processo a segredo de justiça. A verdade é que tal propósito foi abandonado (é sabido que aquele diploma, em matéria de segredo de justiça, limitou-se a introduzir alterações pontuais ao artigo 86.º e o seu n.º 3 manteve-se inalterado) e isso não pode deixar de significar que se reconheceu a necessidade (se não mesmo a imperatividade) da intervenção do juiz.
[4] Curso de Processo Penal, II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, p. 42
[5] Também assim, Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal – Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2.ª edição, p. 201, que cita, em abono, duas decisões, uma do Presidente e outra do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Évora, respectivamente, de 08.01.2008 e de 27.12.2007.
[6] O grande paladino da tese da inconstitucionalidade é Paulo Pinto de Albuquerque (cfr. anotações ao artigo 86.º no seu Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2.ª edição actualizada, p. 240-241).
Já o Professor G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, p. 51, não vislumbra na necessidade de intervenção judicial qualquer inconstitucionalidade, pois que “a partir do momento em que a publicidade do inquérito é configurada pela lei como um direito dos sujeitos processuais, nada obsta, ou melhor, impõe-se que a sua restrição só possa ser determinada pelo juiz”. Isto porque “o direito à publicidade do processo, pelo menos no que respeita à publicidade interna e ao arguido, prende-se directamente com o seu direito de defesa”.
[7] Doutrina que o Tribunal Constitucional reafirmou nos Acórdãos n.os 234/2011, 275/2011, 328/2011 e 352/2011.
[8] Se bem que a necessidade de validação judicial de uma decisão do Ministério Público, como a prevista no artigo 86.º do Código de Processo Penal (e outras disposições normativas, de idêntico teor, existem no mesmo compêndio normativo), nas palavras do Professor M. Costa Andrade (“Bruscamente no verão passado…”, Rev. Leg. Jurisp., 137.º, p. 234), seja reveladora de “uma apriorística e generalizada desconfiança face à actuação do Ministério Público”.
[9] No entanto, na doutrina, é corrente a referência a uma “tríplice ordem de finalidades” que com o segredo de justiça se almeja: o interesse do Estado na realização da justiça que exige uma investigação eficiente e a preservação de meios de prova, o que passará por prevenir o prejuízo que adviria para a investigação do conhecimento, pelos arguidos, das diligências investigatórias planeadas ou em curso de realização, que lhes permitiria perturbar ou dificultar a reunião de prova; evitar o dano que pode advir para a honra e dignidade do arguido ou simples suspeito a divulgação de factos que podem vir a ficar por provar e protegê-lo de imputações que podem mesmo revelar-se falsas; protecção das pessoas em geral contra os abusos de alguma imprensa que cultiva o gosto pela especulação e pelo sensacionalismo e, em particular, as vítimas (o caso mais flagrante será o das vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual) e outros participantes processuais que podem ficar expostos a retaliações e vinganças.
Assim, entre outros, M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I, 3.ª edição, 2008, p. 576; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, p. 42; Frederico da Costa Pinto, Segredo de Justiça e Acesso ao Processo, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, p. 71; Conselheiro Henriques Gaspar, comentários ao artigo 86.º in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 295/296.
É nesse sentido que, também, aponta o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (CC da PGR) n.º 121/80, no qual se afirma que o segredo de justiça serve “variados interesses, alguns em notória tensão dialéctica: o interesse do Estado na realização de uma justiça isenta e independente, poupada a intromissões de terceiros, a especulações sensacionalistas ou a influências que perturbem a serenidade dos investigadores e dos julgadores; o interesse de evitar que o arguido, pelo conhecimento antecipado dos factos e das provas, actue de forma a perturbar o processo, dificultando o apuramento daqueles e a reunião destas, senão mesmo a subtrair-se à acção da justiça; o interesse do mesmo arguido em não ver publicamente revelados factos que podem não vir a ser provados sem que com isso se evitem graves prejuízos para a sua reputação e dignidade; enfim, o interesse de outras partes no processo, designadamente os presumíveis ofendidos, na não revelação de certos factos prejudiciais à sua reputação e consideração social, como nos crimes contra a honestidade”.
No entanto, no Parecer do mesmo CC da PGR n.º 60/2003, embora se admita que, de forma indirecta ou imediata, a preservação do segredo de justiça serve, também, a tutela do princípio da presunção de inocência do arguido, o seu bom nome, reputação e intimidade da vida privada, já se afirma o “bom êxito” da investigação como valor jurídico fundamental a preservar:
“Podemos dizer que, de um ponto de vista estritamente jurídico, o valor ou bem jurídico que de forma directa e imediata é protegido pela previsão do segredo de justiça é a qualidade e bom êxito da investigação de crimes e, em última instância, da justiça penal. No fundo, o segredo de justiça funciona como pressuposto ou um instrumento, positivo ou negativo, do sucesso da qualidade da investigação que está a ser desenvolvida do ponto de vista processual penal”.
É nesta linha de pensamento que se posiciona A. Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, III, Coimbra Editora, p. 645/646, em comentário ao artigo 371.º:
“§ 5 Muito embora não se negue que os diversos fundamentos usualmente invocados assumam inequívoco relevo, não nos parece que todos eles apresentem suficiente densidade normativa para justificar a importante restrição de direitos que o segredo de justiça leva necessariamente implicada e que, por isso, deve mostrar-se constitucionalmente ancorada. Assim, não julgamos que a presunção da inocência do arguido por si mesma justifique o segredo de justiça. Nem o segredo interno, que, como se assinalou, comporta para os destinatários, neste caso arguido, a impossibilidade de aceder ao conteúdo de certas diligências processuais. Pelo contrário, tal ocultamento implicará uma diminuição efectiva das garantias de defesa do arguido em nada contribuindo para que a sua inocência saia reforçada. E não serve igualmente para fundamentar o próprio segredo externo, ou seja, a impossibilidade de a comunidade em geral ter acesso ao conteúdo do processo. Com efeito, aceitar que a divulgação dos termos de um processo implica uma limitação à presunção de inocência deveria estender a reserva a todas as fases processuais, incluindo as de audiência de julgamento. Por outro lado, um correcto esclarecimento sobre o processo pode contribuir de forma mais perfeita para o reforço daquela presunção do que a especulação e o mistério em que os casos tantas vezes se movem”.
[10] O caso mais flagrante é o das vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual.
[11] Como observa Frederico da Costa Pinto, Loc. Cit., p. 70, “não há investigação criminal bem sucedida, em especial na criminalidade organizada, complexa ou sofisticada, sem uma envolvente mínima de segredo e não pode haver uma acusação seriamente sustentada se, antes de a mesma ser deduzida, a investigação de apoio tiver sido confrontada com manipulação ou destruição de provas, adulteração dos factos ou ocultação de eventuais testemunhas”.
[12] Não cabe aqui o crime de insolvência dolosa tipificado no artigo 227.º do Código Penal.
[13] Assim, a declaração de vencida da então Desembargadora Isabel Pais Martins no acórdão desta Relação de 26.11.2008, invocada pelo recorrente.
[14] Paulo Pinto de Albuquerque, Ob. Cit., 241.
[15] Cfr., entre outros, os acórdãos da Relação de Coimbra de 10.02.2010, da Relação de Évora de 04.05.2010 e, desta Relação do Porto, além do já citado acórdão de 26.11.2008, o acórdão de 24.09.2008.
[16] Paulo Pinto de Albuquerque, Ob. Cit., anotação 8 ao artigo 89.º, que vale para o despacho previsto no artigo 86.º, n.º 3.