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DÍVIDA DE CÔNJUGES
PROVEITO COMUM
Sumário
- Dividas dos cônjuges. - Proveito comum. Conceito de direito. - Ónus probandi. I - O "proveito comum do casal" é conceito de direito que não deve, assim, figurar na base "instrutória", pelo que a Autora deve alegar o fim concreto da divida. II - Se o tribunal convida a Autora a aperfeiçoar o articulando, justificando amplamente os motivos quer que se impõe alegar o fim concreto da divida construída e apontando os factos que deveriam ser alegados, é correcto julgar a acção improcedente no caso daquela se recusar a faze-lo.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
Técnicrédito-Financiamento de Aquisições Crédito,S.A. propôs acção declarativa com processo sumário contra (A) e (B) pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de 1.610.002$00, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa anual de 24,33% desde 21 de Agosto de 1999 até integral pagamento, bem como o imposto de selo que, à referida taxa de 4%, sobre estes juros recair.
O pedido resulta do facto de o Réu marido, que contratou com a A. mútuo destinado à aquisição de um veículo a adquirir em 60 prestações à taxa de juro anual de 20,33%, ter deixado de pagar prestações a partir da 11ª assim se sujeitando à cláusula penal de 4% a acrescer à taxa contratual estipulada.
No tocante à Ré mulher, parte não contratante, a A. fundou a sua responsabilização referindo (artigo 24º da petição inicial) que"o empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos RR - atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR, pelo que a Ré (B) é solidariamente responsável com o Réu (A), seu marido, pelo pagamento das importâncias referidas".
A acção não foi contestada tendo sido ambos os RR citados.
No entanto, inexistindo agora cominatário pleno, tribunal proferiu despacho de aperfeiçoamento muito fundamentado onde explicou os motivos por que à luz do disposto no artigo 1691º/1, alínea c) do CC se impunha à A. alegar os factos materiais concretos que, a provarem-se, "demonstrem que a intenção ou fim visado pelo réu marido ao contrair o empréstimo era de beneficiar ou trazer proventos ao casal, isto é, que o empréstimo teve por fim o interesse comum de ambos os cônjuges ou o da família por eles a constituir".
E prosseguiu o despacho: "e cumpre aqui salientar que para isso não basta à A. alegar que com tal empréstimo o réu marido procedeu à compra de um veículo, uma vez que esse veículo pode visar satisfazer um interesse exclusivo daquele (por exemplo, apenas é utilizado por ele e no seu interesse), tal como não tem qualquer relevância a alegação de o veículo referido se destinar ao património comum já que, para a averiguação da existência ou não de proveito comum, nada interessa saber se aquele bem vem a assumir a natureza de bem comum ou próprio (há bens próprios que são adquiridos no interesse comum do casal ou para satisfação das necessidades de toda a família existindo aqui proveito comum - tal como existem bens comuns que são adquiridos para satisfação de um interesse ou necessidade pessoal e exclusiva de um dos cônjuges - inexistindo, aqui, portanto, qualquer proveito comum; o regime de bens não tem qualquer interesse para a questão do proveito comum, apenas assumindo relevância para a partilha de bens - por morte de um dos cônjuges, na sequência de divórcio ou separação de bens em virtude da pendência de execução contra um dos cônjuges.
Concluindo: deverá a A. vir alegar os factos materiais que consubstanciam a invocada conclusão e o invocado conceito de direito de 'o empréstimo reverteu em proveito comum", bem como deverá vir alegar os factos que demonstram que a dívida foi contraída pelo cônjuge administrador e dentro dos limites dos seus poderes de administração, sendo certo que, não o fazendo, a acção terá de improceder relativamente à Ré mulher".
Muito mais extenso do que a transcrição feita é o mencionado despacho de aperfeiçoamento que o tribunal proferiu nos termos dos artigos 508º/1, alínea b) e 787º do CPC.
Perante este despacho a A. disse: "tendo sido notificada do despacho de fls, intitulado como 'despacho de aperfeiçoamento', vem expressamente declarar nos autos que não aceita o convite que no final do referido despacho lhe foi feito, já que a petição não sofre de qualquer insuficiência ou deficiência, maxime daquelas a que é feita referência no dito despacho de fls..".
Face à absolvição da Ré, a A. recorre considerando que a referida expressão "o empréstimo reverteu em proveito comum do casal dos RR - atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR" contém matéria de facto e, por isso, os RR não podem deixar de ser condenados tal como foi pedido.
Remete-se para os termos da decisão da 1ª instância que decidiu a matéria de facto.
Apreciando:
A expressão " o empréstimo reverteu em proveito comum do casal dos RR" não encerra matéria de facto e não deve ser incluída no questionário (actual base instrutória)
Aliás, no articulado, ela foi redigida como a conclusão a extrair da circunstância referido se destinar ao património comum do casal dos RR".
O tribunal fez, a nossos ver, muito bem em proferir despacho de aperfeiçoamento visando salvar uma acção por insuficiência de alegação tanto mais que estamos perante matéria sobre a qual não existe unanimidade nem na doutrina nem na jurisprudência.
A A., uma vez avisada e conhecedora certamente também das diferenças de entendimento, podia e devia ter aproveitado o convite e alegado por forma a que o tribunal não desse sequência ao seu entendimento,salvo naturalmente razões do seu conhecimento que levassem a que ela não quisesse assumir os riscos de uma tal alegação (v.g. saber que o veículo foi adquirido precisamente para uso e proveito exclusivo do Réu marido e à revelia da própria mulher)
Não o fez, assumiu os riscos.
Pela nossa parte acompanhamos o entendimento perfilhado pelo tribunal recorrido.
O Prof. Antunes Varela escreveu a este propósito que "entre as dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges, apesar de assumidas só por um deles, destacam-se as contraídas em proveito comum do casal (artigo 1691º, nº1, alínea c), 2 e 3 do Código Civil).
Considerando erroneamente a contracção da divida em proveito comum (do casal) como um facto (ou um mero juízo de facto) são muitos os juízes que directamente a incluem no questionário.
A verdade, porém, é que a matéria de facto capaz de constituir objecto de quesito é o fim concreto da divida (a compra duma televisão para casa ou para o escritório, a inscrição do casal ou do cônjuge devedor num cruzeiro de férias, o pagamento das propinas dum filho - legítimo ou ilegítimo- no colégio, etc). A qualificação da aplicação da dívida (em proveito comum ou em proveito exclusivo do devedor) envolve já um problema de direito, que transcende o círculo das percepções sobre as quais a testemunha, as partes ou os peritos podem ser chamados a depor" (Manual de Processo Civil, 1985, 2ª edição, pág 410/411).
No caso em apreço temos por assente que o destino da divida contraída pelo Réu foi a aquisição de um veículo.
Como se salientou na decisão recorrida, não tem qualquer interesse o reconhecimento de que o veiculo terá ingressado no património do casal por força do respectivo regime de bens dando-se aqui de barato, questão não suscitada, que os RR são casados e que é de comunhão de adquiridos ( ou comunhão geral) o respectivo regime de bens.
Poder-se-à dizer que quando o marido adquire um veiculo, a sua intenção será a de que a sua utilização se faça em benefício da família à qual ele se destina, assim contribuindo para o aumento da sua qualidade de vida.
De facto é normal que assim aconteça. Mas não é certo.
Admitimos, nesta matéria, a possibilidade de, por via da presunção judicial (artigo 351º do CC) se concluir com base no facto conhecido (o empréstimo destinado à aquisição de um veículo pelo marido) a ocorrência do facto desconhecido (que tal empréstimo foi contraído com a intenção de o veiculo aproveitar à família proporcionando-lhe acréscimo de, qualidade de vida). Deste modo,e não por meio da afirmação de uma natureza factual do "proveito comum", já a A. lograria o pretendido êxito.
A alegação de parte (importante, admita-se) facto essencial permitiria o seu preenchimento integral recorrendo-se às presunções judiciais. Não se trataria, portanto, de provar um facto essencial (não alegado) a partir de um outro facto essencial (alegado) estabelecendo causal lógico,de acordo com as máximas da experiência, de um para o outro; no caso, porém, movemo-nos dentro de um mesmo núcleo factual de que apenas foi referenciada um dos seus elementos.
A situação no caso em apreço envolve um quid acrescido relativamente aos casos em que o mutuante se limita a alegar que o empréstimo foi entregue para ser utilizado por ambos os RR, situação esta que nada nos diz quanto à intenção do mutuário (veja-se Rita Lobo Xavier em anotação ao Ac. do S.T.J. de 22-2-1994 in RDES, Ano XXXVII,Jan/Set 1995, pág 242). Esse quid é naturalmente a referência ao destino (uma parte apenas) que foi dado à quantia mutuada pela Autora.
Mas então, assim sendo, qual a razão por que se não dá provimento ao recurso embora com fundamentação diversa daquela que a A. trouxe a este tribunal?
A razão é esta: a partir do momento em que o tribunal convida o A. (ou o Réu) a alegar os factos pertinentes à resolução de um litígio,actuação que não é discricionária constituindo, do nosso ponto de vista, um efectivo poder-dever, a recusa da parte, que não tem obviamente de ser justificada, faz com que se não
justifique a utilização de presunções judiciais visando considerar provados factos com os quais a parte interessada se não quis comprometer, alegando-os.
É que, neste caso, o tribunal deitaria por terra o alcance e valor do princípio dispositivo que tem uma inegável vertente responsabilizadora.
Assim, a alegação de que (a) o empréstimo se destinou à aquisição de um veiculo, (b) com a intenção de ser utilizado pelo A. em benefício da sua família (c) concedendo-lhe pelas comodidades proporcionadas uma efectiva melhoria da qualidade de vida, tal alegação permitiria, se tivesse sido efectuada, concluir de jure que o referenciado empréstimo foi contraído pelo autor "em proveito comum do casal".
Nesta matéria o ónus de alegação e de prova cabe ao
A (art. 342º do CC).
A acção, assim, não pode deixar de improceder, como improcedeu, quanto à Ré.
Não queremos concluir sem chamar a atenção para o facto de que a responsabilidade de ambos os cônjuges pressupõe que o mutuário tenha agido dentro dos seus poderes de administração. Não é uma questão nova: no despacho de aperfeiçoamento o tribunal, e muito bem, também fez referência a este aspecto.
Relembramos aqui o que escrevemos noutro processo (P. 5155/97 da 6ª secção, não publicado) em que a A. também foi recorrente por razão similar:
"Um outro limite ainda é estabelecido pelo aludido preceito: que a dívida tenha sido contraída nos limites dos poderes de administração do cônjuge. Ora a aquisição de um veículo nas particulares condições em que o mútuo se processou (com elevada taxa de juro) não se pode considerar um acto de administração ordinária ( artigo 1678°, nº3 do C.Civil): a aquisição de um veículo, e particularmente quando operada com base em condições de crédito nada meigas, exorbita manifestamente do trem de vida do casal ( Veja-se Rita Lobo Xavier in R.D.E.S., Ano XXXVII, Jan/Set 1995 na anotação ao Ac. do S.T.J. de 22-2-1994, designadamente pág 248 a 250).
Nesta matéria há que ser cauteloso e se alguns casos são de fácil catalogação legal (dívidas provenientes de obras de alteração num prédio comum: essas obras são actos de administração extraordinária; compra de prédio: acto que excede os poderes de administração ordinária; aquisição de sementes para cultivar um prédio: acto de administração ordinária: tudo exemplos que o Prof. Castro Mendes apresenta em Direito da Família, edição da A.A.F.D.L., 1978/1979, pág 149) outros há que se devem pautar pelo critério que nos é dado pelo Prof. Mota Pinto: "onde a lei opera com a dicotomia administração-disposição, a 'ratio legis' conduz à conclusão de os actos de mera administração ou de ordinária administração serem os correspondentes a uma gestão comedida e limitada, donde estão afastados os actos arriscados, susceptíveis de proporcionar grandes lucros, mas também de causar prejuízos elevados. São os actos correspondentes a uma actuação prudente, dirigida a manter o património e a aproveitar as suas virtual idades normais de desenvolvimento, mas alheia à tentação dos grandes voos, que comportem risco de grandes quedas .
Ao invés actos de disposição são os que, dizendo respeito à gestão do património administrado, afectam a sua substancia, alteram a forma ou a composição do capital administrado, atingem o fundo, a raiz, o casco dos bens. São actos que ultrapassam aqueles parâmetros de actuação correspondente a uma gestão de prudência e comedimento, sem riscos" ( Teoria Geral do Direito Civil. Mota Pinto, 38 edição, pág 408).
Assim, a aquisição de um veículo com recurso a mútuo concedido com juros a elevada taxa e com sujeição a cláusula penal não constitui acto de administração ordinária pelo que a dívida não pode ser havida como contraída nos limites dos poderes de disposição do cônjuge administrador"
Concluindo:
I - O "proveito comum do casal "é conceito de direito que não deve figurar na base instrutória; assim, o autor deve alegar o fim concreto da divida (v.g. aquisição de um veículo para a família; aquisição de veículo destinado exclusivamente às suas viagens de lazer com amigos e amigas ao estrangeiro: tudo matéria de facto) traduzindo qualificação considerar-se, perante tal alegação, se a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal.
II- Se o tribunal convida a A., ao abrigo do despacho a que alude o artigo 508º/1, alínea b) a aperfeiçoar o respectivo articulado justificando amplamente os motivos por que se impõe alegar o fim concreto da dívida contraída, a parte é livre de se recusar a aperfeiçoar o articulado.
III- No entanto, até pela vertente responsabilizadora que o princípio dispositivo envolve, o tribunal não deve, em tal circunstância, deitar-se a preencher, por via de presunções de facto, as omissões de facto detectadas a tempo e não corrigidas.
IV- Assim, considerando-se que o tribunal apontou, e bem, os factos que deveriam ter sido alegados, continua a agir bem o tribunal quando julga a acção improcedente.
Decisão: nega-se provimento ao recurso e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa 05/07/2000