ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
COMUNICAÇÃO DE FALECIMENTO
DESPEJO
Sumário

O contrato de arrendamento de estabelecimento comercial mantem-se em vigor, não obstante a comunicação da morte do arrendatário e da intenção de manter o arrendamento não ter obedecido ao preceituado no nº 2 do art. 112º do RAU.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
1. (A) e (B) intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Mafra a presente acção contra (C) e sua filha (D) pedindo que o tribunal
- as reconheça como Iegítimas proprietárias do prédio urbano que identificam na petição;
- declare caduco o arrendamento que do r/chão direito desse prédio foi feito a (E), já falecido, respectivamente marido e pai das rés ;
- condene estas no reconhecimento daquela propriedade e na restituição do locado, livre de pessoas e bens.
Para além da referida pertença e dito arrendamento para comércio, alegaram que não Ihes fora comunicada a morte do arrendatário nem que as rés pretendiam ver transmitida para si a posição do falecido. De resto, após a morte do arrendatário o estabelecimento foi encerrado e colocado na sua porta um anúncio de trespasse.
As rés contestaram, impugnando a pretensão das autoras. Alegam, em síntese, que quer antes quer depois da morte do arrendatário sempre a ré sua viúva esteve à frente do estabelecimento; que a morte do arrendatário foi, de pronto, comunicada à usufrutuária do imóvel, que sempre recebeu as rendas. Decorridos mais de 180 dias após o referido falecimento foi dada à usufrutuária a oportunidade de preferir no trespasse, tendo ela pedido esclarecimentos sobre o seu conteúdo. E, porque não preferiu neste, o mesmo foi efectuado e dele foi-lhe dado conhecimento.
As autoras ofereceram réplica, mantendo a sua posição inicial. No despacho saneador as rés foram absolvidas da instância com o fundamento de que a petição era inepta por haver contradição das causas de pedir e cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.
Esta decisão foi revogada por este tribunal, decisão que o STJ confirmou.
O tribunal da 1ª instância proferiu, então, despacho saneador e elaborou a especificação e o questionário.
Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, após o que foi proferida sentença que condenou as rés a reconhecer as autoras como as titulares da nua propriedade do prédio em causa, mas absolveu-as pedido de entrega do mesmo com o fundamento de que, com o comportamento posterior ao falecimento do marido da ré (C), a usufrutuária reconheceu a suficiência da comunicação que esta ré Ihe fez, podendo o senhorio dispensar, de um modo expresso ou tácito, as formalidades do nº 2 do art. 112º do RAU.
As AA; não se conformaram com esta decisão, interpondo da mesma, atempadamente, recurso para este Tribunal.
Formularam as seguintes conclusões:
A comunicação da morte do inquilino ao senhorio por parte dos
sucessores daquele é obrigatória.
Tal comunicação tem que ser efectuada por escrito e acompanhada dos documentos autênticos e autenticados que comprovem os direitos dos sucessores não renunciantes.
Não cumpridos os requisitos do artigo 112º do RAU, nos 180 dias posteriores ao óbito da arrendatário o arrendamento caduca.
Havendo cônjuge sobrevivo casado no regime da comunhão geral de bens, tal obrigação mantém-se, pois é um direito do senhorio confirmar da verdade de tal situação jurídica.
Não agindo o usufrutuário como um bom pai de família na administração da coisa, cabe ao proprietário agir.
Alegando a caducidade do arrendamento, só as proprietárias de raiz poderiam intentar uma acção de reivindicação e nunca a usufrutuária.
Nas acções de reivindicação, que é o caso dos autos, o réu só pode contestar o direito de entrega da coisa se alegar qualquer relação obrigacional ou real que lhe confira a posse ou detenção.
No caso dos autos, sendo o arrendamento invocado pelas rés caduco, a estas só resta fazer a entrega do locado.
As relações/obrigações entre as autoras e a usufrutuária em nada podem afectar a procedência da presente acção, cabendo à usufrutuária agir em acção própria contra as proprietárias da nua propriedade se se sentir lesada no seu usufruto, com a declaração de caducidade do arrendamento.
Ao decidir pela improcedência da acção violou o tribunal a quo os artigos 1311º, 219º e 220º todos do Código Civil e arts. 112º e 113º do RAU.
Nas contra-alegações, as rés sustentam que a decisão deverá manter-se.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2. Provaram-se os seguintes factos.
Sob o nº 2119, a fls. 119/v, do livro B-9, encontra-se descrito na
Conservatória do Registo Predial de Mafra o prédio urbano sito no Largo do (K), composto de casa de r/chão, 1º e 2º andares e águas furtadas para comércio e habitação com 140 m2, confrontando a norte com (F), a sul com (G), a nascente com o Largo do (K) e a poente com a Rua (W), inscrito na matriz predial urbana da freguesia da Ericeira sob o art. 1407.
Pela inscrição G-1, o referido prédio mostra-se inscrito, por aquisição, a favor de (A), casada com (H) e (B).
Pela inscrição F1, mostra-se inscrito o usufruto do mesmo prédio a favor de (I) e mulher (J), casados em comunhão geral de bens.
A usufrutuária sempre recebeu as rendas e passou os respectivos recibos à primeira ré.
Quando ocorreu a oportunidade de trespassar o estabelecimento, foi dada a preferência à senhoria (J), que
respondeu pedindo mais esclarecimentos sobre o negócio.
As sucessoras de (E) não comunicaram às autoras a morte deste nos 180 dias subsequentes ao seu óbito, nem Ihes remeteram quaisquer documentos autênticos e autenticados que comprovassem os seus direitos.
As autoras não foram informadas pelas rés de que os sucessores de (E) pretendiam continuar a exercer no rés-do-chão do prédio a actividade comercial.
Desde há vários meses, com referência à data da propositura desta acção, encontrava-se afixada à porta da loja uma folha de papel com os dizeres - "Trespassa-se ".
Após a morte do seu marido, a ré (C) continuou, no referido rés-do-chão, a exercer o comércio de venda a retalho.
Ainda em vida do (E), foi colocado na montra da loja um escrito com o dizer " TRESPASSA-SE".
Foi dado conhecimento à senhoria/usufrutuária - (J) - a intenção de se proceder ao trespasse do estabelecimento, nos termos constantes dos escritos a fls. 42,44 e 47/4-8.
Até à concretização do negócio do trespasse o estabelecimento esteve a funcionar,
A morte do (E) foi de imediato comunicada verbalmente à usufrutuária do prédio.
Foi comunicado pela ré (C) à (J) a intenção de continuar no estabelecimento, mantendo o respectivo arrendamento.
A usufrutuária ((J)) passou recibos de renda à ré (C), mais de
180 dias depois da morte do (E), neles continuando a mencionar o nome do falecido (E).
Embora não constem dos factos especificados nem dos quesitados, porque alegados pelas autoras e porque aceites pelas rés, o tribunal dá também como assentes ainda os seguintes factos alegados:
Por contrato de arrendamento, celebrado por escritura pública de 18/08/60, no Cartório Notarial de Mafra, o então dono do prédio - (L) - deu de arrendamento a (E), respectivamente, marido e pai das primeira e segunda rés, o r/chão direito do referido prédio urbano;
O arrendamento foi celebrado pelo prazo de seis meses, com início em 01/08/60, sendo sucessivamente renovado por idênticos períodos;
e destinando-se ao exercício do comércio ou indústria que o arrendatário resolvesse explorar, estipulando-se a renda mensal de 500$00, tendo o arrendatário passado a exercer no locado, única e exclusivamente, a actividade de venda de tecido a metro até à data em que faleceu.
Dá também como assente, porque alegado pelas: rés e provado por documento autêntico (cfr. fls. 145) que a ré (C) era casada com o falecido (E), desde 16.07.45, no regime de comunhão de bens.
3. O Direito.
Dispõe o art. 1311º do C. Civil que " 1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei".
Face a este condicionalismo, sobre o reivindicante recai o ónus de provar que é proprietário da coisa e que o réu a possui ilicitamente e, ainda, a identidade da coisa que se reclama com a que é possuída pelo demandado (Cfr. Ac. do STJ proferido nestes autos).
Assim, julgado procedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade do autor, deve ser julgado no mesmo sentido o pedido de restituição da coisa e só poderá ser recusado nos casos previstos na lei (nº 2 do art. 1311º do CC).
As autoras alegaram que as rés não possuem qualquer título que Ihes confira posse ou detenção, já que, embora seja certo que, por contrato de arrendamento, celebrado por escritura pública, de 18/08/60, o então dono do prédio - (L) - deu de arrendamento a (E), - respectivamente, marido e pai das primeira e segunda rés - o r/chão direito do referido prédio urbano, com destino ao exercício do comércio ou indústria que o arrendatário resolvesse explorar; porém, este faleceu e as autoras ou a usufrutuária não receberam a comunicação referida no art. 112º do RAU, o que determinou a caducidade desse arrendamento.
Posto isto, vejamos, então, as questões a decidir neste recurso e que são as seguintes:
- Foi dado cumprimento ao disposto no art. 112º, nº 2; do RAU? - Em caso negativo, verifica-se a caducidade do arrendamento?
Prevê o art. 112º do RAU, aplicável ao caso em apreço, visto que a morte do arrendatário ocorreu já na vigência deste diploma legal, que:
1. O arrendamento não caduca por morte do arrendatário, mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de trinta dias.
2. O sucessor não renunciante deve comunicar, por escrito, ao senhorio, a morte do arrendatário, a enviar nos cento e oitenta dias posteriores à ocorrência e da qual constem os documentos autênticos ou autenticados que comprovem os seus direitos.
3. O arrendatário não pode prevalecer-se do não cumprimento dos deveres de comunicação estabelecidos neste artigo e deve indemnizar o senhorio por todos os danos derivados da omissão.
O nº 1 deste art. 112º reproduz o revogado art. 1113° do C. C. e dele decorre a regra da não caducidade do arrendamento comercial ou industrial com a morte do arrendatário, mas a sua subsistência e transmissibilidade aos sucessores.
Contudo, o nº 2 impõe ao arrendatário não renunciante o dever de comunicar, por escrito, ao senhorio, a morte do arrendatário enviar nos cento e oitenta dias posteriores à ocorrência e da qual constem os documentos autênticos ou autenticados que comprovem os seus direitos.
Terá, pois, de remeter ao senhorio certidão de óbito do falecido arrendatário e, ainda, certidão de casamento, se for cônjuge sobrevivo, a certidão de nascimento, se for descendente, a certidão de nascimento de falecido, se for ascendente, etc., consoante os casos (Cfr. Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 3ª ed., pág. 505).
Todavia, o que ficou provado foi que a morte do (E) foi de imediato comunicada, verbalmente, à usufrutuária do prédio, como lhe foi comunicada, pela ré (C), a intenção de continuar no estabelecimento, mantendo o respectivo arrendamento.
Quer dizer, essa comunicação, apesar de ter sido feita, não obedeceu ao preceituado no mencionado nº 2 do art. 112º do RAU, sendo certo que a falta de comunicação às autoras, que também se não provou, sempre seria irrelevante, pois que não eram senhorias do prédio.
Mas significa isto que o contrato. se deve ter por caducado?
Entendemos que não, como procuraremos demonstrar.
Disposição semelhante à do art. 112º do RAU existia no arrendamento para a habitação.
Dispunha, com efeito, o nº 5 do art. 1111º do C. Civil - os nºs 2 e 3 do art. 112º do RAU tiveram, parcialmente, por fonte este nº 5 - que " a morte do primitivo inquilino ou do cônjuge sobrevivo deve ser comunicada ao senhorio no prazo de 180 dias, por meio de carta registada com aviso de recepção, pela pessoa ou pessoas a quem o arrendamento se transmitir, acompanhado dos documentos autênticos que comprovem os seus direitos ".
No domínio desta disposição legal, a questão das consequências da falta de comunicação tornou-se polémica na doutrina. No sentido de que as consequências se limitavam à indemnização por perdas e danos, pronunciaram-se Januário Gomes (Breve apontamento, in Tribuna da Justiça, nº 24, págs. 1 a 4) e Pereira Coelho (Arrendamento, 1988, págs. 221 e sgs.); no sentido da caducidade pronunciaram-se Abílio Neto (Leis do Inquilinato, 6ª ed., pág. 250), e Meneses Cordeiro (O dever de comunicar a morte do arrendatário: o art. 1111º nº 5, do C. CiviI, in Tribuna da Justiça, Dezembro de 1989, págs. 29 e sgs.); pelo meio identificavam-se outras posições não tão definidas, como Pires de Lima e A. Varela (C C Anotado, II, 3ª ed., pág, 631), Mário Frota ( Arrendamento Urbano, pág. 471), Pais de Sousa (Anotações à lei das rendas habitacionais, pág. 7).
A jurisprudência aderiu à tese da não caducidade (Cfr. Januário Gomes, Arrendamentos para habitação; 2ª ed., pág. 186).
Entendia-se; então, que, no caso da morte do inquilino ou do cônjuge sobrevivo, havia uma transmissão automática do arrendamento, a menos que tais pessoas renunciassem à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de 30 dias. Tal omissão não determinava a caducidade do arrendamento, mas apenas a obrigação de indemnizar os danos derivados dessa omissão para o senhorio.
Com o RAU, esse entendimento manteve-se, como se vê do seu art. 89º cujos nºs 1 e 2 correspondem exactamente ao que estabelecia o nº 5 do citado art. 1111º do C.C., e isto não obstante a redacção do art. 89º -D, introduzido pelo DL. nº 278/93, de 10 de Agosto, uma vez que o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, a eliminação do nº 3 do art. 89º ( Ac. de 23/5/97, D.R., 1ª Série, de 8/7/97).
Dispõe o nº 3 do art. 89º que "A inobservância do disposto nos números anteriores não prejudica a transmissão do contrato, mas obriga o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão" .
É a aceitação da tese que fora defendida por Pereira Coelho e Januário Gomes e pela jurisprudência dominante.
A razão da lei, ao assegurar aos familiares do arrendatário a transmissão do direito ao arrendamento, é a de evitar que, saindo de casa onde tinham a residência permanente, ficassem sem casa para onde ir morar.
Razão similar teve o legislador ao determinar que o arrendamento comercial não caduca por morte do arrendatário, ou seja, a de assegurar a continuidade da actividade comercial ou industrial, apesar da morte do arrendatário. A solução contrária poderia ser extremamente nefasta para a sobrevivência de inúmeros estabelecimentos comerciais ou industriais (V. Augusto Borges, Regime Jurídico do Arrendamento Urbano, 3ª ed., pág, 210).
Sempre se dirá, porém, que o nº 3 do art. 112º conjugado com o art. 113º nº 1, do RAU, conduz à contusão de que a omissão a que se refere o nº 2 daquele artigo tem como consequência a caducidade do contrato (V. neste sentido, Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 4ª ed., pág. 297).
Seja-nos permitido reproduzir, quanto a este ponto, o Ac. da R. do Porto, de 12/02/98, CJ, I, pág, 213: " Ora, o que diz este último normativo é o seguinte: se o arrendamento cessar por motivo de caducidade ou por renúncia do senhorio, o arrendatário tem direito... a uma indemnização em dinheiro, sempre que por facto seu o prédio arrendado tenha aumentado de valor locativo.
Ressalva-se, no início do normativo citado, os casos de "perda da coisa" ou "do artigo 112º, nº 3".
Nos casos do art. 112º, nº 3, o arrendatário, para além de ter de indemnizar o senhorio dos prejuízos causados pela omissão da comunicação a que se refere o nº 2, não pode reivindicar indemnização em dinheiro por factos seus que tenham aumentado o valor Iocativo do prédio o arrendado - art. 113º, nº 1.
Há neste normativo mais uma sanção imposta ao arrendatário a acrescer à do nº 3 do art. 112º, se após a omissão da referida comunicação, o arrendatário vier a cessar por motivos de caducidade ou por denúncia do senhorio.
Deste modo a norma já não perde sentido..."
Do exposto decorre que o contrato de arrendamento se mantém em vigor, não obstante a comunicação da morte do arrendatário e da intenção de manter o arrendamento não ter obedecido ao preceituado no nº 2 do art. 112º do RAU.
Veja-se, neste sentido, Artur Victória, in A nova lei do arrendamento urbano, pág. 95, nota nº 2.
4. Face ao exposto, na improcedência da apelação, acorda-se em manter a decisão recorrida, ainda que com fundamentos não coincidentes.
Custas pelas apelantes.
Lisboa,11 de Janeiro de 2001.
Arlindo Rocha
Carlos Valverde
Granja da Fonseca