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QUEIXA
MANDATÁRIO
PODERES ESPECIAIS
FALTA
RATIFICAÇÃO
Sumário
Nos crimes contra o património a vontade de apresentar queixa criminal, mostra-se plenamente assegurada se o mandatário não judicial estiver munido de procuração mesmo que não abranja certo tipo de actos e as pessoas dos visados com aquela.
Texto Integral
Rec. nº 10698/2000, 3ª Secção
Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
No presente processo comum com intervenção de tribunal singular, proveniente do 2º Juízo Criminal de Oeiras, onde tem o nº 1039/96.4PEOER, o arguido (N) vem acusado pela autoria de um crime de furto simples, p.p. no artº 203º do Código Penal, por, em 15 de Dezembro de 1996, ter retirado do interior do hipermercado "(J)" diversos objectos sem os pagar e deles ter feito coisa sua, contra a vontade do dono.
Contudo, no despacho liminar, o Mmº Juiz lavrou despacho em que, considerando a natureza semi-pública do crime em apreço e tendo em atenção que quem tinha feito a queixa crime era um mandatário não judicial, munido de procuração com poderes especiais para praticar uma certa categoria ou classe e actos, mas destituído de poderes especiais especificados, tal como, na sua opinião, exige o artº 49º, nº 3, do CPP, ordenou a
notificação pessoal da ofendida para, no prazo de 15 dias, ratificar a queixa apresentada, por si, por mandatário judicial ou por mandatário não judicial munido de poderes especiais
especificados, sob pena de rejeição da acusação deduzida e consequente arquivamento do processo.
Foi desse despacho que recorreu o Ministério Público e, da sua fundamentação, concluiu que (transcrição):
1) O despacho ora recorrido determinou o arquivamento dos autos por considerar que o Ministério Público carecia de legitimidade para o exercício da acção penal.
2) O Mmº Juiz "a quo" fundamentou tal decisão com a aplicação do Acórdão de fixação de jurisprudência nº 2/92, de 13/5, exigindo poderes especiais especificados ao mandatário da lesada, ao interpretar o artº 49, nº 3 do Código de Processo Penal.
3) Entendemos que o Ministério Publico tem legitimidade para a prossecução do processo porque foi eficazmente e tempestivamente exercido o direito de queixa, uma vez que o mandato conferido ao mandatário atribui-Ihe poderes para, entre outros actos, apresentar queixas crime por crimes de furto que ocorram nos estabelecimentos comerciais de que é proprietária.
4) A especificação dos poderes justifica se para garantir que a vontade do mandante/titular do direito de queixa seja verdadeiramente a de exercer esse direito no que diz respeito ao delito que concretamente é denunciado.
5) No caso dos autos não se verifica o perigo de desconformidade entre a queixa apresentada e a vontade da pessoa colectiva:
6) É razoável que a sociedade comercial, que explora economicamente um hipermercado pretenda
que alguns dos seus funcionários exerçam, em seu nome, o direito de queixa por furtos ali praticados, e que o
faça de modo genérico, por forma a abranger todas as situações em que esses delitos ocorram, dada a
frequência da sua prática.
7) É o próprio Acórdão que admite poderem existir situações em que cessa a disposição do artº 49º, nº 3 do Código de Processo Penal, de exigência de poderes especiais especificados, por estar acautelada a verificação de divergência entre a vontade do lesado e aquela que é transmitida ao Tribunal pelo mandatário não judicial, uma vez que a ratio legis daquele preceito é tão somente esta garantia.
8) No caso sub judice a especificação feita na procuração é a adequada e satisfaz plenamente as exigências de certeza que o artº 49º, nº 3 do CPP manda que se verifiquem pelo que o Ministério Público tem legitimidade para a prossecução do processo porque foi eficazmente e tempestivamente exercido o direito de queixa.
9) Pelo que é neste sentido que o artº 49º, nº 3 deveria ter sido interpretado e aplicado ao caso.
10) Sendo a queixa perfeitamente válida, é legitima a promoção do processo pelo Ministério Público, pelo que inexiste fundamento para o arquivamento dos autos.
11) Tendo a decisão recorrida violado a norma contida nos artºs 48º, 49º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Termos em que se requer que o recurso seja julgado procedente e seja, em consequência, a decisão judicial substituída por outra em que a queixa seja considerada válida, reconhecendo-se legitimidade ao Ministério Público para o exercício da acção penal e consequentemente proferido despacho de recebimento da acusação quanto ao crime de furto p.p. no artº 203 do CP seguindo o processado os trâmites legais subsequentes até final.
-X-
O arguido respondeu ao recurso no sentido da sua não procedência e o Mmo. Juiz "a quo" sustentou o douto despacho recorrido.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso merecia provimento.
-X-
Colhidos os vistos e realizada a conferência com o formalismo legal, cumpre decidir.
Dos autos verifica-se que no dia 15 de Dezembro de 1996, o arguido (N) retirou das prateleiras do hipermercado "(J)", em Alfragide, diversos artigos que escondeu debaixo de um blusão que vestia, tendo passado a caixa de pagamentos sem os pagar, pelo que foi detido por um agente de P.S.P.
No mesmo dia, foi apresentado um requerimento no Posto da P.S.P de Carnaxide, subscrito por (L), que assinou como "O Legal Representante" da "Companhia Portuguesa de Hipermercados, S. A.", proprietária do "(J)" de Alfragide, no qual se declara que a queixosa deseja apresentar procedimento judicial contra o arguido.
Tal requerimento foi acompanhado de uma procuração, outorgada notarialmente, na qual a "Companhia Portuguesa de Hipermercados, S. A." constitui seus procuradores vários
funcionários, entre os quais o mencionado (L), conferindo-lhes poderes «para, em nome desta Sociedade, assinar e apresentar queixas crime de furto e furto qualificado, burla e burla-qualificada, que tenham sido cometidos em qualquer dos estabelecimentos de que é proprietária, junto dos representantes do Ministério Público, em qualquer Tribunal, Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana ou qualquer outra entidade, podendo a prestar declarações perante aquelas entidades ou em juízo, em quaisquer processos em que a mandante seja queixosa relativamente a crime de furto e de furto qualificado, burla e burla qualificada, e bem assim para ratificar o processado em quaisquer processos de furto e furto qualificado, burla e burla qualificada.
Os procuradores ora constituídos poderão também conceder perdão a arguidos, assinar declarações de renúncia ou desistências de queixas ou acusações antes apresentadas pela sociedade mandante, receber relativamente a estes processos quaisquer mercadorias provenientes de furtos e/ou importâncias, assinar recibos e dar quitação, bem como
requerer ao Tribunal a atribuição de indemnizações, nos termos do artigo cento e trinta número dois do Código de Processo Penal.».
A questão em debate no presente recurso é a de saber se o direito de queixa está legalmente exercido, uma vez que a denúncia de fls. 4, da sociedade da "Companhia Portuguesa de Hipermercados, S. A.", por crime semi-público de furto simples, foi subscrita por um seu funcionário, não advogado, que estava munido com uma procuração, conferida por essa sociedade, que lhe atribuía poderes de representação para, genericamente, apresentar queixas por crimes de furto cometidos nos seus estabelecimentos, mas sem especificar concretamente o furto em questão.
Foi durante muitos anos indiscutível que a queixa, no caso de crimes particulares ou semi-públicos, devia ser apresentada pessoalmente pelo próprio ofendido ou, não o sendo, por
procurador munido de poderes especiais para o acto.
Tal não constava na letra do CPP de 1929, mas já então era a melhor doutrina, na sequência dos que entendiam que a queixa corresponde ao exercício de um direito pessoal (Luís Osório, "Comentário ao Código de Processo Penal", I, pág. 150, e Cavaleiro de Ferreira, "Curso de Processo Penal", II, pág. 139).
Essa doutrina veio a ser consagrada no CPP de 1987, no artº 49º, nº 3, versão, originária, que dispunha que «a queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais».
O Ac. do STJ nº 2/92, lavrado para uniformização da jurisprudência, de 13/5/92, in D. R. de 2/7/92, exigiu mesmo que esses poderes especiais fossem especificados, não
bastando simples poderes para a prática de uma classe ou categoria de actos.
Contudo, o Decreto Lei nº 267/92, de 28 de Novembro, veio alterar essa orientação jurisprudencial no que respeita aos mandatos conferidos aos advogados, ao permitir que as
procurações com poderes especiais pudessem especificar tipo ou tipos de actos.
Na verdade, o nº 2 do seu artigo único dispõe que «as procurações com poderes especiais devem especificar o tipo de actos, qualquer que seja a sua natureza, para os quais
são conferidos esses poderes».
Foi intuito declarado do legislador consubstanciar «uma medida de simplificação de procedimentos», tendo-se em consideração que o advogado é «um elemento essencial à aplicação da justiça» e «a sua actividade não se compagina com a existência de formalismos susceptíveis de porem em causa a razão pela qual é conferido o patrocínio do cidadão em nome de quem a justiça é administrada» (ver preâmbulo do diploma).
Arredou-se, assim, por via legislativa, ao menos no que respeita às procurações conferidas aos advogados, a orientação jurisprudencial, então obrigatória, que o STJ
determinara e que causara enorme perplexidade no comércio, pois forçava as grandes empresas que diariamente apresentam dezenas de queixas por emissão de cheques sem provisão ou por furtos, a conferirem procurações individualizadas a cada caso.
O Decreto Lei nº 267/92 veio, pois, consagrar a prática anterior dessas mesma empresas, que era a de conferirem procurações com poderes especiais para categorias de actos.
Isso mesmo veio a ser reconhecido pelo "Assento" do STJ nº 4/94, de 1994/09/27, in DR, I-Série, de 1994/11/04, que até, a nosso ver, foi mais longe, pois decidiu que «com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 267/92, de 28 de Novembro, caducou a jurisprudência fixada pelo Acórdão obrigatório nº 2/92, de 13 de Maio de 1992, deste Supremo Tribunal de Justiça, por aquele diploma ter revogado implicitamente o nº 3 do artigo 49º do Código de Processo Penal, motivo por que não existe qualquer necessidade de ratificação de queixa apresentada por mandatário judicial, munido de simples procuração forense, dentro do prazo fixado pelo nº 1 do artigo 112º do Código Penal»
Esta orientação jurisprudencial, então obrigatória, veio resolver o problema quanto aos mandatos conferidos a advogados, mas nada esclareceu quanto aos mandatos conferidos a outras pessoas.
Efectivamente, como o artº 49º, nº 3, do CPP87 não exige explicitamente que na queixa apresentada por mandatário este tenha a qualidade de advogado ou de solicitador, tal como o faz sempre que considera essa qualidade imprescindível, essa exigência seria uma limitação ao contrato de mandato que a lei em lugar algum consagra.
Este aspecto foi tratado no Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência nº 1/97, de 19 de Dezembro de 1996, in DR, I-Série, de 1997/01/10, o qual, na sua fundamentação - e na parte que nos importa agora - diz o seguinte: «Se , pois, nos termos do artigo 49º , nº 3 , do Código de Processo Penal, plenamente vigente ao tempo , se admitia que a queixa pudesse ser deduzida por mandatário com poderes especiais, ainda que alguns hajam restringido esse conceito de mandatário a profissionais do foro, havemos de concluir que mesmo depois do Decreto-Lei nº 267/92, no qual só são referidos os advogados , da previsão deste ficam excluídos os profissionais do foro que não sejam advogados .
Consequentemente , há que aceitar uma correcção explicativa no Acórdão obrigatório nº 4/94 deste Supremo Tribunal de Justiça , pois quando este considera implicitamente revogado o nº 3 do artigo 49º do Código de Processo Penal deve entender-se que essa revogação é limitada aos advogados.
Quanto ao titular do direito de queixa e aos mandatários não advogados, o nº 3 referido mantém a sua plena validade. Assim, entendemos que a queixa poderá continuar a ser apresentada por quaisquer profissionais do foro, ou pessoa desprovida dessa qualidade, desde que munida de poderes especiais. E isto porque a lei não exige a qualidade de advogado ou solicitador explicitamente, tal como o faz sempre que considera essa qualidade imprescindível.
Quanto ao artigo único do Decreto - Lei nº 267/92, entende-se que só veio simplificar a situação dos advogados, dispensando-os de procuração notarial e
especificação dos poderes especiais, e com esses limites que deve considerar-se revogado em parte o nº 3 do artigo 49º, no que aos advogados se refere. Mas de tal Decreto - Lei não se infere que o mandato para efectuar a denúncia só pode ser conferido a advogado. Isso seria uma limitação ao contrato de mandato que a lei em lugar algum consagra. Daí continuar a entender-se que o mandato para o exercício do direito de denúncia pode ser exercido por outras pessoas que não possuam a qualidade de advogado - v. Costa
Pimenta, Introdução ao Processo Penal, p.172».
Este Acórdão fixou a seguinte jurisprudência: «Apresentada a queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes especiais, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito respectivo, mesmo que após o prazo previsto no artigo 112º, nº 1, do Código Penal de 1982».
Deste último Acórdão do STJ, considerados os fundamentos e a decisão, é permitido concluir, a nosso ver, que:
- em esclarecimento ao Assento nº 4/94, o STJ considerou não revogado o segmento do artº 49º, nº 3, do CPP87, na parte respeitante aos mandatários não advogados ou solicitadores, os quais, ao contrário daqueles, têm de estar munidos de poderes especiais;
- mas em parte alguma foi considerado subsistente o Assento nº 2/92, mesmo no segmento respeitante aos mandatários não advogados ou solicitadores, sendo que tal Assento fora já declarado caducado pelo Assento nº 4/94;
- o STJ podia na parte decisória, se desejasse apesar de tudo manter a doutrina do Assento nº 2/92 em relação aos mandatários não advogados ou solicitadores, ter referido
que a ratificação seria feita nos casos em que a queixa por crime semi-público fosse apresentada por mandatário sem poderes especiais especificados, mas, deliberadamente,
não o fez, aludindo tão só aos poderes especiais.
Em suma, o "Assento" nº 1/97 veio, do nosso ponto de vista, estabelecer as seguintes regras relativas à apresentação de queixa em crime semi-público:
- ou é apresentada pelo próprio titular do interesse protegido pela incriminação;
- ou é apresentada por advogado ou solicitador munido de mandato geral;
- ou é apresentada por não advogado ou solicitador e, nesse caso, é necessário que o mandato contenha poderes especiais (não necessariamente especificados);
- neste último caso, se o mandato contiver meros poderes gerais de representação, pode a queixa ser ratificada pelo titular do direito respectivo mesmo após o prazo previsto
no artigo 112º, nº 1, do Código Penal de 1982.
Esta descrição histórica da problemática em presença permite entender a nova redacção que foi dada ao artº 49º, nº 3, do CPP, pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto.
Efectivamente, se bem atentarmos, tal redacção actual permitiu compaginar a lei com a última orientação jurisprudencial do STJ ("Assento" nº 1/97), pois que se estabelece agora que «a queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais».
Note-se que a exigência de poderes especiais é relativa apenas ao mandatário não judicial, pois a expressão verbal "munido" está colocada no singular e não no plural.
Note-se, também, que o legislador, ciente das várias querelas jurisprudenciais ocorridas ao longo dos anos, não fez referência aos poderes especiais especificados, deixando cair esta
exigência, na esteira dos "Assentos" nºs 4/94 e 1/97.
Resta, pois, saber o que se deve entender por mandato "com poderes especiais" para o efeito de apresentação de queixa por crime semi-público.
O artº 1159, nº 2, do CC, diz que «o mandato especial abrange, além dos actos nele referidos, todos os demais necessários à sua execução» e o artº 1161, al. a), do mesmo Código, estabelece que o mandatário é obrigado «a praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante».
Assim, no mandato com poderes especiais, o mandatário deve praticar os actos nele compreendidos e, ao contrário do núncio, também todos os demais necessários à sua execução.
Como diz Manuel de Andrade, «O representante pondera e decide alguma coisa em lugar do representado. Determina a sua vontade por conta e em nome dele. Mesmo que as
condições do negócio sejam totalmente pré-ordenadas pelo representado, fica-Ihe, todavia, quanto mais não seja, a possibilidade de o concluir ou não, como lhe parecer mais
conveniente, dadas as circunstâncias» ("Teoria Geral da Relação Jurídica", II, p. 291).
E, comentando esta frase do Prof. Manuel de Andrade, o STJ nos fundamentos do citado "Assento" nº 2/92, referiu o seguinte: «A representação, no entanto, não pode exprimir-se através da substituição da vontade do representado pela do representante. E isto é particularmente sensível no terreno dos direitos pessoais, como o direito de queixa. Já que se mostra seguro serem as pessoas indicadas na lei, e não quaisquer outras, quem pode justamente sopesar os interesses em jogo na comissão da denúncia e valorar os efeitos negativos da mesma emergentes».
Concordamos inteiramente com este ultimo comentário. Contudo, não parece lícito, hoje em dia, extrair as conclusões drásticas que esse Acórdão acabou por deliberar. Por um
lado, a jurisprudência desse Acórdão caducou completamente, pelas razões apontadas, por outro, parece visível a intenção do legislador actual em simplificar os actos relativos à apresentação de queixa, sem perder de vista que deve estar suficientemente assegurada a sua pessoalidade..
Como se assegura essa pessoalidade? Ou é o próprio titular do direito lesado que apresenta a queixa, ou é um advogado munido de simples procuração (dando dignidade e responsabilidade à função própria da advocacia), ou é uma outra pessoa munida com poderes especiais. Neste último caso, não exigindo a lei que os poderes sejam especialíssimos (ou especificados), a pessoalidade da queixa fica assegurada se do conteúdo do mandato resultar inequívoca a vontade do mandante em apresentar aquela queixa.
Ora, no caso de crimes contra o património, como são os crimes de furto, de burla ou de cheques sem provisão, a vontade de apresentar queixa por parte do mandante fica perfeitamente assegurada se o mandatário não judicial estiver munido de uma procuração que abranja essa categoria de actos, mesmo que não individualizados. Na realidade, nesse tipo de crimes a pessoa do arguido, ou o local, ou o dia são elementos que, na esmagadora maioria de casos, são irrelevantes para a determinação de vontade do titular do direito ofendido em apresentar queixa. Muito mais, se tal titular for uma pessoa colectiva de enormes dimensões, com vários estabelecimentos abertos ao público e que diariamente sofre prejuízos por crimes dessa natureza.
Já não assim no caso dos crimes contra as pessoas, pois aí a identidade do arguido, as circunstâncias do crime (local, dia, etc.) assumem, em regra enorme relevo. Daí que não satisfaça as exigências legais um mandato não judicial que abrangesse o direito de queixa relativamente a uma categoria de crimes contra as pessoas (por exemplo, para deduzir queixa por crimes de injúrias, ou de violações, ou de ofensas contra a integridade física), pois o próprio enunciado da questão é visivelmente absurdo (as pessoas não andam diariamente a ser objecto de injúrias, ou de violações, ou de ofensas contra a integridade
física).
Admite-se também que, em certos casos de crimes contra o património, possa haver
dúvidas fundadas sobre a vontade do mandante em apresentar queixa, se esta for apresentada por mandatário não judicial com poderes especiais não especificados.
Imaginemos, por exemplo, que quem emitiu o cheque sem provisão foi um familiar do lesado. Aí, pode e deve o Juiz exigir que haja uma ratificação da queixa, pois é evidente que a pessoa do arguido pode não ser indiferente para o titular do direito lesado. Mas isso serão casos de excepção no que diz respeito aos crimes contra o património.
Ora, é precisamente com base nestes ensinamentos que podemos decidir o caso dos autos.
A queixa por crime semi-público de furto foi apresentada por indivíduo munido com uma procuração não judicial, conferida pela proprietária dos objectos furtados, uma grande empresa do ramo dos hipermercados, sendo que nessa procuração lhe eram conferidos poderes para "apresentar queixas por crime de furto e furto qualificado, burla e burla-qualificada, que tenham sido cometidos em qualquer dos estabelecimentos de que é
proprietária, junto dos representantes do Ministério Público, em qualquer Tribunal, Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana ou qualquer outra entidade..."
Estas menções são os poderes especiais atribuídos ao mandatário. E não estando agora o intérprete "amarrado" à jurisprudência do "Assento" nº 2/92, basta neste caso, para
assegurar a pessoalidade da queixa, que o mandato contenha uma especificação genérica da categoria de casos em questão, os furtos simples ocorridos nos estabelecimentos da
mandante. Na realidade, os dados de experiência comum demonstram que para a proprietária de um hipermercado é irrelevante a pessoa do arguido, o local concreto do
furto e o dia e hora em que foi cometido. As pessoas colectivas de grandes dimensões não têm rosto, são "impessoais", funcionam, portanto, por descentralização dos seus poderes
internos, necessariamente difusos e automáticos.
Daí que, sem sombra de dúvida, a queixa de fls. 4 tenha sido assinada por mandatário não judicial munido de poderes especiais para o efeito, conforme prescreve o artº 49, nº 3, do CPP.
Termos em que o recurso merece inteiro provimento.
-X-
Acordam, assim, em conceder provimento ao recurso e em revogar o douto despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, reconhecendo a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, faça prosseguir o processo.
Não há lugar a tributação.
Notifique.
(Acórdão processado e revisto pelo relator)
Lisboa, 21 de Março 2001
Dr. José Vaz dos Santos Carvalho
João Manuel Villaverde e Silva Cotrim Mendes
António Rodrigues Simão