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CRÉDITO DE ALIMENTOS
PRESTAÇÕES ALIMENTARES DEVIDAS A MENORES
NÃO RECLAMAÇÃO NO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I - Do artigo 245º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas resulta, diretamente, que a decisão final de exoneração do passivo restante implica a extinção de todos os créditos da insolvência que ainda não se mostrem satisfeitos, ainda que não tenham sido reclamados, tal como se extrai também desta norma que os créditos da insolvência que não tenham sido reclamados não se extinguem pelo facto de não terem sido reclamados. II - A exoneração final do passivo restante não abrange, entre outros, os créditos de alimentos, tenham ou não sido reclamados. III - Não obstante as especificidades do dever de sustento dos menores previsto no artigo 1878º, nº 1, do Código Civil, relativamente à geral obrigação de prestação de alimentos prevista no artigo 2003º, do mesmo diploma legal, a exigibilidade de prestações alimentares devidas a menores vencidas após a declaração de insolvência, pelas forças da massa insolvente, segue o regime previsto no artigo 93º do CIRE. IV - De acordo com o disposto no nº 1, do artigo 242º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a impossibilidade de instauração de execuções contra o devedor beneficiário do incidente de exoneração do passivo restante, durante o período da cessão, apenas opera relativamente aos créditos da insolvência, não sendo aplicável aos créditos constituídos após a declaração de insolvência, como sucede relativamente às prestações alimentares vencidas após a declaração de insolvência. V - A aferição da conduta relevante para efeitos de abuso do direito há-de pautar-se, em regra, pela conduta do representante. VI - Há que ser particularmente exigente no que respeita o preenchimento dos requisitos do abuso do direito nos casos de representação legal que, regra geral, não deixará de ser percecionada pela contraparte e ainda mais quando, como sucede no caso em apreço, a contraparte é o outro progenitor dos menores.
Texto Integral
1634/14.1T8MTS-C.P1
Sumário do acórdão proferido no processo nº 1634/14.1T8MTS-C.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil: 1. Do artigo 245º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas resulta, diretamente, que a decisão final de exoneração do passivo restante implica a extinção de todos os créditos da insolvência que ainda não se mostrem satisfeitos, ainda que não tenham sido reclamados, tal como se extrai também desta norma que os créditos da insolvência que não tenham sido reclamados não se extinguem pelo facto de não terem sido reclamados. 2. A exoneração final do passivo restante não abrange, entre outros, os créditos de alimentos, tenham ou não sido reclamados. 3. Não obstante as especificidades do dever de sustento dos menores previsto no artigo 1878º, nº 1, do Código Civil, relativamente à geral obrigação de prestação de alimentos prevista no artigo 2003º, do mesmo diploma legal, a exigibilidade de prestações alimentares devidas a menores vencidas após a declaração de insolvência, pelas forças da massa insolvente, segue o regime previsto no artigo 93º do CIRE. 4. De acordo com o disposto no nº 1, do artigo 242º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a impossibilidade de instauração de execuções contra o devedor beneficiário do incidente de exoneração do passivo restante, durante o período da cessão, apenas opera relativamente aos créditos da insolvência, não sendo aplicável aos créditos constituídos após a declaração de insolvência, como sucede relativamente às prestações alimentares vencidas após a declaração de insolvência. 5. A aferição da conduta relevante para efeitos de abuso do direito há-de pautar-se, em regra, pela conduta do representante. 6. Há que ser particularmente exigente no que respeita o preenchimento dos requisitos do abuso do direito nos casos de representação legal que, regra geral, não deixará de ser percecionada pela contraparte e ainda mais quando, como sucede no caso em apreço, a contraparte é o outro progenitor dos menores.
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto: 1. Relatório
Em 24 de Junho de 2015[1], no processo nº 1634/14.1T8MTS-C.P1, pendente na 3ª Secção de Família e Menores, J1, Instância Central de Matosinhos, Comarca do Porto, foi proferida a seguinte decisão:
“O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia Não há nulidade que invalidem o processo As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas
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Nos presentes autos de embargos de executado vem o embargante suscitar várias exceções que cumpre desde já apreciar, decidindo ainda que parcialmente do mérito dos presentes embargos. O embargante começa por alegar que procedeu ao pagamento de dois mil euros valor que deve ser considerado, abatendo-se no valor em execução (questão que depende ainda de produção de prova) Alega o embargante que foi declarado insolvente por sentença de 26-04-2010, tendo posteriormente sido proferido despacho que admite liminarmente a exoneração do passivo restante, sendo certo que a ora exequente nunca veio ao processo de insolvência reclamar os créditos de alimentos devidos aos filhos menores que agora pretende executar. Defende que relativamente aos créditos anteriores à declaração de insolvência, não os tendo reclamado no processo de insolvência, precludiu-se o direito atento o carater de execução universal do processo de insolvência Relativamente aos créditos de alimentos posteriores à declaração de insolvência, não são os mesmos exigíveis ao embargante/insolvente, devendo a exequente seguir o prescrito no art. 93º do CIRE. Invoca ainda, em qualquer caso, a prescrição do crédito de alimentos nos termos do art. 310º al. f) do CC relativamente às pensões vencidas até 10-12-2009 Por fim, alega abuso de direito por parte da exequente que durante sete anos não reclamou por qualquer forma os alimentos em dívida criando no espírito do embargante a confiança de que as prestações de alimentos não lhe seriam exigidas
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A exequente/embargada respondeu impugnando o pagamento dos dois mil euros e alegando, em síntese, que - desconhece qualquer processo de insolvência, sendo que a eventual existência do mesmo nunca pode exonerar o executado do pagamento de alimentos devidos aos filhos menores - relativamente às prestações vencidas após a declaração de insolvência haverá que ter-se em conta que a exoneração do devedor não abrange créditos por alimentos - relativamente às prestações vencidas após a declaração de insolvência, estando em causa uma obrigação especial de alimentos a filhos menores, não se aplica o art. 93º do CIRE sendo de salientar ainda que o montante que o executado aufere a título de subsídio de desemprego ficou disponível na totalidade para sustento do devedor e seu agregado familiar (do qual fazem parte os seus filhos menores) - nenhuma das prestações de alimentos se encontra prescrita uma vez que a prescrição apenas se inicia após a maioridade dos filhos (que são os credores) - por várias vezes a exequente solicitou ao executado o pagamento dos alimentos em dívida (conforme doc. que junta) nunca tendo, por qualquer forma, dado a entender intenção de “perdoar” a dívida
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Na audiência prévia realizada ambas as partes mantiveram as posições assumidas nos articulados É desde já possível conhecer, ainda que parcialmente, do mérito uma vez que várias das questões suscitadas são questões de direito e os autos contêm já elementos que as permitem apreciar Da análise dos autos, seus apensos, documentos e elementos deles constantes e posições assumidas pelas partes, são de considerar desde já demonstrados e relevantes para a decisão a proferir, os seguintes factos: - B… nasceu a 20 de dezembro de 1996 e foi registado como filho do embargante e da embargada – cf. doc. fls. 20 do processo de alteração das responsabilidade parentais apenso - C… nasceu a 02 de Janeiro de 2003 e foi registado como filho do embargante e da embargada – cf. doc. fls. 18 do processo de alteração das responsabilidade parentais apenso - O exercício das responsabilidade parentais referente aos filhos de embargante e embargada foi regulado no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento dos seus progenitores que correu termos na 2ª CRC do Porto, por decisão de 08 de janeiro de 2007, tendo ficado determinado, além do mais que os filhos do casal residiriam com a mãe, obrigando-se o pai a prestar-lhes alimentos no montante mensal de total de quinhentos euros (sendo duzentos e cinquenta euros para cada menor), quantia essa atualizável anualmente em função da taxa de inflação publicada pelo INE, procedendo-se à primeira atualização em janeiro de 2008 – cf. doc. fls. 5 a 8 do processo de execução apenso - A 05 de dezembro de 2014 a progenitora intentou execução reclamando o pagamento das prestações de alimentos devidas pelo pai desde fevereiro de 2007 a dezembro de 2014, com as atualizações decorrentes da inflação e juros devidos, tudo num total de 58.752,81€ - cf. processo de execução apenso - Por sentença datada de 26-04-2010 proferida no processo que correu termos com o nº 254/10.4TJPRT da 2ª secção do 1º juízo cível do Porto o embargante foi declarado insolvente, tendo sido fixado o prazo de trinta dias para os credores reclamarem os seus créditos - Em 28-07-2010 foi proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, fixando em uma vez e meia o salário mínimo nacional como a quantia necessária ao sustento mínimo do insolvente (e portanto excluída do seu rendimento disponível) - Ambas as decisões transitaram em julgado e foram levadas a publicação no DR - Por decisão judicial de 09-07-2010 foi declarado o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente - Através de mails enviados a 05 de julho de 2012, 19 de junho de 2011, 25 de janeiro de 2012 a embargada relembrou ao embargante a sua dívida de alimentos aos filhos solicitando o pagamento - – cf. doc. fls.46 a 49 dos presentes autos de embargos
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Cumpre decidir as eceções suscitadas e que constituem matéria de direito A) Relativamente aos créditos anteriores à declaração de insolvência, defende o embargante que não tendo sido reclamados no processo de insolvência, precludiu-se o direito atento o carácter de execução universal do processo de insolvência. Efectivamente decorre do art. 1º do CIRE que “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. Não obstante, o crédito de alimentos filho menor, sendo um crédito especial e decorrente das responsabilidades parentais, está sujeito a um regime especial. Nos termos do disposto no art. 245º nº 1 do CIRE “A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados (…) Porém na al. a) do nº 2 da referida norma são excluídos deste regime os créditos de alimentos. Significa isto que, quer tenham ou não sido reclamados e verificados, os créditos de alimentos não se extinguem e portanto subsistem como tal os créditos de alimentos anteriores à declaração de insolvência e à concessão da exoneração Pelo exposto é de concluir que os créditos de alimentos aos filhos menores anteriores á declaração de insolvência persistem como tal não estando precludido o direito de os exigir judicialmente
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B) Relativamente aos créditos de alimentos posteriores à declaração de insolvência, defende o embargante que não são os mesmos exigíveis ao embargante/insolvente, devendo a exequente seguir o prescrito no art. 93º do CIRE. Estabeleceu o legislador no artigo 88º do CIRE que a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligência executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada contra o insolvente. Não é inocente a redacção do artigo 88º, nº 1 do CIRE. É que nem todos os bens do insolvente integram a massa. Com efeito, dispõe o artigo 46º, nº 2 do citado diploma que “os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e impenhorabilidade não fora absoluta.” Uma melhor compreensão do que sejam “bens isentos de penhora” pressupõe a consideração do teor dos artigo 736º a 738º do NCPC, sendo particularmente relevante, no caso concreto, o disposto no artigo 738º, nº 1, 3 e 4 do NCPC, que, fixando a impenhorabilidade de 2/3 dos vencimentos, salários ou qualquer outra prestação que assegure a subsistência do executado, com o limite máximo do salário mínimo para os créditos em geral ou da quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, quando o crédito exequendo seja de alimentos. E compreende-se que assim seja, na medida em que o que se pretende garantir é a subsistência do devedor/executado. Esta preocupação existe, naturalmente, também no processo de insolvência de devedores singulares e, neste âmbito, além do artigo 46º do CIRE já citado, prevê o artigo 239º, nº 2 e 3, al. b) i) do mesmo diploma, que, após prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante e durante o designado “período de cessão”, o devedor deverá ceder o rendimento disponível ao fiduciário que venha a ser designado, esclarecendo que não integra o “rendimento disponível” a quantia que se mostre necessária ao sustento minimamente condigna do devedor e do seu agregado familiar, com o limite (em princípio) de três vezes o salário mínimo. Importará saber se o crédito de alimentos devidos a filho menor (é esta a natureza da quantia exequenda) poderá ser encarado como crédito integrante da quantia necessária à subsistência do devedor e do seu agregado familiar ou não. A este propósito partilhamos do entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/02/2011, processo n.º 2115/10.8TBGMR-F.G1, relatado por Maria Luísa Ramos e integralmente disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se “integra-se na previsibilidade do artigo 239º, nº 3, al. b), i) do CIRE, a obrigação de sustento de filhos menores, nos termos decorrentes das «Responsabilidades Parentais», com referência ao conceito de agregado familiar, reportando-se, distintamente, o artigo 93º do CIRE, à obrigação geral de alimentos consignada no artigo 2009º do Código Civil.” “… a obrigação de alimentos dos pais a filhos menores, decorrente da obrigação dos pais de prover ao sustento dos filhos, por virtude do poder-dever das responsabilidades parentais em que se encontram investidos, nos termos dos arts. 1877º ss do Cód. Civ. (…) e, sendo absolutamente inalienáveis os direitos e obrigações dos pais decorrentes das “responsabilidades parentais”, é, uma obrigação totalmente distinta da obrigação geral de alimentos prevista no art. 2009º do Cód. Civ., tratando-se da obrigação integrada no próprio conteúdo das responsabilidades parentais, tal como estatui o art. 1878º do Cód. Civ., e que mantém durante toda a menoridade do filho, sendo inalienável e indissociável da condição de pai, e, ainda, mantendo-se a indicada obrigação independentemente da condição de solvabilidade económica, ou não, do progenitor. Conclui-se, deste modo, que é à obrigação geral de alimentos consignada no art. 2009º do Cód. Civ. a que o art. 93º do CIRE se reporta, integrando-se a obrigação de sustento dos filhos menores nos termos decorrentes das responsabilidades parentais na previsibilidade do art. 239º nº 3 al b)-i) do CIRE, com referência ao “agregado familiar”. – cf. Acórdão supra id. Dito de outro modo, o rendimento indisponível do devedor/aqui executado, não pode ser cedido à massa e não responde por qualquer crédito, salvo pelos créditos de alimentos a favor de menor, rendimento que fica na disponibilidade do devedor e cujo limite de impenhorabilidade é diferente (cfr. artigo 738º, n.º 1, 3 e 4 do NCPC. Como tal, e sendo certo que na presente execução só poderá ser penhorado o rendimento disponível do executado, com estrita observância do disposto no artigo 738º, n.º 4 do NCPC, improcede a pretensão do embargante relativamente à extinção da presente execução.
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C) Invoca ainda o embargante, em qualquer caso, a prescrição do crédito de alimentos nos termos do art. 310º al. f) do CC relativamente às pensões vencidas até 10-12-2009 Sendo certo que as prestações alimentícias vencidas prescrevem no prazo de cinco anos 8art. 310 al f) do Cód. Civ.), haverá que considerar que relativamente a menores a prescrição não se completa sem que tenha decorrido um ano após o termo da incapacidade. Ora, não tendo decorrido, manifestamente, tal prazo, não ocorre qualquer prescrição
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D) Alega ainda o embargante abuso de direito por parte da exequente que durante sete anos não reclamou por qualquer forma os alimentos em dívida criando no espírito do embargante a confiança de que as prestações de alimentos não lhe seriam exigidas Tendo em conta a análise dos documentos juntos aos autos pela embargada e dos quais resulta que, ao longo dos anos, embora não tenha exigido judicialmente os alimentos, reiteradamente relembrou ao embargante a sua divida de alimentos aos filhos não se vê como possa ter sido criada no espírito deste qualquer expectativa de que as prestações de alimentos não lhe seriam exigidas, pelo que improcede igualmente a referida exceção
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E) Por fim refere o embargante que a quantia devida deverá ter em conta as oscilações da inflação, tanto para mais como para menos e que relativamente ao filho mais velho, por ter atingido a maioridade, não devem ser consideradas prestações vincendas Relativamente às oscilações da inflação, para menos, estas não podem, obviamente (tendo em conta a natureza e finalidade dos alimentos devidos a menores) implicar uma diminuição do montante inicialmente fixado. O montante inicialmente fixado e considerado essencial para as despesas dos menores é sujeito a atualização de acordo com a inflação de forma a ir acompanhando o aumento do custo de vida e as necessidades dos menores, não podendo tal atualização significar em qualquer caso uma diminuição de tal valor – ainda que a inflação seja negativa (que já não será inflação mas deflação). Em caso de deflação manter-se-á o montante fixado. Por fim, relativamente às prestações vincendas quanto ao filho menos, cumpre nota que do requerimento executivo não consta qualquer pretensão de execução de prestações vincendas mas apenas das vencidas até á instauração da execução.
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Não há outras nulidades, exceções, questões prévias ou incidentais a apreciar Objeto do litigio – Alimentos devidos pelo embargante aos filhos Temas de prova Pagamento leo embargante da quantia de dois mil euros correspondente às quatro primeiras prestações vencidas Notifique as partes para, querendo e em dez dias, reclamarem”.
Inconformado com a decisão que antecede, na parte em que conheceu das exceções perentórias decorrentes da declaração de insolvência do embargante e do abuso do direito, em 27 de Agosto de 2015, D… interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“1ª Interpõe-se o presente recurso de apelação do despacho saneador, proferido no apenso de embargos de executado, deduzidos contra a execução por via da qual a recorrida peticiona o pagamento de todas as pensões de alimentos aos filhos do ex-casal formado pelas partes, vencidas desde Fevereiro de 2007, versando o recurso exclusivamente a parte em que, neste despacho, conhecendo-se do mérito, se julgam improcedentes as excepções peremptórias decorrentes da declaração de insolvência do embargante e do abuso do direito – ou seja, o objecto do recurso restringe-se à matéria de direito que consta das als. A), B) e D) da motivação jurídica desse despacho, e bem assim à matéria de facto constante do último ponto dos factos dados como provados. 2ª No último ponto da matéria de facto (que se dá por integralmente reproduzida), consta o seguinte: «através de mails enviados a 05 de julho de 2012, 19 de junho de 2011, 25 de janeiro de 2012, a embargada relembrou ao embargante a sua dívida de alimentos aos filhos solicitando o pagamento – cf. doc fls. 46 a 49 dos presentes autos de embargos». Ponto este que se considera-se incorrectamente julgado (al. a) do n.º 1 do artigo 640º do CPC), uma vez que os documentos a que expressamente faz referência e onde exclusivamente se apoiou a decisão – e que constituem os meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do n.º 1 do artigo 640º do CPC) não permitem a afirmação, na íntegra, daqueles factos, ou melhor, das conclusões genéricas e extensivas contidas neste ponto. 3ª A decisão que deve ser proferida sobre esta matéria (al. c) do n.º 1 do artigo 640º do CPC) é a seguinte, considerando o teor dos três e-mails referidos na decisão recorrida, e ordenando-os cronologicamente: - Por e-mail datado de 15.06.2011, dirigido pela embargada ao embargante, esta comunicou-lhe o seguinte: «D… até à data desde que nos divorciamos ainda não recebi nenhuma pensão de alimentos que na altura foi acordada. Até hoje consegui gerir os valores da melhor forma, hoje é impossível. Necessito saber o que tencionas fazer sobre este assunto. Como sabes ter filhos não é só fins de semana, exiete um conjunto de responsabilidades dos pais que tem de ser cumpridas. Necessito de resposta sobre o que vais fazer. Obrigado. G…» - Doc. n.º 2 da contestação, a fls. 47. - Por e-mail datado de 25.01.2012, dirigido pela embargada ao embargante, esta comunicou-lhe o seguinte: «D… desde o inicio do futebol que estão a retirar da minha conta 45 euros. Junto envio o recibo do valor que é mensal. Como tu disseste, serias tu a pagar o futebol. Assim sendo agradeço que me transfiras 180 euros dos meses que tiraram. Em relação aos 500 euros da pensão de alimentos pelos nossos filhos agradeço também que comeces a transferir. Não posso suportar as despesas todas. Ter filhos não é só ter é necessário assumir as responsabilidades de crescimento, educação… Diz alguma coisa sobre estes assuntos G…» - Doc. n.º 4 da contestação, a fls. 49. - Por e-mail datado de 05.07.2012, dirigido pela embargada ao embargante, esta comunicou-lhe o seguinte: «D… a E… do consultório da F… telefonou a dizer que a conta corrente que está em aberto. O valor que estamos a falar é de 1.500 euros. Solicitei que me enviasse por email o detalhe a que correspondia esse valor e o NIB. Como nunca foi falado em qualquer valor, se eu podia ou não suportar a despesa, agradeço que pagues e diria que não é nada tendo em conta ao valor que até á data me estás a dever. Até hoje, 4 anos de pensão de alimentos para os nossos filhos representa: 24.000 euros + 2500 de mais 5 meses. Da pensão de alimentos só um mês transferiste o valor. Assim a tua dívida é de 26.524 euros. Logo que tenha o email envio-te com o respetivo NIB. G…» - doc. n.º 1 da contestação, a fls. 46. 4ª No que se refere à matéria de direito, são três os pontos da discordância. Primeiro: Relativamente aos créditos de alimentos constituídos anteriormente à declaração de insolvência do ora recorrente,deve entender-se que, não tendo a recorrida (exequente) cumprido o ónus que sobre ela recaía de exercer, no processo de insolvência (ou por acção intentada contra a massa insolvente) esses direitos de crédito (ou seja, as pensões vencidas até á data da declaração de insolvência), a recorrida não pode mais exercer esses direitos, por via do efeito preclusivo resultante da não satisfação desse ónus. 5ª Salvo o devido respeito, o entendimento em contrário expresso no despacho recorrido não é admissível, apoiando-se, por um lado, numa incorrecta interpretação da norma do artigo 245º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CIRE e, por outro lado, na falta de consideração do disposto nos artigos 1º (apesar de citado na decisão), 90º e 128º, 146º, n.ºs 1 e 2, al. b) do mesmo código, donde resulta que a falha na interpretação do artigo 245º não é apenas literal e teleológica, mas também sistemática. 6ª Normas essas – artigos 1º, 90º, 128º, 146º, n.ºs 1 e 2, al. b) e 245º do CIRE que foram violadas. 7ª Posto que, nos termos do artigo 1º do CIRE, o processo de insolvência tem carácter de execução universal, todos os credores devem nesse processo exigir a verificação e a graduação dos seus créditos, sob pena de não mais os poderem exigir, sendo que esse artigo não abre qualquer excepção a este carácter universal, não excluindo desse universo qualquer tipo de credores (designadamente o credor de alimentos). 8ª O artigo 90º do CIRE estatui que «os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos deste Código, durante a pendência do processo de insolvência», e não abre qualquer excepção a esta regra a qualquer tipo de credores (designadamente para o credor de alimentos). 9ª O artigo 128º do CIRE estabelece, no seu n.º 1, que «dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência (…) reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento (…)», e também não abre qualquer excepção a esta regra a qualquer tipo de credores (designadamente para o credor de alimentos). 10ª O artigo 146º, n.ºs 1 e 2, al. b), do mesmo código, estabelece os termos em que, findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, mediante a propositura de acção contra a massa insolvente. Novamente, não há neste artigo a exclusão da regra estabelecida para qualquer tipo de credores (designadamente para o credor de alimentos). 11º Da interpretação conjugada do disposto nos artigos 1º, 90º e 128º do CIRE resulta que qualquer credor do insolvente deve actuar no processo de insolvência para obter a satisfação dos seus créditos, não beneficiando o credor de alimentos de qualquer regime especial que o dispense de reclamar os seus créditos. 12ª Assim sendo, a recorrida, como qualquer credor, devia ter exercido esses direitos de crédito no processo de insolvência, através da competente reclamação da verificação de créditos, dentro do prazo estabelecido na sentença (30 dias), para obter o pagamento dos mesmos no âmbito desse processo, enquanto dívidas da insolvência, o que, porém, não fez, não cumprindo esse ónus. 13ª Nos termos do artigo 146º, n.ºs 1 e 2, al. b), do mesmo código, a recorrida podia ter pedido o reconhecimento dos mesmos créditos, mediante acção a intentar contra a massa insolvente, no prazo de um ano contado desde o trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência, o que também não fez, não cumprindo esse ónus. 14ª O despacho recorrido faz tábua rasa destas normas e apoia-se no artigo 245º para chegar a conclusão contrária, salvo o devido respeito de forma errada. 15ª O artigo 245º enquadra-se no capítulo respeitante à exoneração do passivo restante, que é um incidente eventual do processo de insolvência das pessoas singulares, visando, como explica o ponto 45 do preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18/03, que aprovou o CIRE, acolher o princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em insolvência, permitindo ao devedor a exoneração de alguns dos créditos sobre a insolvência que não sejam pagos no decurso do processo ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, tendo em vista permitir a reabilitação económica desse devedor. 16ª Findo o período de cessão, pode o juiz conceder a exoneração do passivo restante e, sendo ela concedida, o n.º 1 do artigo 245º do CIRE vem estabelecer que tal «exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados», sendo que nem todos os créditos se extinguem, já que o n.º 2 do mesmo artigo estabelece que «a exoneração não abrange, porém» os créditos que aí se indicam, nomeadamente o crédito por alimentos (al.a), a par designadamente dos créditos por multas, coimas (al. c) e tributários (al. d). 17ª O artigo 245º não diz, nem podia dizer por não ser o local próprio, nem de forma alguma dele se pode retirar semelhante entendimento – como ocorre no despacho saneador recorrido – que esses créditos que não são abrangidos pela exoneração não têm que ser reclamados no processo de insolvência. 18ª Esses créditos têm que ser reclamados, nos termos gerais, uma vez que só dentro do processo de insolvência podem os credores (todos os credores) exercer os seus direitos de crédito. Simplesmente, se não forem pagos na insolvência nem nos cinco anos posteriores, se porventura tiver sido pedida e concedida a exoneração do passivo restante, nem por isso esses créditos, atendendo à sua origem ou objecto, se extinguem. 19ª O raciocínio desenvolvido no despacho saneador, em contrário, é – salvo o devido respeito – totalmente incorrecto, quer do ponto de vista literal, quer teleológico, quer sistemático. 20ª Assim sendo, é de concluir que a recorrida não pode mais exercer os direitos de crédito de alimentos constituídos anteriormente à declaração de insolvência do ora recorrente, por via do efeito preclusivo resultante da não satisfação do ónus da sua reclamação no processo de insolvência – oque se requer seja determinado. 21ª Segundo: Relativamente aos créditos de alimentos posteriores à data da declaração de insolvência, estes seguem um regime especial, nos termos dos artigos 51º, n.º 1, al. j), e 93º do CIRE, obrigando este último artigo o credor de alimentos a exigir os mesmos contra a massa, e apenas se nenhuma das pessoas referidas no artigo 2009º do C. Civil estiver em condições de os prestar, exigência essa que não foi feita pela recorrida. 22ª No despacho saneador recorrido, aprecia-se esta excepção (al B) com base nos seguintes argumentos: - Nos termos do artigo 88º, n.º 1 do CIRE, a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada contra o insolvente, mas nem todos os bens do insolvente integram a massa, designadamente os «bens isentos de penhora» (artigo 46º, n.º 2, do CIRE), sendo que, nos termos do artigo 738º, n.º 1, 3 e 4 do NCPC, quando o crédito seja de alimentos, é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo. - Seguindo o entendimento defendido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.02.2011 (supra id.), afirma que o artigo 93º do CIRE se reporta à obrigação geral de alimentos prevista no artigo 2009º do C.Civil, e que a obrigação de sustento dos filhos menores integra-se na previsibilidade do artigo 239º, n.º 3, al. b)-i) do CIRE, com referência ao «agregado familiar». Concluindo o despacho saneador que na presente execução só pode ser penhorado o rendimento disponível do executado, com estrita observância do disposto no artigo 738º, n.º 4, do CPC, declarando-se improcedente a pretensão de extinção da execução. 23ª Sobre a questão da exigibilidade de alimentos a filhos menores a devedor insolvente, há (tanto quanto foi possível apurar, só há) dois acórdãos, contraditórios, ambos do Tribunal da Relação de Guimarães. 24ª O primeiro acórdão, de 22.02.2011, identificado, citado e seguido no despacho saneador recorrido, afirma, em resumo, que o artigo 93º do CIRE se reporta à obrigação geral de alimentos prevista no artigo 2009º do C.Civil, e não também à obrigação, totalmente distinta, de alimentos, a cargo dos pais. Mais se defende nesse acórdão (e no despacho recorrido), que a obrigação de sustento dos filhos menores, a cargo dos pais, enquadra-se na previsão do artigo 239º, n.º 3, al. b)-i), com referência ao agregado familiar. 25ª Por seu turno, o segundo acórdão, de 03.07.2012 (supra id.), afirma, em sentido contrário: «O credor de alimentos – ainda que seja um filho menor – é um credor do insolvente (ou, eventualmente, da massa insolvente) que, como tal e nos termos do art. 90º, apenas poderá exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do CIRE. Mais afirma o mesmo acórdão que, «como decorre do art. 93º, o direito a exigir alimentos relativo a período posterior à declaração de insolvência só pode ser exercido contra a massa se nenhuma das pessoas referidas no artigo 2009º do Código Civil estiver em condições de os prestar, sendo que, em qualquer caso, o respectivo montante é fixado pelo juiz, e, portanto, sem qualquer vinculação ao valor que, anteriormente, havia sido estabelecido». 26ª É este o entendimento que temos por correcto e que se pede seja seguido, considerando-se violadas, no despacho recorrido, as normas dos artigos 51º, n.º 1, al. j), 93º e 239º, n.º 3, al. b)-i) do CIRE. 27ª Os créditos de alimentos posteriores à data da declaração de insolvência seguem um regime especial, nos termos do CIRE. 28ª O artigo 51º, n.º 1, al. j), do C.I.R.E. estabelece que são dívidas da massa insolvente (portanto, não dívidas da insolvência, beneficiando de um regime especial de pagamento) «a obrigação de prestar alimentos relativa ao período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93º». 29ª Nos termos do artigo 93º do CIRE, na sua redacção original (aplicável), «O direito a exigir alimentos do insolvente relativo a período posterior à declaração de insolvência só pode ser exercido contra a massa, se nenhuma das pessoas referidas no artigo 2009º do Código Civil estiver em condições de os prestar, e apenas se o juiz o autorizar, fixando o respectivo montante». 30ª O legislador refere-se genericamente ao direito de exigir alimentos, não fazendo qualquer distinção entre as possíveis fontes desses direitos, e não excluindo do seu regime a obrigação de alimentos a cargo dos progenitores, no âmbito das responsabilidades parentais, seguramente porque as quis incluir no seu regime especial. Há que presumir que o legislador soube expressar o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º, n.º 3, do C. Civil) e que não se iria esquecer daquela que é, socialmente, na prática, a mais comum obrigação de alimentos – a que está a cargo dos pais. 31ª Uma interpretação restritiva, como a efectuada no despacho recorrido, que retire do regime do CIRE a obrigação de alimentos a cargo dos pais constitui interpretação contra legem, vai contra a letra e o espírito do sistema e viola o disposto no artigo 9º, n.ºs 1, 2 e 3, do C. Civil. 32ª A doutrina não faz qualquer interpretação restritiva das normas citadas, não excluindo do artigo 93º a obrigação de alimentos a cargos dos pais (vd. Autores supra citados) 33ª No caso concreto, a recorrida nunca exerceu quaisquer direitos de alimentos contra a massa falida, nem demonstrou a impossibilidade de obter alimentos de qualquer das pessoas referidas no artigo 2009.º do Código Civil, nem requereu ao juiz a fixação do respectivo montante – tudo o que havia de ter sido feito no processo de insolvência, através de incidente próprio. 34ª Aliás, jamais a recorrida conseguiria demonstrar as impossibilidade de obter alimentos por qualquer daquelas pessoas, já que ela própria sempre teve, felizmente, uma vida desafogada, que lhe permitiu satisfazer as necessidades básicas de sustento e educação dos menores – conforme confessa na sua contestação. 35ª Apesar de ter sido requerida a exoneração do passivo restante, não foram considerados em concreto, na fixação do rendimento disponível, os alimentos aos filhos menores do insolvente, ora recorrente – nem podia ter sido de outra forma, posto que, nos termos do artigo 239º, nº 3, i) e iii) do CIRE, só pode ser considerado o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar e, como os filhos menores não residem com o insolvente, mas sim com a mãe, nos termos da decisão da regulação do exercício do poder paternal, estes não integram o agregado familiar do insolvente (neste sentido, vd. O acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08.01.2015 supra citado). 36ª Também não foram fixados alimentos aos insolventes, nos termos do artigo 84º do CIRE, sendo certo que, à data da declaração da insolvência, ainda não tinha sido acrescentado o n.º 4 ao mesmo artigo (resultante da redacção dada pela Lei nº 16/2012, de 20/04), pelo que os alimentos aos filhos menores não podiam aí ser abrangidos. 37ª Do que se conclui que a recorrida não pode – precisamente por não ter obedecido ao que dispõe o artigo 93º do CIRE – reclamar quaisquer alimentos do insolvente, relativos ao período posterior à declaração de insolvência, porque esse crédito só podia ter nascido pela via prevista nessa norma, e tal não ocorreu, sendo que os alimentos fixados no acordo de regulação do poder paternal que constitui título executivo, deixaram de ser devidos com a declaração de insolvência – o que se requer seja declarado. 38ª Tudo o que permite concluir pela inexigibilidade e inexistência do direito de crédito exequendo e, em consequência, pela procedência dos embargos de executado. 39ª Em terceiro lugar, alegou o recorrente, nos embargos de executado, excepção de abuso do direito, namodalidade de supressio, excepção essa que foi conhecida e julgada improcedente no despacho saneador, sob a al. D). 40ª O recorrente invocou, nos embargos de executado, a propósito desta excepção, os fundamentos fácticos e jurídicos supra transcritos, que não foram submetidos a prova. 41ª No despacho saneador, a propósito desta excepção, com base nos factos cuja decisão foi acima impugnada, argumenta-se que ao longo dos anos, embora não tenha exigido judicialmente os alimentos, e embargada reiteradamente relembrou a sua dívida de alimentos aos filhos, pelo que não se vê como possa ter sido criada no espírito deste qualquer expectativa de que as prestações não lhe seriam exigidas, em consequência do que se julgou improcedente a excepção. 42ª Argumentação que não colhe, salvo o devido respeito, pois do e-mails em que o Tribunal recorrido se apoia não se pode concluir que «ao longo dos anos, embora não tenha exigido judicialmente os alimentos, reiteradamente relembrou ao embargante a sua dívida de alimentos aos filhos», posto que estão em causa alimentos desde o início de 2007 até final de 2014, sendo que os e-mail são, apenas, de 2001 e 2012. 43ª Além disso, só no segundo e-mail a recorrida solicita expressamente ao recorrido que comece a transferir a pensão. Em nenhum dos e-mails exige o pagamento dos valores que diz estarem em dívida, embora os contabilize no terceiro e-mail. De resto, a recorrida solicita ao recorrente outros pagamentos, nos segundo e terceiro e-mails, que não da pensão de alimentos. 44ª O recorrente fundou a excepção de abuso do direito, em resumo, no facto de a recorrida não ter reagido judicialmente contra o recorrente, durante mais de sete anos, certamente por conhecer as difíceis condições financeiras em que o recorrente se encontrava e por ter ela própria capacidade económica para prover ao sustento dos filhos, deixado que o recorrente fizesse com os menores, ao longo de todos estes anos, diversas despesas de valor significativo, despesas que especifica, nunca contabilizadas ou abatidas aos supostos montantes em dívida, tendo criado no espírito do recorrente a confiança de que as pensões que não tinha condições de pagar não mais lhe seriam exigidas. 45ª Salvo o devido respeito, o Tribunal recorrido não podia conhecer da excepção sem, ao menos, permitir a prova desses factos, nem podia, com base simplesmente no teor dos e-mails, decidir pela improcedência da excepção de abuso do direito, já que esses documentos não demonstram que não tenha sido criada no espírito do recorrente a confiança de que as pensões não mais lhe seriam exigidas nos termos em que o vieram a ser na execução embargada. 46ª Assim sendo, deve ser revogada a decisão, na parte em que conhece da excepção do abuso do direito, deter minando-se o prosseguimento dos autos para apuramento dos factos invocados como seu fundamento – e assim, obviamente, apenas para o caso de não serem consideradas procedentes as excepções anteriormente invocadas.”
O recorrente termina as alegações de recurso pedindo que na procedência do recurso de apelação seja revogado o despacho recorrido, julgando-se extinta a execução por via da procedência das excepções relacionadas com a insolvência do recorrente ou, subsidiariamente, se determine o prosseguimento dos autos para apreciação da matéria de facto alegada como fundamento da excepção de abuso do direito.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Com o acordo dos Excelentíssimos Juízes-adjuntos, dispensaram-se os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir. 2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da reapreciação da factualidade provada no último ponto dos fundamentos de facto da decisão recorrida;
2.2 Da consequência jurídica da não reclamação no processo de insolvência dos créditos alimentares constituídos anteriormente à declaração de insolvência do recorrente;
2.2 Da consequência jurídica da não exigência de alimentos contra a massa insolvente relativamente aos créditos de alimentos posteriores à declaração de insolvência;
2.3 Do abuso do direito por parte da recorrida ao exigir para seus filhos prestações alimentares que não exigiu ao longo de mais de sete anos. 3. Fundamentos de facto 3.1 Da reapreciação da factualidade provada no último ponto dos fundamentos de facto da decisão recorrida
O recorrente pretende que a factualidade dada como provada no último ponto dos fundamentos de facto da decisão recorrida seja substituída pela reprodução do conteúdo dos documentos que sustentam essa decisão, já que, na sua perspetiva, estes elementos de prova não são suporte suficiente para a conclusão contida na matéria impugnada.
Cumpre apreciar e decidir.
O ponto de facto impugnado pelo recorrente é o seguinte:
- “através de mails enviados a 05 de julho de 2012, 19 de junho de 2011, 25 de janeiro de 2012, a embargada relembrou ao embargante a sua dívida de alimentos aos filhos solicitando o pagamento”.
O recorrente pretende que esta matéria seja substituída pela reprodução dos documentos mencionados na resposta, nos seguintes termos:
- “Por e-mail datado de 15.06.2011, dirigido pela embargada ao embargante, esta comunicou-lhe o seguinte: «D… até à data desde que nos divorciamos ainda não recebi nenhuma pensão de alimentos que na altura foi acordada. Até hoje consegui gerir os valores da melhor forma, hoje é impossível. Necessito saber o que tencionas fazer sobre este assunto. Como sabes ter filhos não é só fins de semana, existe um conjunto de responsabilidades dos pais que tem de ser cumpridas. Necessito de resposta sobre o que vais fazer. Obrigado. G…» - Doc. n.º 2 da contestação, a fls. 47. - Por e-mail datado de 25.01.2012, dirigido pela embargada ao embargante, esta comunicou-lhe o seguinte: «D… desde o inicio do futebol que estão a retirar da minha conta 45 euros. Junto envio o recibo do valor que é mensal. Como tu disseste, serias tu a pagar o futebol. Assim sendo agradeço que me transfiras 180 euros dos meses que tiraram. Em relação aos 500 euros da pensão de alimentos pelos nossos filhos agradeço também que comeces a transferir. Não posso suportar as despesas todas. Ter filhos não é só ter é necessário assumir as responsabilidades de crescimento, educação… Diz alguma coisa sobre estes assuntos Diana» - Doc. n.º 4 da contestação, a fls. 49. - Por e-mail datado de 05.07.2012, dirigido pela embargada ao embargante, esta comunicou-lhe o seguinte: «D… a E… do consultório da F… telefonou a dizer que a conta corrente que está em aberto. O valor que estamos a falar é de 1.500 euros. Solicitei que me enviasse por email o detalhe a que correspondia esse valor e o NIB. Como nunca foi falado em qualquer valor, se eu podia ou não suportar a despesa, agradeço que pagues e diria que não é nada tendo em conta ao valor que até á data me estás a dever. Até hoje, 4 anos de pensão de alimentos para os nossos filhos representa: 24.000 euros+2500 de mais 5 meses. Da pensão de alimentos só um mês transferiste o valor. Assim a tua dívida é de 26.524 euros. Logo que tenha o email envio-te com o respetivo NIB. Diana» - doc. n.º 1 da contestação, a fls. 46.”
Os documentos são meios de prova, destinando-se a provar factos ou, para os mais puristas, enunciados de facto. Por isso, sendo instrumentos para a determinação da realidade dos factos (artigo 341º do Código Civil), não devem, em regra[2], ser reproduzidos, ou ser dados como reproduzidos em sede de decisão da matéria de facto.
No caso em apreço, o que importa verificar é se os aludidos documentos têm aptidão para provar o que a embargada alegou no artigo 32º da sua contestação[3], ou seja, “[a]o longo destes mais de 7 anos de incumprimento a embargada solicitou INUMERAS VEZES ao embargante o pagamento das prestações em falta”.
Ora, analisando cuidadosamente o conteúdo das três mensagens mencionadas no ponto impugnado constata-se que apenas na que foi enviada a 25 de janeiro de 2012, a embargada solicita ao embargante que comece a transferir a prestação alimentar no montante de quinhentos euros.
Na mensagem enviada a 19 de junho de 2011, a embargada afirma que desde o divórcio não recebeu qualquer pensão de alimentos, solicitando ao embargante que diga o que pretende fazer sobre tal assunto.
Finalmente, na mensagem enviada a 05 de julho de 2012, a embargada procede à liquidação da dívida do embargante, a título de prestação alimentar aos filhos e relativa ao período de quatro anos, afirmando que o embargante apenas pagou o valor correspondente a um mês.
Assim, face ao conteúdo das mensagens relevadas no ponto de facto impugnado, deve dar-se como provado o seguinte:
- através de mails enviados a 19 de junho de 2011, 25 de janeiro de 2012 e 05 de julho de 2012, a embargada relembrou ao embargante a sua dívida de alimentos aos filhos, tendo na mensagem de 25 de janeiro de 2012 solicitado o seu pagamento.
Assim, face ao exposto, procede parcialmente a impugnação da decisão da matéria de facto. 3.2 Fundamentos de facto exarados na decisão sob censura, não impugnados pelo recorrente, expurgados das referências probatórias, bem como dos resultantes da reapreciação da decisão da matéria de facto 3.2.1 Factos provados
3.2.1.1
B… nasceu a 27 de dezembro de 1996 e foi registado como filho do embargante e da embargada.
3.2.1.2
C… nasceu a 02 de janeiro de 2003 e foi registado como filho do embargante e da embargada.
3.2.1.3
O exercício das responsabilidade parentais referente aos filhos de embargante e embargada foi regulado no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento dos seus progenitores que correu termos na Segunda Conservatória do Registo Civil do Porto, por decisão de 08 de janeiro de 2007, tendo ficado determinado, além do mais, que os filhos do casal residiriam com a mãe, obrigando-se o pai a prestar-lhes alimentos no montante mensal de total de quinhentos euros (sendo duzentos e cinquenta euros para cada menor), quantia essa atualizável anualmente em função da taxa de inflação publicada pelo INE, procedendo-se à primeira atualização em janeiro de 2008.
3.2.1.4
A 05 de dezembro de 2014 a progenitora intentou execução reclamando o pagamento das prestações de alimentos devidas pelo pai desde fevereiro de 2007 a dezembro de 2014, com as atualizações decorrentes da inflação e juros devidos, tudo num total de 58.752,81€.
3.2.1.5
Por sentença datada de 26-04-2010 proferida no processo que correu termos com o nº 254/10.4TJPRT da 2ª secção do 1º juízo cível do Porto o embargante foi declarado insolvente, tendo sido fixado o prazo de trinta dias para os credores reclamarem os seus créditos.
3.2.1.6
Em 28-07-2010 foi proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, fixando em uma vez e meia o salário mínimo nacional como a quantia necessária ao sustento mínimo do insolvente (e portanto excluída do seu rendimento disponível).
3.2.1.7
Ambas as decisões transitaram em julgado e foram levadas a publicação no Diário da República.
3.2.1.8
Por decisão judicial de 09-07-2010 foi declarado o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente.
3.2.1.9
Através de mails enviados a 19 de junho de 2011, 25 de janeiro de 2012 e 05 de julho de 2012, a embargada relembrou ao embargante a sua dívida de alimentos aos filhos, tendo na mensagem de 25 de janeiro de 2012 solicitado o seu pagamento. 4. Fundamentos de direito 4.1 Da consequência jurídica da não reclamação no processo de insolvência dos créditos alimentares constituídos anteriormente à declaração de insolvência do recorrente
O recorrente pugna pela total revogação da decisão recorrida alegando para tanto, em síntese: a recorrida, como qualquer credor da insolvência estava onerada com a necessidade de reclamar na insolvência do recorrente os créditos de alimentos vencidos nessa data, sob pena de preclusão, como resulta da conjugação dos artigos 1º, 90º, 128º, 146º, nº 1 e 2, alínea b), do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas[4]; o artigo 245º do CIRE não afirma que os créditos que não são abrangidos pela exoneração do passivo restante não têm que ser reclamados no processo de insolvência.
Apreciemos.
“O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores” (artigo 1º, nº 1 do CIRE, na redação introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril[5]).
Por isso, de acordo com o disposto no artigo 90º do CIRE[6], “Os credores da insolvência[7]apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência.”
A natureza universal do processo de insolvência determina a impossibilidade de ser instaurada qualquer acção executiva após a declaração de insolvência contra o insolvente, tal como se prevê no nº 1 do artigo 88º do CIRE.
A violação deste comando jurídico integra uma causa de impossibilidade legal originária da lide e é fundamento de extinção da lide executiva intentada com preterição da regra da universalidade do processo de insolvência (artigo 277º, alínea e), do Código de Processo Civil).
A reclamação de créditos da insolvência efetua-se dentro do prazo fixado na sentença de insolvência, nos termos previstos no artigo 128º do CIRE e pode ainda ser efetuada, findo o prazo para as reclamações de créditos fixado na sentença, nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de insolvência, ou nos três meses subsequentes à sua constituição[8], quando se constituam volvidos mais de seis meses sobre o trânsito em julgado da sentença de insolvência (artigo 146º do CIRE, na redação introduzida pela Lei nº 16/2012).
No caso em apreço, ao recorrente foi concedida inicialmente a exoneração do passivo restante, por decisão proferida a 28 de Julho de 2010, não havendo nos autos elementos que permitam concluir se foi ou não concedida a exoneração final do passivo restante.
De acordo com o nº 1, do artigo 245º do CIRE, a decisão final de exoneração do passivo restante importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência[9] que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, não sendo contudo afetados os direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação.
Desta previsão legal resulta, diretamente, que a decisão final de exoneração do passivo restante implica a extinção de todos os créditos da insolvência que ainda não se mostrem satisfeitos, ainda que não tenham sido reclamados. Extrai-se também desta norma que os créditos da insolvência que não tenham sido reclamados não se extinguem por esse facto, pois que se assim não fosse, ficaria sem explicação a expressa referência a estes créditos.
Porém, a exoneração final do passivo restante não abrange, entre outros, os créditos de alimentos, tenham ou não sido reclamados (artigo 245º, nº 2, alínea a) do CIRE)[10], porquanto a exigência da reclamação apenas está prevista para as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor (artigo 245º, nº 2, alínea b) do CIRE) e, por outro lado, sendo esta previsão uma exceção à norma geral do nº 1, na falta de qualquer ressalva na norma definidora da exceção, deve concluir-se que se refere a todos os créditos de alimentos, tenham ou não sido reclamados.
Não se perca de vista que determinado o encerramento do processo de insolvência, se acaso não houvesse sido deferido inicialmente o incidente de exoneração do passivo restante, os credores da insolvência poderiam exercer os seus direitos contra o devedor, sem outras restrições que não as derivadas do eventual plano de insolvência ou de um plano de pagamentos (artigo 233º, nº 1, alínea c), do CIRE)[11].
Salvo melhor opinião, o recorrente equipara a preclusão derivada do artigo 90º do CIRE a uma extinção dos créditos da insolvência que não tenham sido reclamados nos termos previstos no CIRE. Ora, como é transparente do citado artigo, a aludida preclusão apenas obsta ao exercício dos direitos dos credores da insolvência, durante a pendência do processo de insolvência. Trata-se assim de uma mera preclusão processual, apenas operante dentro e enquanto pende o processo de insolvência e não de uma nova causa legal de extinção de direitos de crédito.
Assim, por tudo quanto precede, conclui-se que não ocorreu qualquer extinção dos créditos exequendos referentes a prestações alimentares existentes à data da declaração de insolvência, assim se confirmando a decisão recorrida, neste segmento. 4.2 Da consequência jurídica da não exigência de alimentos contra a massa insolvente relativamente aos créditos de alimentos posteriores à declaração de insolvência
O recorrente sustenta que relativamente aos créditos de alimentos constituídos após a declaração de insolvência, a sua exigência à massa insolvente depende da observância do regime especial que resulta da conjugação dos artigos 51º, nº 1, alínea i) e 93º, ambos do CIRE, requerendo este último normativo a demonstração de que nenhuma das pessoas referidas no artigo 2009º do Código Civil tem condições para os prestar. Por isso conclui que a embargada não é titular de qualquer crédito por alimentos de seus filhos vencidos após a declaração de insolvência, por ter inobservado o disposto no artigo 93º do CIRE.
Na decisão recorrida sustenta-se que o artigo 93º do CIRE não é aplicável à obrigação de sustento dos filhos pelos pais e que tal obrigação se integra na previsão do artigo 239º, nºs 3, alínea b), i), do CIRE, ou seja, entra no cômputo do necessário para determinar o rendimento indisponível do devedor, rendimento este que não pode ser cedido à massa, ficando na disponibilidade do devedor, respondendo pelos créditos de alimentos a favor de menor e concluindo que na ação executiva apenas poderá ser penhorado o rendimento disponível do executado com estrita observância do disposto no nº 4, do artigo 738º do CPC[12].
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no artigo 93º do CIRE, na redação introduzida pela Lei nº 16/2012[13], “[o] direito a exigir alimentos do insolvente relativo a período posterior à declaração de insolvência só pode ser exercido contra a massa se nenhuma das pessoas referidas no artigo 2009º do Código Civil estiver em condições de os prestar, devendo, neste caso, o juiz fixar o respetivo montante.”
A nosso ver, não obstante as especificidades do dever de sustento dos menores previsto no artigo 1878º, nº 1, do Código Civil, relativamente à geral obrigação de prestação de alimentos prevista no artigo 2003º, do mesmo diploma legal, a exigibilidade de prestações alimentares vencidas após a declaração de insolvência, pelas forças da massa insolvente, segue o regime previsto no artigo 93º do CIRE[14].
Porém, este normativo não é no caso em apreço aplicável porquanto o processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente. Por isso, ainda que a embargada conseguisse demonstrar a impossibilidade dos menores exigirem alimentos a qualquer das pessoas previstas no artigo 2009º do Código Civil, que não o insolvente, sempre essa pretensão estaria votada à improcedência em virtude de inexistir massa insolvente que pudesse responder por tal obrigação, o que aliás determinou o encerramento do processo de insolvência.
Na nossa perspetiva, tendo sido deferido liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante e estando em causa prestações alimentares constituídas após a declaração de insolvência, ou seja, créditos que não são créditos da insolvência, o problema em análise deve resolver-se tendo em atenção o previsto no artigo 242º, nº 1, do CIRE.
Ora, de acordo com o normativo que se acaba de citar, a impossibilidade de instauração de execuções contra o devedor beneficiário do incidente de exoneração do passivo restante, durante o período da cessão, apenas opera relativamente aos créditos da insolvência[15], não sendo aplicável aos créditos constituídos após a declaração de insolvência, como sucede relativamente às prestações alimentares vencidas após a declaração de insolvência.
Assim, face a tudo quanto se acaba de expor, conclui-se que embora com distintos fundamentos, deve a decisão recorrida ser confirmada também no que a esta questão diz respeito. 4.3 Do abuso do direito por parte da recorrida ao exigir para seus filhos prestações alimentares que não exigiu ao longo de mais de sete anos
O recorrente pugna por último pela revogação da decisão recorrida em virtude de ter alegado todo um complexo factual que, na sua ótica, a provar-se, integra abuso do direito na modalidade de supressio, razão pela qual devem os autos prosseguir relativamente a esta questão para a fase de instrução.
Na decisão recorrida fundamentou-se a improcedência desta exceção perentória nos seguintes termos:
“Tendo em conta a análise dos documentos juntos aos autos pela embargada e dos quais resulta que, ao longo dos anos, embora não tenha exigido judicialmente os alimentos, reiteradamente relembrou ao embargante a sua divida de alimentos aos filhos não se vê como possa ter sido criada no espírito deste qualquer expectativa de que as prestações de alimentos não lhe seriam exigidas, pelo que improcede igualmente a referida exceção”.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no artigo 334º do código Civil “[é] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
No caso em apreço, afigura-se-nos que o recorrente pretende fazer repercutir na esfera jurídica de seus filhos, condutas que imputa à embargada, representante legal dos mesmos.
Ora, a representante legal dos menores não é a titular dos créditos alimentares exequendos, pelo que se poderia questionar se mesmo que pudesse ter tido uma conduta passível de ser integrada no instituto do abuso do direito, poderia a posição jurídica dos seus representados ser afetada por tal comportamento.
Do artigo 259º do Código Civil, que se refere à falta ou vícios da vontade e a estados subjetivos relevantes, parece poder retirar-se um princípio de que a aferição da conduta relevante para efeitos de abuso do direito se há-de pautar, em regra, pela conduta do representante. De facto, se é o representante que entra em contacto com a outra parte e não o representado, afigura-se-nos curial que a verificação do abuso do direito se deva efectuar com referência ao comportamento do representante.
Porém, se assim cremos que deva ser em tese geral, também cremos que há que ser particularmente exigente no que respeita ao preenchimento dos requisitos do abuso do direito nos casos de representação legal que, regra geral, não deixarão de ser percecionada pela contraparte e ainda mais quando, como sucede no caso em apreço, a contraparte é o outro progenitor.
Independentemente das considerações gerais que precedem, tendo em conta o que já se mostra provado quanto ao comportamento da embargada desde pelo menos 2011, ainda que o recorrente lograsse provar a restante factualidade que articulou para integrar o invocado abuso do direito, afigura-se-nos que mesmo que tivesse existido inércia da embargada, esta, pela sua duração, sempre seria inferior a cinco anos, pelo que de modo algum seria apta a gerar no recorrente a confiança de que não lhe seriam exigidas as prestações alimentares em dívida.
No circunstancialismo fáctico já provado, constituiria uma inutilidade submeter à prova a factualidade ainda controvertida, porquanto, quaisquer que fossem os frutos da instrução, sempre os mesmos não seriam suficientes para configurar o invocado abuso do direito.
Assim, face a tudo quanto antecede, conclui-se pela total improcedência do recurso de apelação interposto por D….
As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente, porque embora tenha tido parcial ganho de causa em sede de matéria de facto, acabou por decair totalmente no que respeita a pretensão de revogação da decisão recorrida (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza. 5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por D…, salvo na alteração da decisão da matéria de facto nos termos acima decididos e assim, no mais, confirmam a decisão recorrida proferida a 24 de junho de 2015, nos segmentos impugnados.
Custas a cargo do recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza o recorrente.
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O presente acórdão compõe-se de vinte páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.
Porto, 25 de janeiro de 2016
Carlos Gil
Carlos Querido
Soares de Oliveira
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[1] Notificada às partes mediante cartas registadas expedidas no dia 25 de junho de 2015.
[2] Assim não sucederá quando a realidade probanda é o próprio conteúdo de certa prova documental.
[3] Para prova desta matéria a embargada apenas ofereceu os “mails” de 19 de junho de 2011 e 25 de janeiro de 2012. Porém, o tribunal a quo, no exercício da sua liberdade instrutória também relevou para o efeito o “mail” de 05 de julho de 2012.
[4] Doravante citado abreviadamente como CIRE.
[5] A anterior redação era a seguinte: “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.”
[6] Os credores da insolvência, como previsto no artigo 128º, nº 3, do CIRE, se nele quiserem obter pagamento, têm o ónus de reclamar no processo de insolvência os seus créditos, qualquer que seja a sua natureza e fundamento e ainda que o crédito em apreço esteja reconhecido por decisão definitiva. Por isso também se prevê no artigo 173º do CIRE que “O pagamento dos créditos sobre a insolvência apenas contempla os que estiverem verificados por sentença transitada em julgado”.
[7] Credores da insolvência são os que vêm previstos no nº 1, do artigo 47º do CIRE, ou seja, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data da declaração de insolvência e logo que ocorra esta declaração, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.
[8] Na anterior redação, que era a que vigorava quando foi declarada a insolvência do recorrente, os prazos eram mais longos, sendo de um ano e de seis meses, respetivamente.
[9] Créditos sobre a insolvência, de acordo com o nº 1, do artigo 47º do CIRE, são todos os créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à declaração de insolvência, sendo equiparados a estes créditos, os créditos adquiridos, rectius, transmitidos no decorrer do processo (artigo 47º, nº 3, do CIRE).
[10] Neste sentido veja-se A Exoneração do Passivo Restante, José Gonçalves Ferreira, Coimbra Editora 2013, página 135.
[11] Sobre esta questão, por todos, veja-se, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª edição, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Quid Juris 2015, página 839, anotação 6. Note-se que o recorrente não suscita a questão da impossibilidade de instauração de execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência decorrente do nº 1, do artigo 242º do CIRE e nem os autos nos fornecem elementos bastantes para tomar posição sobre tal matéria, pois bem pode ter sido proferida decisão final de exoneração do passivo restante. No entanto, deve realçar-se que a decisão recorrida não belisca esta previsão legal porquanto, se bem interpretamos o decidido, a execução apenas incidirá sobre o rendimento indisponível do devedor e sujeita às regras de penhorabilidade do nº 4, do artigo 738º do Código de Processo Civil
[12] A fundamentação da decisão recorrida não prima pela clareza por, tanto quanto entendemos, se referir à mesma realidade, denominando-a, primeiramente, de rendimento indisponível e, posteriormente, como rendimento disponível. O que se parece ter querido visar com tais referências é o rendimento que não é objeto de cessão para os credores e previsto na alínea b), do nº 3, do artigo 239º do CIRE.
[13] A redação anterior era a seguinte: “O direito a exigir alimentos do insolvente relativo a período posterior à declaração de insolvência só pode ser exercido contra a massa se nenhuma das pessoas referidas no artigo 2009º do Código Civil estiver em condições de os prestar, e apenas se o juiz o autorizar, fixando o respectivo montante.”
[14] Neste sentido, ainda que sem grande assertividade e criticando a posição contrária defendida por Jorge Duarte Pinheiro veja-se Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina 2013, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, páginas 251 e 252, anotação 3.
[15] Neste sentido, com toda a clareza, veja-se Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina 2013, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, páginas 671 e 672, anotação 3.