AMEAÇA
CRIME DE PERIGO
PRESSUPOSTOS
Sumário

I - O crime de ameaças, previsto no artº 153º do CP, diferentemente do que sucedia no CP, na versão de 1982, em que revestia a natureza de crime de resultado, é, actualmente, de perigo concreto.
II - A ameaça deve possuir potencialidade intimidatória, a avaliar " ex ante", tendo em consideração as circunstâncias do caso concreto, designadamente a credibilidade na exequibilidade no mal cominado, a forma , o lugar, o tempo, capacidade de delinquir do agente, seu passado criminal, e vinda, as condições psicológicas do sujeito passivo, entre as quais a idade, grau de impressionabilidade, capacidade de resistência e conhecimento disso pelo sujeito activo.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal ( 9ª ) do Tribunal da Relação de Lisboa:
No NUIPC 169/99.5 PCPDL , findo o inquérito, deduziu o Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada acusação contra o arguido (R), que se transcreve na parte que releva:
«(...)
No dia 23 de Julho de 1999, cerca das 15h, o arguido envolveu-se em discussão com a ofendida (N), em frente à residência desta sita na Rua (X), Capelas e num tom de voz sério, anunciou-lhe que iria destruir a residência da ofendida, colocando fogo na mesma.
Em razão da seriedade do anúncio daquele mal e por acreditar que o arguido seria capaz de o executar, sentiu a ofendida medo e inquietação, pela sua integridade física e pela dos seus três filhos menores, porque o arguido é uma pessoa bastante conflituosa.
O arguido agiu de modo voluntário, livre e consciente com o propósito de assustar a ofendida, como assustou, afectando-a na sua liberdade de determinação bem sabendo que tal conduta é proibida e punida por lei.
Pelo exposto cometeu o arguido um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153, n° I do mesmo diploma legal.
(...).».
Distribuídos os autos ao 5° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada, foi subsequentemente proferido pelo Mmo Juíz despacho com o seguinte teor:
«§ I. Na sua acusação de fls. 36 e 37, a digna Magistrada do MP imputa ao arguido a prática de factos que reputou susceptíveis de integrarem a comissão, por ele, de um crime de ameaças, p. e p. pelo art.153°, n° I, do
CP.
§ 2. Nos termos da citada norma, e restringindo a análise ao que aqui importa, é elemento do tipo-de-ilícito ali definido a adequação da conduta do agente a causar medo ou inquietação na pessoa do respectivo sujeito passivo, ou a prejudicar-lhe a liberdade de determinação - cfr. os termos literais do inciso legal, introduzido com a reforma penal de 95: "(...) de forma adequada a (...)".
§ 3. Sempre resumidamente, trata-se ali, desde a revisão do Código Penal, de um crime de perigo concreto, isto é, requer-se, para a afirmação do tipo, que no caso concreto a acção se mostre susceptível, seja apta a lesar, em qualquer das modalidades previstas, a liberdade do sujeito passivo - ainda que efectivamente esse resultado não se verifique (o resultado é extra-típico, como é próprio dos crimes de perigo). Neste sentido, cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, Tomo I, pp 348 e 349 ( §§ 19 e 23 ).
§ 4. Indo ao fulcro da questão, o critério da adequação é um critério objectivo-individual, segundo o qual a ameaça, para ser penalmente relevante, há-de por um lado mostrar-se, na objectividade das suas circunstâncias (quer as relativas ao contexto quer as atinentes ao agente e respectiva personalidade) susceptível de intimidar ou in-tranquilizar o qualquer pessoa, isto é, o homem médio; mas há-de ainda tomar em conta as características individuais do sujeito passivo, isto é, a sua menor ou maior susceptibilidade de, em conformidade com os aspectos psicológicos ou capacidades que o caracterizem (idade, etc.) sentir-se ou não intimidado. Ainda aqui, cfr. o autor e ob. cit., p. 348, § 20.
§ 5. Vale tudo por dizer que a afirmação do tipo em causa não prescinde da formulação positiva de um juízo de adequação que implica necessariamente, a ponderação daqueles elementos. Reversamente, sem eles é inviável a verificação daquele elemento típico, e consequentemente a afirmação da comissão do crime.
§ 6. Devendo notar-se ainda acompanhando o mesmo autor (ob. cit.., p. 349, § 22), que é pura e simplesmente de rejeitar, por relevar de um inaceitável e vicioso raciocínio circular, pretender-se a afirmação da adequação da acção, para o efeito em causa, a partir da verificação da efectiva intimidação da pessoa do pretenso sujeito passivo do crime. Como parece claro, uma tal pretensão (relevante de posição que teve o seu curso na nossa doutrina e jurisprudência face ao anterior e radicalmente diverso tipo legal, mas nem por isso então justificada; aliás, diversidade que por vezes a subtileza da alteração do texto parece camuflar), não leva em conta precisamente os termos do referido critério objectivo-individual correctamente entendido, como acima procuramos fazer.
§ 7. Assente o que antecede, e que parece não poder hoje consentir dúvida, importa reverter ao teor da acusação em causa, para logo constatar que dela não consta o que quer que seja que possibilite da indagação daquela adequação pressuposta (requerida) pelo tipo. Por outras palavras, da narrativa acusatória não consta qualquer elemento circunstancial que permita aferir da adequação da acção (essa sim singelamente referida) para intimidar a concreta pessoa da ofendida. E di-lo apenas que a ameaça foi proferida em "tom de voz sério" (mas sério porquê? Qual o facto em que se estriba essa conclusão? Nada se diz ). Acrescenta-se que face àquela "seriedade", assim apodicticamente afirmada, a ofendida sentiu medo por si e pelos seus filhos, por ser o arguido "pessoa bastante conflituosa". Pondo de parte a irrelevância da afirmação de a ofendida ter sentido medo (no sentido do que ficou explanado em VI), sempre resta que a afirmação, assim com carácter, de generalidade, da natureza conflituosa da personalidade do arguido, mesmo a ter-se como mais do que um mero juízo conclusivo não consubstanciado em factos (passo que não deveria ser dado), nunca por nunca seria por si só o suficiente para verificar a adequação - pois que nada fica dito acerca das circunstâncias concretas em que a ameaça teria sido proferida.
§ 8. A encerrar, não deixa de referir-se (embora a questão seja lateral da que se aprecia), que de toda a maneira, a constituirem crime os factos narrados, a qualificação correcta haveria de fazer-se pelo n° 2 do art. 153° do CP, à luz da pena prevista pelo art. 272°, n° I, al. a), do mesmo Código, e tendo em conta as referências acusatórias à integridade física da ofendida e dos seus filhos.
§ 9. A verdade porém é que, e conforme acima fica exposto, a narrativa fáctica da acusação não é susceptível, por si só, de integrar o crime de ameaças p. e p. pelo art. 153°, n° 1, do CP, e de resto nem qualquer outro tipo-de-ilícito. É dizer, os factos imputados ao arguido não constituem crime, pelo que, nos termos do art. 311°, n° 2, al. a), n° 3, al. d), do CPP, importará rejeitar a acusação, por ser manifestamente infundada.
§ 10. DECISÃO.
Em face de quanto vai exposto, e nos termos do art. 311º, n° 2, al. a) e n° 3, al. d), do CPP, rejeito a acusação de fls. 36 e 37, por manifestamente infundada.
Sem custas.
Notifique.».
Inconformada a Digna Magistrada do MP interpôs recurso de tal despacho, tendo, nas conclusões da motivação, sustentado que:
«1- No texto da acusação foram indicados todos os elementos do tipo de crime imputado ao arguido.
2- No caso sub-judice, o Mmo Juiz "a quo" não deteve a sua atenção no facto dos elementos do tipo contidos no texto da acusação, antes procurou afastá-los.
3 - Não nos parece que seja permitido ao Juiz no despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 311, proceder a um pré-julgamento da matéria de facto, dispensando a produção de prova, dando relevância a conceitos que considera conclusivos para rejeitar a acusação.
4 - Há assim a directa violação dos artigos 48, 283, n° 1, 2 e 3 e 311, n° 3, al. d) todos do Código de Processo Penal, por parte da decisão recorrida».
O Mmo Juíz sustentou doutamente o despacho recorrido.
Nesta instância, a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumprido o disposto no arto. 417°, n° 2, do CPP, o arguido nada disse. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O conceito de ameaça subjacente na previsão do tipo legal de crime p. e p. pelo arto. 153°, do Código Penal, tipo legal que visa tutelar o bem jurídico da liberdade de decisão e de acção, comporta três características essenciais: mal, futuro, dependência da ocorrência desse mal futuro da vontade do agente.
Necessário se toma ainda, por tal constituir elemento do tipo, que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
E, contrariamente ao que sucedia na versão originária do Código Penal em que se configurava como um crime de resultado, o crime de ameaça após a revisão operada no citado Código passou a configurar-se como um crime de perigo concreto, já que se exige a adequação da ameaça a causar medo ou inquietação.
O que vale dizer que não é exigido para o preenchimento do tipo que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação bastando que a ameaça seja apropriada a provocar no ameaçado medo ou inquietação.
E a adequação da ameaça em vista a determinar ou provocar na pessoa do ameaçado um sentimento de insegurança, intranquilidade ou temor há-de aferir-se em função de um critério objectivo-individual, como, de resto, se salienta no douto despacho recorrido, ancorando-se no ensinamento de Taipa de Carvalho, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", Tomo II, pág. 348.
«Objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do "homem comum"); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das "sub-capacidades" do ameaçado» (cfr. autor e ob. cit., pág. 348).
Ou, como expressivamente se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 16 de Março de 2000, CJ 2000, tomo II, 47, citando Fernando Mantovani, in "Diritto Penale, Parte Speciale, págs. 398 e 399, «a ameaça, qualquer que seja a modalidade que revista, deve possuir uma efectiva potencialidade intimidatória, isto é, deve aparecer capaz-segundo um juízo ex ante, tanto mais rigoroso no caso de ameaça larvar, implícita ou indeterminada - de intimidar, de criar um estado (senso) de medo, a avaliar caso a caso com referência a: a) às circunstâncias do caso concreto (mal perspectivado, sua credibilidade e exequibilidade, prazo breve ou diferido; forma, tempo, lugar e toda a modalidade da conduta ameaçadora; capacidade de delinquir do agente e os seus eventuais precedentes penais; b) as particulares condições psicológicas do sujeito passivo (impressionabilidade, grau de temor (pardita), estado psicológico, idade,capacidade de resistência e o conhecimento disso por parte do sujeito activo, no momento da conduta.».
Colocadas que foram, ainda que perfunctoriamente, as precedentes
considerações em vista a sublinhar os aspectos mais relevantes que decorrem da conformação actual do crime de ameaças, importa de seguida incidir a atenção sobre a acusação em causa.
E a questão que ressalta radica em saber se na narração factual nela contida se acha reflectido o elemento do tipo objectivo do ilícito em apreço consistente na adequação da ameaça a provocar no destinatário da mesma um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo, já que os restantes elementos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito nela estão consubstanciados.
No douto despacho recorrido entendeu-se em sentido negativo, considerando-se não constar da narrativa acusatória qualquer elemento circunstancial que permita aferir da adequação da acção para intimidar a concreta pessoa da ofendida.
Vejamos.
Conforme se alcança da acusação deduzida nela aduz-se, para além do anúncio de um acto maléfico a praticar futuramente, ocorrência essa dependente da vontade do ameaçante, que esse mesmo anúncio surge no decurso de discussão envolvendo o arguido e a ofendida e ser aquele um indivíduo bastante conflituoso.
Ora, o contexto situacional em que a ameaça foi proferida - na sequência de discussão envolvendo o arguido e a ofendida - e o modo como o foi, tom de voz sério, sublinham o seu carácter intimidatório, imprimem gravidade à mesma, não podendo deixar de traduzir a impressão no destinatário da mesma de o agente estar resolvido a praticar o facto.
Por outro lado, a circunstância de o arguido ser uma pessoa bastante conflituosa constitui elemento reforçador tendente à consubstanciação do estado ou sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo.
E no tocante às condições do sujeito passivo encontram-as mesmas, ainda que parcamente referidas, traduzidas na circunstância de a ofendida ter três filhos menores, o que reflecte uma situação de vulnerabilidade, e contribui e é adjuvante para a criação do estado de medo e de inquietação.
A ameaça em causa, atento o horizonte de contextualização em que terá sido
proferida, o modo como o foi, o objecto da mesma (destruição da residência da ofendida por meio de incêndio), a personalidade do arguido, reveste uma efectiva potencionalidade intimidatória, mostra-se idónea e apropriada, dentro de um critério de razoabilidade próprio do homem comum, a criar um estado de medo e de intranquilidade.
"Manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal." (Ac. da Relação do Porto de 15-3-91, CJ 1991, tomo 2, 293).
In casu, os factos narrados constituem crime, cabendo na previsão do nº 2 do artº 153° do CP, contrariamente à qualificação operada na acusação que o foi em função do n° 1 do mesmo artigo, sendo que, em sede própria, poderá ser feito uso do mecanismo previsto no n° 3 do artº 358° do CPP.
Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando, em consequência, o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que, recebendo a acusação, designe dia para julgamento.
Sem tributação.
Lisboa,5 de Abril de 2001