OFENSA A PESSOA COLECTIVA
BEM JURÍDICO
ELEMENTOS DO TIPO OBJECTIVO
CRIME DE DIFAMAÇÃO
Sumário

I - O bem jurídico que se pretende proteger com o crime do art.º 187, n.º 2 CP é a ideia de bom nome do sujeito passivo.
II - São elementos do tipo objectivo: ou propalar factos inverídicos; o agente não ter fundamento para, em boa-fé, reputar verdadeiros os factos inverídicos; esses factos inverídicos sejam capazes de ofender a credibilidade, o prestigio ou a confiança que sejam devidos ao sujeito passivo.
III - Não é punida a formulação pelo agente de juízos.
IV - Apelidar alguém de socialmente irresponsável ou de incumpridor traduz-se num juízo de valor depreciativo, revelador de falta de apreço pelo visado, mas não tem aptidão para o atingir na sua honra e consideração.

Texto Integral

Processo n.º 332/14.0TAVLG.P1

Acordam, em conferência, os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
No processo comum n.º332/14.0TAVLG da Comarca do Porto, Instância Local de Valongo, Secção Criminal, J2, por sentença proferida e depositada em 18/6/2015, o arguido B… foi absolvido da prática do crime de ofensa a pessoa coletiva p. e p. pelo art.187.º, n.º1, do C.Penal e do crime de difamação p. e p. pelos arts.18.º, n.º1, 182.º e 183.º, n.º1, al.a) do C.Penal.
Os assistentes C… e D…, SA, interpuseram recurso, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Qualquer sociedade é, por força de lei, uma pessoa coletiva, e como tal merecedora de respeito, dignidade e proteção jurídica. A Recorrente, sendo uma sociedade de construções de renome a nível nacional, reveste-se também das referenciadas qualidades (art.° 157.° do CC).
2. O texto aposto na internet pelo Arguido visa atingir a Recorrente e não a pessoa singular do seu administrador, o que é patente no mesmo texto. De facto o Arguido, nesse texto ataca sempre a Recorrente, e bem assim o seu administrador, nomeadamente nos factos dados como provados em 4), nomeadamente nas alíneas a), a), d), e) e h).
3. Decorre do texto difamatório aposto pelo Arguido na internet que a D…, ora Recorrente, não pagaria as suas dívidas e resolveria os seus litígios recorrendo a “manigâncias” processuais, o que é falso e atentatório do bom nome, honra, consideração e crédito da Recorrente. Desta forma a pessoa Ofendida e lesada pelo teor do texto referenciado é a própria Recorrente,
4. Aliás, o Arguido não podia deixar de saber, e os seus atos demonstram que o sabia, que qualquer texto difamatório atentatório do bom nome, honra e consideração da Recorrente atingiria os resultados criminosos que pretendeu obter, nomeadamente prejudicar a Recorrente através da ofensa.
5. Foi dado como provado que ao expor aqueles textos no site da INTERNET por si concebido, o arguido fê-lo com intenção, com dolo, agindo deliberada e conscientemente.
6. O administrador da D…, e ora Recorrente, enquanto pessoa singular é pessoa de notoriedade pública.
7. Tendo isto em mente o Arguido veio atacar a própria Recorrente, que na sua qualidade de pessoa coletiva é pessoa de conhecimento público.
8. Ora, para a imputação do crime de difamação basta que o agente atue com dolo genérico e o Arguido não podia deixar de saber que os seus atos lesariam, de forma ilícita e criminosa, o Recorrente.
9. De tal forma que sabia bem que o texto inscrito na internet lá ficaria por muito tempo, de acordo com a sua vontade,
10. Este facto impunha ao Tribunal a quo a análise de todo o texto e consequentemente decisão diversa da recorrida, sendo que a mesma decisão, com o devido respeito, analisa a temática do PER referenciado no texto difamatário, daí resultando violação do art. 187.° do CPP, pois, se a Meritíssima juiz usasse das regras da experiência comum, teria concluído que era o PER foi sujeito a escrutínio judicial, como é natural, e como tal não caberia nesse processo nenhuma manigância processual
11. Existe erro notório na apreciação da prova quando pela MM Juiz a quo é considerado provado que o arguido agiu com intenção, com dolo, agindo deliberada e conscientemente.
12. Existe erro notório na apreciação da prova quando a MM Juiz a quo dá como provado que o arguido estava convencido que havia fundamento sério para reputar como verdadeiros os factos.
13. Considerado como provado que o arguido escreveu que a D… continua a jogar com as manigâncias legais do PER para prejudicar os trabalhadores, deveria ter a MM Juiz a quo considerado que o uso dos mecanismos legais nunca podem prejudicar os trabalhadores, e como era ofensivo da credibilidade e o prestígio da Recorrente, violando assim o artigo 187°, existindo um erro notório da apreciação da prova.
14. O facto de o texto estar escrito na INTERNET, ao dispor de todos e pelo tempo que o Arguido entender, constitui um crime permanente, visto que a sua consumação se prolonga no tempo, existindo aqui uma contradição insanável da fundamentação,
15. A imagem que a sociedade tem da Recorrente é uma imagem de empresa credível, pagadora, com anos de experiencia no mercado e que laborava para as principias autarquias do país, e nunca a MM Juiz a quo poderia valorar os depoimentos dos trabalhadores, que foram colaboradores da Recorrente durante dezenas de anos, como valoração da comunidade que engloba, clientes, fornecedores, clientes, existindo novamente um erro notório da apreciação da prova.
16. As palavras “ROUBOS DA D…”, “INCUMPRIDORA”, “SOCIALMENTE IRRESPONSÁVEL”, “PROCEDIMENTO MISERÁVEL”, “L1TIGANCIA DE MÁ FÉ”, são expressões depreciativas a atentatórias do bom nome, prestigio e credibilidade da Recorrente, e o direito à integridade moral das pessoas colectivas prevalece sobre a liberdade de informação, e ao não considerar desta forma a MM Juiz a quo mais uma vez repete o errou notório na apreciação da prova,
17. Não resultou provado que o Arguido tivesse interesse legítimo e que esse interesse fosse público aliás à sua pretensa função de informar, pelo que aqui a MM Juiz a quo repete o errou notório na apreciação da prova.
18. Não existiu interesse justificado e actual, nem sequer relevante para a vida comunitária.
19. Na valoração de juízos de valor e de imputação de factos igualmente a MM juiz a quo demonstrou um erro notório na apreciação da prova, ao considerar que os factos dados como provados não são imputação de factos mas meros juízos de valor irrelevantes penalmente.
20. A mera suspeita da prática de determinado facto poderá ser uma imputação desonrosa, dependendo do contexto que existir,
21. Contradição insanável na fundamentação igualmente quando a decisão diz que é suficiente a imputação apenas com dolo eventual, e se dá como provado a actuação dolosa do Arguido,
22. O Arguido nunca teve qualquer relação profissional com a Recorrente D….
23. Ao considerar a MM Juiz a quo que a “referida imputação é, no entendimento do tribunal perfeitamente dispensável e deselegante e acarreta, claramente, um sentido depreciativo e negativo da pessoa do assistente”, é uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão,
24. A factualidade vertida na decisão ora sob censura, colhe que a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a condenação do Arguido.
25. Na decisão ora sob censura, verifica-se um erro notório na apreciação da prova, violando as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência e as legis artis.
26. Assim, só a prova documental produzida é suficiente para suster decisão diametralmente oposta à recorrida, pelo que existiu, salvo o devido respeito, erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410.º n.º2, al.c) do CPP.
27. A douta sentença recorrida, violou ainda os art.os 181º e 183.º do CP, pela sua aplicação diversa, e a 2ª parte do art.º 127.º do CPP, que obriga a apreciação da prova tendo em conta as regras da experiência.
28. Pelo exposto, deverá a douta sentença recorrida ser substituída por outra, que faça bom uso daquelas normas e das demais, cujo douto e indispensável suprimento desde já se requer a V. Ex.as, condenando o Arguido pelos aludidos crimes, visto os factos dados por provados e não provados serem para tanto suficientes, sem prejuízo de se proceder à transcrição da prova gravada em Audiência de Julgamento, caso V.Ex.as nisso vejam necessidade.
O Ministério Público e o arguido responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.313 a 318 e 320 a 328].
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que sufragou a posição assumida pelo Ministério Público na 1ªinstância [fls.336 a 337].
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos e respetiva fundamentação:
«FACTOS PROVADOS
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1) A actividade comercial da D…, S.A., (D…) é a construção civil e obras públicas.
2) A crise na construção civil e a consequente diminuição de obras para realizar, levou a que a sociedade intentasse um processo especial de revitalização (PER), que correu os seus termos no 4.0 Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa com o n° 649/13.1TYLSB, tendo a sociedade sido declarada insolvente por sentença proferida naqueles autos, transitada em julgado em 17/12/14.
3) Pese embora, em tempos o capital social ter sido, também detido pelos seus filhos, a D… sempre teve como rosto C…, que aquando da declaração da insolvência detinha o capital social na íntegra.
4) Na pendência do PER, o arguido tem utilizado o seu blog “A TERRA COMO LIMITE...”, afirmando o seguinte:
a) Sou no entanto sensível a posição da Odisseia e como o conteúdo nem era relevante para a questão da denúncia dos “ROUBOS DA D…”, acabei de editar o referido post.
b) Correspondência dirigida a incumpridora D… ser devolvida, por “não se conseguir contactar a devedora”.
c) A D… é, como todos os N… (e no só) sabem, uma empresa socialmente irresponsável gerida por pessoas socialmente irresponsáveis e incumpridoras,
d) Foi um pouco o caso da D…, que entretanto já havia entrado num processo especial de revitalização (PER) um procedimento miserável em que se limitou a atirar “borda fora” umas dezenas de trabalhadores, com salários e subsídios em falta, com direitos adquiridos que não foram respeitados, com hostilidade - alegadamente, “para salvar os que pudessem ser salvos” (!).
e) Porém, como a única intenção da D… é fugir as suas responsabilidades, não hesitando para isso em recorrer a litigância de ma fé, eis que entra com um recurso contestando a falência!
f) Temos por isso na D… e como administrador judicial, o Dr. E…, (ver recortes abaixo) um nome sobejamente conhecido pelas piores razões, sobretudo pelos trabalhadores das empresas por onde tem passado,
g) O caso da D… e de C…, ficará talvez como um entre muitos outros “case study” a ter em conta nestes processos.
h) Mesmo tendo recebido pagamentos da Câmara de … relativos ao PAEL, alguns dos quais e tanto quanto julgarmos saber, feitos em cheque e sem passarem pelo administrador (amigo) da falência, uma vez que o PER (Processo Especial de Revitalização) já estava a decorrer, os trabalhadores foram sempre esquecidos.
i) E a D… uma empresa socialmente (e não só) irresponsável, tal como C…, F… e outros o são, continua a jogar com as manigâncias legais do PER (processo especial de revitalização) para prejudicar os trabalhadores e continuar a fugir as suas responsabilidades.
5) Os referidos textos encontra-se ainda exposto na INTERNET.
6) Ao expor aqueles textos no site da INTERNET por si concebido, o arguido fê-lo com intenção, com dolo, agindo deliberada e conscientemente.
7) O arguido escreveu o referido em 4) convencido que havia fundamento sério para reputar os factos como verdadeiros.
Mais se provou;
8) O arguido escreve habitualmente no dito blog, sobre várias pessoas e causas, participando activamente na vida em sociedade.
9) O arguido não tem antecedentes criminais.
10) O arguido é deputado municipal; é casado e vive, em casa própria, com a esposa e uma filha com uma incapacidade de 60%; é reformado, assim como a sua mulher, auferindo, respectivamente, o valor mensal de 700€ e 1.400€.

FACTOS NÃO PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa, não se lograram provar quaisquer outros factos que excedam ou estejam em contradição com a factualidade provada, designadamente que:
a) Os factos referidos em 4) são inverídicos.
b) Mais do que não ter qualquer fundamento suficiente para reputar de verdadeiros os factos referidos em 4), o arguido tinha consciência da sua inveracidade e falsidade.
c) O arguido agiu como descrito em 4) com o intuito de proteger o direito ao emprego e ao trabalho.

*
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do tribunal quanto aos factos dados como não provados adveio essencialmente das declarações do arguido que admitiu ter escrito no seu blog os textos supra referidos, e que se mostram juntos aos autos, esclarecendo o tribunal que se trata de um blog “de causas” onde intervém socialmente nos termos em que entende que deve fazer. Esclareceu, ainda, escrever sobre muita gente e sobre as questões sociais que lhe suscitam interesse. Mais esclareceu o tribunal sobre as razões que o levaram a escrever estes textos, em concreto, que ainda se mantêm visíveis no seu blog.
Esclareceu também o arguido que, antes de fazer as publicações, confirmou se os factos eram verdadeiros, quer junto dos trabalhadores da sociedade assistente, quer do tribunal onde corria o processo de insolvência. Mais referiu que algumas das questões ali referidas eram tratadas, inclusivamente, nas reuniões da assembleia municipal nas quais participou.
O tribunal considerou credíveis as declarações do arguido, quer pela forma convicta e calma com que as mesmas foram prestadas, quer ainda porque foram corroboradas por testemunhas como a seguir melhor se explicará.
As suas declarações foram também consideradas quanto à sua situação sócio-económica.
No que respeita aos pontos 1, 2 e 3 levou o tribunal em consideração o teor da certidão permanente da sociedade D…, S.A. junta a fls. 186-191 devidamente conjugado com o depoimento das testemunhas F…, filho do arguido, G…, H…, ambos amigos do arguido e I…, antigo encarregado geral da empresa, que, de forma unânime, esclareceram o tribunal sobre as razões que levaram ao fecho da empresa e, bem assim, que o rosto da empresa era o assistente.
Foi, ainda, levado em conta o certificado de registo criminal do arguido.
Quanto aos factos dados com o não provados:
Quanto à inverdade dos factos constantes em 4) não ficou o tribunal minimamente convencido da mesma, aliás, pelo contrário.
De facto, não obstante ter o tribunal consciência da dificuldade da prova de um facto negativo, o certo é que as testemunhas F…, filho do arguido, G…, H…, ambos amigos do arguido e I…, apesar de genericamente negarem tal factualidade, apenas o fizeram, crê o tribunal, pela amizade e relação familiar que têm com o assistente, não demonstrando, com veemência, ter conhecimento de factos e situações concretas que confirmassem essa tal inverdade.
Por outro lado, as testemunhas J… e L…, ambos ex-trabalhadores da sociedade assistente e M…, deputado municipal, deram ao tribunal uma perspectiva totalmente contrária à daquelas testemunhas, esclarecendo que o que se falava pela cidade ia de encontro ao que o arguido escreveu no seu blog.
A testemunha J… deu, a este respeito um importante contributo, já que, na qualidade de trabalhador membro da comissão de credores do processo de insolvência da assistente, esclareceu o tribunal sobre o desaparecimento de bens da empresa do que deram conta ao processo de insolvência tendo aparecido, posteriormente alguns dos bens, desconhecendo-se como; da devolução da correspondência da sociedade assistente, facto que, aliás, o próprio arguido confirmou telefonicamente junto de um funcionário do tribunal onde corria o processo de insolvência (que, aliás pensa o tribunal, dever-se, muito provavelmente, à inexplicada alteração da sede da assistente para Lisboa, a menos de um mês da entrada em juízo do processo especial de revitalização da assistente, local onde nunca funcionou!); esclareceu, ainda, que muitos trabalhadores não receberam a totalidade dos salários, subsídios e direitos a que tinham direito, como aliás, foi o seu caso e que se falava na empresa que a Câmara Municipal tinha pago uma divida directamente à Administração da assistente e não ao Administrador de insolvência, o que foi também falado nas assembleias municipais, facto que foi referido, quer pelo arguido, quer pela testemunha M…,
Esta testemunha, J… corroborou as declarações do arguido no sentido de que este, antes de publicar os textos ora em causa, falou com os trabalhadores da assistente que lhe deram a conhecer aquela factualidade.
Importa aqui ressaltar que a inveracidade e que se vem falando se reporta apenas aos factos e já não aos juízos de valor emitidos pelo arguido e constantes em 4) dos factos provados, como infra melhor se explicará.
A consciência de tal inveracidade por parte do arguido resultou não provada em face de não ter sido provada aquela inveracidade.
Finalmente, quanto ao intuito do arguido ao fazer as publicações que fez, de acordo com as suas próprias declarações, as mesmas destinavam-se a dar a conhecer o que se passava com a empresa assistente, uma das grandes empresas da comarca, razão pela qual foi dado como não provado o facto constante em c).

Apreciação do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelo teor das respetivas conclusões, as quais devem sintetizar as razões da discordância, só podendo o tribunal ad quem apreciar as questões aí sumariadas, sem prejuízo da apreciação daquelas que são de conhecimento oficioso, como são designadamente os vícios da sentença previstos no art.410.º, n.º2, do C.P.Penal.
Como refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol.III, 3ªedição, 2009, pág.347, «É frequente, na prática, o desfasamento entre a motivação e as correspondentes conclusões ou porque as conclusões vão além da motivação ou ficam aquém. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal só poderá considerar as conclusões; se vão além também não devem ser consideradas porque as conclusões são o resumo da motivação e esta falta».
Atentando nas conclusões apresentadas, as questões suscitadas são as seguintes:
- vícios da sentença previstos no art.410.º, n.º2, al.b) e c), do C.P.Penal,
-violação do princípio da livre apreciação da prova
- enquadramento jurídico-penal dos factos.

1ªquestão: vícios do art.410.º, n.º2, al.b) e c) do C.P.Penal
Os recorrentes, de forma algo confusa e por vezes com contradições nos seus próprios termos [v., a título de exemplo, a 2ªconclusão, em que se afirma que o arguido, no texto aposto na internet, visa atingir a empresa D… e não o seu administrador enquanto pessoa singular, para logo de seguida se afirmar que o recorrente ataca sempre a empresa, assim como o administrador] invocam o erro notório na apreciação da prova e a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vícios previstos no art.410.º, n.2, al.b) e c) do C.P.Penal.
Dispõe o art.410.º nº2 do C.P.Penal: «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.»
Estes vícios são «anomalias decisórias» ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto e têm de resultar do texto da decisão recorrida, não se podendo recorrer a elementos estranhos a ela.
O vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre quando há uma incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através do texto da decisão recorrida, entre os factos provados, entre factos provados e não provados ou entre a fundamentação e a decisão de facto.
Existe erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, resulta de forma inequívoca que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em patente oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detetado pelo homem médio.
Invocam os recorrentes o erro notório na apreciação da prova em relação ao ponto 7 dos factos provados [«O arguido escreveu o referido em 4) convencido de que havia fundamento sério para reputar os factos como verdadeiros], quando foi dado como provado que o arguido, agindo deliberada e conscientemente, escreveu que a D… continua a jogar com as manigâncias legais do PER para prejudicar os trabalhadores, sendo certo que o uso dos mecanismos legais nunca podem servir para esse fim.
Não colhe a argumentação expendida.
Na verdade, escrevendo o arguido que a D… utilizava o PER para prejudicar os trabalhadores, não quer significar que o referido processo judicial tenha esse fim, mas antes que a utilização abusiva e enviesada de um processo especial de revitalização pode prejudicar os trabalhadores. Assim sendo, não há qualquer erro notório na apreciação da prova quando é dado como provado que o arguido tinha fundamento sério para acreditar que os factos que difundiu eram verdadeiros, uma vez que das declarações do arguido e dos depoimentos prestados pelas testemunhas resultou que o arguido antes de escrever o referido texto, confirmou se os factos eram verdadeiros junto dos trabalhadores da sociedade assistente e do tribunal onde corria o referido processo, não ocorrendo qualquer apreciação ilógica da prova.
Invoca ainda a recorrente D… o erro notório na apreciação da prova quando o tribunal valorou os depoimentos dos trabalhadores, pois é uma empresa que goza de uma imagem de credibilidade, pagadora e com anos de experiência.
Não se alcança em que medida a recorrente concluiu pelo erro notório na apreciação da prova. A credibilidade de uma testemunha é valorada pelo tribunal da 1ªinstância, o qual goza da imediação e da oralidade, sendo irrelevante a apreciação feita pela recorrente sobre a credibilidade das testemunhas. A afirmação da recorrente de que é uma empresa cumpridora é inócua para questionar a credibilidade de testemunhas cujos depoimentos tenham dado uma imagem menos positiva da empresa.
Na tese recursiva ocorre ainda o erro notório na apreciação da prova quando o tribunal se pronuncia sobre factos e juízos de valor e a destrinça que faz entre os mesmos.
Como já supra se referiu, os vícios previstos no art.410.º, n.º2, do C.P.Penal são anomalias relativas à matéria de facto e não a questões jurídicas, pelo que não tem fundamento invocar o erro notório na apreciação da prova a este propósito, o mesmo acontecendo quanto à alegada contradição insanável entre fundamentação e decisão de direito, como ocorre no recurso ora interposto.
A questão da subsunção jurídica dos factos tem de ser feita em sede própria e não no âmbito dos vícios do art.410.º, n.º2, do C.P.Penal.
Em conclusão, não se descortinam na decisão recorrida os vícios previstos no art.410.º, n.º2, al.b) e c), do C.P.Penal, invocados pelos recorrentes, assim como também não ocorre o vício previsto na al.a) do citado preceito legal, considerando-se definitivamente fixada a factualidade dada como provada e não provada.
2ªquestão: violação do princípio da livre apreciação da prova
Invocam os recorrentes a violação do princípio da livre apreciação da prova
O art.127.º do C.P.Penal [livre apreciação da prova] e que os recorrentes, por manifesto lapso, indicam art.187.º do C.P.Penal, dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente.
Por isso, na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que essa apreciação não contrarie as regras comuns da lógica e da experiência, por referência ao homem médio suposto pela ordem jurídica
Este princípio da livre apreciação da prova assume particular relevo na fase de julgamento. Se é certo que a convicção do juiz não pode ser puramente subjetiva, imotivável e por isso, o art.374.º n.º2 do C.P.Penal exige que a sentença contenha «uma exposição tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação do exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal», também não se pode esquecer que a decisão do juiz é sempre uma convicção pessoal, «até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais»[1].
Lendo a fundamentação da matéria de facto, resulta explicitado o iter formativo da convicção da Sra. Juíza, a qual fez uma apreciação lógica e coerente da prova produzida, sem atropelos às regras da experiência.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
3ªquestão: enquadramento jurídico-penal dos factos
Ambos os recorrentes se insurgem quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos, defendendo que se mostram preenchidos os tipos legais pelos quais o arguido vinha acusado.
Comecemos por apreciar o crime de ofensa a pessoa coletiva.
Dispõe o art.187.º, n.º1, do C.Penal «Quem, sem ter fundamento para, em boa fé os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam a autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias».
O n.º 2 deste artigo remete para o disposto nos arts. 183.º e 186.º, n.º 1 e 2, mas não para o artigo 182º, todos do mesmo Código, sendo que neste último preceito se equiparam, para efeitos de tipificação como crimes de difamação e injúrias, as ofensas verbais às feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.
Contrariamente ao sustentado na decisão recorrida, a não remissão para o art. 182.º do C.Penal não significa, em nossa opinião, que a ofensa a pessoa coletiva só possa ser feita de forma verbal. A remissão para o art. 182.º do C.Penal, compreende-se face à redação dos arts.180. [«Quem dirigindo-se a terceiro …»] e 181.º [Quem injuriar outra pessoa …], em que está subjacente a oralidade e, se não houvesse a equiparação prevista no art.182.º, ficariam tais tipos legais limitados às expressões proferidas verbalmente. O mesmo não sucede com a redação do art.187.º, que estabelece que comete esse crime quem «afirmar ou quem propalar factos inverídicos». O verbo «propalar» é sinónimo de «tornar público», «propagar», «espalhar», «difundir», o que pode ser feito quer de forma verbal quer de forma escrita.[2]
O núcleo do bem jurídico que se quer proteger no crime de ofensa a pessoa coletiva é, nas palavras do Prof.Faria Costa[3], a ideia de bom nome do sujeito passivo, que «se assume como uma realidade dual. De um lado, suporte indesmentível para que a credibilidade, o prestígio e a confiança possam existir. De outra banda, resultado dessas mesmas e precisas realidades ético-socialmente relevantes».
Os elementos do tipo objetivo do crime de ofensa a pessoa coletiva são os seguintes:
- afirmar ou propalar factos inverídicos,
- o agente da infração não ter fundamento para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos inverídicos,
- esses facto inverídicos [que foram afirmados ou propalados pelo sujeito ativo sem ter fundamento, para, em boa fé, os reputar verdadeiros] sejam capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos ao sujeito passivo.Neste tipo legal é punida a imputação de factos inverídicos, não a formulação de juízos [diferentemente do que sucede com os crime de difamação e de injúria p. e p., respetivamente, pelos arts.180.º e 181.º do C.Penal]. Daí a relevância da destrinça entre «facto» e «juízo».
A propósito da distinção entre facto e juízo, refere o Prof. Faria Costa que «facto é o que se traduz naquilo que é ou que acontece, na medida em que se considera como um dado real da existência. […] O juízo, independentemente dos domínios em que pode operar (juízos psicológico, lógico, axiológico, jurídico) deve ser percebido, neste contexto, não como apreciação relativa a existência de uma ideia ou de uma coisa, mas ao seu valor».
No caso vertente, no que se reporta à empresa D…, o arguido apôs no blog, quer factos quer juízos de valor quanto à referida empresa.
Ao afirmar «A D… é, como todos os N… (e não só) sabem, uma empresa socialmente irresponsável», «a única intenção da D… é fugir às suas responsabilidades, não hesitando para isso em recorrer à litigância de má-fé», «O caso da D… e de C…, ficará talvez como um entre muitos outros “case study” a ter em conta nestes processos», «A D… uma empresa socialmente (e não só) irresponsável, continua a jogar com a manigâncias legais do PER (processo especial de revitalização) para prejudicar os trabalhadores e continuar a fugir às suas responsabilidades», são juízos de valor e não imputação de factos, e como tal sem relevância para o preenchimento do tipo legal em causa.
Quanto aos factos imputados à D… e que constam das alíneas a), b), d) - «atirar borda fora umas dezenas de trabalhadores, com salários e subsídios em falta, com direitos adquiridos que não foram respeitados» - e alínea h), não resultou provado que tais factos fossem inverídicos e, como tal, ainda que afetem a credibilidade e o bom nome da recorrente D…, não se verifica um dos elementos constitutivos do crime em discussão, qual seja a propalação de factos inverídicos.
Em conclusão, não se mostram preenchidos os elementos objetivos do crime de ofensa a pessoa coletiva, pelo que se impõe a absolvição do arguido quanto a este crime. Atentemos agora no crime de difamação.
Atentemos, agora, no crime de difamação, em que é visado o recorrente C….
O arguido foi acusado pela prática de um crime de difamação, na forma agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 180.º, 182.º e 183.º, n.º1, al.a), todos do C.Penal.
Preceitua o art. 180.º, n.º 1, do C.Penal «Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias»
Por sua vez, o art.182.º do C.Penal equipara à difamação e injúria verbais, as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.
O art.183.º, n.º1, al.a), do mesmo diploma, prevê a agravação das penas previstas no art.180.º em um terço nos seus limites mínimo e máximo, se a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação.
O ilícito em análise insere-se no Capítulo IV do Código Penal, que dispõe sobre os crimes contra a honra.
O bem jurídico protegido pelo crime de difamação, assim como pelo crime de injúria, é a honra[4], a qual tem de ser vista numa dupla perspetiva: a honra interior, que se reconduz ao juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma e a honra exterior, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, ou seja, a reputação, o bom nome, a consideração que uma pessoa goza no meio social. Como escreve o Prof.Beleza dos Santos, in «Algumas Considerações Jurídicas sobre Crimes de Difamação e de Injúria», RLJ ano 92, n.º3152, pág.167/168, a honra consubstancia-se «naquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale» e a consideração é «aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa (…) ao desprezo público. (…). A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social ou ao menos de não o julgar um valor negativo».
Porém, a ofensa à honra e consideração não pode ser perspetivada em termos estritamente subjetivos, ou seja, não basta que alguém se sinta atingido na sua honra –, na perspetiva interior/exterior – para que a ofensa exista. Para concluir se uma expressão é ou não ofensiva da honra e consideração, é necessário enquadrá-la no contexto em que foi proferida, o meio a que pertencem ofendido/arguido, as relações entre eles, entre outros aspetos. Nesta linha de raciocínio, o Prof.Beleza dos Santos, na ob. cit.,pág.167, citando Jannitti Piromallo, escreve «os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objetivamente merecedores de tutela».
No que se reporta ao tipo subjetivo, o crime de difamação é um crime doloso, não sendo necessário qualquer dolo específico, bastando a imputação baseada em dolo eventual. Com efeito, para a verificação do elemento subjetivo do crime em análise, não se exige que o agente queira ofender a honra e consideração alheias, bastando que saiba que, com o seu comportamento, pode lesar o bem jurídico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, não se abstenha de agir.
O direito ao bom nome e reputação, com consagração constitucional [art.26.º da CRP] conflitua, por vezes, com o princípio constitucional da liberdade de expressão [art.37.º da CRP], o qual se traduz no direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento e tem uma grande amplitude, permitindo que se emitam juízos desfavoráveis, criticas. Uma das manifestações da liberdade de expressão é precisamente o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de crítica.
Porém, estes direitos ao bom nome e à livre expressão, que têm, em princípio, igual valor não podem ser entendidos em termos absolutos e, em caso de conflito, têm de ser harmonizados nas circunstâncias concretas, de modo a respeitar-se o núcleo essencial de um e de outro.
No caso vertente, atentando nas várias alíneas do ponto 4 dos factos provados, em que constam as expressões utilizadas pelo arguido, constata-se que apenas as alíneas g) e i) referem expressamente o nome do recorrente C… Já a alínea c) - «A D… é, como todos os N… (e não só) sabem, uma empresa socialmente irresponsável gerida por pessoas socialmente irresponsáveis e incumpridoras» - não menciona expressamente o nome do recorrente C…, embora se possa concluir que também se refere a ele, pois no ponto 3 foi dado como provado que a D… teve como rosto C… e na alínea i) refere-se expressamente o nome de C…, como uma das pessoa ligadas à D… socialmente irresponsável.
A alínea g) tem o seguinte teor «O caso da D… e de C…, ficará talvez como um entre muitos outros “case study” a ter em conta nestes processos».
Por sua vez, da alínea i) consta «E a D… uma empresa socialmente (e não só) irresponsável, tal como C…, F… e outros o são, continua a jogar com as manigâncias legais do PER (processo especial de revitalização) para prejudicar os trabalhadores e continuar a fugir às suas responsabilidades.»
A expressão utilizada na alínea g), não contende com a honra e consideração devidas a uma pessoa, sendo um juízo crítico, mas não ofensivo. No que se reporta à alínea i), o recorrente C… é apelidado de socialmente irresponsável, assim como da alínea c), conjugada como ponto 3, se poderá concluir que ao referir-se a pessoas «incumpridoras» abrange, entre outros, o C…. Trata-se de um juízo de valor depreciativo, revelador da falta de apreço pelo visado, mas sem aptidão para atingir a sua honra e consideração.
Segundo o Prof. Faria e Costa[5], o carácter ofensivo de certas palavras tem de ser visto à luz do concreto contexto situacional de vivência humana em que as mesmas foram proferidas e, se o significante das palavras permanece intocado, o seu significado poderá variar consoante os contextos. Assim, a análise para verificação do ilícito não se pode circunscrever à valoração isolada e objetiva das expressões, exigindo-se que as mesmas sejam apreciadas em função do circunstancialismo concreto em que foram proferidas.
No caso concreto, as expressões foram apostas num blog, em que o arguido escreve sobre pessoas e causas, participando ativamente na vida em sociedade. Ora, a D…, de que o recorrente, aquando da insolvência, detinha o capital social na íntegra, era uma empresa de construção civil e empreitadas, que, por força da crise que afetou gravemente esse setor, teve de recorrer a um processo especial de revitalização terminando numa insolvência, levando ao desemprego de vários trabalhadores, o que acarreta graves consequências sociais, que sobressaem sobretudo em pequenos meios urbanos, como é o caso de …. Sendo o arguido um cidadão interventivo, deputado municipal, preocupado com causas sociais, é natural que utilize uma linguagem mais acutilante ao referir-se às pessoas ligadas à administração dessa empresa e que face aos factos que reputava como verdadeiros, lhe mereciam uma veemente crítica. Como se refere no Ac.R.Porto de 12/6/2002, recurso n.º332/02, relatado pelo Desembargador Manuel Braz, «é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente incomodada por outra «pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função».
As expressões «pessoa socialmente irresponsável», «incumpridora», no contexto em que foram proferidas, de total desacordo do arguido quanto à forma como os trabalhadores foram tratados no processo especial de revitalização, lançando-os no desemprego, não se traduzem numa crítica gratuita, desproporcionada, no mero enxovalho, não tendo com uma carga ofensiva evidente que justifique a atribuição de dignidade penal, quedando-se pela crítica veemente.
Quanto à demais factualidade dada como provada no ponto 4, não menciona expressamente o nome de C… e havia outras pessoas ligadas à gerência da empresa D…, como resulta das alíneas c) e i), pelo que não se pode, sem qualquer dúvida, considerar que foram dirigidas ao recorrente; não nos podemos esquecer que ao longo do texto são mencionados outros nomes, pelo que não basta, para concluir que todas as afirmações são dirigidas ao C…, que ele era o rosto da empresa.
Nesta conformidade, tendo em conta as considerações acima expostas, improcede o recurso no que ao crime de difamação se refere.

III – DISPOSTIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pelos assistentes, confirmando a absolvição do arguido.
Custas a cargo dos recorrentes, fixando em 5 Ucs a taxa de justiça devida.

[texto elaborado pela relatora e revisto por ambas signatárias]

Porto, 27/1/2016
Maria Luísa Arantes
Ana Bacelar
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[1] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, edição 1974, pág.205.
[2] « Não teria qualquer justificação racional não equiparar para este efeito ofensas verbais e ofensas escritas, quando tal se verifica em relação aos crimes de difamação e injúria. A repercussão de uma ofensa escrita, na perspetiva do crédito, confiança e prestígio de uma pessoa coletiva, pode até ser muito superior ao de uma ofensa verbal.»- Ac. R.Porto de 11/9/2013, proc. n.º 4581/10.2TAVNG.P1, relatado pelo Desembargador Vaz Pato; em sentido contrário, Ac. R.Porto de 11/3/2015, proc. n.º471/13.3TAPFN.P1, relatado pelo Desembargador Ernesto Nascimento.
[3] Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág.677
[4] A distinção entre a difamação e a injúria reconduz-se, de uma forma simplificada, à imputação direta ou indireta dos factos ou juízos desonrosos; na injúria, a ofensa à honra é feita perante a vítima enquanto na difamação, a ofensa não é feita na presença do ofendido, mas veiculada através de terceiros
[5] Ob.citada, pág.630