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CONTRATO DE SEGURO
INTERVENÇÃO DE UM MEDIADOR NA CELEBRAÇÃO
VINCULAÇÃO DAS PARTES
Sumário
I - O contrato de seguro pode ser celebrado com a intervenção de um mediador de seguros. II - Os mediadores de seguros são de três categorias: mediador de seguros ligado; agente de seguros; corretor de seguros. III - Os poderes de representação dos mediadores de seguros são distintos conforme seja a sua categoria: os mediadores de seguros ligados e os agentes de seguros actuam como representantes da seguradora; o corretor de seguros age autonomamente, não dispondo, por regra, de poderes de representação da seguradora. IV - Se a mediadora recebe e aceita a subscrição de propostas de seguro e se depois emite as apólices correspondentes àquelas propostas, é de concluir que esta dispõe de poderes de representação conferidos pela seguradora e que pode celebrar, em nome desta, contratos de seguro. V - O contrato de seguro considera-se validamente celebrado, vinculando as partes, a partir do momento em que houve consenso (por exemplo, verbal ou por troca de correspondência), ainda que a apólice não tenha sido emitida. VI - A apólice de seguro, documento escrito que titula e formaliza o contrato de seguro, deixou de constituir um requisito de validade (“ad substantiam”) do contrato, passando a possuir relevo apenas no plano da sua prova (“ad probationem”) e da consolidação e oponibilidade do respectivo conteúdo.
Texto Integral
Proc. nº 3245/13.0 TBPRD.P1
Comarca do Porto Este – Lousada – Instância Local – Secção Cível – J1
Apelação
Recorrente: “B…, SA”
Recorrida: “C… – Sucursal em Portugal”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
A autora “B…, S.A.”, com sede na …, nº 435, Lousada, instaurou a presente acção declarativa de condenação contra os réus “D…, Lda.”, com escritório na …., em Paredes, e “Companhia de Seguros E…, S.A.”, actualmente “C…, Sucursal em Portugal”, com sede na Av…., em Lisboa, pedindo a condenação da primeira ré a reconhecer que houve negligência e erro profissional da sua parte e pedindo a condenação da segunda ré, na qualidade de seguradora, no pagamento da indemnização por danos patrimoniais de 14.722,38€, acrescida de juros, calculados à taxa legal, vencidos desde a citação e até integral pagamento e por danos não patrimoniais de 5.000,00€.
Alega, para o efeito, que no exercício da sua actividade de construção de obras públicas solicitou junto da ré mediadora de seguros, “D…, Lda.”, a emissão de duas apólices multirisco, tendo por objecto as suas instalações e o respectivo conteúdo. Subscreveu assim, em 2.4.2012, duas propostas de seguro tituladas pelas apólices nº ……… e ……….
Sucede que entre as 14,30h do dia 9.4.2012 e as 6,45h do dia 10.4.2012 as referidas instalações foram assaltadas, tendo dali sido furtado diverso material e um veículo ligeiro de mercadorias. Sofreu pois um prejuízo estimado em 14.722,38€.
Perante tal participou o sinistro nos serviços da ré mediadora, tendo então sido informada que, na sequência de um lapso pessoal, as apólices de seguro não tinham sido emitidas, pelo que o risco não fora transferido para a seguradora F…, conforme propostas que tinham sido subscritas em 2.4.2012.
Essa situação causou aos administradores da autora nervosismo, angústia e desgaste, para cuja compensação será razoável a quantia de 5.000,00€, tendo a ré seguradora, C…, a obrigação de satisfazer a indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, por força do contrato de seguro, titulado pela apólice nº …….. em que é tomador a G…, abrangendo a ré mediadora.
A ré “C…” apresentou contestação, confirmando, desde logo, a celebração com a G… de um contrato de seguro, cobrindo a responsabilidade civil profissional dos mediadores de seguros, seus associados (neles se incluindo a ré “D…, Lda.”), até ao limite de 1.120.000,00€, por sinistro, e de 1.680.300,00€, por ano, com uma franquia de 10% do valor da indemnização, com o mínimo de 250,00€ e o máximo de 500,00€.
Invoca, de seguida, a C… a exclusão da sua responsabilidade, em caso de falta ou negligência grave do seu segurado, nos termos das cláusulas 4.9 e 5.5 do contrato de seguro.
No demais, impugna a factualidade alegada pela autora, quer no que concerne à não emissão das apólices de seguro, quer no que concerne à sua data de entrada em vigor, defendendo ainda que se deve entender a ré mediadora como auxiliar de cumprimento, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 800º do Cód. Civil e 31º da Lei do Contrato de Seguro.
Dispensou-se a realização de audiência prévia. Proferiu-se despacho saneador, identificou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas de prova.
Seguidamente realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus “D…, Lda.” e “C…” do pedido.
Inconformada com o decidido, interpôs recurso a autora que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
I – É inadmissível considerar que apesar de emitidas apenas em 10 de Abril, as apólices de seguro, os contratos de seguro subjacentes, titulados por aquelas, existiam já, plenamente eficazes, desde 2 de Abril, data em que a mediadora, em nome da sua representada F…, aceitou a proposta de seguro apresentada.
II – Entende-se que o atraso na emissão das apólices tem influência na validade e eficácia do contrato de seguro.
III – Está em causa nos autos, a produção de efeitos das propostas de seguro subscritas pela Autora, aqui Recorrente, no dia 2 de abril de 2012, considerando-se que a Ré mediadora não procedeu à emissão das respectivas apólices, nesse dia, mas apenas no dia 10 de abril.
IV – Quando da ocorrência do sinistro (crime de furto nas instalações da sede e no estaleiro), as apólices de seguro multirrisco não tinham sido emitidas.
V – Para o cabal julgamento da questão referida, é necessário que o Tribunal se socorra das regras do contrato de mediação de seguros, previstas no Dec. Lei nº 72/2008, de 16/04.
VI – A Autora demonstrou ter efetuado a subscrição das propostas de seguro multirrisco que entregou à Ré mediadora no dia 2 de abril de 2012 – cf. docs. nºs 1 e 2 juntos com a P.I.
VII – Os dados identificativos das condições particulares referem que as apólices entraram em vigor em 10 de Abril de 2012, uma a partir das 11h01 e a outra das 11h19.
VIII – Para proferir a decisão em recurso entendeu o Tribunal a quo aplicar o disposto no art. 31º do Dec. Lei nº 72/2008, de 18/04, ou seja: “quando o mediador de seguros atue em nome e com poderes de representação do segurador, os atos realizados pelo tomador do seguro perante o mediador produzem efeitos em relação ao segurador como se fossem perante si realizados.”
IX – Para o Tribunal a quo, da análise das propostas de seguro subscritas pela Autora resulta a transferência desses poderes de representação, citando, para o efeito, o art. 29º, al. a) do RJMS.
X – Tal artigo aponta, precisamente, no sentido contrário da douta sentença, ou seja, que o Mediador só pode celebrar contratos em nome da empresa de seguros quando esta lhe tenha conferido, por escrito, os necessários poderes, e não está provado que existisse tal acordo.
XI – Da análise de toda a matéria de facto apurada nos autos, bem como da prova testemunhal e documental que a suporta, resulta evidente que o mediador de seguros não agiu em nome da R. seguradora.
XII – A sentença recorrida violou, por errada interpretação e aplicação, as disposições do Dec. Lei nº 72/2008, de 16/04, designadamente os arts. 29º, al. a) e o nº 3, do art. 30º
XIII – Se a ré mediadora sabia que era vontade da Autora a atuação imediata da proposta (e com tal vontade se conformou), mas apesar disso só no dia 10 é que lhe deu seguimento, então tem que se concluir que a Ré não cumpriu pontualmente a sua obrigação subjacente à relação jurídica travada com a Autora. Violou assim a Ré mediadora o nº 1 do art. 406º do CC.
XIV – Donde, é a Ré responsável pelo prejuízo sofrido pela Autora. É o que resulta, entre outros, dos arts. 798º, 799º e 562º e seguintes do CC.
XV – Devendo a R. mediadora ser declarada responsável pelo pagamento das quantias peticionadas pela A.
XVI – Tendo a Ré mediadora a responsabilidade civil decorrente de atos negligentes transferida para a E… S.A., deverá a 2ª Ré ser condenada ao pagamento da indemnização devida.
A ré “C…” apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte: Apurar se, no presente caso, o atraso verificado na emissão das apólices por parte da mediadora tem influência na validade e eficácia dos correspondentes contratos de seguro.
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OS FACTOS
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:
1. A autora, B…, SA, dedica-se à actividade de construção civil.
2. A ré, D…, Lda,, dedica-se à actividade de mediação de seguros.
3. No exercício das respectivas actividades, a autora solicitou, junto da sobredita ré, a celebração de contrato de seguro (multirisco), tendo por objecto o imóvel correspondente às suas instalações (escritórios e estaleiro) e respectivo conteúdo, sitas na Avª…, Lousada.
4. Para o efeito, em 2 de Abril de 2012, a autora subscreveu, como tomadora, dois documentos denominados “proposta de seguro”, com os dizeres impressos “F1…” indicando como local de risco as instalações referidas em 3.
5. A autora ficou convencida que, desde essa data, as referidas instalações e recheio estavam a coberto do risco que se visava acautelar com a celebração do contrato de seguro.
6. Das ditas propostas de seguro consta que “a F… apreciará a presente proposta, podendo aceitá-la ou recusá-la. A sua aceitação far-se-á sempre de forma escrita, definindo garantias, seus limites e franquias.”
7. As propostas de seguro referidas deram origem à emissão, pela ré D…, Lda., em 10 de Abril de 2012, das apólices de seguro com os nºs ……… e ……….
8. A apólice com o nº ……… foi emitida às 11h01m do dia 10 de Abril de 2012.
9. A apólice ……… foi emitida às 11h19m do dia 10 de Abril de 2012.
10. A 10 de Abril de 2012, foi participado à GNR, de …, o arrombamento das instalações referidas em 3. e consequente furto de baterias e bidões de gasóleo e de uma viatura ligeira de mercadorias, de marca Opel, modelo …, com a matrícula ..-..-XT.
11. No dia 10 de Abril, o mobiliário das instalações da autora fora remexido e havia papéis espalhados no chão.
12. A fechadura da porta de acesso às garagens fora estroncada.
13. Na mesma participação, o representante legal da autora declarou existir seguro de responsabilidade civil a cobrir os danos causados, reservando, para momento posterior, a identificação da seguradora e o nº da apólice.
14. De seguida, a autora contactou os escritórios da ré D…, Lda. para participação do sobredito evento à seguradora.
15. Por escrito, datado de 13 de Junho de 2013, a ré D…, Lda. comunicou à autora que “por lapso pessoal as apólices não foram emitidas em devido tempo.”
16. As apólices não foram emitidas na data da sua subscrição devido à desorganização dos serviços administrativos da ré, em consequência da saída de um dos funcionários.
17. Tal facto causou nos representantes legais da autora aborrecimento e desgaste.
18. Através da apólice nº …….., a Companhia de Seguros E… S.A., actualmente C…, assumiu, perante a G… (nela se incluindo a ré D…, Lda.) a obrigação de indemnização dos danos causados a terceiros, no exercício da actividade profissional de mediação de seguros, até ao limite de €1.120.000,00, por sinistro, e de €1.680.300,00, por ano, com uma franquia de 10% do valor da indemnização, com o mínimo de €250,00 e o máximo de €500,00.
19. De acordo com a cláusula 4.9 da referida apólice a seguradora não será responsável por reclamações baseadas ou resultantes de erro profissional doloso ou praticado com negligência grave cometido sem ter em devida conta a possibilidade de uma reclamação proveniente desses actos conscientemente praticados no exercício da profissão.
20. De acordo com a cláusula 5.5 da referida apólice, o segurado, como condição prévia de qualquer direito a ser indemnizado ao abrigo dessa apólice, não admitirá responsabilidade, nem resolverá qualquer reclamação, nem incorrerá em quaisquer custos ou despesas em relação à reclamação, sem o consentimento escrito da seguradora que terá direito a assumir e conduzir em seu nome a defesa e a resolução de qualquer reclamação.
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Foram dados como não provados os seguintes factos:
A) As instalações referidas em 3. foram assaltadas no período compreendido entre as 14h30 do dia 9 de Abril e as 6h45m do dia 10 de Abril de 2012.
B) Dia 9 de Abril de 2012 tratou-se de uma 2ª feira de Páscoa, por isso as instalações estiveram encerradas.
C) Da parte da manhã desse dia, um funcionário deslocou-se à empresa, como habitualmente, em dias feriados ou de ponte, não se tendo confrontado com nenhuma circunstância anormal.
D) Na terça-feira, 10 de Abril de 2012, pelas 6h45m, o funcionário responsável pela abertura das portas do estaleiro, verificou que as instalações tinham sido assaltadas.
E) Registavam-se diversos danos e tinham sido subtraídas daquelas instalações beterias, bidões de gasóleo e uma viatura ligeira de mercadorias, de marca Opel, modelo …, com a matrícula ..-..-XT, resultando prejuízos de €14.772,38.
F) No auto de denúncia às autoridades competentes, um dos administradores da autora, H…, declarou o nome da companhia de seguros que cobria os prejuízos e o nº da respectiva apólice.
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O DIREITO
Da matéria fáctica dada como assente decorre que a autora solicitou junto da ré “D…, Lda.” a celebração de um contrato de seguro (multirisco) tendo por objecto o imóvel correspondente às suas instalações (escritórios e estaleiro), e respectivo conteúdo, sitas na …, Lousada (nº 3, supra).
Para o efeito, a autora subscreveu no dia 2.4.2012, como tomadora, duas propostas de seguro, onde se indicava como local de risco as instalações acima referidas (nº 4, supra).
Dessas propostas consta que “a F… apreciará a presente proposta, podendo aceitá-la ou recusá-la. A sua aceitação far-se-á sempre de forma escrita, definindo garantias, seus limites e franquias.” (nº 6, supra).
Tais propostas deram origem à emissão, pela ré “D…, Lda.”, de duas apólices de seguro, com os nºs ……… e ………. A primeira às 11h01m do dia 10.4.2012 e a segunda às 11h19m do mesmo dia (cfr. nºs 7, 8 e 9, supra).
Dispõe o art. 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Dec. Lei nº 72/2008, de 16.4, que «por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente.»
A jurisprudência e a doutrina apontam, no essencial, as seguintes características distintivas ao contrato de seguro: é um contrato típico, consensual, de adesão, sinalagmático, oneroso, aleatório, e de boa-fé.[1]
Sucede que no caso dos autos o contrato de seguro foi celebrado com a intervenção de uma mediadora, o que convoca a aplicação do disposto no art. 28º do RJCS, onde se preceitua o seguinte:
«Sem prejuízo da aplicação das regras contidas no presente regime, ao contrato de seguro celebrado com a intervenção de um mediador de seguros é aplicável o regime jurídico de acesso e de exercício da actividade de mediação de seguros.»
O regime jurídico de acesso e de exercício da actividade de mediação de seguros e de resseguros (RJMS) consta do Dec. Lei nº 144/2006, de 31.7, alterado pelo Dec. Lei nº 359/2007, de 2.11.
Por mediação de seguros deve entender-se «qualquer actividade que consista em apresentar ou propor um contrato de seguro ou praticar outro acto preparatório da sua celebração, em celebrar o contrato de seguro, ou em apoiar a gestão ou execução desse contrato, em especial em caso de sinistro.» - cfr. art. 5º, al. c) do RJMS
Consagra-se, pois, um conceito bastante amplo de mediação de seguros, em linha com o objectivo da Directiva nº 2002/92/CE de harmonização mínima das condições de acesso e dos deveres de informação, extensíveis a qualquer forma de distribuição de seguros, incluindo não apenas a actividade de mediação em sentido tradicional (a prosseguida pelos agentes e corretores de seguros), como a actividade de bancassurance, anteriormente qualificada e regulada autonomamente face ao regime da mediação de seguros.[2]
Para os mediadores de seguros registados em Portugal, o RJMS, no seu art. 8º, prevê três categorias, às quais são associados regimes de acesso e de exercício distintos:
a) A categoria de mediador de seguros ligado, que tem como traços comuns o facto de o mediador actuar sob inteira responsabilidade das empresas de seguro que representa e não receber prémios ou quantias para serem entregues aos tomadores de seguros, segurados ou beneficiários, e que se subdivide em duas sub-categorias: a de pessoa que exerce a actividade em nome e por conta de uma empresa de seguros ou, com autorização desta, de várias empresas de seguros, desde que os produtos que promova não sejam concorrentes [art. 8º, alínea a), subalínea i), do RJMS] e a de pessoa que exerce a actividade em complemento da sua actividade profissional, desde que o seguro seja acessório do bem ou serviço fornecido no âmbito dessa actividade principal [art. 8º, alínea a), subalínea ii), do RJMS];
b) A categoria de agente de seguros, em que o mediador exerce a actividade em nome e por conta de uma ou mais empresas de seguros ou de outro mediador de seguros, nos termos definidos nos contratos que celebre com essas entidades [art. 8º, alínea b), do RJMS];
c) A categoria de corretor de seguros, em que o mediador exerce a actividade de forma independente face às empresas de seguros, com base numa análise imparcial de um número suficiente de contratos de seguro disponíveis no mercado que lhe permita aconselhar o cliente tendo em conta as suas necessidades específicas [art. 8º, alínea c), do RJMS].
No caso “sub judice”, embora a matéria fáctica apurada não permita determinar qual o tipo de mediação de seguros desenvolvido pela ré “D…, Lda.”, certo é que a autora subscreveu, através da mediação desta ré, duas propostas de seguro em 2.4.2012. Porém, a ré só viria a emitir as respectivas apólices em 10.4.2012 em virtude da desorganização em que se encontravam os seus serviços como resultado da saída de um dos seus funcionários.
A ré mediadora estava pois habilitada a emitir as apólices, em nome da “F…” e, sendo assim, tal como concluiu a Mmª Juíza “a quo”, praticava, em nome desta, negócios jurídicos.
Dispõe o art. 258º do Cód. Civil que «o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.»
Dois requisitos são indispensáveis para que a representação produza o seu efeito típico, que é a inserção directa, imediata, do acto na esfera jurídica do representado (“dominus negotii):
a) Que o representante aja em nome do representado (“contemplatio domini”), neste aspecto se distinguindo a representação da chamada comissão;
b) Que o acto realizado caiba dentro dos limites dos poderes conferidos ao representante. Não se verificando este requisito, só a ratificação pode tornar o negócio eficaz em relação ao representado (cfr. art. 268º, nº 1 do Cód. Civil).[3]
Os poderes de representação do mediador de seguros são distintos conforme seja a sua categoria, de tal forma que no tocante aos mediadores de seguros ligados e aos agentes de seguros sempre será de salientar que estes actuam enquanto representantes da seguradora.
Já no que concerne ao corretor de seguros este age autonomamente, não dispondo, por regra, de poderes de representação da seguradora.
Mas, para além de actuar genericamente em nome da seguradora, o mediador de seguros, para celebrar contratos de seguro em nome da seguradora, deve dispor dos poderes necessários para o efeito, conferidos por escrito [cfr. art. 29º, al. a) do RJMS].
À semelhança do que já acima referimos, a Mmª Juíza “a quo”, face à factualidade apurada, entendeu ser de concluir que a ré mediadora dispunha de poderes de representação conferidos pela seguradora F…, podendo celebrar em nome desta contratos de seguro. Por isso, tal como ocorreu no presente caso, a ré mediadora recebia e aceitava a subscrição de propostas de seguro e depois emitia, inclusive, as apólices respeitantes àquelas propostas.
Contudo, na sentença recorrida, considerou-se depois que, mesmo na eventualidade de se entender que a factualidade provada era insuficiente para se poder concluir no sentido de que a ré mediadora dispunha de poderes de representação, não se poderia deixar de ter em atenção o disposto no art. 30º do RJCS.
Aí se preceitua o seguinte:
«1. O contrato de seguro que o mediador de seguros, agindo em nome do segurador, celebre sem poderes específicos para o efeito é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado, sem prejuízo do disposto no nº 3. (…) 3. O contrato de seguro que o mediador de seguros, agindo em nome do segurador, celebre sem poderes específicos para o efeito é eficaz em relação a este se tiverem existido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem a confiança do tomador do seguro de boa-fé na legitimidade do mediador de seguros, desde que o segurador tenha igualmente contribuído para fundar a confiança do tomador do seguro.»
Neste nº 3 reconhece-se legalmente uma situação de “representação aparente”, em que apesar da inexistência de legitimidade representativa originária ou superveniente é ressalvada a eficácia do contrato de seguro, para protecção do terceiro de boa-fé, quando a aparência criada justifica a confiança deste na legitimidade do declarante.[4]
Considerou o legislador que a consagração expressa do regime de representação aparente em sede de regime jurídico do contrato de seguro trazia clareza e certeza jurídica no âmbito de uma actividade, por natureza, propícia a equívocos quanto aos poderes representativos de que o mediador dispõe e na qual a necessidade de conferir segurança aos vínculos contratuais assume evidente relevância face aos interesses – muitas vezes não exclusivos das partes – que o seguro visa proteger, maxime quando está em causa um seguro obrigatório.
São os seguintes os pressupostos da eficácia do contrato de seguro celebrado por mediador de seguros em nome de um segurador, sem poderes específicos para o efeito (“falsus procurator”):
a) A existência de razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justifiquem a confiança do tomador do seguro na legitimidade representativa do mediador de seguros: trata-se da existência de condições logísticas, administrativas, documentais ou outras que sustentam a convicção do tomador em como o mediador de seguros disporá dos poderes representativos necessários à celebração do contrato;
b) A boa-fé do tomador do seguro: se o mesmo conhecia a falta de poderes de representação do mediador de seguros, não pode invocar o regime em seu benefício;
c) Ter o segurador contribuído para fundar a confiança do tomador do seguro: porque tendo facultado determinados meios materiais, documentais ou logísticos ao mediador de seguros não diligenciou na prevenção da ocorrência de situações em que seja legítimo ao tomador do seguro presumir os poderes de representação do mediador.[5]
Da matéria fáctica dada como provada decorre que a ré “D…, Lda.”, sendo mediadora de seguros, foi procurada pela autora por causa do exercício dessa actividade. A autora subscreveu então, no dia 2.4.2012, duas propostas de seguro com o timbre da “F…”, que se encontravam na posse da mediadora e ficou convencida de que a partir dessa data os danos que viessem a ocorrer nas instalações e recheio estavam cobertos pelo seguro.
Como tal, seria de considerar demonstrada a figura da representação aparente e de, por esse motivo, se conferir eficácia aos contratos de seguro celebrados pela mediadora, mesmo que se entendesse que esta tinha actuado sem poderes de representação.
Só que, neste ponto, tal como se equacionou na sentença recorrida, é de ter em atenção que a autora, mesmo perante tudo o que se provou, adquiriu a convicção de que os contratos de seguro aqui em causa não tinham produzido os seus efeitos, na data do sinistro – 10.4.2012 -, por facto imputável à mediadora.
Com efeito, entende a autora que houve negligência e erro profissional na actuação da ré mediadora ao não ter emitido, desde logo, no dia 2.4.2012, as apólices de seguro e, por isso, no dia 10.4.2012 ao comunicar a verificação do sinistro nas suas instalações ainda não estava, na sua perspectiva, transferida para a “F…” a responsabilidade pelo ressarcimento dos prejuízos ocorridos.
Só que esta linha argumentativa, que assenta na ideia de que os contratos de seguro em causa nos autos apenas começaram a produzir os seus efeitos após a emissão das respectivas apólices em 10.4.2012, às 11,01h e 11,19h, respectivamente, daí decorrendo que aquando da verificação dos furtos nas instalações da autora a correspondente responsabilidade civil ainda não estava transferida para a “F…”, não é de acolher.
O contrato de seguro é um contrato consensual, no sentido de que a sua celebração e validade não está sujeita à observância de qualquer forma especial, sem prejuízo da obrigação do segurador emitir e entregar ao tomador um documento escrito designado por apólice de seguro (cfr. art. 32º do RJCS).
Assim, o consenso das partes pode ser validamente plasmado em instrumento escrito ou por via meramente oral, em suporte físico ou electrónico (v.g. telefone, carta, fax, e-mail, on-line). Deste modo, a apólice de seguro, documento escrito que titula e formaliza o contrato de seguro, deixou de constituir um requisito de validade (“ad substantiam”) do contrato, passando a possuir relevo apenas no plano da sua prova (“ad probationem”) e da consolidação e oponibilidade do respectivo conteúdo.[6]
Neste sentido, escreve-se no Preâmbulo do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS):
“Quanto à forma, e superando as dificuldades decorrentes do artigo 426º do Código Comercial, sem descurar a necessidade de o contrato de seguro ser reduzido a escrito na apólice, admite-se a sua validade sem observância de forma especial. Apesar de não ser exigida forma especial para a celebração do contrato, bastando o mero consenso, mantém-se a obrigatoriedade de redução a escrito da apólice. Deste modo, o contrato de seguro considera-se validamente celebrado, vinculando as partes, a partir do momento em que houve consenso (por exemplo, verbal ou por troca de correspondência), ainda que a apólice não tenha sido emitida.”
E Paula Ribeiro Alves (in “Contrato de Seguro à Distância”, Almedina, pág. 106) escreve que o contrato de seguro “assume, claramente, a natureza de contrato consensual, em que o encontro de vontades, livres e esclarecidas, é suficiente para a validade da celebração do contrato.”
Por seu turno, Pedro Romano Martinez (em anotação à “Lei do Contrato de Seguro Anotada”, Almedina, 2ª ed., pág. 219) entende que “esta desformalização tem particular relevo na sociedade actual, não tanto por corresponder ao princípio geral do consensualismo – que é tradicional -, mas principalmente por implicar um impulso para a desmistificação do papel como suporte paradigmático dos documentos. O contrato de seguro passa a ser consensual, devendo, contudo, ser formalizado num instrumento escrito (a apólice), mas não necessariamente num documento de papel.”
No caso dos autos, constata-se que a autora subscreveu, em 2.4.2012, duas propostas de seguro que a ré mediadora, em representação da seguradora “F…”, aceitou, tendo, porém, a emissão das respectivas apólices por parte da mediadora ocorrido apenas alguns dias depois, em 10.4.2012.
Ora, o atraso na emissão das apólices – que podiam ser emitidas pela ré mediadora, como o foram – não tem qualquer reflexo na validade e na eficácia do contrato de seguro.
Esse atraso tem apenas as consequências que vêm previstas no art. 34º, nº 4 do RJCS, onde se estabelece que «havendo atraso na entrega da apólice, não são oponíveis pelo segurador cláusulas que não constem de documento escrito assinado pelo tomador de seguro ou a ele anteriormente entregue.»
Por conseguinte, apesar da emissão das apólices por parte da mediadora se ter concretizado apenas a 10.4.2012, os contratos de seguro, por elas titulados, existiam já – e plenamente eficazes – a partir do dia 2.4.2012, data em que a mediadora, em nome da sua representada “F…”, aceitou as propostas de seguro apresentadas.
Assim, a sentença recorrida, cuja argumentação se seguiu e onde se concluiu no sentido da improcedência da pretensão formulada pela autora, mostra-se isenta de censura, devendo ser confirmada.
Improcede pois o recurso interposto.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
- O contrato de seguro pode ser celebrado com a intervenção de um mediador de seguros.
- Os mediadores de seguros são de três categorias: mediador de seguros ligado; agente de seguros; corretor de seguros.
- Os poderes de representação dos mediadores de seguros são distintos conforme seja a sua categoria: os mediadores de seguros ligados e os agentes de seguros actuam como representantes da seguradora; o corretor de seguros age autonomamente, não dispondo, por regra, de poderes de representação da seguradora.
- Se a mediadora recebe e aceita a subscrição de propostas de seguro e se depois emite as apólices correspondentes àquelas propostas, é de concluir que esta dispõe de poderes de representação conferidos pela seguradora e que pode celebrar, em nome desta, contratos de seguro.
- O contrato de seguro considera-se validamente celebrado, vinculando as partes, a partir do momento em que houve consenso (por exemplo, verbal ou por troca de correspondência), ainda que a apólice não tenha sido emitida.
- A apólice de seguro, documento escrito que titula e formaliza o contrato de seguro, deixou de constituir um requisito de validade (“ad substantiam”) do contrato, passando a possuir relevo apenas no plano da sua prova (“ad probationem”) e da consolidação e oponibilidade do respectivo conteúdo.
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DECISÃO Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela autora “B…, SA”, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da autora/recorrente.
Porto, 10.2.2016
Rodrigues Pires
Márcia Portelo
Maria de Jesus Pereira
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[1] Cfr. José Engrácia Antunes, “Direito dos Contratos Comerciais”, Almedina, reimpressão, pág. 685.
[2] Cfr. “Lei do Contrato de Seguro Anotada”, Almedina, 2ª ed., pág. 183 (anotação de Eduarda Ribeiro).
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 240.
[4] Cfr. “Lei do Contrato de Seguro Anotada”, Almedina, 2ª ed.), págs. 209/210 (anotação de Eduarda Ribeiro).
[5] Cfr. “Lei do Contrato de Seguro Anotada”, Almedina, 2ª ed., págs. 211/2, (anotação de Eduarda Ribeiro).
[6] Cfr. José Engrácia Antunes, ibidem, págs. 699/701.