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COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
RESPONSABILIDADE DO VENDEDOR
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
Sumário
I - O Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, aplica-se apenas às pessoas que exerçam com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, e cujo fornecimento de bens ou serviços ocorra nesse âmbito e sejam destinados a uso não profissional pelo adquirente. II - De acordo o disposto no art.º 916.º do C. Civil a responsabilidade do vendedor pela venda de coisa defeituosa depende da prévia denúncia do vício ou falta de qualidade da coisa pelo comprador, exceto se aquele tiver atuado com dolo, denúncia a efetuar até 30 dias depois de conhecido o vício e dentro de seis meses após a entrega da coisa. III - A garantia de bom funcionamento refere-se apenas à reparação ou substituição da coisa, independentemente de culpa do vendedor ou do produtor, mas não à anulação do contrato ou redução do preço, nem indemnização. IV - A garantia de bom funcionamento prestada pelo produtor do veículo automóvel, pese embora esteja diretamente relacionada com o contrato de compra e venda, não vincula o vendedor, quando não teve qualquer intervenção na sua concessão, resultando a sua vinculação exclusivamente ao contrato de compra e venda.
Texto Integral
2.ª Secção Apelação n.º 2679/13.4TBVCD.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
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I- Relatório. B… ª LDA., com sede na Rua …, freguesia de …, concelho de Vila do Conde, intentou a presente ação declarativa comum contra C…, S.A., com sede na Avenida …, Vila do Conde, e D… Portugal, S.A., com sede na Rua …, Lisboa, pedindo:
a) Seja decretada a anulação do contrato de compra e venda do veículo dos autos celebrado entre a Autora e a 1ª Ré, devendo esta restituir-lhe o montante de € 32.170,00, acrescidos dos juros de mora à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento;
b) Serem condenadas as RR. ao pagamento à Autora do montante de € 1974,00, a título de indemnização pela privação do uso e fruição do veículo dos autos, acrescido do montante que vier a apurar-se em sede de liquidação de sentença;
c) Serem as RR. condenadas a pagar à Autora o montante de € 212,44 a título de despesas com a contratação de serviços de transportes durante a imobilização do veículo dos autos.
d) Serem as RR. condenadas a pagar à Autora o montante de €1.500,00, a título de danos não patrimoniais que a venda de veículo defeituoso e a não eliminação do defeito causou à Autora.
Para o efeito alegou, resumidamente, para o exercício das atividades incluídas no seu escopo social necessita de uma viatura automóvel apta a garantir as deslocações de natureza comercial e entregas e recolha de máquinas e acessórios e ainda a prestação de assistência técnica aos equipamentos dos seus clientes, pelo que adquiriu à 1ª Ré, no pretérito dia 12/11/2012, pelo preço de € 32.170,00, um veículo automóvel, ligeiro, de passageiros, da marca RENAULT, modelo …., com a matrícula ..-NH-.., em estado novo, acordando um garantia pelo período de 36 meses. Porém, a viatura veio a deixar de funcionar quando com ele circulava, tendo vindo a ser objeto de sucessivas intervenções e imobilização, face à inoperacionalidade da viatura e o abandono a que foi votada, em 20/09/2013, dirigiu comunicação escrita às RR., interpelando-as para, no prazo de 5 dias úteis contados da respetiva receção, lhe entregarem o veículo ..-NH-.., em perfeito estado de funcionamento, sob pena de perda de interesse em tal prestação, e porque os defeitos não foram reparados tem direito à resolução do contrato.
Contestaram as Rés, invocando a caducidade parcial dos direitos invocados, a culpa da Autora pela não reparação do veículo, a ausência dos invocados danos, concluindo pela improcedência da ação.
Saneado o processo e realizada a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e decidiu: “a) Julgar validamente resolvido o contrato celebrado entre a Autora e a primeira Ré, referente à compra e venda do veículo automóvel com a matrícula ..-NH-..; b) Reconhecer à primeira Ré o direito de reaver o veículo mencionado em a) e condená-la a restituir à Autora a quantia de €32.170,00 (trinta e dois mil cento e setenta euros), deduzida da quantia correspondente à desvalorização do aludido veículo automóvel por força da sua utilização, pela Autora, entre o período de 12.11.2012 e 4.7.2013, a liquidar ulteriormente nos termos dos artigos 358º e seguintes do Código de Processo Civil; c) Condenar a primeira Ré a pagar juros de mora vincendos sobre a quantia referida em b), a partir da sua liquidação, à taxa comercial em vigor a cada momento; d) Condenar ambas as Rés a pagar à Autora a quantia de €750,00 (setecentos e cinquenta euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos; e) Condenar ambas as Rés a pagar à Autora a quantia de €360,00 (trezentos e sessenta euros), a título de indemnização pela privação do uso do veículo automóvel em apreço; f) Absolver as Rés do demais peticionado”.
Desta sentença veio a 1.ª Ré “C…” interpor o presente recurso, alegando e concluindo nos termos seguintes:
A) Vem o presente recurso da douta sentença na parte em que julga validamente resolvido o contrato celebrado entre a A. e a 1ª R., referente à compra do veículo ..- NH-..; reconhece à 1ª R o direito de reaver o mesmo veículo e condena-a a restituir à A. a quantia de Eur.32.170,00, deduzida da quantia correspondente à desvalorização daquele veículo por força da sua utilização, pela A., entre 12.11.2012 e 04.07.2013, a liquidar ulteriormente; condena a 1ª R. a pagar juros de mora vincendos, a partir da liquidação, sobre a quantia que vier a apurar-se, à taxa comercial em vigor em cada momento; condena a 1ª R. a pagar à A. a quantia de Eur.750, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos; condena a 1ª R a pagar à A. a quantia de Eur.360 a título de indemnização pela privação de uso do veículo automóvel ..-NH-...
B)O Recurso abrange ainda a matéria de facto, quanto às respostas dadas aos factos elencados nas alíneas g), h) i) e j) dos factos não provados.
C) O Tribunal da Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em função da reponderação dos documentos e depoimentos gravados, complementados ou não pelas regras da experiência, desde que estejam em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação – Vd. artº 663º CPC.
D)O facto enunciado na alínea g) do elenco de factos não provados deve ser declarado provado, por força do depoimento da testemunha E….
E)O depoimento desta testemunha foi valorado pelo Tribunal como credível, de forma a justificar a prova do facto de a avaria no ..-NH-.. ter sido difícil de encontrar e descobrir, de se ter apurado que a avaria se devia a um problema de conectividade da cablagem, de se ter percebido que tal se resolvia com a sua substituição e que, nessa sequência, a 2ª R. ordenou a completa substituição da cablagem. Porém, foi insuficiente para provar a data em que a testemunha deu essa ordem de substituição, conclusão que, salvo o devido respeito, não resulta do depoimento.
F)A testemunha E…, que participou na deteção da avaria nos serviços técnicos da 2ª R., afirmou de modo inequívoco que a substituição da cablagem foi por ele ordenada a 06.08.2013. A prova deste facto não está dependente de documento e a circunstância de a testemunha ter assegurado que deu tal ordem por escrito no sistema interno D… só reforça a sua credibilidade, ao invés de a diminuir, como erradamente entendeu o Tribunal a quo.
G) Este depoimento não foi abalado por nenhum outro elemento probatório, pelo que a justificação vertida na douta sentença é incompreensível, ilegal e contraditória.
H) Assim, por corresponder a matéria em relação à qual foi produzida prova testemunhal credível, clara, em depoimento que como tal foi valorado pelo Tribunal em relação a factos direta e intrinsecamente relacionados (FP 23, 24, 25) ; por não poderem colher os argumentos aduzidos na douta sentença; e por não ter sido objeto de prova que contraditasse o depoimento da testemunha E…, deverá ser alterada a resposta ao facto constante da alínea g) dos factos não provados, passando a julgar-se provado que a 2ª Ré deu ordem para completa substituição da cablagem do veículo da A. em 06.08.2013.
I) Também em relação aos factos constantes da alínea h), i) e j) dos factos assentes a decisão sob recurso merece censura, devendo tais factos ser julgados provados por este Venerando Tribunal.
J)Sobre este conjunto de factos, importa atentar no depoimento das testemunhas F…, G… e H…, bem como o documento de fls. 160,
que impõem a resposta oposta àquela que o Tribunal proferiu, conforme as atas da audiência de julgamento de 25.2.2015, relativamente ao depoimento das testemunhas citadas.
K)Julgou mal o Tribunal a quo ao considerar que o depoimento destas testemunhas não se mostra corroborado pelas regras da experiência e da normalidade. Com o devido respeito, as regras da experiência e da normalidade impõem a conclusão oposta à que o Tribunal chegou.
L) A 2ª R. procedeu à substituição no ..-NH-.. de várias peças após 4.7.2013, na tentativa de encontrar a causa da avaria e a solução. Procedeu-se à substituição da Centralina, caixa de borboleta e válvula EGR e ordenou a completa substituição da cablagem.
M)Se a 2ª R. ordenou a substituição da cablagem, nenhuma razão havia para que a peça não fosse substituída no veículo da A., até porque tal operação não implicava custos para esta, mas sim para a 2ª R.
N)Não foi pedida nenhuma autorização pela 2ª R. (ou o agente I…) à A. para a substituição da Centralina, caixa de borboleta e válvula EGR, bem como para fazer os demais testes e ensaios considerados necessários. Nem tinha que ser pedida. Como também não foi pedida qualquer autorização à A. para a encomenda ou instalação da nova cablagem no veículo. Nem tinha que ser pedida. Até ao momento em que a A. comunicou a F… (I…), na sequência de telefonema deste a informar a chegada da cablagem, que não autorizava qualquer intervenção no seu veículo.
O)Se a autorização não tinha que ser pedida, a partir do momento em que a A. dá uma ordem expressa (que não tem que ser reduzida a escrito) no sentido de não se substituir a cablagem, a A. impede a reparação que iria ser de imediato levada a cabo. Sem culpa de qualquer das Rés.
P)O Tribunal a quo preferiu (mas mal) valorar as obviamente interessadas declarações de parte da A., e o depoimento (esse sim inverosímil) do à data gerente da A., convenientemente substituído na sua função de gerência a tempo de poder testemunhar em audiência, em detrimento do depoimento de duas testemunhas, uma delas que nenhuma relação tem com as Rés (F…), que falou diretamente com o representante da A. e transmitiu o teor dessa conversa com isenção, e outra, funcionária do departamento de clientes da 2ª R. (H…), que também falou em discurso direto com o representante da A. e transmitiu o teor dessa conversa com isenção.
Q)Deu credibilidade à parte (materialmente é disso que se trata), obviamente interessada no desfecho da ação, e que faltou à verdade no julgamento, em detrimento de depoimentos de duas testemunhas isentas.
R)Acresce ainda o documento de fls. 160, e-mail datado e enviado em 20.08.2003 pelo serviço relação cliente D… (2ª R.) à A., que é claro ao referir que falta a ordem de reparação do ..-NH-.., decorrendo deste documento e da prova produzida pelas testemunhas F…, G… e H… que quem não deu autorização para a reparação foi a A.
S)Este e-mail de fls. 160 permite afastar qualquer dúvida que pudesse subsistir sobre a proibição da reparação por parte da A., bem como sobre o período temporal em que tal ocorreu, pois está claramente balizado, pelo menos entre 06.08.2013 e 20.08.2013, sendo que a testemunha G… esclareceu que recebeu de F… um telefonema a informar daquela oposição da A. à reparação preconizada pela 2ªR, telefonema esse que situou em 12 ou 13 de Agosto, a data em que a cablagem chegou para ser instalada no veículo da A.
T) É descabida a referência à hipótese prevista na douta sentença de as tentativas para solucionar o problema só terem ocorrido após 20.09.2013 “ou, ainda que antes, não muito antes”. Nessa altura, já há muito que a 2ªR tinha sido confrontada com a recusa de reparação da A., e tinha informado a 1ª R que não iria continuar a suportar um veículo de substituição gratuito à A., já que esta recusava a reparação.
U) Trata-se de um claro erro de julgamento quanto à matéria de facto, que implicou respostas erradas no que tange às alíneas g) a j), que devem antes, por decisão do Venerando Tribunal da Relação, passar a constar da matéria de facto provada – cf. art.º 662º do CPC.
V)Também quanto às causas da restituição do veículo de substituição, foi claro o depoimento da testemunha G…, que explicou claramente no seu depoimento que o A. não só tinha informado que iria processar as Rés, como tinha dado instruções concretas para não se efetuar a reparação no veículo que é sua propriedade.
W) Por outro lado, foi explicado pela testemunha F… que, uma vez apurada a causa da avaria, e verificando-se que se tratava da cablagem, a troca de tal componente “hoje em dia é tudo com ligações de fichas, e não há ali cortes nenhuns como se verificava antigamente, que era cortar e remendar, neste caso não era assim, era desligar fichas e meter uma cablagem nova no sítio da velha”, Ou seja, era (como foi) difícil de detetar, mas fácil e rápido de substituir.
X) O e-mail de fls. 160, e os depoimentos de H…, F… e G… impõem, portanto, a conclusão oposta à que o Tribunal a quo chegou.
Mesmo sem recorrer a prova testemunhal, que incidiu sobre este facto, é evidente que pelo menos em 20.08.2013 a A. tinha uma confirmação escrita da 2ª R no sentido de estar a aguardar da A. uma instrução de reparação do veículo. E se aguardava essa instrução, tal só podia dever-se à instrução anterior da A. de não autorização da reparação.
Y)Só a esta luz, e de acordo com as regras da experiência e normalidade, se podem encadear, com um mínimo de lógica dedutiva, os factos em apreço.
Z) Razões pelas quais só pode concluir-se pela declaração como provados dos factos que vêm elencados na douta sentença nas alíneas h), i) e j) da lista de factos não provados.
AA) Também quanto à aplicação do direito aos factos, a decisão sob recurso deverá ser revogada e substituída por outra, que declare a caducidade do direito da ação da A.
BB)A sentença recorrida confirma (e bem) que o Recorrido não é um consumidor, sendo um comerciante e devendo tratar-se como tal; que a lei aplicável é exclusivamente a prevista para a venda de bens defeituosos no Código Civil; que os artigos 916.º e 917.º CC preveem prazos de caducidade do direito de ação curtos, designadamente que esse direito caduca seis meses após a entrega da coisa; e cita jurisprudência conforme do STJ.
CC)O Tribunal a quo aplica então este entendimento de Direito ao caso dos autos, aceitando que a denúncia – embora efetuada de imediato após o conhecimento – foi feita já esgotado o prazo perentório de seis meses após a entrega do bem.
DD)Daqui só poderia resultar a absolvição da ora Recorrente por caducidade do direito de ação da Recorrida.
EE)Apesar de o Tribunal a quo ser forçado a reconhecer que se encontra verificada nos autos a caducidade do direito de ação, por os factos provados preencherem a previsão dos artigos 916.º e 917.º CC, vem então introduzir uma outra questão que nada tem a ver com esta, misturando os factos e o Direito e dando o dito por não dito.
FF)O M.º Juiz a quo deu como provado – corretamente – a existência de uma garantia do construtor que é válida para um período de 36 meses, contados desde 13/11/2012 ou até aos 150 mil km, sendo que nos primeiros 24 meses esse limite de quilometragem não é aplicável – tudo conforme Factos Provados n.ºs 4 e 5. O Tribunal a quo qualifica essa garantia como de bom funcionamento, nos termos do artigo 921.º CC.
GG)Porém, a partir de aqui a douta sentença recorrida avança para um salto lógico a partir do teor do facto provado 4, que não pode merecer o acolhimento do Direito. O Facto Provado n.º 4 diz que “O veículo adquirido pela Autora, referido em 3, encontra-se abrangido pela garantia do construtor (...)” (sublinhado nosso).
HH)Contudo, ao interpretar este facto provado 4, o Tribunal a quo defende que o mesmo afinal diz outra coisa que não está lá escrita: afinal a garantia já não é só do construtor mas é também da 1ª R e ora Recorrente, mera concessionária e comerciante em nome próprio.
II)A partir daqui constrói uma tese inaceitável, de acordo com a qual, e apesar de ter dado como provado que a garantia é exclusivamente prestada pelo construtor, pretende que essa mesma garantia deve entender-se como dada também pela ora Recorrente, por estar “geneticamente” ligada ao contrato de compra e venda, sem o qual não existiria.
JJ) Parece-nos que se alicerça numa ideia vaga de justiça (não fundamentada).
Pretende que sem “alterar a prova feita” ou seja, sem afirmar que a garantia também foi prestada pela ora Recorrente e não apenas pelo construtor, o Recorrido só poderia atuar contra a ora Recorrente nos primeiros seis meses após a entrega do veículo, tendo depois de o fazer apenas contra a construtora (ou a sua representante em Portugal).
KK) Concorda-se com esta tese, só não se percebe como essa situação jurídica clara pode gerar alguma injustiça protegida pelo Direito.
LL) É o construtor, com toda a sua potencialidade de reparação, capacidade económica e rede de reparadores oficiais que protege os consumidores. Por comparação com um pequeno concessionário local, a sua capacidade reparadora não tem paralelo.
MM)Por nós e julgávamos para o Direito, os artigos 913.º e ss. CC pareciam-nos evidentes: o vendedor – que não fabrica veículos automóveis e que por isso não pode controlar os seus defeitos - tinha a segurança de que apenas estava adstrito a uma garantia contra defeitos no prazo curto fixado na lei. Assim, tinha eventualmente contratado os seus seguros de risco e tinha feito as suas contas de negócio.
NN)Para além desses prazos cabia exclusivamente ao construtor a responsabilidade por ir mais além, por via de contrato que outorgava com os adquirentes dos seus produtos.
OO)É por essa razão que na rede D…, como em todas as grandes marcas, qualquer reparação em garantia para além dos prazos do Código Civil são realizadas em oficinas de reparação, mas os custos respetivos correm por conta exclusivamente do construtor.
PP) O que significa queo Recorrido está protegido pelo construtor – que conhece o veículo que fabricou – podendo proceder à sua reparação em qualquer local e não apenas junto do seu vendedor. Não se vê que maior garantia possa pretender.
QQ) Não tem assim qualquer sentido o “receio” do M.º Juiz a quo que afinal o levou a cometer a deturpação do facto que tinha dado como provado. Isto é, o facto de a garantia contratual de bom funcionamento ser apenas e exclusivamente do construtor não diminui em nada os direitos do Recorrido, pelo contrário, mantém-nos na íntegra, muito mais até do que se a garantia fosse também do ora Recorrente.
RR)Sendo assim, como é, podia então dizer-se que face a esta evidência a ora Recorrente deve ser absolvida do pedido, sendo que não consta do pedido do Recorrido a condenação na reparação ou substituição do veículo por parte da construtora, o que poderia levar a que esta particular ação não redundasse na reparação da situação do Autor...
SS)Permitam-nos que relembremos que cabe ao Recorrido – enquanto Autor – construir a sua ação e fazer os seus pedidos, dirigindo-os contra quem bem entende.
Não pode a ora Recorrente ser prejudicada por estratégias processuais da parte do Autor, sendo que o princípio do dispositivo, e a natureza privatística do processo assim o impõem. Corrigir a P.I. do A. , e dar ao A. o que este não pediu está vedado ao Tribunal.
TT) O que o Autor podia eventualmente ter feito – porém não fez – era dirigir a ação exclusivamente contra o construtor, pedindo a reparação ou a substituição do veículo, ao abrigo da garantia que tem em sua posse e que lhe foi outorgada pelo construtor. Porém, não foi essa a opção do A., e a 1ª R., aqui Recorrente, nada tem a ver com essa opção, e por essa razão deve ser absolvida de todos os pedidos.
UU) É o que decorre dos Factos Provados 4 e 5: a ora Recorrente é um terceiro em relação a essa garantia do construtor.
VV)Mostram-se assim violados desde logo os princípios do pedido (artigo 3º e 5º do CPC), da defesa e do contraditório (artigo 4º do CPC). Igualmente a violação dos artigos 916.º, 917.º e 921.º CC. Bem como o próprio contrato de garantia outorgado pelo construtor.
WW) O direito de ação do Recorrido contra a ora Recorrente caducou, nos termos do artigo 917.º CC, e nada mais tem aquele contra este, por a garantia contratual junta aos autos não ter sido outorgada por este, em relação à qual é terceiro (Factos Provados n.ºs 4 e 5), não podendo fundar qualquer direito do Recorrido contra si.
XX)Sem conceder, e face à alteração da resposta à matéria de facto preconizada neste recurso aos factos constantes das alíneas g), h) e j), fácil se torna concluir, aplicando o direito aos factos, que também procede a exceção de culpa do lesado alegada pela 1ª R.
YY)Com efeito, decorre da factualidade provada que a 2ª R. procedeu à substituição no ..-NH-.. de várias peças após 04.07.2013, na tentativa de encontrar a causa da avaria e a solução. Procedeu-se à substituição da Centralina, caixa de borboleta e válvula EGR. E ordenou-se a completa substituição da cablagem em 06.08.2013.
ZZ) Provou-se também que a A., através de J…, comunicou à I…, na pessoa de F…, que não autorizava a substituição da cablagem.
AAA)Essa operação de substituição era não só essencial para repor o veículo em condições de funcionamento, como também simples de executar, podendo ser feita de imediato.
BBB)Estabelece o artigo 570º nº 1 do CC que quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultarem, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída, sendo que a responsabilidade se baseia na culpa efetiva do agente, segundo a regra geral do artigo 487º do CC.
CCC)No caso dos autos, não restam dúvidas de que foi o ato da A. de proibir a I… - e, consequentemente, a 2ª R. - de proceder à reparação que determinou que o veículo não fosse reparado.
DDD)Este facto importa, necessariamente, a responsabilização exclusiva da A. pelo atraso na reparação, pois que o veículo é propriedade exclusiva da A. e foi aquela proibição a única fonte ou causa da não reparação.
EEE)Não há, assim, concorrência de culpa das partes, mas culpa exclusiva do lesado, único responsável pela não reparação do veículo.
FFF) Pelo que também aqui julgou mal o Tribunal a quo ao declarar improcedente a exceção invocada de culpa do lesado, baseando-se em matéria de facto também erradamente julgada não provada (alíneas g), h) e j)), violando assim os artigos 342º e 570º do CC.
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A Autora juntou contra-alegações, defendendo a bondade e manutenção da decisão recorrida, e formulou ampliação do âmbito de recurso, a título subsidiário e prevenindo, nos termos do art.º 636.º do C. P. Civil, para a eventualidade de procedência do recurso quanto à caducidade do direito, com vista a ser apreciada a decisão do Tribunal a quo de não considerar aplicável in casu a legislação de proteção ao consumidor, mormente, a Lei n.º 24/96 de 31-07 e o Decreto-Lei n.º 67/2003 de 08-04, concluindo:
1. A Apelante sempre gozaria da proteção conferida ao consumidor pela Lei n.º 24/96 de 31-07 e pelo Decreto-Lei n.º 67/2003 de 08-04, atenta a factualidade dada por provada sob os itens 1 e 2 dos factos provados da douta sentença recorrida.
2. Da conjugação dos factos provados sob os itens 1 e 2 com o depoimento do legal representante da Apelada e da testemunha L…, ressalta que a douta sentença recorrida deveria ter dado por assente que “A Autora é uma empresa de cariz familiar que não possui conhecimentos específicos sobre veículos automóveis”.
3. Tal factualidade, por decisão do Venerando Tribunal ad quem, a proferir ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 1 do CPC, deverá passar a figurar na matéria de facto provada, com a consequente equiparação da Apelada a um consumidor para todos os legais efeitos, mormente, o do alargamento do prazo para denúncia dos defeitos no veículo nos termos do artigo 5º do DL 67/2013,de 08/04.
***
A recorrente contra-alegou quanto à ampliação do recurso, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº4, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) Deve ou não ser alterada a matéria de facto.
b) Caducidade do direito de ação.
c) Se o Autor tem direito à resolução do contrato de compra e venda.
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III – Fundamentação fáctico-jurídica. 1. Reapreciação da matéria de facto.
1.1. A recorrente discorda do julgamento da matéria de facto relativamente às respostas dadas aos factos elencados nas alíneas g), h) i) e j) dos factos não provados.
Os referidos pontos de facto têm a seguinte redação. g) A ordem referida em 26 foi dada em 6.8.2013. h) A substituição da cablagem referida em 26 foi expressamente proibida pela Autora, que disse nada mais queria que fosse feito no veículo. i) O referido em 12 apenas ocorreu por força da proibição referida em h). j) Se a Autora não tivesse proibido a reparação do veículo, esta teria ocorrido em Agosto de 2013.
1.2. Alínea g).
Quanto a esta matéria entende a recorrente que o depoimento da testemunha E… impõe que seja declarado provado, o qual foi valorado pelo Tribunal como credível, de forma a justificar a prova do facto de a avaria no ...-NH-.. ter sido difícil de encontrar e descobrir, de se ter apurado que a avaria se devia a um problema de conectividade da cablagem, de se ter percebido que tal se resolvia com a sua substituição e que, nessa sequência, a 2ª R. ordenou a completa substituição da cablagem. Porém, foi insuficiente para provar a data em que a testemunha deu essa ordem de substituição.
Ouvido o depoimento de E…r retira-se de relevante o seguinte:
Declarou trabalhar para a D… Portugal, há mais de 20 anos, acompanhou o processo desta viatura a partir de 18 de julho de 2013. No depoimento consultou as suas notas pessoais, e revelou detalhadamente como foi chamado a intervir, bem como a sua intervenção para a resolução do problema detetado no veículo, sendo contatado pelo reparador autorizado da D… , a “I…”, onde se encontrava o veículo em causa, no sentido de ajudar a detetar a avaria no mesmo, cujo motor não trabalhava, dos testes que mandava fazer e dos resultados obtidos, confirmando ser substituída a “Centralina” (órgão eletrónico de controlo do veículo), que resolveu uma parte do problema, e só após vários testes complementares, por indicação dos técnicos em França, que eram transmitidos à oficina em Lamego chegaram à conclusão que o problema se situava numa falha da cablagem do motor, avaria que não era nada comum. Desde então, 6 de agosto de 2013, deu ordem à oficina de Lamego para procederem à substituição dessa cablagem e, a partir daí, porque considerou o caso resolvido, passou para outras intervenções, não mais acompanhando o que se passou com o veículo. Mais esclareceu que essa cablagem não existia no armazém central da D…, em …, e que normalmente levaria 3 a 5 dias úteis a vir de França e que a sua substituição no veículo não demora mais que 3 a 5 horas. Esclareceu ainda que quem faz a encomenda das peças é a oficina reparadora e que a reparação do veículo fica a cargo da D…, não suportando o cliente qualquer encargo, e só entregariam o carro quando tivessem a certeza que estava reparado e operacional a 100%.
A instância do senhor mandatário da Autora reafirmou que deu a ordem de reparação, com substituição da cablagem, em 6 de agosto, e a partir daí passou para a resolução de outros problemas em outras viaturas. Durante o período que acompanhou essa situação as comunicações que fazia era com a Reparadora em Lamego (I…).
E a verdade é que não se vê razão para não considerar como provado que não se considere provado que a “ordem referida em 26 foi dada em 6.8.2013”, como reclama a recorrente, provado que ficou que “ a segunda Ré ordenou a completa substituição da cablagem” e tendo em conta o depoimento supra citado, cuja testemunha revelou conhecimento direto dessa matéria, sendo ela que deu essa ordem, depondo com total isenção e imparcialidade, não sendo infirmado por qualquer outro meio probatório.
Assim, decide-se alterar a matéria de facto, passando o n.º 26 a ter a seguinte redação:
26 – “Na sequência do referido em 25, a segunda Ré ordenou, em 6 de agosto de 2013, a completa substituição da cablagem”. 1.3.Alíneas h), i) e j).
No que respeita a estes pontos da matéria de facto, a recorrente louva-se nos depoimentos das testemunhas F…, G… e H…, bem como o documento de fls. 160, pois que se a 2ª R. procedeu à substituição no ..-NH-.. de várias peças após 4.7.2013, na tentativa de encontrar a causa da avaria e a solução, como a substituição da Centralina, caixa de borboleta e válvula EGR e ordenou a completa substituição da cablagem, nenhuma razão havia para que a peça não fosse substituída no veículo da A., até porque tal operação não implicava custos para esta, só não o foi porque a Autor o proibiu expressamente.
Ora, ouvido o depoimento da testemunha F…, funcionário da I…, declarou ser o “porta-voz” da oficina, pois toda a informação passa por ele, que o veículo deu entrada nas instalações da I… em 4/7/2013, foi diagnosticado pelo mecânico M…, sendo que a situação foi sempre acompanhada pela Plataforma Técnica da D…, e o senhor J… irá sempre sendo informado da situação do carro e o que iam fazendo para solucionar a avaria. Depois foi sugerido pela D… para substituírem a cablagem do motor, facto que transmitiu ao senhor J…, e afirmou :“Tenho a certeza, porque a determinada a altura e como se estava a prolongar, lembro-me que disse olhe, vamos encomendar a cablagem do motor para substituir no seu carro e que a D… tinha mandado substituir a cablagem, tinha autorizado a substituição da cablagem”.
Mais disse que a cablagem foi encomendada no início de agosto e chegou entre 5 a 10 dias depois, pois não havia essa peça em Portugal. No dia em chegou a cablagem telefonou ao senhor J… e disse-lhe que “ a cablagem já tinha chegado e que íamos substituir a cablagem. Aliás, liguei a dizer que já tinha chegado a cablagem... e fui surpreendido por uma resposta dele que foi: ” foi se me está a ligar para eu dar autorização para substituir a cablagem, não, não autorizo”.
Perante esta recusa, informou a D…, através do senhor G…, que o cliente não autorizava a substituição e esta disse-lhe que “o cliente é que é o dono do carro”. Desde essa altura não mexeram mais no carro, o qual se encontra ainda nas instalações da I….
A testemunha G…, funcionário da D…, declarou ser o responsável por estabelecer a relação entre a D… e os concessionários ou agentes, no caso a I…. Disse que salvo erro, no dia 12 ou 13 de Agosto a peça, ou seja, a cablagem para a viatura … tinha chegado e foi dado a conhecer ao cliente e que iam montá-la de seguida, mas o Cliente recusou dizendo, “epá, se me estão a telefonar para me perguntar se é para substituir a cablagem eu não dou autorização”. A partir desta altura “ ficámos neste impasse em que o SRC, ou seja, o serviço de relação cliente no dia vinte e tal tenta ligar ao cliente e depois entra em contacto com o cliente e o cliente diz-nos claramente que iria entrar em litígio para com a D… e com a C… e foi a partir dessa altura que pediram de volta a viatura de substituição.
Esclareceu ainda que foi o senhor F…, da I…, que lhe telefonou, e que lhe disse que a cablagem tinha chegado e que deu a conhecer ao cliente o que se estava a passar, ou seja, que a peça chegou e que iam proceder à respetiva substituição, mas o cliente ao receber a chamada disse,” epá, se vocês me estão a ligar para eu dar autorização para substituir a cablagem, não, não dou. “Foi tal e qual” - disse.
A testemunha H…, funcionária da D…, exercendo as funções de consultora de relação com cliente, disse que houve um incidente com a viatura do Sr. J…, que esteve a ser acompanhada pelos serviços técnicos da D… Portugal, e em determinada altura o processo foi parar às suas mãos, como consultora, para fazer o acompanhamento, porque receberam a informação da I… que o cliente não dava autorização para proceder à intervenção na viatura, a fim de falar com o cliente e tentar perceber por que razão estava a acontecer essa situação.
Disse que no “dia em que eu comecei a fazer os telefonemas, que foi em 16 de Agosto de 2013, não consegui, tentei vários dias e não consegui falar com o senhor por telefone. No dia 20, apesar de não conseguirmos contactar o senhor, enviámos-lhe um e-mail a dizer que não conseguíamos falar com o senhor, mas que disponibilizávamos os nossos serviços, tanto os nossos serviços como do nosso agente, em quem depositávamos total confiança, para acompanhar a situação”.
Após várias tentativas de contacto e após e-mail que enviou em 20 de agosto de 2013, conseguiu finalmente falar com o Sr. N…, no dia 27 de Agosto, e que este se demonstrou “ um pouco exaltado, nada agradado com a situação, tentei explicar-lhe que por vezes não é fácil o diagnóstico, estávamos convictos que tínhamos encontrado a solução para o problema, e pedir-lhe para que desse autorização para proceder à intervenção. O Sr. N… mostrou-se intransigente e muito exaltado, dizendo que iria para contencioso”.
E questionada sobre o teor dessa conversa respondeu:”Eu recordo-me bastante bem porque foi a primeira vez que alguém falou assim comigo, o Sr. N… mencionou que os serviços técnicos da D… em Portugal e em França assim como os seus consultores são pessoas ignorantes e analfabetas, e que julgam que estão a falar para Angola, fiquei um pouco chocada”.
Na sequência deste depoimento, e a solicitação do tribunal, foi junto, em 25 de fevereiro de 2015, o e-mail enviado a 20 de agosto, pela testemunha, e que consta de fls. 222 (processo digital).
Nesse e-mail consta: “Bom dia Sr. N…, No seguimento da sua mensagem relativa ao RENAULT …, matrícula ..-NH-.., contactámos a I… que nos informou que não foi dada a ordem de reparação da viatura. Dada a impossibilidade de o contactar telefonicamente, tanto a D… Portugal, como a I…, estão à sua disposição para dar seguimento à situação. Sem outro assunto de momento apresentamos os nossos melhores cumprimentos”.
Na decisão recorrida considerou-se que a prova desses factos produzida pelas Rés foi negada, de forma veemente, pelas testemunhas arroladas pela Autora, “mormente N…, e pelo legal representante da mesma, sendo certo que, por exemplo quanto à al. h), inexiste qualquer documento nesse sentido emitido pela Autora ou junto pelas Rés, tendo a prova testemunhal produzida por estas sido pouco clara ou convincente; na verdade, é pouco provável que a Autora tenha proibido qualquer intervenção, tanto mais que não fora instada a pronunciar-se sobre as anteriores, referidas nos pontos 23 a 33, nem tal pronúncia fora entendida como essencial pelas Rés…” Note-se, ainda, que F… logo referiu não ser mecânico nem técnico, tendo-se limitado a dizer o que foi feito na oficina onde trabalha, o que sucedeu com a ajuda da Plataforma Técnica, onde eram trocadas informações e procedimentos (sendo certo que nenhum documento demonstrou tais informações e procedimentos, ou as datas em que os mesmos foram veiculados). De todo o modo, esta testemunha disse que a dado passo foram feitos ensaios na parte elétrica e descobriu-se ser necessário substituir a cablagem, do que informou “o Sr. J…”, que não “me disse para não encomendar a peça”; só quando a peça chegou e lhe voltou a ligar ele disse de imediato “Se me está a ligar para dar autorização para substituir a cablagem digo-lhe já que não, não autorizo”. Não soube a testemunha explicar a que propósito surgiu esta afirmação nem a mesma se mostra conforme com as regras da experiência comum e da normalidade; na verdade, não é minimamente credível que alguém, na situação da Autora, que até ao momento não havia sido confrontada com a necessidade de autorizar o que quer que seja, sem que algo lhe tenha sido pedido nesse sentido, por sua iniciativa e como primeira afirmação após um telefonema da oficina, logo diga que “não autoriza” a intervenção; porquê? Porque é que nunca antes tendo sido instada a autorizar o que quer que seja e no telefonema também não o tenha sido, a Autora começaria por, estabelecida a ligação telefónica, negar uma autorização que não lhe fora pedida?! Isto não faz sentido e as Rés (ou as suas testemunhas) não conseguiram explicar como surgiu esta negação de autorização, apenas a afirmaram na contestação e através das duas testemunhas em apreço, ainda que de forma que não se considerou credível, nos termos acabados de analisar e salientar. Não basta, entende-se, para se considerar provado um facto, que uma, duas, três, quatro ou mais testemunhas o afirmem; é preciso que as testemunhas sejam nessa matéria credíveis, o que não ocorreu nesta situação. F… e H… limitaram-se a afirmar estes factos, que não merecem a adesão das regras da experiência comum e da normalidade, sem por outros meios de prova os demonstrarem; e tratando-se de um tema tão sensível nesta ação e na situação que opôs previamente a Autora às Rés, impõe-se uma exigência maior ao nível da prova do mesmo, o que, insiste-se, não lograram as Rés produzir. Por isso que, apesar das afirmações destas duas testemunhas, nunca situadas sequer no tempo, nomeadamente por referência à carta enviada pela Autora e referida no ponto 14 dos factos provados (ou à ordem de reparação efetuada pela segunda Ré, alegadamente em 6.8.2013), não foi o facto referido em h) dos factos considerados não provados considerado provado”.
Como é sabido, não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do art.º 607.º/5, do C. P. Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.
Ora, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “prudente convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova[1].
No caso concreto, e quanto os mencionados pontos da matéria de facto, aceita-se perfeitamente a convicção formulada pelas 1.ª instância, pelas razões apontadas na supra fundamentação.
Na realidade, apenas a testemunha F… afirmou essa factualidade, sendo que as restantes duas testemunhas não revelaram conhecimento direto obre a mesma, afirmando o que lhes foi transmitido por F…. Depois, não faz sentido que a I… não procedesse à substituição da cablagem por falta de autorização ou não consentimento da Autora, já que o veículo beneficia do período de garantia, competindo-lhe resolver a avaria e entregar o veículo ao seu proprietário em perfeitas condições de funcionamento, sendo totalmente irrelevante a falta de consentimento da Autora para esse efeito, a menos que esta levantasse o veículo da oficina, impedindo a sua reparação. Tanto assim que, como vem provado, e foi igualmente relatado por essas testemunhas, para as sucessivas substituições de peças esse consentimento não foi relevante, nem solicitado.
Ademais, não faria sentido a Autora recusar expressamente a substituição da cablagem, resolvendo assim a avaria detetada no veículo, quando em 19 de setembro de 2013 enviou à 2.ª Ré uma carta, concedendo 5 dias para entregar a viatura em perfeito estado de funcionamento, prazo que seria suficiente para a substituição da cablagem, pois que como referiu a testemunhas E…, 3 a 5 horas seriam suficientes para efetuar esse trabalho. Na verdade, refere a Autora nessa carta, nomeadamente:
Atenta a delonga na reparação da avaria e o facto de se tratar de veículo afeto ao exercício da N/ actividade empresarial, não podemos eternizar a privação do seu uso e fruição.
Assim, resta-nos comunicar que fixamos em 5 dias úteis, contados a partir da recepção da presente, o prazo para V.Exas nos entregaram a viatura em perfeito estado de funcionamento, data a partir da qual a ocorrerá a N/perda de interesse, com todas as legais consequências.
Aproveitámos ainda a oportunidade para informar V. Exas. que nos reservamos o direito de exigir judicialmente todos os direitos que nos assistem, mormente, à anulação do contrato e à indemnização por todos os danos emergentes e lucros cessantes inerentes à V/ conduta relapsa.
Ora, se a Autora recusasse a substituição da cablagem que sentido faria conceder à 2.ª Ré, nessa missiva, o prazo de cinco dias pra lhe entregarem o veículo em perfeito estado de funcionamento? E sendo certo que esse equipamento estava nas instalações da I… desde meados de agosto de 2013.
Assim, há que respeitar a livre convicção formulada pela 1.ª instância, tendo em conta os depoimentos referidos, com base nos princípios da oralidade e imediação, não se vislumbrando qualquer violação das regras da experiência, da ciência e da lógica, impondo-se, havendo legítimas dúvidas sobre a veracidade dessa matéria de facto, lançar mão do disposto no art.º 414.º do C. P. Civil. “A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.
Improcede, pois, a pretendida alteração da matéria de facto.
***
2)Da matéria de facto.
Assim, é de considerar a seguinte factualidade:
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à importação e exportação de máquinas industriais, representações e serviços de assistência técnica.
2. Para o exercício da atividade referida em 1, a Autora necessita de uma viatura automóvel apta a garantir as deslocações de natureza comercial e, bem assim, a entrega e recolha de máquinas e acessórios e ainda a prestação de assistência técnica aos equipamentos dos seus clientes.
3. Para tais utilidades, a Autora adquiriu à primeira Ré, no dia 12.11.2012, pelo preço de €32.170,00, um veículo automóvel, ligeiro, de passageiros, da marca RENAULT, modelo …, com a matrícula ..-NH-.., em estado de novo.
4. O veículo adquirido pela Autora, referido em 3, encontra-se abrangido pela garantia do construtor, enformada pelo documento n.º 10 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
5. A garantia referida em 4 é válida para o período de 36 meses, contados desde 13.11.2012, ou até aos 150.000 km percorridos pela viatura, acrescendo que durante os primeiros 24 meses tal limite de quilometragem não é aplicável.
6. No dia 4.7.2013 circulava a viatura referida em 3 ao serviço da Autora, em via pública do concelho de Lamego, quando o respetivo motor deixou de funcionar e a mesma se imobilizou.
7. A Autora contactou de imediato o serviço de assistência em viagem da 2ª Ré, a qual determinou, ainda nesse dia, o reboque da viatura para o concessionário da rede “D…” mais próximo, em concreto, a oficina da “I…”, para ali ser reparada ao abrigo da garantia contratual do fabricante.
8. Desde então, a referida viatura foi objeto de múltiplas intervenções pelo aludido concessionário da segunda Ré, com vista à sua reparação.
9. Em 22.7.2013, a Autora endereçou a D… PT um e-mail com o teor do documento n.º 3 junto com a petição inicial, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
10. Em 2.8.2013, a Autora enviou um e-mail com o teor do documento n.º 4 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, através do e-mail contact.client@D...t.com, disponível no website internacional da marca, com conhecimento a P…@C....pt, F…@C….pt.
11. No mail referido em 10, a Autora denunciou o seu desagrado com o facto da viatura ainda não estar reparada e solicitou a substituição desta por outra igual ou a devolução do preço pago.
12. A primeira Ré solicitou à Autora a restituição do veículo de substituição que lhe havia facultado.
13. Na sequência do referido em 12, a Autora devolveu o veículo de substituição em 9.9.2013, não lhe tendo sido entregue nenhum outro.
14. Em 20.9.2013, a Autora enviou a cada uma das Rés uma carta com o teor do documento n.º 8 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, interpelando-as para, no prazo de cinco dias úteis contados da respetiva receção, lhe entregarem a viatura referida em 3, em perfeito estado de funcionamento, “sob pena de perda de interesse, com todas as legais consequências”.
15. Transcorrido o prazo referido em 14, a viatura referida em 3 não foi restituída à Autora, em perfeito estado de funcionamento.
16. Por carta datada de 2.10.2013, a primeira Ré remeteu à Autora uma carta com o teor do documento n.º 9 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
17. Na carta referida em 16, a primeira Ré referiu, além do mais, que “…contactamos a D… Portugal, a qual nos informou que a viatura necessitará de uma intervenção de fundo confirmando a inteira disponibilidade para a imediata reparação da mesma, bastando que, para tal, dê o seu assentimento. Naturalmente que, encontrando-se a viatura ainda em período de garantia essa reparação não importará qualquer custo para V. Exas…”.
18. Entre 8.7.2013 e 26.9.2013, a Autora contratou serviços de transporte e entregas com a O… Portugal, Lda., para acorrer a necessidades da sua atividade comercial, tendo pago a quantia global de €212,44, conforme discriminado nos documentos 12 a 14 juntos com a petição inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
19. Entre 6.11.2013 e 30.12.2014, a Autora contratou serviços de transporte e entregas com a O… Portugal, Lda., para acorrer a necessidades da sua atividade comercial, tendo pago a quantia global de €1.033,92, conforme discriminado nos documentos 1 a 13 juntos de fls. 137 a 149, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
20. A situação descrita de 6 a 19 causa transtornos e perturbação na gestão da atividade da Autora.
21. A segunda Ré enviou à Autora uma carta datada de 14.10.2013, com o teor do documento n.º 1 junto com a contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos.
22. A Autora não respondeu às cartas referidas em 16 e em 21.
23. A avaria que se detetou no veículo referido em 3, nos termos mencionados em 6, foi difícil de encontrar e descobrir.
24. Em toda a rede da D… não havia registo de qualquer avaria semelhante.
25. Tendo-se apurado que a avaria se devia a um problema de conectividade da cablagem, percebeu-se que a mesma se resolvia com a sua substituição.
26. Na sequência do referido em 25, a segunda Ré ordenou, em 6 de agosto de 2013, a completa substituição da cablagem.
27. Para chegar à conclusão referida em 25, foi necessário ao reparador pedir ajuda e assistência aos serviços centrais da D… em Portugal e em França.
28. Só com a ajuda e assistência referida em 27 foi possível chegar à conclusão referida em 25.
29. Antes de se chegar à conclusão referida em 25, procedeu-se à substituição de outras peças, na tentativa de encontrar a causa da avaria e a sua solução.
30. Para o efeito houve necessidade de encomendar a França a Centralina, dado tratar-se de uma peça não existente em stock por não ser de avaria frequente, demandando a sua chegada alguns dias.
31. Substituída a Centralina, verificou-se a necessidade de substituição da caixa de borboleta e da válvula EGR.
32. O que foi efetuado.
33. A Autora não reclamou do veículo de substituição referido em 12.
***
3. O Direito.
3. 1. Vejamos agora a questão de fundo e que consiste em saber se os factos apurados permitem, ou não, ao Autor, o direito à resolução do contrato de compra e venda do automóvel.
De acordo com o art.º 874.º e 879.º do C. Civil, o contrato de compra e venda é aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, e tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço.
“A compra e venda é um contrato pelo qual se transmite uma coisa ou um direito contra o recebimento de uma quantia em dinheiro (preço). O resultado final do negócio consistirá na aquisição por parte do comprador do direito de propriedade sobre o bem vendido, à qual acrescerá como efeito subordinado a aquisição da posse, bem como a aquisição por parte do vendedor do direito de propriedade sobre determinadas espécies monetárias” – Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, Almedina, 4.ª edição. Pag. 19.
Impõe o art.º 882.º/1 do C. Civil que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrar ao tempo da venda, o que implica para o comprador a obrigação de a rececionar ou levantar no lugar e no momento devidos.
O contrato de compra e venda é um contrato primordialmente não formal, pois não está, em regra, sujeito a forma especial, salvo nos casos expressamente previstos na lei (art.º 219.º do C. C).
Por sua vez, estatui o art. 913º do Código Civil: 1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes. 2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.
A este propósito comentam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, pág. 205:
“...O artigo 913º cria um regime especial cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica [...] para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas: a) Vício que desvalorize a coisa; b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina. Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afetadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos. Como disposição interpretativa, manda o nº2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria [...]”. A venda da coisa pode considerar-se venda defeituosa quando, numa perspetiva de “funcionalidade”, contém: “Vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina.”
Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº2)” – cfr. “Compra e Venda de Coisas Defeituosas - Conformidade e Segurança”, de Calvão da Silva, pág. 41.
A coisa será defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado.
O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado.
No mesmo sentido escreve Luís Menezes Leitão, ob.cit., pág. 120, “(… A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual. Quanto ao primeiro pressuposto, a lei faz incluir assim no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. Apesar de a distinção entre vícios e falta de qualidades não se apresentar tarefa fácil, parece que se poderá sustentar que a expressão "vícios", tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto que "a falta de qualidades", embora não implicando a valoração negativa da coisa, a coloca em desconformidade com o contrato. Em relação ao segundo pressuposto, para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas toma-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor e a sua inaptidão para o fim a que é destinada. A primeira situação refere-se aos vícios e a segunda à falta de qualidades, enquanto que a terceira abrange estas duas situações.”
Assim, flui da conjugação do disposto nos art.ºs 913.º, nº1, a 915.º do C. Civil, que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação da coisa; de anulação do contrato, do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo.
Como ensina Pedro Romano Martinez, in “Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos”, pág., 135 e 136, Almedina, 2.ª Edição, “ (… O regime do cumprimento defeituoso, estabelecido nos arts. 913.º e segs. do Código Civil, vale tanto no caso de ser prestada a coisa devida, mas esta se apresentar com um defeito, como também para as hipóteses em que foi prestada coisa diversa da devida. E, sustenta: “As consequências da compra e venda de coisas defeituosas determinam-se atentos três aspetos: em primeiro lugar, na medida em que se trata de um cumprimento defeituoso, encontram aplicação as regras gerais da responsabilidade contratual (arts. 798.º segs. Código Civil); segundo, no art. 913.º, nº1, do Código Civil faz-se uma remissão para a secção anterior…Nos termos gerais, incumbe ao comprador a prova do defeito (art. 342º, nº l Código Civil) e presume-se a culpa do vendedor, se a coisa entregue padecer de defeito (art. 799.º, nºl, Código Civil)”.
Mas, de acordo o disposto no art.º 916.º do C. Civil a responsabilidade do vendedor pela venda de coisa defeituosa depende daprévia denúncia do vício ou falta de qualidade da coisa pelo comprador,exceto se aquele tiver atuado com dolo, denúncia a efetuar até 30 dias depois de conhecido o vício e dentro de seis meses após a entrega da coisa.
Como sublinha Pedro Romano Martinez, ob. cit. pág. 143, “ a denúncia tem de ser feita nos seis meses posteriores à entrega da coisa. Assim, o comprador tem seis meses a contar da entrega da coisa para descobrir o defeito; depois de ter descoberto o defeito, o adquirente tem trinta dias para o comunicar ao vendedor. Se o defeito for detetado ao fim de sete meses após a entrega já nada poderá fazer”( nosso sublinhado).
Assim, e em primeiro lugar, os defeitos têm de se verificar durante o prazo de garantia de 6 meses após a sua entrega; em segundo lugar, têm de ser denunciados dentro do prazo de 30 dias após o seu conhecimento.
Estão, por isso, estabelecidos prazos de caducidade para a denúncia dos defeitos.
Como sublinha Pedro Romano Martins, ob. citada, a pág. 493, “não foram estabelecidos prazos de prescrição, mas de caducidade, pelo que não estão sujeitos à interrupção, nem à suspensão (art.º 328.º) e só poderão ser impedidos (art.º 331.º CC)”.
E bem se escreveu no Ac. S.T.J., de 1998/11/25, in B.M.J., 481º-430, “o impedimento da caducidade, não tem como efeito o início de novo prazo, mas o seu afastamento definitivo.
Com efeito, decorre expressamente do art.º 328.º que o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine.
E o art.º 331.º, n.º1 estatui que só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do ato a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.
Daí que a caducidade possa impedir o exercício do direito, mas nunca interrompe ou suspende o prazo respetivo.
Mais determina o n.º2 do art.º 331.º, que quando se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido.
“O reconhecimento impeditivo da caducidade, ao contrário do reconhecimento que interrompe a prescrição, “não tem como efeito abrir-se um novo prazo de caducidade: reconhecido o direito, a caducidade fica definitivamente impedida” - Vaz Serra, “Prescrição e caducidade”, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, C. C. Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 296).
3.2. Mas, para além do regime codificado no C. Civil, importa ainda ter em consideração outras disposições legais que visam proteger o consumidor e que lhe confere um regime mais favorável e, por isso, prevalece sobre as demais disposições.
Na verdade, o adquirente de coisa defeituosa beneficia ainda da proteção conferida pela Lei de Defesa do Consumidor (LDC, aprovada pelo Dec. Lei n.º 24/96, de 31/7, alterada pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril e na sua versão anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2014, de 28/7), bem como do regime de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, instituído pelo Dec. Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, alterado e republicado pelo Dec. Lei n.º 84/2008, de 21 de maio.
De acordo como o art.º 2/1 da LDC, “ Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.”
O Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, aplica-se apenas às pessoas que exerçam com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, e cujo fornecimento de bens ou serviços ocorra nesse âmbito e sejam destinados a uso não profissional pelo adquirente.
Com efeito, entende-se por “Consumidor” “aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho” – Alínea a) do art.º 1.º-B, do Decreto-Lei 67/2003.
3.3. No caso concreto, está provado que a Autora é uma sociedade comercial que se dedica à importação e exportação de máquinas industriais, representações e serviços de assistência técnica e, para o exercício desta atividade necessita de uma viatura automóvel apta a garantir as deslocações de natureza comercial e, bem assim, a entrega e recolha de máquinas e acessórios e ainda a prestação de assistência técnica aos equipamentos dos seus clientes.
Daqui decorre que a Autora não é tida por “Consumidor”, visto que adquiriu o veículo automóvel para o exercício da sua atividade comercial, e não para uso não profissional.
Nesse sentido, concorda-se com o entendimento seguido pela 1.ª instância de que a autora não é um consumidor, sendo um comerciante, pelo que à compra e venda do veículo é aplicável exclusivamente o regime previsto para a venda de bens defeituosos no Código Civil - artigos 916.º e 917.º - , que prevê prazos de caducidade do direito de acção mais curtos, designadamente que esse direito caduca seis meses após a entrega da coisa.
A apelada invoca que dos factos provados em 1) e 2) e do depoimento do legal representante da Apelada e da testemunha L…, ressalta que a douta sentença recorrida deveria ter dado por assente que “A Autora é uma empresa de cariz familiar que não possui conhecimentos específicos sobre veículos automóveis”.
Ora, para além de representar um facto conclusivo, e não facto concreto, real e objetivo, que impede a sua inclusão nos factos assentes, não se vê qual a sua relevância para esse efeito, ou seja, a conclusão de que se trata de um consumidor, de modo a beneficiar do aludido regime jurídico.
Com efeito, não é a natureza da Autora que confere esse direito, mas o facto de a aquisição do bem ou serviço se destinar a uso não profissional, isto é, a finalidade concreta dessa aquisição.
3.4. Assim, está provado que o contrato de compra e venda do veículo foi celebrado em 12/11/2013, entregue nessa data, e no dia 4/7/2013, quando circulava ao serviço da Autora, em via pública do concelho de Lamego, o respetivo motor deixou de funcionar e a, tendo-se imobilizado, pelo que a Autora contactou de imediato o serviço de assistência em viagem da 2ª Ré, a qual determinou, ainda nesse dia, o reboque da viatura para o concessionário da rede “D…” mais próximo, em concreto, a oficina da “I…”, para ali ser reparada ao abrigo da garantia contratual do fabricante.
Donde, concluir-se que a denúncia do vício ou falta de qualidade do veículo ter sido conhecido e efetuado após os seis meses, subsequentes à sua entrega pelo vendedor, mais concretamente quase oito meses depois, pelo que se mostra verificada a caducidade do exercício do direito à anulação ou resolução do contrato celebrado com a Autora.
Não beneficiando a Autora do regime alargado previsto na LDC ou contemplado no Decreto-Lei 67/2003, pelas razões apontadas no ponto anterior, urge concluir pela caducidade do direito invocado pela Autora, ou seja, tem razão a recorrente.
3.4. Conclusão que não é afastada pelo facto da existência do prazo de garantia, como se tentará demonstrar.
Com efeito, o veículo adquirido pela Autora encontra-se abrangido pela garantia do construtor, enformada pelo documento n.º 10 junto com a petição inicial, válida para o período de 36 meses, contados desde 13.11.2012, ou até aos 150.000 km percorridos pela viatura, acrescendo que durante os primeiros 24 meses tal limite de quilometragem não é aplicável.
Reza o art.º 921.º do C. Civil:
“1. Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador”. 2. No silêncio do contrato, o prazo da garantia expira seis meses após a entrega da coisa, se os usos não estabelecerem prazo maior. 3. O defeito de funcionamento deve ser denunciado ao vendedor dentro do prazo da garantia e, salvo estipulação em contrário, até trinta dias depois de conhecido. 4. A ação caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efetuada”.
A respeito do funcionamento da garantia cita-se o que se escreveu no Acórdão do STJ de 6 de Setembro de 2011, proferido no processo 4757/05.4TVLSB.L1.S1 (ALVES VELHO): «Mediante a concessão da “garantia” o vendedor assegura, pelo período da sua duração, o bom funcionamento da coisa, assumindo a responsabilidade pela sanação das avarias, anomalias ou quaisquer deficiências de funcionamento verificadas em circunstâncias de normal utilização do bem. Como, nestes casos, o vendedor assume a “garantia de um resultado” bastará ao comprador provar o mau funcionamento durante o período de duração da mesma, sem necessidade de identificar a respetiva causa ou demonstrar a respetiva existência no momento da entrega, cabendo ao vendedor que pretenda subtrair-se à responsabilidade (obrigação de reparação, troca, indemnização) opor-lhe e provar que a concreta causa de mau funcionamento é posterior à entrega da coisa (afastando a presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza a garantia de bom estado e funcionamento) e imputável a ato do comprador, de terceiro ou devida a caso fortuito (cf. CALVÃO DA SILVA, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 4ª ed., 65; Ac. STJ, de 03/4/2003 – proc. 03B809)»[2].
Todavia, esta garantia pese embora esteja diretamente relacionada com o contrato de compra e venda, a verdade é que a Recorrente não teve qualquer intervenção na concessão da garantia, resultando a sua vinculação exclusivamente ao contrato de compra e venda e não da garantia citada.
Citando Luis Manuel Teles de Menezes de Leitão, “Direito das Obrigações”, Vol. III, Contratos em Especial, pág. 1307131, dado que a garantia “se refere apenas ao vendedor, o art.º 921.º não abrange os casos em que a garantia é prestada pelo fabricante, situação que é qualificada por alguns autores como promessa ao público, e por outros como contrato unilateral de garantia, mas que, em qualquer caso institui uma relação direta entre produtor e consumidor, à qual o vendedor permanece estranho e que não exclui nem limita as garantias por ele prestadas” (nosso sublinhado).
A garantia de bom funcionamento refere-se apenas à reparação ou substituição da coisa, independentemente de culpa do vendedor ou do produtor, mas não à anulação do contrato ou redução do preço, nem indemnização (ibidem).
No caso concreto, a recorrente/vendedora é alheia à garantia de funcionamento prestada pela marca “D...”, na qualidade de produtor do veículo automóvel.
Por isso, apenas a 2.ª Ré poderá ser responsabilizada no âmbito da garantia de funcionamento prestada.
Responsabilidade atinente á reparação, ou substituição caso se mostre necessária, já não a resolução do contrato.
3.5. Mas um outro argumento, para além da caducidade do exercício do direito, sempre conduziria à improcedência da ação.
É que, como se deixou dito, decorre da conjugação do disposto nos art.ºs 913.º, nº1, a 915.º do C. Civil, que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor, pela orem seguinte: a reparação da coisa; a sua substituição caso se revele necessário; a redução do preço; a anulação do contrato e direito à indemnização do interesse contratual negativo.
E tendo a Autora colocado o veículo em oficina autorizada da 2.ª Ré para a sua reparação, sem ter demonstrado que esta se recusou a fazê-lo, não pode, sem mais, pedir a resolução do contrato, por incumprimento.
Com efeito, como se decidiu no Acórdão do S. T. J., de 17/12/2015, (MARIA DA GRAÇA TRIGO), disponível em www.dgsi.pt, em caso com idênticos contornos:
“A colocação de um veículo na oficina ou oficinas autorizadas da rede da marca do automóvel constitui um facto concludente que permite deduzir a vontade de exigir a reparação dos defeitos “sem encargos”, faculdade que é atribuída pelo art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 67/2003, em alternativa à possibilidade de exigir a substituição do bem, ou a redução do preço, ou a resolução do contrato. Tendo a autora optado pelo direito à reparação do veículo automóvel, não goza mais do direito a invocar tais defeitos ou a falta de conformidade do bem como fundamento para exigir a substituição do automóvel, qualquer que seja o momento que se considere”.
E não se argumente com o facto provado de que em 20.9.2013, a Autora enviou a cada uma das Rés uma carta, interpelando-as para, no prazo de cinco dias úteis contados da respetiva receção, lhe entregarem a viatura em perfeito estado de funcionamento, “sob pena de perda de interesse, com todas as legais consequências”, sendo que a 1.ª Ré respondeu, em 2.10.2013, dizendo que “…contactamos a D… Portugal, a qual nos informou que a viatura necessitará de uma intervenção de fundo confirmando a inteira disponibilidade para a imediata reparação da mesma, bastando que, para tal, dê o seu assentimento. Naturalmente que, encontrando-se a viatura ainda em período de garantia essa reparação não importará qualquer custo para V. Exas…”.
Na verdade, a Autora invoca a perda de interesse no veículo, caso este não fosse entregue no prazo de cinco dias, devidamente reparado e em bom estado de funcionamento, para o incumprimento definitivo do contrato e consequente direito à sua resolução.
Ora, a “ perda objetiva do interesse”, ou seja, o fundamento previsto no art.º 808.º/1, 1.ª parte, do C. Civil, pressupõe necessariamente a existência da mora, preceito legal que não abrange o incumprimento definitivo com esse fundamento.
A simples mora do devedor não permite ao credor resolver o contrato, situação permitida apenas para o incumprimento definitivo
Com efeito, decorre do art.º 808.º/1 do C. Civil que se o credor, em consequência de mora do devedor, perder o interesse na prestação; ou se estando o devedor em mora, o credor lhe fixar um prazo razoável para cumprir e, apesar disso, aquele não realizar a prestação em falta, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.
Assim, a mora debitoris poderá converter-se incumprimento definitivo, se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, a apreciar objetivamente – n.º2 do art.º 808.º.
Segundo Galvão Telles, ob. cit. pág. 235, “prestação que não interessa ao credor, em consequência do atraso vale para o direito como prestação tornada impossível. Se o facto é imputável ao devedor, este não incorre em simples mora mas em não cumprimento definitivo (art.º 808.º/1). A perda do interesse na prestação é apreciada objetivamente; não basta que o credor diga, mesmo convictamente, que a prestação já não lhe interessa: há que ver, em face das circunstâncias, se a perda de interesse corresponde à realidade das coisas”.
Sobre esta questão se pronuncia Almeida Costa, ob. cit. pág. 898: “(… Este critério significa que a importância de tal interesse, embora aferida em função da utilidade concreta que a prestação teria para o credor, não se determina de acordo com o seu juízo arbitrário, mas considerando elementos suscetíveis de valoração pelo comum das pessoas. Além disso, exige-se a efetiva perda do interesse do credor e não uma simples diminuição”.
A mesma orientação segue Antunes Varela e Pires de Lima, C. Civil Anotado, Vol. II, 3.ª Edição, pág. 72, referindo que a perda de interesse do credor deve ser apreciada objetivamente, nos termos do n.º2 do art.º 808.º, e que “pretende-se evitar que o devedor fique sujeito aos caprichos daquele ou à perda infundada do interesse na prestação. Atende-se, por conseguinte, ao valor objetivo da prestação, não ao valor da prestação determinado pelo credor, mas à valia da prestação medida (objetivamente) em função do sujeito”.
Assim, não foi invocado qualquer fundamento que possa justificar, em termos objetivos (e não subjetivos), a perda de interesse na viatura automóvel, nem a Rés se encontravam em situação de mora convertida em incumprimento definitivo, já que sempre manifestou a vontade de reparar o veículo, como refere na carta de 2/10/2013, manifestando “disponibilidade para a imediata reparação da mesma, bastando que, para tal, dê o seu assentimento”.
3.6. Resumindo, quer pelo decurso do prazo de caducidade, quer pela inexistência dos pressupostos de resolução do contrato, sempre a ação teria de improceder.
Procede, pois, a apelação da recorrente e improcede o argumento invocado pela recorrida na ampliação.
No que respeita à 2.ª Ré, porque se conformou com a decisão, transitou em julgado a decisão nessa parte, pelo que vedado fica a este tribunal alterá-la.
Vencida no recurso, suportará a apelada as respetivas custas – art.º 527.º/1 do C. P. Civil.
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IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. O Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, aplica-se apenas às pessoas que exerçam com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, e cujo fornecimento de bens ou serviços ocorra nesse âmbito e sejam destinados a uso não profissional pelo adquirente.
2. De acordo o disposto no art.º 916.º do C. Civil a responsabilidade do vendedor pela venda de coisa defeituosa depende da prévia denúncia do vício ou falta de qualidade da coisa pelo comprador, exceto se aquele tiver atuado com dolo, denúncia a efetuar até 30 dias depois de conhecido o vício e dentro de seis meses após a entrega da coisa.
3. A garantia de bom funcionamento refere-se apenas à reparação ou substituição da coisa, independentemente de culpa do vendedor ou do produtor, mas não à anulação do contrato ou redução do preço, nem indemnização.
4. A garantia de bom funcionamento prestada pelo produtor do veículo automóvel, pese embora esteja diretamente relacionada com o contrato de compra e venda, não vincula o vendedor, quando não teve qualquer intervenção na sua concessão, resultando a sua vinculação exclusivamente ao contrato de compra e venda.
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IV. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida na parte que condenou a apelante “C…, S.A.”, absolvendo-a de todos os pedidos, mantendo no mais o aí decidido.
Custas da apelação pela apelada/autora, bem como na 1.ª instância em relação ao pedido deduzido contra a apelante.
Porto, 2016/02/23
Tomé Ramião
Vítor Amaral
Luís Cravo
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[1] Como defende Remédio Marques, Ação Declarativa, à Luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 638 -641, criticando a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto.
[2] No mesmo sentido, aliás pacífico, o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 2 de Março de 2010 proferido no processo 323/05.2TBTBU.C1.S1 (URBANO DIAS).