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CRIME DE DENÚNCIA CALUNIOSA
BEM JURÍDICO
AUTORIDADE
Sumário
I – No crime de denúncia caluniosa (artº 365º2 CP), protege-se quer a realização da justiça quer o bom nome, a honra e consideração do caluniado. II – A autoridade, no caso do crime, é a autoridade pública materialmente competente (o MºPº e OPC,s) a quem compete instaurar e ou levar a cabo o procedimento. III - No ilícito disciplinar, só releva o ilícito no âmbito da administração pública, estadual/central, regional ou local, e tanto a administração directa como a indirecta ou autónoma como as associações públicas. IV – Para os fins do artº 365º CP, irrelevam as faltas disciplinares da competência das empresas publicas ou privadas.
Texto Integral
Rec. n.º 134/13.1SMPRT.P1
Comarca do Porto.
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
No Tribunal Judicial da Comarca do Porto [Instância Local – Secção Criminal – J8] B…, foi condenada pela prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art.º 365 n.º 2 do Código Penal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 5 €, perfazendo o total de 250€. Mais foi condenada a pagar ao demandante a quantia de 300€ a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data desta decisão até pagamento.
Inconformada a arguida interpôs o presente recurso.
Sustenta em síntese que “o tribunal a quo entrou em contradição na apreciação dos factos dados como provados, e na interpretação e aplicação das normas jurídicas que constituem fundamento da decisão, incorrendo nessa medida em error in judicando, de tal forma que seria outra a decisão que se impunha no presente caso”. Que “não praticou qualquer crime, pois a conduta do ofendido, era efectivamente susceptível de processo disciplinar, devendo a arguida ser absolvida das acusações que lhe foram imputadas”.
Admitido o recurso o Ministério Público respondeu concluindo pela manutenção da decisão recorrida.
Neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto foi de parecer que o recurso não merece provimento.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do Código de Processo Penal e após os vistos realizou-se conferência.
Factos provados:
a) O assistente, C…, é motorista da F…, S.A., sita na Avenida…, no Porto, tendo sido admitido no dia … de Dezembro de 1991.
b) No exercício das suas funções de motorista, o assistente conduziu, no dia 13 de Fevereiro de 2013, o autocarro de matrícula ..-..-.., no sentido … – … da Linha …
c) Assim, no dia 13 de Fevereiro de 2013, cerca das 03h07m, a arguida, B…, elaborou e remeteu uma mensagem de correio electrónico, através do seu endereço “B1…@....fr”., para o endereço geral@F....pt, pertencente à F…, S.A., e na qual imputa ao assistente, C…, factos passíveis de integrarem infracções disciplinares.
d) De facto, nessa mensagem de correio electrónico refere:
“Alcoolismo F… … Matrícula. .. .. .., dia 13 de Fevereiro de 2013, no turno da 1h da madrugada, não colaboração do motorista em chamar a PSP. No dia 13 de Fevereiro entraram 5 indivíduos de classe alta no … na baixa eu apanhei o autocarro logo na Av… e sentei-me ao fundo do autocarro. Quando eles entraram eu já lá estava e um deles já vinha com uma grande garrafa de cerveja, que passou ao outro o outro individuo vinha embriagado e pediu ao outro a garrafa e bebeu ali mesmo á minha frente. Eu chamei-o à atenção que isso era crime e que não podia fazê-lo. Saí na paragem …, como o motorista não colaborou em chamar a policia às 1h25 pois o foi o próprio disse para o rapaz fechar a garrafa (quando este entrou), isto dito pelo rapaz …. Cabe a vocês retirarem todas as gravações sonoras e visuais do dia de hoje pois a queixa irá para a frente se eu não obtiver resposta daqui a 3 dias. Por isso relato que o autocarro era o …, matrícula .. .. ... Alerto ainda para tratarem do caso com a máxima sensibilidade, pois se não me engano já não é a primeira vez que este motorista se meteu com a minha sobrinha quando vínhamos das compras do …”.
e) A participação apresentada pela arguida, B…, deu origem ao processo de averiguação interno n.º D……., que correu termos na F…, que findou com a decisão de arquivamento por não terem sido recolhidos indícios de qualquer infracção susceptível de procedimento disciplinar ou de participação criminal.
f) Ao actuar como descrito, elaborando e remetendo a mensagem de correio electrónico para a entidade empregadora do assistente, F…, S.A., relatando factos que envolviam o referido assistente e motorista, a arguida, B…, sabia que lhe imputava a prática de factos que não correspondiam à verdade, originando sobre aquele a suspeita da prática de infracção disciplinar, com intenção que contra o mesmo prosseguisse procedimento disciplinar.
g) Agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, ciente que a sua conduta era punida por lei penal.
h) O assistente teve que prestar declarações no processo de averiguações referido em e).
i) O assistente sentiu desgosto, revolta, frustração e angústia por ter sido visado no processo e averiguações e temeu pelo seu posto de trabalho.
j) O assistente é casado e pai de 5 filhos e sentiu-se ofendido pela alegações de que se “teria metido” com a sobrinha da arguida, alegação que igualmente prejudicou a sua vida familiar.
k) O assistente não conhecia a arguida nem a sua sobrinha.
l) A arguida padece de fibromialgia desde Setembro de 2011
m) Padece ainda de patologia psiquiátrica crónica, sendo acompanhada no Hospital Magalhães Lemos, desde …., embora em interrupções, retomando o acompanhamento com regularidade desde …..
n) Tem atitude colaborante e cumpre a medicação prescrita.
o) Não apresenta deficiência na cognição e gere autonomamente a sua vida dos pontos de vista social, afectivo, familiar e económico, apenas estando incapaz para o exercício de actividade profissional.
p) Foi declarada insolvente por sentença proferida em 27.02.2015.
q) Não tem antecedentes criminais.
r) O ofendido pagou 102€ para se constituir assistente nos autos (fls. 8).
Factos não provados:
Com pertinência ao objecto do processo não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contrário dos constantes no ponto anterior.
A convicção do Tribunal
O Tribunal fundou a sua convicção desde logo na análise do conjunto de documentos juntos aos autos, designadamente a fls. 20 e seguintes (cópia do processo de averiguações que correu termos nos F… e onde se contém o e-mail referido em d) e se constata também o descrito em a) e e)). E-mails da arguida que constam de fls. 33/34, 78 e 84, que são provenientes do mesmo endereço daquele de onde foi enviado o e-mail referido em d), sendo que a fls. 347 a arguida remete outro e-mail informando os autos que a sua sobrinha faleceu, sobrinha que é referida no e-mail de 3 de Fevereiro, o que permitiu formar um juízo de certeza acerca da autoria, pela arguida, do descrito em d).
Tomou depois em conta os documentos de fls. 107, 285, 300, 335 e segs. 412, assim como os atestados de fls. 79, 89, 102, 106, 167, 171, 178, 180, 232, 241, 292, 3129 e 403 para aferir do que consta em l), m), n) e o), sendo que s sentença de insolvência consta, por cópia, a fls. 371.
No demais, tomou-se em conta o relato efectuado pelo assistente, que confirmou ter conduzido o autocarro em causa e disse que nesse trajecto nada de anormal se passou, tendo ocorrido apenas conversas entre passageiros, sendo que a voz que mais se destacava era até a da senhora, que não conhecia, nem a nenhuma sobrinha. Referiu que ela teve atitude algo exibicionista, exigiu-lhe que chamasse a polícia, o que recusou fazer por não ver razão alguma para isso, e ter, também, horários a cumprir. Relatou, de forma convincente, ter-se sentido muito mal com a situação, quer perante a sua entidade patronal e colegas quer perante a família. Também referiu que nos F… já têm havido despedimentos por questões relativas a passageiros, tendo tal sido conformado por D…, outro motorista dos F…, que confirmou que o caso foi falado entre colegas.
E…, padeiro que seguia como passageiro no mesmo autocarro, junto do motorista, confirmou que ali nada de anormal se passou. Havia apenas um grupo no fundo do autocarro, de que a assistente parecia fazer parte, que vinha divertido, em risadas. A dada altura a assistente vem junto do motorista dizer que os outros ou bebiam ou fumavam ou algo semelhante (já não se recordava bem) e que deviam ser postos fora do autocarro, o que o motorista recusou fazer porque não via nada que o justificasse, como a testemunha não via. A assistente disse então que ia tirar a matrícula do autocarro e ainda quis fotografar o motorista. Disse que nada mais se passou, e que assistente esteve sempre junto das outras pessoas, e se dali não saiu foi porque não quis já que o autocarro ia praticamente vazio. A testemunha mostrou-se isenta e segura do que dizia.
G…, a esposa do assistente confirmou que o marido ficou revoltado quando soube do sucedido, tendo receado perder o emprego. Também disse que igualmente se sentiu mal pelas alegações sobre a sobrinha, sendo que o seu marido é um pai de família, com 5 filhos.
A arguida nunca prestou declarações, nem no processo de averiguações nem na audiência, onde não compareceu.
De tudo o descrito dúvidas não restaram ao tribunal de que a arguida agiu pela forma descrita, denunciando junto da entidade patronal do motorista que este compactuava com alcoolismo dentro do autocarro, não agia, não protegia os passageiros e ainda tinha de pouco respeito com outra passageira, sua sobrinha, noutras ocasiões (o que resulta objectivamente do e-mail que enviou), factos que sabia não corresponderem à verdade (como resultou da prova testemunhal e da conclusão final do processo de averiguações), e ainda que com a sua denúncia pretendia que fosse exercida acção disciplinar sobre o descrito motorista (outra conclusão não é possível, face ao teor do e-mail).
Os antecedentes criminais da arguida resultaram da análise do CRC junto aos autos.
O Direito:
Questões a decidir:
1 - Contradição entre a fundamentação;
2 - Qualificação jurídica.
§ 1. Contradição entre a fundamentação;
Discorda a recorrente do facto provado (f) onde se afirma que ao actuar como descrito, elaborando e remetendo a mensagem de correio electrónico para a entidade empregadora do assistente, F…, S.A., relatando factos que envolviam o referido assistente e motorista, a arguida, B…, sabia que lhe imputava a prática de factos que não correspondiam à verdade, originando sobre aquele a suspeita da prática de infracção disciplinar, com intenção que contra o mesmo prosseguisse procedimento disciplinar.
Diz a arguida que nunca falseou os factos ocorridos naquele incidente, ao contrário do assistente, ora Recorrido, que no processo de averiguações o afirma ter vislumbrado um indivíduo com uma garrafa na mão, tendo, inclusivamente, repreendido o mesmo para que fechasse e guardasse a mesma, e, posteriormente, em sede de audiência, refere nada de anormal se ter passado no trajeto, não fazendo qualquer referência ao episódio que havia descrito no supramencionado processo de averiguações interno.
Consentânea com esta afirmação da recorrente a circunstância de a “averiguação” da F… ter findado com a decisão de arquivamento, não porque v.g. não se apurou o denunciado pela arguida, mas porque se entendeu não terem sido recolhidos indícios de infracção, o que é coisa diversa.
A Ex.ma juíza refere na motivação que o ofendido disse que nada de anormal se passou, e que ela [a arguida] exigiu-lhe que chamasse a polícia, o que recusou fazer por não ver razão alguma para isso, e ter, também, horários a cumprir; mais refere a Ex.ma juíza que a testemunha E…, que seguia como passageiro no mesmo autocarro, junto do motorista, disse que a dada altura a assistente vem junto do motorista dizer que os outros ou bebiam ou fumavam ou algo semelhante (já não se recordava bem) e que deviam ser postos fora do autocarro, o que o motorista recusou fazer porque não via nada que o justificasse.
Uma simples leitura da decisão recorrida, concretamente do episódio acabado de relatar com palavras da própria sentença, permite a conclusão segura de que o facto histórico relatado na mensagem de correio electrónico ocorreu: que a arguida chamou a atenção ao motorista da F… para um grupo de pessoas que bebiam cerveja no autocarro, o que, na perspectiva da arguida, não era permitido, pelo que exigiu ao motorista que chamasse a PSP.
Assente que o facto histórico aconteceu, não se descortina fundamento para afirmar que na mensagem de correio electrónico se faz uma falsa imputação [de falta disciplinar], que a arguida sabia que lhe imputava a prática de factos que não correspondiam à verdade, originando sobre aquele a suspeita da prática de infracção disciplinar, com intenção que contra o mesmo prosseguisse procedimento disciplinar.
Assim, há contradição entre os factos dados como provados e a convicção, detectando-se o vício do art.º 410º, n.º2 al. b do Código de Processo Penal, mas a própria sentença fornece elementos seguros para ultrapassar a contradição e decidir esse segmento da matéria de facto, como não provado, por não resultar assente da prova produzida, nem ter apoio nas regras da experiência comum, que [a arguida] sabia que lhe imputava a prática de factos que não correspondiam à verdade, originando sobre aquele a suspeita da prática de infracção disciplinar, com intenção que contra o mesmo prosseguisse procedimento disciplinar, passando a constar dos factos não provados, art.º 426º, n.º1 do Código de Processo Penal.
§ 2. Qualificação jurídica.
São elementos do crime de denúncia caluniosa imputado à arguida:
1) Elementos objectivos típicos:
a) Denunciar ou lançar suspeita da prática de crime [ou falta disciplinar] sobre pessoa determinada;
b) Denúncia perante autoridade ou publicamente;
c) A falsidade da denúncia ou suspeita.
2) Elementos subjectivos especiais:
d) Ter o agente consciência da falsidade da imputação veiculada na denúncia;
e) A intenção de ver instaurado procedimento [disciplinar] contra a pessoa visada na denúncia.
Apurando-se, entre o mais, que «a arguida, B…, elaborou e remeteu uma mensagem de correio electrónico, para o endereço geral@F....pt, pertencente à F…, S.A., e na qual imputa ao assistente, C…, factos passíveis de integrarem infracções disciplinares» conclui-se que essa conduta preenche o requisito acima referido, em 1. a), pois o crime de denúncia caluniosa é um crime de perigo concreto, uma vez que a consumação ocorrerá independentemente quer de a concreta pessoa visada ser por qualquer forma molestada pelas imputações, quer da efectiva instauração de procedimento.
Exige-se depois, 1. b), que a denúncia ou suspeita deve ser feita perante autoridade ou publicamente. No caso a denúncia não foi feita publicamente, pelo que se impõe averiguar se o foi perante autoridade, já que, atenta a estrutura típica, a conduta apenas será punida se a denúncia for feita de modo apto a instaurar procedimento «perante autoridade» e com a intenção de instaurar procedimento. A resposta a esta questão demanda a abordagem de qual o bem jurídico tutelado pela norma.
A querela na jurisprudência e doutrina quanto ao bem jurídico protegido com norma consagrada no artigo 365º do Código do Processo Penal é coetânea do início da vigência do Código Penal de 1982.
Tipo legal protector da boa administração da justiça, para uns (Acórdão STJ de 10 de Maio de 1995, disponível em www.dgsi.jstj.pt/), para outros, protecção individualmente conferida para salvaguarda de imputações maliciosas para terceiros (Costa Andrade, CCCP, Tomo III, 1999, página 522 e ss), ou norma que visa conferir protecção simultânea àqueles dois valores (logo o Acórdão do STJ de 14.12.82, BMJ 332º, 332, protege-se não só o interesse que tem a administração da justiça (…) como o interesse dos acusados contra o prejuízo resultante de acusações maliciosas e Acórdão do STJ de 29 de Março de 2000, disponível em www.dgsi.jstj.pt/).
Sem pretender acrescentar novos argumentos em questão já amplamente debatida, este último parece ser o caminho a seguir. A inserção sistemática do art.º 365º denota que o bem jurídico protegido com a incriminação da denúncia caluniosa é a realização da justiça. E o legislador tem dado provas que a inserção sistemática dos tipos legais tem especial relevo, como aconteceu com os crimes sexuais que em 1982 faziam parte do capítulo relativo aos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade, passando em 1995, DL n.º48/95, de 15 de Março, para o título dos crimes contra as pessoas, onde constituem um capítulo autónomo, sob a epígrafe "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual", abandonando-se a concepção moralista ("sentimentos gerais de moralidade"), em favor da liberdade e autodeterminação sexuais, bens eminentemente pessoais, nas palavras do legislador.
Estamos perante um tipo legal que, simultaneamente, confere protecção a dois tipos de bens jurídicos. Com a proibição protege-se a realização da justiça e do mesmo passo o bom-nome, a honra e consideração do caluniado. Salvaguarda-se, pois, a personalidade moral, dignificando-se a pessoa, valor essencial, com expressa consagração constitucional. Como se concluiu no AFJ n.º 8/2006, DR 1ª Série, 28.11.2006, do ponto de vista da tutela normativa, enquanto tipo de ilícito no nosso quadro jurídico-penal, a denúncia caluniosa assume, pois, uma natureza pluridimensional. A incriminação em presença protege quer a realização da justiça quer o bom-nome, a honra e consideração do caluniado.
A destinatária da mensagem foi a F…, S.A. que é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, Decreto-Lei nº 202/94, de 23 de Julho, cujo objecto principal é a exploração do transporte público rodoviário colectivo de passageiros na Área Metropolitana do Porto (AMP) e acessoriamente a exploração de actividades complementares ou subsidiárias daquele objecto, como se colhe no sítio da empresa: http://www.F....pt/pt/institucional/governo-societario/identificacao-da-empresa/.
A “autoridade” para efeito da norma em análise, no caso de crime, não pode deixar de ser a autoridade pública materialmente competente, o Ministério Público e OPCs, a quem compete instaurar e/ou levar a cabo o procedimento. No que ao ilícito disciplinar respeita – o caso dos autos – só assume relevo típico, o ilícito disciplinar no âmbito da administração pública, estadual/central, regional ou local. E tanto a administração directa como a administração indirecta ou a administração autónoma, como as associações públicas. Assim, se no tipo se incluem as (denúncias de) faltas disciplinares da competência das associações profissionais de natureza pública – as Ordens – e as do âmbito de competência da administração independente como o Provedor de Justiça e os Conselhos Superiores das Magistraturas (Costa Andrade, CCCP, p. 546, § 62 e 63), já estão fora do círculo típico, irrelevando, as faltas disciplinares da competência v.g. de empresas públicas ou privadas. Nestes casos, as denúncias infundadas caem, desde que presentes os respectivos pressupostos de punição, na constelação normativa dos crimes contra a honra, onde deve ser averiguada e apreciada a sua (i)relevância penal.
Sendo a F…, SA, materialmente competente para exercer a acção disciplinar em relação aos seus funcionários, não é autoridade pública para o efeito do previsto no art.º 365º do Código Penal, pelo que a conduta da arguida não é sequer penalmente típica.
Acresce que se exige a falsidade da denúncia ou suspeita, (1. al. c). Estamos perante uma denúncia falsa, típica para o efeito do art.º 365º do Código Penal, quando o agente imputa a uma pessoa determinada, a suspeita da prática de crime, no caso infracção disciplinar, que ela não cometeu, sabendo o denunciante que a pessoa que denunciou realmente não praticou o crime. Isto é, o agente sabe que o visado é inocente da infracção que lhe imputa, mas, mesmo assim, faz a denúncia. Exige-se uma denúncia objectiva e subjectivamente falsa, que esteja em desconformidade com a verdade dos factos e que o denunciante esteja plenamente ciente de tal desconformidade, o que vale dizer da mentira (Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal 2.º vol. 1997, p. 1151, citando Nélson Hungria; Miguez Garcia, Castela Rio, Código Penal, p. 1269).
O Código Penal Suíço, reconhecida fonte do nosso art.º 365, ao dispor no art.º 303º, n.º 1 “Celui qui aura dénoncé à l`autorité, comme auteur d`un crime ou dùn délit, une personne qu´il savait innocente (…) ou na versão alemã wider besseres Wissen, é esclarecedor. O nosso legislador é que no desenho do art.º 365º, dizendo o mesmo, foi menos enfático exigindo a consciência da falsidade da imputação. No caso, como já sobejamente resulta do exposto, a arguida imputou ao ofendido um facto histórico que aconteceu, pelo que não se verifica qualquer falsidade da denúncia.
A rematar, impõe-se dizer que não basta qualquer conduta típica e ilícita para preencher a previsão da denúncia caluniosa. Exige-se, ainda, um dolo específico: além de o agente ter consciência da falsidade da imputação feita na denúncia, exige-se a intenção de ver instaurado procedimento [disciplinar] contra a pessoa visada na denúncia ou suspeita.
Este quadro subjectivo afasta o dolo eventual, ANDRÉ PANCHAUD, et al. Code Penal Suisse, 1982, p. 210. Como resulta da história legislativa do preceito, só é punível a conduta levada a cabo com dolo directo e específico com intenção de que contra a pessoa denunciada se instaure procedimento, (Actas das sessões da comissão revisora do Código Penal, parte especial, 1979, p. 460), o que decididamente também se não verifica.
O que fez a arguida, com mais ou menos zelo não está em questão, foi apenas exercer os seus direitos de cidadania, perante uma conduta de um motorista da F… que lhe pareceu desconforme com as “regras”. A “queixa” da arguida, factualmente fundada, foi analisada e decidida por quem de direito e quando tudo se devia ter considerado encerrado eis que é perseguida criminalmente, sem o mínimo fundamento e até condenada em 1ª instância. Num Estado de Direito e numa sociedade democrática o cidadão que, com razoabilidade, exerce os direitos de cidadania, deve merecer respeito, e não tem que temer que a sua denúncia o faça correr o risco de estar permanentemente com o pé na prisão como diz Costa Andrade [CCCP, Tomo III, p. 520].
Impõe-se, assim, repondo o direito, absolver a arguida.
Decisão:
Concede-se provimento ao recurso, e, em consequência:
a) Altera-se a matéria de facto, passando o segmento da al. f) dos factos provados [relatando factos que envolviam o referido assistente e motorista, a arguida, B…, sabia que lhe imputava a prática de factos que não correspondiam à verdade, originando sobre aquele a suspeita da prática de infracção disciplinar, com intenção que contra o mesmo prosseguisse procedimento disciplinar], para os factos não provados, ficando a al. f) com a seguinte redacção:
f) Ao actuar como descrito, elaborando e remetendo a mensagem de correio electrónico para a entidade empregadora do assistente, F…, S.A., a arguida, B…, relatou factos que envolviam o referido assistente e motorista.
b) Absolve-se a arguida B…, da acusação e do pedido de indemnização.
Custas pelo assistente fixando-se a taxa de justiça no mínimo.
Porto, 24 de Fevereiro de 2016
António Gama
Ernesto Nascimento