CITAÇÃO EM PAÍS ESTRANGEIRO
TRADUÇÃO
Sumário

O direito ordinário português de origem interna não exige na citação por via postal de estrangeiros residentes ou sediados no estrangeiro a tradução para a língua local da nota de citação, da petição inicial e dos documentos que esta acompanhem.

Texto Integral

  1. CAF – ---, L. da demandou, na 2ª Vara Cível de Lisboa, HOKOVIT – PRODUKTE FUR TIERERNAHURUNG, H. U. HOFMANN AG. CH – 4922 BUTZBERG, Suiça, pedindo que a ré seja condenada a pagar à autora, a título de indemnização, com fundamento nos artigos 334º, 406º e 483º CC, a importância no montante global de 19.074.250$00, acrescida de juros vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.

  Alega, para tanto, em síntese, o seguinte:
  A autora é uma empresa que tem por objecto a representação e comercialização de aditivos para a pecuária, aquacultura e alimentação para animais, sendo a ré uma empresa suíça que tem como actividade a produção, comercialização e exportação de produtos aditivos para animais.
  As duas empresas chegaram a um acordo, nos termos discriminados na petição inicial, sendo que, a certa altura, a ré incumpriu o contratualmente estabelecido e retirou à ré, de forma unilateral e contra a sua vontade, a exclusividade da venda, em Portugal, dos seus produtos, causando com esta conduta prejuízos na esfera jurídico – patrimonial da autora.

  Em 3/10/2001, a ré foi citada, na Suíça, através de carta registada com aviso de recepção.
  Em 9/10/2001, a ré solicitou, em língua inglesa, que a petição e os documentos apensos fossem traduzidos em francês ou inglês, pois que não compreendia o seu teor (fls. 60).
  Deferindo tacitamente o requerido, o Exc. mo Juiz ordenou a notificação da autora para juntar tradução da petição inicial, em francês, a fim de se proceder à citação da ré (fls. 61).
  Notificada deste despacho, respondeu a autora, concluindo que não se lhe afigurava «o dever de proceder como o impõe o (..) despacho de fls. 61 dos autos e cujo conteúdo, por não enquadrado em qualquer preceito legal que o fundamente, deve ser revisto e reformado, mantendo-se a já efectuada citação da ré como válida e aproveitando-se todo o tempo decorrido, desde o dia em que tal citação ocorreu até hoje, como tempo, já consumado, do prazo legal para o oferecimento da contestação (fls. 62-64).
  No seguimento, o Exc. mo Juiz ordenou que se notificasse a autora do teor de fls. 60, ou seja, do requerimento da ré atrás referido.
  Veio então a autora solicitar o esclarecimento das dúvidas suscitadas com a prolação de tal despacho, concluindo que tal requerimento nunca deveria ter sido admitido, razão por que requeria se ordenasse o seu desentranhamento, «porquanto, face ao seu teor escrito em língua estrangeira, nada mais sabe fazer senão o que fica requerido, permanecendo, no entanto, a autora na dúvida se o despacho em causa teria em mente tal propósito, pelo que, também por este facto, se requer seja o mesmo esclarecido» (fls. 67-69).
  Aberta conclusão, em 26/11/2001, foi, nessa data, proferido o seguinte despacho:
  “Nos termos do artigo 668, b) e 666º, n.º 3 do CPC, reconhece-se a nulidade do despacho de fls. 61, visto que não está judicialmente fundamentado. Notifique.

*
  A ré foi citada, não apresentou contestação.
Cumpra o disposto no artigo 484º do CPC”

  Notificado deste despacho o ilustre mandatário da autora, foram então apresentadas alegações de direito (fls. 71 a 81).
  De seguida, foi proferido o saneador, (fls. 83-87), tendo-se decidido que este Tribunal era internacionalmente incompetente para apreciar a questão apresentada na petição inicial e, por isso, foi absolvida a ré da instância, sendo certo que tal decisão foi revogada pelo Tribunal da Relação, por considerar o Tribunal competente.

  Foi, então, foi proferido saneador – sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e, consequentemente, foi a ré condenada a pagar à autora a quantia de 40 274,18 €, acrescida de juros vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, à taxa legal.

  Inconformada, apelou a ré, finalizando a alegação com as seguintes conclusões:
  1ª- O problema jurídico que aqui se equaciona centra-se em torno da questão da citação por via postal de residente no estrangeiro.
  2ª- Acto esse de citação que deve ser rodeado de inúmeras cautelas, dado que, através do mesmo, o princípio do contraditório, primordial no âmbito do processo civil, assume relevância prática.
  3ª- Deste modo, estando em causa uma citação por via postal a efectuar no estrangeiro, torna-se necessário, sob pena de não cumprimento dos objectivos pretendidos, através do acto da citação, “que o réu tome conhecimento, em língua para ele inteligível, de que foi citado para contestar a acção contra ele intentada.
  4ª- A respeito de tal citação, manda o artigo 247º CPC atender, em primeiro lugar, ao que estiver estipulado nos tratados e convenções internacionais, devendo, na sua falta, proceder-se à citação por via postal, em carta registada com aviso de recepção.
  5ª- Pelo que é aplicável ao presente caso a Convenção Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro dos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil ou Comercial, concluída em Haia, em 15 de Novembro de 1965, uma vez que a Suíça está vinculada à mesma.
  6ª- Ora, de acordo com tal Convenção, a citação por via postal, sem tradução, que é admitida nos termos do seu artigo 10º, al. a), caso nada tenha sido declarado pelo Estado destinatário, deve constituir uma opção por parte do Estado Requerente, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto.
  7ª- Isto é, tratando-se de réu residente no estrangeiro, e dado a nossa lei processual não dar qualquer preferência à citação por via postal (artigo 247º, n.º 1 CPC), deve observar-se o estipulado nos tratados e convenções internacionais.
  8ª- Sendo certo que, sob o ponto de vista de garantia dos interesses das partes, é preferível a citação através da Autoridade Central do Estado Requerido, abrindo-se a possibilidade de a mesma exigir que o acto seja traduzido na língua oficial do seu país, do que a citação através da via postal desacompanhada da tradução de quaisquer documentos.
  9ª- Isto porque repugna ao nosso sistema jurídico – processual o seguimento de processos, sem que o demandado seja efectivamente citado para se poder defender, onde os riscos de concretas injustiças são muito superiores aos que podem surgir no âmbito de uma contenda dominada pela contraditoriedade.
  10ª- Pelo que, ponderadas as circunstâncias, deveria a autoridade judiciária do Estado Requerente ter optado pela modalidade de citação através da Autoridade Central do Estado Requerido, nomeadamente devido ao facto de, no presente caso, a autora não ter apresentado, desde logo, a respectiva tradução.
  11ª- Todavia, na situação em apreço, a citação foi efectuada por via postal, sem tradução, não obstante serem por demais evidentes os inconvenientes derivados da mesma.
  12ª- É que a aqui recorrente, usando de toda a diligência exigível, manifestou a concreta impossibilidade de conhecer do acto, dado o mesmo estar redigido em língua que lhe era desconhecida, solicitando que a citação fosse acompanhada da tradução da petição inicial, em Inglês ou Francês, por forma a possibilitar uma concreta defesa dos seus interesses.
  13ª- Assim, e uma vez que os contactos em Portugal eram sempre realizados em Francês, não permitindo um conhecimento da nossa língua, deveria o Exc. mo Juiz a quo ter optado pela citação em que o Estado Requerido pode exigir a tradução, abrindo desta forma uma possibilidade ao concreto conhecimento do teor do acto, para a qual a recorrente era chamada a defender-se.
  14ª- De facto, só assim estariam salvaguardadas as finalidades básicas da citação: informar da propositura da acção e, consequentemente, chamar o interessado a deduzir a sua defesa.
  15ª- O que, efectivamente, não sucedeu, em clara violação dos princípios basilares do processo civil, o princípio do contraditório.
  16ª- Na verdade, tal como resulta do supra exposto, atentas as circunstâncias do caso concreto, tornava-se necessária a tradução, tanto da petição inicial como dos documentos que a acompanhavam, por forma a permitir uma defesa eficaz por parte da apelante.
  17ª- No entanto, a violação do mencionado princípio não se ficou por aqui, isto porque, já não bastasse o respectivo pedido de tradução solicitado ter sido indeferido sem qualquer motivação, igualmente tal indeferimento não foi notificado à recorrente.
  18ª- Tanto mais que, agravando ainda a situação, no mesmo despacho, foi a ora recorrente considerada como regularmente citada, antes de esgotado o prazo para a contestação, após o termo da respectiva dilação.
  19ª- Pelo que somos a concluir, atendendo ao supra alegado, que, na situação em apreciação, a violação do mencionado princípio foi levada até ao extremo, culminando necessariamente numa decisão (sentença), ora em crise, que é nula, por violação no disposto no artigo 668º, n.º 1, al. b) e artigo 3º, ambos do CPC, artigo 20º da CRP, e artigos 3º e 7º da Convenção de Haia de 1965.
  20ª- É que foi a mesma proferida no seguimento de um despacho ferido de nulidade, tal como resulta da conjugação das disposições legais constantes dos artigos 668º, n.º 1, al. b) e artigo 666º, n.º 3 do CPC.
  21ª- Nulidade que, nos termos do artigo 668º, n.º 3, 2ª parte, do CPC, deve ser arguída em via de recurso, no Tribunal ad quem, tornando pertinentes as presentes alegações de recurso.
  22ª- O que, dada a flagrante violação do princípio do contraditório, com o consequente desequilíbrio entre os litigantes em termos de defesa das suas posições na lide, deve acarretar a anulação de todo o processado posteriormente à petição inicial.
  23ª- Todavia, caso se entenda que não estamos perante uma nulidade de sentença, o que, por mera hipótese, se admite, é manifesto que a mesma padece de erro de direito por violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3º do CPC.
  24ª- No entanto, sempre se dirá que não corresponde à verdade que, entre as partes envolvidas no presente litígio, tenha sido celebrado um qualquer acordo, nem mesmo verbal, no sentido da recorrida representar, em exclusivo, em Portugal, os produtos aditivos para animais, produzidos e comercializados pela recorrente.
  25ª- De facto, após várias prospecções de mercado, nomeadamente através de técnicos suíços enviados para Portugal, constatou a recorrente que a recorrida não reunia as condições necessárias para promover com sucesso os referidos produtos em Portugal, nomeadamente através do alegado contrato de representação exclusiva, supostamente celebrado entre as partes.
  26ª- Não tendo igualmente tido qualquer sucesso a tentativa de comercializar tais produtos no nosso mercado, mediante a intervenção de revendedores, dado que estes não estavam dispostos a trabalhar com a recorrida, que consideravam não preencher os requisitos mínimos a uma eventual relação comercial estável.
  27ª- Por conseguinte, nunca poderia a recorrente ter-se desvinculado unilateralmente do suposto contrato celebrado entre as partes, pelo facto de que não foi celebrado entre as mesmas qualquer contrato de concessão comercial, não passando a recorrida de uma simples cliente a quem podia ou não ser fornecido os produtos comercializados pela recorrente.
  28ª- Deste modo, igualmente é invertida a história vertida pela autora, no que respeita aos supostos prejuízos resultantes da alegada “ruptura” de tal relacionamento comercial, nomeadamente, um stock de mercadoria imobilizado, bem como a quantia que, presumivelmente, iria auferir a título de lucro, caso se mantivesse a dita relação comercial.
  29ª- Antes, pelo contrário, quem teve prejuízos foi a recorrente que sempre trabalhou em diversos mercados sem nunca ter tido quaisquer dificuldades no que se refere à implantação dos seus produtos, apenas tendo problemas em Portugal, devido à recorrida não ter apresentado resultados minimamente positivos relativos à comercialização dos produtos.
  30ª- Assim sendo, a existir uma quebra unilateral do relacionamento comercial existente, deve a mesma ser imputada à recorrida, que não trabalhou com a diligência devida, impedindo, ou, pelo menos, tornando bastante difícil, uma nova ligação ao mercado português.
  31ª- Pelo que, uma vez que o presente processo não decorreu à luz do princípio da contraditoriedade, sendo, por várias vezes, evidente a forma como foi sonegada a possibilidade de defesa à recorrente, considera a mesma que não deve prestar qualquer caução, tal como foi solicitado pela recorrida, sob pena de os riscos de injustiça material acabarem por ser muito superiores aos já existentes, tornando-se o litígio ainda mais penoso à ora apelante.
  32ª- Por conseguinte, violou a sentença recorrida os artigos 668º, n.º 1, al. b) e artigo 3º, ambos do CPC, o artigo 20º da CRP e ainda o estatuído na Convenção de Haia de 15 de Novembro, nomeadamente nos seus artigos 3º a 7º.

  A autora não contra – alegou.
  Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.
  2.
  Na 1ª instância consideraram-se provados os seguintes factos:
  1º- A autora é uma empresa que tem por objecto a representação e comercialização de aditivos para a pecuária, aquacultura alimentação para animais.
  2º- A ré é uma empresa suíça que tem como actividade a produção, comercialização e exportação de produtos aditivos para animais.
  3º- As duas empresas chegaram a um acordo que consistia no seguinte:
  A autora constituir-se-ia, em Portugal, como uma empresa de representação e comercialização de produtos para alimentação animal e, neste sentido, vocacionada para a representação dos produtos da ré, o que aconteceu.
  Por seu lado, a ré daria à autora, em Portugal o exclusivo da representação de todos os seus produtos, o que igualmente aconteceu.
  4º- A ré venderia os produtos a um determinado preço à autora, com taxas aduaneiras por conta desta.
5º- Nesse preço, estaria incluído já para a ré uma margem de lucro, sendo que a margem de lucro que a autora obteria, em Portugal, seria objecto de acordo de ambas.
  6º- Autora e ré estabeleceram um período de 3 para 4 anos como o mínimo necessário para se promover esses produtos de forma a torná-los conhecidos no mercado português e assim conseguirem as partes uma vantajosa implantação dos produtos da ré.
  7º- Em 3 de Março de 1998, teve lugar a primeira encomenda que a autora fez à ré.
  8º- Para melhor conhecimento e publicidade dos produtos e para a sua mais rápida implantação no mercado português, a autora contratou um primeiro vendedor, um engenheiro zootécnico, que fez a prospecção do mercado, apresentou o produto, publicitou-o e vendeu-o, em nome e por conta da autora.
  9º- Até Outubro de 1999, a autora contou com este tipo de colaboração, sendo que, após esta data, deixou de ter colaboradores, nomeadamente engenheiros zootécnicos, para publicitar e vender os produtos da ré.
10º- Isto porque, na altura, se verificou ser muito difícil a sua implantação no mercado português.
  11º- Após uma alteração no relacionamento comercial das duas empresas que passou pela intervenção de revendedores que recolhiam as encomendas dos clientes da autora, a ré, por carta datada de 24 de Maio de 2000, veio informar a autora que não pretendia mais continuar a manter a relação comercial iniciada cerca de dois anos antes.
  12º- A ré retirou à autora a representação exclusiva, o que fez contra a sua vontade e quando esta já tinha trabalhado os produtos da ré, em Portugal, de forma a torná-los conhecidos dos criadores de gado e veterinários que, apesar das dificuldades mostradas pelo mercado, os começaram a aconselhar.
  13º- Após a referida data de 24 de Maio de 2000, não houve qualquer negócio entre a autora e a ré, ficando aquela com stock dos produtos desta sem ser vendido e não podendo sê-lo porque o mercado era agora, subitamente, controlado por terceiros estranhos à autora.
14º- O valor desse stock atingiu o montante de Esc. 2.308.360$00.
  15º- Na perspectiva duma relação comercial estável com a ré, a autora teve de arranjar uma carrinha para distribuir os produtos da HOKOVIT e, por causa dela, teve de gastar cerca de Esc. 3.126.782$00, já parcialmente recuperados, por ter sido vendida.
  16º- Também em honorários pagos a terceiros, colaboradores da autora, em refeições, alojamentos e viagens por causa dos negócios acordados com a autora e ré, aquela gastou mais de Esc. 3.000.000$00.
  17º- Durante o tempo que durou a relação comercial entre a autora e a ré, o volume de facturação feita pela ré à autora ascendeu a Esc. 13.546.580$00.
  18º- A autora deve aos sócios a quantia de Esc. 5.765.890$00 a título de suprimentos por eles feitos à sociedade e que tem de lhes pagar.
  19º- A autora estimava vir a auferir tal quantia a título de lucro, se a relação comercial se mantivesse com a ré, e com ele vir a pagar aos sócios.
 
3. Os recursos têm por objecto as decisões de que se recorre e o seu âmbito é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artigos 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1).
  Assim, as questões que o recurso envolve são as seguintes:
  a)- Regime legal de citação da ré, face ao direito ordinário português de origem interna e de origem internacional.
  b)- Se, em matéria de citação, o direito ordinário português de origem interna é conforme com o regime decorrente da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
  c)- E se é conforme com o Direito Constitucional.
  d)- Da falta de motivação e de notificação do despacho de fls. 70 e suas consequências.
  e)- Ter a ré sido considerada como regularmente citada antes de esgotado o prazo para contestação, após termo da respectiva citação.
  f)- Se se verificam os elementos integradores do contrato de concessão comercial.
  g)- Se se verificam os pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar.
 
3.1. A citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu que foi proposta contra ele uma determinada acção e se chama ao processo para se defender (artigo 228º, n.º 1 CPC).
  A citação pode ser edital ou pessoal, sendo esta última feita, além do mais, pela entrega ao citando de carta registada com aviso de recepção, nos casos de citação por via postal registada (artigo 233º, n. ºs 1 e 2, al. a).
  O acto de citação implica a remessa ou entrega ao citando do duplicado da petição inicial e da cópia dos documentos que a acompanhem, comunicando-se-lhe que fica citado para a acção a que o duplicado se refere, e indicando-se o tribunal, juízo, vara e secção por onde corre o processo, se já tiver havido distribuição, bem como o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia (artigo 235º).
  A citação por via postal é feita por carta registada com aviso de recepção, de modelos oficialmente aprovados e, no caso de se tratar de sociedade, a dirigir para a respectiva sede ou local onde funciona normalmente a administração (artigo 236º, n.º 1).
  No caso de o citando residir ou ter a sede no estrangeiro, observar-se-á o que estiver previsto em tratados ou convenções internacionais e, na sua falta, a citação é feita por via postal, em carta registada com aviso de recepção, aplicando-se as determinações do regulamento local dos serviços postais (artigo 247º, n.ºs 1 e 2).
  Vejamos agora o que releva do direito interno de origem internacional.
  No caso vertente, Portugal e a Suíça são partes da Convenção Relativa à Citação e Notificação no Estrangeiro de Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, concluída em Haia, em 15 de Novembro de 1965, aprovada para ratificação em Portugal, pelo DL. n.º 210/71, de 18 de Maio.
  No que concerne ao réu residente em país estrangeiro, ou a sociedade ou pessoa colectiva nas mesmas condições, de acordo com a mencionada Convenção de Haia, ressalvada a existência de um acordo bilateral determinando procedimentos diversos, expressamente salvaguardado no artigo 25º da Convenção, ou a notificação, por parte do Estado em que o réu se encontra, da oposição quanto a determinadas formas de citação directa, a via postal é o meio adequado para executar a citação do réu.
  Com efeito, “se o Estado destinatário nada declarar, a presente Convenção não obsta”, designadamente, “à faculdade de remeter directamente, por via postal, actos judiciais às pessoas que se encontrem no estrangeiro” (artigo 10º, proémio e al. a) da Convenção).
  Resulta desta disposição de origem internacional que, não havendo reserva em contrário de alguma das partes da Convenção, esta não constitui obstáculo a que o tribunal do Estado do foro proceda à citação de alguma pessoa singular ou colectiva, que esteja domiciliada ou sediada, independentemente da sua nacionalidade, no território de outra das partes internacionalmente vinculadas pela Convenção.
  Assim, como a Suíça, no que concerne à citação ou notificação por via postal, não produziu nenhuma declaração de reserva, a Convenção admite, em relação àquele País, este tipo de comunicação de actos judiciários
  Em consequência, o tribunal recorrido, ao comunicar o acto de citação da apelante pela via postal, através de carta registada com aviso de recepção, cumpriu a lei, ou seja o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 247º CPC.

  Mas implicará o próprio acto de citação em causa, pela sua natureza e finalidade, a tradução do duplicado da petição inicial, dos documentos concernentes e da nota de citação, em língua francesa, italiana, ou alemã, as línguas oficiais da Suíça?
  Cingindo-nos ao tempo em que Portugal está internacionalmente vinculado a esta Convenção, várias vezes esta questão foi suscitada nos tribunais superiores portugueses, sendo que a divergência de sentido de decisão é, neste momento, praticamente inexistente.
  O Tribunal da Relação de Évora decidiu, em 23 de Abril de 1976, que para a citação de estrangeiro, por via postal, no estrangeiro, era necessário que a carta registada e o duplicado da petição fossem traduzidos[1].
  Esta decisão viria a ser revogada pelo STJ[2], que adoptou o entendimento contrário.
  A partir daí, cremos ter sido uniformemente entendido, nos Tribunais da Relação, que, na citação por via postal de residente no estrangeiro, não é obrigatória a tradução da petição nem da nota de citação.

  Haverá razões de lei que impliquem a alteração deste entendimento jurisprudencial?
  Antes de mais, importa considerar que a lei aplicável ao formalismo da citação é a do foro[3].
  Assim, a regra de expressão no que concerne aos actos judiciais é a língua do foro, ou seja, nos processos que corram termos nos tribunais portugueses, é no sentido de que deve ser utilizada a língua portuguesa (artigos 139º, n.º 1 e 474º, al. f).
  Esta regra abrange naturalmente os actos de citação por via postal de estrangeiros no estrangeiro, certo que eles são actos de comunicação directa, embora com a intervenção dos serviços postais locais, nos termos dos respectivos regulamentos ou normas de execução.
  Naturalmente que este sistema é susceptível de configurar despesa e incómodo para o citando, quando não conheça a língua do foro, caso em que tem de diligenciar pela respectiva tradução, mas isto constitui a contrapartida da internacionalização das relações humanas.
  Temos, assim, de concluir que o direito ordinário português de origem interna não exige na citação por via postal de estrangeiros residentes ou sediados no estrangeiro a tradução para a língua local da nota de citação, da petição inicial e dos documentos que esta acompanhem.
  E também a Convenção de Haia de 15 de Novembro de 1965 não estabelece qualquer regra a exigir a tradução da nota de citação, da petição inicial e documentos apensos a esta, nos casos de citação por via postal.
 
3.2. Não obstante o que acabou de se expor, interessará saber se, em matéria de citação, o direito ordinário português de origem interna é conforme com o regime decorrente da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
  Vejamos:
  A Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, aprovou para ratificação a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e os seus Protocolos, e o respectivo instrumento foi depositado no dia 9 de Novembro de 1978[4].
  Assim, nos termos do artigo 66º desta Convenção, Portugal está a ela vinculado tal como a Suíça.
  Esta convenção não consagra o direito à liberdade linguística em justiça, salvo no que concerne ao processo penal, por força do n.º 2 do artigo 5º e do n.º 3, alíneas a) e e) do artigo 6º.
  Com efeito, no que respeita ao acto de acusação ao arguido, a Convenção exige que o seja em língua que ele entenda (al. a) do n.º 3 do artigo 6º).
  Mas esta Convenção estabelece, porém, no artigo 6º, n.º 1, que qualquer pessoa (singular ou colectiva) tem o direito a que a sua causa seja examinada equitativamente.
  O conceito de processo equitativo[5] tem sido desenvolvido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e pela Comissão Europeia dos Direitos do Homem em termos de considerarem que ele não pode ser definido em abstracto, mas em concreto, ou seja, segundo as circunstâncias particulares de cada caso e no seu conjunto.
  No fundo, tem entendido que um processo equitativo exige, como elemento co – natural, que cada uma das partes tenha possibilidades razoáveis de defender os seus interesses, numa posição não inferior à da parte contrária, e que o tribunal deve proceder ao efectivo exame dos meios, argumentos e elementos de prova oferecidos pelas partes, o que necessariamente implica a obediência aos princípios do contraditório e da igualdade de armas, ou seja, da igualdade processual das partes[6].
  Com efeito, a Comissão Europeia dos Direitos do Homem já entendeu que o facto da Convenção não se reportar expressamente à língua utilizada nos actos processuais civis, tal não significa que a questão não possa ser equacionada no quadro do princípio do processo equitativo, e que isso dependerá do circunstancialismo do caso concreto.
  Mas não tem considerado que a Convenção em causa exija, em processo civil, a tradução dos actos judiciários na língua do respectivo destinatário, bastando-lhe que a pessoa que recebe uma notificação para comparecer possa dispor de tempo e de facilidades necessárias para poder traduzir[7].
  Assim, mesmo admitindo o conceito que a Comissão Europeia dos Direitos do Homem tem do processo equitativo, a conclusão deve ser no sentido de que a Convenção só excepcionalmente exige a tradução dos actos de citação por via postal de estrangeiros no estrangeiro, ou seja, quando o sistema processual do Estado do foro não garanta que o citado disponha de tempo razoável para obter a tradução dos actos judiciários[8].
  Ora, in casu, importa considerar que, tendo a ré o prazo de 30 dias para contestar, acresce o prazo de 30 dias de dilação, contado desde o recebimento da carta de citação (artigos 486º, n.º 1 e 252º-A, n.º 3), o que se considera tempo razoável para obter a tradução dos actos judiciários e preparar a sua defesa.
  Além disso, quando o tribunal considera que ocorre motivo ponderoso que impeça ou dificulte anormalmente ao réu ou ao seu mandatário judicial a organização da defesa, poderá, a requerimento deste, e sem prévia audição da parte contrária, prorrogar-lhe o prazo de contestação, até ao limite máximo de 30 dias (artigo 486º, n.º 5).
 
3.3. Interessará agora saber se, em matéria de citação, o direito ordinário português de origem interna é conforme com o regime decorrente da Constituição.
  Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo e, nessa actividade, incumbe-lhes assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (artigo 202º, n.º 1 e 2 da Constituição).
  Assim, o conteúdo da função jurisdicional, da competência dos tribunais, integra a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
  Neste sentido, prescreve o artigo 20º da Constituição, além do mais, que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, o que se traduz no princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e que todos têm direito, nos termos da lei, à informação e à consulta jurídica, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
  O direito de defesa do réu ou demandado judicialmente, ou o chamado princípio da proibição da indefesa, é indiscutivelmente um direito de natureza processual ínsito no direito de acesso aos tribunais constante do artigo 20º da Constituição, que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito, e cuja violação acarretará para o particular prejuízos efectivos, decorrentes de um efectivo cerceamento ao seu exercício de defesa.
“A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á, sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade  de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses[9]”.
Isto significa que o direito de acesso aos tribunais para defesa dos referidos direitos é, fundamentalmente, um direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e de independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões de facto e de direito, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretar sobre o valor e resultado de umas e de outras.
Resulta, além disso, o princípio da proibição do arbítrio, isto é, os princípios da igualdade processual ou da igualdade de armas, deles decorrendo que o princípio de acesso aos tribunais há-de poder exercer-se em condições de plena igualdade, designadamente em termos de as partes no processo deverem ser colocadas em plena paridade de condições no tocante à defesa dos respectivos direitos e interesses[10].
Ensina-nos a experiência da vida que a normalidade é no sentido de que, quem recebe uma comunicação escrita em língua que não conheça, logo diligencie por obter a respectiva tradução. Tal como se referiu a propósito do confronto das normas do Código do Processo Civil questionadas com as da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os citados princípios de igualdade de armas e do processo equitativo, que emergem dos artigos 13º e 20º da Constituição, não exigem que os actos processuais relativos à citação por via postal de estrangeiros no estrangeiro sejam escritos na língua do citando ou para ela traduzidos.
Com efeito, os prazos de contestação de acções intentadas em tribunais portugueses contra estrangeiros residentes ou sediados no estrangeiro citados por carta registada com aviso de recepção, garantem o razoável prazo de organização da defesa, incluindo a diligência de tradução.
Daqui resulta que as normas dos artigos 195º, al. e), 228º, n.º 1 e 247º, n.º 2 do CPC, interpretadas no sentido de que a citação de estrangeiros no estrangeiro por carta registada com aviso de recepção não é exigida a tradução dos pertinentes actos judiciários na língua do citando, não enfermam do vício de inconstitucionalidade.

3.4. Temos, assim, que considerar que a citação da ré por carta registada com aviso de recepção sem instrumento de tradução da nota de citação, da petição inicial e dos documentos que a acompanharam, para alguma das línguas oficiais suíças, é válida pelo que a ré deveria ser considerada validamente citada.
No entanto, uma vez citada, veio a ré solicitar, em língua inglesa, que a petição e os documentos apensos fossem traduzidos em francês ou inglês, pois que não compreendia o seu teor.
  Deferindo o requerido, o Exc. mo Juiz ordenou a notificação da autora para juntar tradução da petição inicial, em francês, a fim de se proceder à citação da ré.
  Proferida esta decisão, ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto a esta matéria, (artigo 666º, n.ºs 1 e 3), podendo, porém, qualquer das partes requerer no tribunal que proferiu a decisão a sua reforma, com fundamento em manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos (artigo 669º, n.º 2 e 666º, n.º 3), o que fez a autora.
  Assim, impunha-se à secretaria, independentemente de despacho, notificar a parte contrária para responder e só depois se decidiria (artigo 670º, n.º 1).
  Paradoxalmente foi aberta conclusão e o Sr. Juiz mandou dar conhecimento do requerimento da ré à autora, tendo esta apresentado, então, o requerimento de fls. 67-69, na sequência do qual o Sr. Juiz anulou o despacho de fls. 61 por não estar juridicamente fundamentado.
  Extravasando o que lhe tinha sido solicitado, o Sr. Juiz acaba por proferir uma decisão que revogou a anterior, indeferindo o que tinha deferido, omitindo a fundamentação.
Ora as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, sendo que a omissão de fundamentação acarreta a nulidade do despacho, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 158º, 659º, 668º, n.º 1, al. b) e 660º, n.º 3 CPC).
Embora a lei conceda a faculdade de recorrer à parte prejudicada com a decisão, a ré não foi notificada deste despacho (artigo 670º, n.º 4).
  É certo que a ré não tinha constituído mandatário, mas havia sido validamente citada pelo que se encontrava numa situação de revelia relativa (artigo 484º, n.º 1), razão por que as notificações deveriam ser-lhe feitas na sede da sociedade para o efeito de as receber, nos termos estabelecidos para as notificações aos mandatários (artigo 255º, n.º 1).
  E porque se tratava de uma decisão susceptível de lhe causar prejuízos, como parte no pleito, a secretaria deveria ter procedido oficiosamente à sua notificação, nos termos do artigo 259º CPC, enviando cópia ou fotocópia legível da decisão e dos fundamentos.
  Mais ainda. Estando em causa uma acção de processo ordinário, tinha a ré o prazo de 30 dias a contar da citação, verificada em 3/10/2001, começando o prazo a correr desde o termo da dilação, que era também de 30 dias (artigo 252º-A, n.º 3).
  Logo, o respectivo prazo para contestar apenas terminaria em 6.12.2001, tendo em conta o disposto no artigo 145º, n.º 5.
  Assim, quando, em 28.11.2001, o Exc. mo Juiz ordenou o cumprimento do disposto no artigo 484º, n.º 2 CPC, ainda não tinha decorrido o prazo para a ré contestar.
  Foram, assim, praticados actos que a lei não admite, e omitidos outros que a lei prescreve, sendo manifesto que as irregularidades cometidas eram susceptíveis de influir no exame ou na decisão da causa, (artigo 201º, n.º1), estando a ré impossibilitada de poder recorrer dos aludidos despachos de fls. 70 (1ª e 2ª parte), pois deles não foi notificada nem interveio no processo.
  Notificada da sentença, com que se não conformou, a ré aproveitou o momento adequado para arguir as assinaladas irregularidades (artigo 205º e 685º).
  Como se referiu, ambos os despachos de fls. 70 são nulos, razão por que terão de ser anulados os termos subsequentes que dele dependem absolutamente (artigo 201º, n.º 2 CPC), começando a correr o prazo para a contestação da ré, a partir do trânsito deste acórdão.
  Outras questões foram suscitadas no recurso, cuja solução se encontra prejudicada pela solução dada às questões que logicamente as precediam, razão por que delas não interessa conhecer.

4. Pelo exposto, na procedência da apelação, decide-se anular os despachos de fls. 61 e 70 e todos os termos subsequentes que deles dependam absolutamente, começando a correr o prazo para a contestação, a partir do trânsito desta decisão.
Custas pela parte que decair a final.

Lisboa, 27 de Março de 2003
Granja da Fonseca
Alvito de Sousa
Martins Lopes
__________________________________________________

[1] CJ, Ano 1, Tomo 1, pág. 63.
[2] Acórdão de 10 de Março de 1977, in BMJ, 265º, 175.
[3] Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, 1969, pág. 300.
[4] Diário da República, 1ª série, de 2 de Janeiro de 1979.
[5] Ac. RL, de 19 de Fevereiro de 1998, Processo 7973/97 da 6ª Secção, inédito.
[6] Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 94.
[7] Ac.de 9.12.81, Decisions e Rapports, vol. 27, Setembro 1982, referido por Ireneu Barreto, obra citada, pág. 97.
[8] Ac. RL. de 19 de Fevereiro de 1998, já citado.
[9] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constiuição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pp. 163 e 164.
[10] Ac. Tribunal Constitucional, n.º 86/88, de 13.4.88, DR 2ª série, de 22.8.1988, pp. 7629 e 7630.