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APRECIAÇÃO DA PROVA
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
ÓNUS DA PROVA
DANOS MORAIS
Sumário
O depoimento de parte pode só por si ser decisivo para fundamentar uma resposta positiva a um quesito, já que, de acordo com o disposto no art. 655º, nº 1 do CPC, o tribunal aprecia livremente as provas. Estando em causa apurar se o réu incorreu em responsabilidade civil por incumprimento de um contrato de arrendamento e de molde a causar danos patrimoniais e morais à apelante, estamos no campo da responsabilidade civil contratual. Ao contrário do que acontece com a responsabilidade civil extracontratual em que cabe ao lesado o ónus de prova da culpa do lesante (art. 487º, nº 1 do CC), na responsabilidade civil contratual incumbe ao devedor a prova de que a falta de cumprimento ou o incumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua (art. 799º, nº 1, do CC). É hoje em dia aceita pela maior parte da jurisprudência a possibilidade de ressarcibilidade dos danos morais em sede de responsabilidade civil extracontratual.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1 – Relatório
Laurinda ... intentou, no tribunal da comarca de Loures, acção sumária contra António ..., pedindo que fosse reduzido a escrito o contrato de arrendamento relativo ao R/C esquerdo da Vivenda Almeida, R. do Paço Real, nº X, Caneças, restabelecendo, sem limitações, os fornecimentos de electricidade de água ao locado, ao mesmo tempo que permitisse o acesso à arrecadação que servia o dito R/C e a pagar-lhe 410.000$00 pelos prejuízos sofridos em virtude das violações emergentes do contrato de arrendamento e, ainda 1.000.000$00 a título de danos morais pelo sofrimento e angústia causados.
Em suma, alegou que
- celebrou um contrato de arrendamento com o R., 1º relativamente a um 2ºandar do prédio supra referido, e, posteriormente, em relação ao R/C esquerdo, com encargos de água e electricidade, sendo certo que não existiam contratos de fornecimento de água nem de electricidade e que o R. sempre se recusou a reduzir o contrato de arrendamento a escrito, alegando falta de licença de habitabilidade;
- o R. nem sempre cumpria com ela, pois nem sempre ao pagamento da renda correspondia o respectivo recibo;
- instou o R. para que fosse passado o dito contrato, recebendo como resposta que não reduzia o mesmo a escrito como não passava mais recibos, o que a levou a depositar as rendas na C.G.D.;
- do R/C referido fazia parte uma arrecadação que o R., aproveitando a sua ausência, tapou a entrada com uma parede de tijolo;
- A partir de 07/05/01, o senhorio deixou de fornecer electricidade durante o dia ao R/C, o que impediu a A. de fazer as suas refeições em casa;
- o senhorio ameaçou-a de lhe cortar também a luz durante a noite se esta não lhe pagasse a renda directamente, sem recibo e pelo facto de se recusar a pagar 50% do valor da factura de electricidade.
O R. contestou, dizendo, em 1º lugar, que a A. já tinha deixado de habitar o locado, razão pela qual estavam prejudicados os dois primeiros pedidos formulados pela A., e, em 2º lugar, impugnando parte da factualidade vertida na petição, terminando por pedir a sua absolvição.
Em resposta, a A. reduziu o pedido de modo a que o R. fosse apenas condenado no pagamento da quantia de 410.000$00 a título de danos patrimoniais e na de 1.000.000$00 a título de danos morais.
O Mº juiz homologou, oportunamente, a desistência dos dois primeiros pedidos formulados pela A..
Foi proferido o despacho saneador no qual o tribunal foi julgado competente, as partes legítimas e o processo isento de nulidades.
Foram fixados os factos não controvertidos e elaborada a base instrutória.
A audiência de discussão e julgamento decorreu com observância de todas as legais formalidades, como das actas consta.
Após as respostas dadas aos quesitos formulados, o Mº juiz a quo proferiu a sentença, tendo absolvido o R. do pedido.
Para o efeito, considerou que o caso sub iudice estava sob a alçada da responsabilidade civil extracontratual e que a A. não tinha provado os pressupostos da mesma.
Com esta decisão não se conformou a A. que apelou para esta instância, pedindo a revogação da mesma, tendo rematado as suas conclusões da seguinte maneira:
- A sentença recorrida merece censura na medida em que julga improcedente a acção interposta pela A. e absolve os R. do pedido, pois tal decisão funda-se numa errada qualificação dos factos, o que levou a uma incorrecta aplicação das normas;
- Conforme a transcrição atrás deixada do depoimento de parte do R., não pode dar-se como provado o que consta da última parte dos quesitos 19º e 20º da base instrutória – nºs 16 e 17 da matéria provada, pois, à excepção do corte de electricidade em 05 de Maio de 2001 , não consta dos autos qualquer prova documental nesse sentido e não se fez prova de tais intimações por qualquer outra via;
- Os factos provados são suficientes para conduzirem à procedência da acção e consequente condenação do R. no pedido, não fora a errada qualificação da situação jurídica e da incorrecta aplicação do direito ao caso em apreço;
- A sentença recorrida dá como provado a existência de um acordo verbal entre A. e R., que consubstancia um contrato de arrendamento, apesar de não ter sido reduzido a escrito, contudo, esquece que tal contrato é gerador de obrigações recíprocas;
- A existência, a validade e eficácia do dito contrato de arrendamento não são postas em causa pelo R., merecendo os seus efeitos a devida protecção legal, pelo que a sentença recorrida violou as disposições constantes dos arts. 1037º do C.Civil e do art. 1º do R.A.U.;
- Ao decidir que a responsabilidade do R. se subsume à responsabilidade extracontratual, fez o Mº Juiz do tribunal de primeira instância uma errada qualificação dos factos que fundamentam a causa de pedir da acção, pois o que está em causa é um contrato de arrendamento, válido e eficaz;
- Ao dar como provado a existência de um arrendamento entre A. e R. tem de ser à luz desta relação contratual que deverão ser julgados os factos causadores de dano à A., como também resultou provado;
- E à data dos factos que os mesmos devem ser apreciados e, como resulta claramente provado, a A. apenas em finais de Outubro de 2001 deixou o local arrendado, pelo que o que está em causa é o incumprimento por parte do R. das obrigações contratuais a que estava obrigado para com a A.;
- Esta errada qualificação dos factos conduziu, consequentemente a uma incorrecta aplicação do direito, resultando em claro prejuízo da A. na medida em que coloca em crise direitos que a lei lhe confere e que esta veio a exercer legitimamente, por via da presente acção;
- Foram ainda violadas as disposições contidas nos arts. 342º, nº 1 e 799º, nº1, ambos do C. Civil, porquanto o ónus da prova incumbe ao R. e não à A. como vem decidido na sentença recorrida;
- O R. deve ser condenado a ressarcir a A. dos danos causados pela sua actuação que resultou em claro incumprimento do contrato de arrendamento que vigorava entre as partes, conforme previsto nos arts. 1º do R.A.U. e 798º do C. Civil.
O apelado não apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Os factos dados como provados são os seguintes:
- Por acordo datado de Julho de 1998, a A. tomou de arrendamento ao R. a 2º andar do Lote ..., Caneças, mediante a renda mensal de 55.000$00;
- Não existiam contratos de fornecimento de água e de electricidade para o 2º andar em causa;
- A instalação eléctrica e de água encontrava-se feita de modo a que o 2º andar referido fosse servido de luz e água directamente do 1º andar, onde residia o R.;
- Em Janeiro de 1999, a A., com o acordo do senhorio, mudou-se para o rés-do-chão esquerdo do prédio, passando a pagar a este a renda mensal de 40.000$00, metade do recibo da electricidade e cerca de 5.000$00 de água, cujos contratos de fornecimento se encontravam em poder do R.;
- A quantia referida de 55.000$00 acrescia a importância bimensal de 5.000$00, que a A. entregava ao R. para pagamento da água que consumia no imóvel;
- O acordo supra referido nunca foi reduzido a escrito por o imóvel ali identificado não dispor de licença de habitação;
- Em Novembro de 2000, a A. solicitou auxílio junto do IGAPHE e do Centro Regional de Segurança Social para poder pagar a renda de 40.000$00;
- Tendo-lhe sido pedido o contrato de arrendamento do rés-do-chão;
- A. e R. nunca reduziram a escrito o acordo de utilização do rés-do-chão referido, o qual também não dispunha de licença de habitação;
- Na parte exterior do rés-do-chão existe um vão de escada que era aproveitado pela A. para depositar alguns objectos velhos e sem uso;
- Por altura de Abril de 2001, o R. retirou desse vão de escada os objectos ali colocados pela A., nomeadamente papéis e tapou o referido vão com tijolos soltos empilhados uns em cima dos outros;
- Em finais de 2001, a A. dirigiu-se aos serviços da EDP - Distribuição Energia, S. A. a fim de solicitar um contador autónomo para o rés-do-chão e pedir uma vistoria à situação de fornecimento de electricidade à sua habitação;
- Em resultado da diligência referida e por imposição da EDP que determinou o corte total de energia eléctrica ao rés-do-chão durante o dia aquele imóvel passou a ficar privado de electricidade;
- O que impediu a A. de fazer as suas refeições em casa por não ter forma de conservar os alimentos, de engomar a sua roupa e do seu filho, assim como de utilizar qualquer electrodoméstico;
- Após a notificação ao R. da decisão que consta de fls. 38 a 43 da providência cautelar apensa foi restabelecido o fornecimento de energia eléctrica à casa da A.;
- Em 5 de Setembro de 2001, o R. cortou o fornecimento de água ao rés-do-chão, por a isso ter sido intimado pelos Serviços Municipalizados de Loures;
- O R. comunicou à A. que a partir de 1 de Outubro de 2001 iria cortar o fornecimento de energia eléctrica ao rés-do-chão por a isso ter sido intimado pela fiscalização da EDP;
- Durante o tempo em que o R. privou o rés-do-chão de água canalizada a A. esteve impedida de lavar as suas roupas e as do seu filho, assim como cuidar da higiene pessoal de ambos;
- Durante esse período a A. valeu-se do apoio de pessoas amigas;
- A A. e a inquilina do rés-do-chão direito acordaram que de dois em dois meses aquele entregaria a esta metade do montante da factura da electricidade respeitante ao consumo de energia eléctrica daquele imóvel, onde se encontrava o contador que abastecia o rés-do-chão;
-AA.utilizava no rés-do-chão um aquecedor eléctrico e um computador.
3 – Quid iuris?
Face às conclusões da apelante, somos confrontados no presente recurso com as seguintes questões:
- deve ser alterada a matéria de facto dada como provada, concretamente a relativa aos quesitos 19º e 20º da base instrutória?
- que tipo de responsabilidade civil está aqui em causa?
- a quem incumbe o ónus de prova in casu?
- estão provados os alegados danos?
Analisemos cada uma destas questões separadamente.
1ª questão – a possibilidade de alteração da matéria de facto
No quesito 19º perguntou-se se “em 5 de Setembro de 2001, o R. cortou o fornecimento de água ao rés-do-chão identificado em 2.D a partir de 1 de Outubro de 2001”.
A resposta a esta questão foi a seguinte: “provado que, em 5 de Setembro de 2001, o R. cortou o fornecimento de água ao rés-do-chão identificado em 2.D por a isso ter sido intimado pelos Serviços Municipalizados de Loures.
No quesito 20º perguntou-se se “após o referido em 17º, o R. comunicou à A. o corte do fornecimento de energia eléctrica ao rés-do-chão identificado em 2.D a partir de 1 de Outubro de 2001”.
A resposta a esta pergunta foi a seguinte: “provado que o R. comunicou à A. que a partir de 1 de Outubro de 2001 iria cortar o fornecimento de energia eléctrica ao rés-do-chão identificado em 2.D), por a isso ter sido intimidado pela fiscalização da E.D.P.”.
Na fundamentação, o Mº juiz a quo disse que nas respostas a estes dois quesitos teve em conta o depoimento do próprio R..
Defende a apelante que tal prova não podia ter sido feita sem o recurso a outras, nomeadamente a prova documental.
Salvo o sempre devido respeito, entendemos que carece de razão a apelante na medida em que, de acordo com o disposto no art. 655º, nº 1 do C.P.C., o tribunal aprecia livremente as provas.
Em face do depoimento pessoal do R. o tribunal julgou-se habilitado a responder da forma como o fez, sem necessidade de recorrer a qualquer outra prova.
Nenhuma censura merece, por isso, o tribunal de 1ª instância.
2ª questão - que tipo de responsabilidade civil está aqui em causa?
Ao contrário do que decidiu o Mº juiz a quo, aqui está em causa a responsabilidade civil contratual e não a extracontratual.
Na verdade, como ensina Antunes Varela, a responsabilidade civil contratual engloba tanto a responsabilidade proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes de contratos, de negócios unilaterais ou da lei, ao passo que a responsabilidade civil extracontratual resulta da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos, que, embora lícitos, causem prejuízo a outrem (in Das Obrigações em geral – 8ª edição – Vol. I, pág. 526).
Galvão Telles defende a distinção entre responsabilidade civil obrigacional (porque provém da violação de uma obrigação, nascida de um contrato ou de outra fonte) e responsabilidade extraobrigacional (em que ocorre perante uma pessoa de que não é devedor e cujo âmbito se determina por exclusão de partes) (vide Direito das Obrigações – 3ª edição -, pág. 273).
Para Pessoa Jorge, a responsabilidade civil nasce da prática de um acto ilícito, que consiste na violação de um dever, sendo que este dever pode ser uma obrigação em sentido técnico ou outro dever: no 1ºcaso a responsabilidade diz-se obrigacional, no 2º extra-obrigacional (in Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, pág. 37).
Ora, no caso presente está em causa saber se o R., ora apelado, incorreu em responsabilidade civil por incumprimento de um contrato de arrendamento e de molde a causar danos patrimoniais e morais à apelante.
Os pedidos formulados pela apelante são bem claros: pagamento de 410.000$00 pelos prejuízos sofridos em virtude de actuação do R., violando asobrigações emergentes de um contrato de arrendamento e, ainda, 1.000.000$00 a título de danos morais pelo sofrimento e angústia causados.
Estamos aqui perfeitamente no campo da responsabilidade civil contratual.
Nada permitia, portanto, a conclusão que a disposição legal aplicável ao caso presente é o art. 483º do C. Civil já que, repete-se, em causa está a eventual responsabilidade do apelado pelo incumprimento de um contrato de arrendamento.
3ª questão - a quem incumbe o ónus de prova in casu?
Ao contrário do que acontece com a responsabilidade civil extracontratual (em que cabe ao lesado o ónus de prova da culpa do lesante – art. 487º, nº1 do C. Civil), na responsabilidade civil contratual incumbe ao devedor a prova de que a falta de cumprimento ou o incumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua (cfr. art. 799º,nº 1 do C. Civil).
Neste ponto concreto, assiste inteira razão à apelante: era ao apelado que competia o ónus de provar que a falta de cumprimento do contrato de arrendamento não procedia de culpa sua.
Acontece, porém, que, da factualidade dada como provada não resulta a culpa do apelado, nem tão-pouco a apelante focou nas suas conclusões tal ponto.
4ª questão – os danos
A apelante pediu a condenação do apelado a título de danos patrimoniais e a título de danos morais.
É discutível a questão de saber se na responsabilidade civil contratual é possível ressarcir os danos morais.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos, não sendo de tomar em conta os simples incómodos ou contrariedades (in Código Civil Anotado, Volume I – 4ª edição -, pág. 499, notas 1 e 2).
Para estes consagrados AA. o princípio da ressarcibilidade dos danos morais é limitado à responsabilidade civil extracontratual, não devendo ser ampliado à responsabilidade contratual por não haver analogia entre os dois tipos de situações ( obra citada, pág. 501, nota 8 ).
Não é, porém esta a orientação dominante: Ferreira Dias dá-nos conta dos AA. que divergem desta posição, admitindo a ressarcibilidade dos danos morais em sede de responsabilidade contratual, desde Cunha Gonçalves a Vaz Serra, desde Galvão Telles a Pinto Monteiro e Maya Lucena, para além da posição predominante na jurisprudência neste sentido (vide O Dano Moral, pág. 35 e 36 e respectivas notas).
No âmbito da jurisprudência, citaremos apenas o douto acórdão do S.J.T., de 17 de Novembro de 1998, que decidiu, apoiando-se nas posições de Vaz Serra e Almeida Costa, que também no âmbito da responsabilidade civil contratual pode haver lugar a indemnização pelo dano moral ou não patrimonial (in C.J. – Acs. do S.T.J. – Ano VI, Tomo III, pág. 124 e ss.).
Pela nossa parte, respeitando embora a douta posição contrária, inclinámo-nos a aceitar a tese da admissibilidade da ressarcibilidade dos danos morais em sede de responsabilidade civil contratual (haja em vista a posição do ora relator e do 1º adjunto no processo desta Relação – 6ª secção -, nº 3364/00, relatado por Salvador da Costa e de todos os subscritores deste no processo 2158/03 desta mesma secção).
A verdade, no entanto, manda que se diga que não ficaram provados quaisquer danos, sejam eles patrimoniais ou morais.
E assim, segundo embora caminho diferente do que seguiu a 1ª instância, somos levados a concluir que a petição da apelante terá de ser julgada improcedente.
4 – Decisão
Em conformidade com o exposto e sem necessidade de qualquer consideração, decide-se, na improcedência da apelação, confirmar, mui embora por razões totalmente diferentes, a sentença da 1ª instância.
Custas pela apelante.