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DESPEJO
CITAÇÃO
Sumário
I- Não tendo sido citada para a acção o cônjuge do arrendatário de casa de morada de família, não lhe pode ser oposta a sentença que decrete o despejo (princípio da eficácia relativa do caso julgado) II- A lei confere aos cônjuges o direito a habitar a casa de morada de família enquanto subsistir a relação de crédito ou real à luz da qual nasce e subsiste aquele direito e, por isso, o respectivo titular pode utilizar meios possessórios destinados a garantir o seu direito. III- Deve, no entanto, improceder, por falta de interesse processual, acção de simples apreciação positiva cujo objectivo outro não é senão o de o de obter sentença que tenha o alcance de impedir que a Ré possa executar o despejo contra o cônjuge do arrendatário.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. (P) intentou acção declarativa de simples apreciação com processo ordinário no dia 6-10-1994 contra (M) alegando que desde 1978 vive com o seu marido (G) e filhos menores no imóvel de que ele é arrendatário sito na (G) em Lisboa.
Sucede que a Ré propôs acção de despejo para habitação própria apenas contra o marido da A., que não foi por ele contestada, que veio a ser julgada procedente.
A Ré, porém, não foi citada para uma tal acção, e devia tê-lo sido pois a casa é a casa de morada de família, motivo por que pretende que seja declarada na sua titularidade a existência do direito a legitimamente fruir a casa de morada de família arrendada ao cônjuge nos mesmos termos deste.
A acção foi julgada improcedente por se ter considerado que, não obstante ser verdade o que a Ré alega, ela não é titular de nenhum direito subjectivo a ocupar a casa arrendada de conteúdo idêntico ao do marido designadamente o arrendamento que é incomunicável ao cônjuge; não pode também opor-se por embargos de terceiro contra mandado de despejo emanado da acção em que não foi demandada pois não é titular de qualquer direito que legitime a sua posse visto que não passa de uma mera detentora ou possuidora de facto e, portanto, se não pode deduzir embargos de terceiro para se opor à execução do despejo, não pode igualmente pretender que se declare ser titular do direito a fruir legitimamente da casa de morada de família arrendada pelo cônjuge marido nos mesmos termos deste último.
Sustenta a recorrente que ela tem direito a continuar a fruir a casa de morada de família, ainda que esta tenha sido objecto mediato de uma acção de despejo, uma vez que tal acção, com preterição de litisconsórcio necessário passivo, foi intentada única e exclusivamente contra o inquilino cônjuge marido e ela tem esse direito enquanto não for condenada em acção de despejo em que seja pessoalmente demandada; a existência do direito que a A. se arroga encontra-se corroborada no nosso sistema jurídico designadamente pelo facto de este mesmo sistema admitir que, face a um mandado de despejo emanado de um tribunal em que apenas foi demandado um dos cônjuges, o outro se oponha invocando embargos de terceiro; a Lei nº 35/81, ao impor litisconsórcio necessário, vai no sentido de integrar os meios de defesa postos pelo sistema à disposição do cônjuge do inquilino não ouvido nem convencido na acção de despejo, conduzindo à necessária verificação da ilegitimidade na dita acção, podendo assim aquele mesmo cônjuge opor-se à execução da sentença que ordena o despejo; a preterição de litisconsórcio necessário passivo obsta, assim, a que alcançada em acção de despejo em que só um dos cônjuges foi demandado “ produza o seu efeito útil normal”.
2. Factos provados:
1- A A. é casada com (G). 2- Tal casamento foi celebrado em 18 de Agosto de 1977. 3- O marido da A. arrendatário do andar sito em Lisboa na Rua..., em Lisboa, foi condenado por sentença de 17-1-1994 que correu termos no 4º Juízo Cível de Lisboa (P. 9103/93) proferida em acção de despejo proposta pela Ré, uma vez declarado resolvido o contrato de arrendamento, a entregar à Ré o referido andar, livre de pessoas e bens, mediante o pagamento da quantia correspondente a dois anos e meio de renda. 4- Por escrito particular de 7-1-1932 (B) deu de arrendamento a (L) pelo prazo de 6 meses com início no dia 1 de Janeiro de 1932 e com destino a habitação própria, o 1º andar do prédio sito em Lisboa com entrada pelo nº 78 da Rua do Salitre. 5- (L) faleceu em 3 de Setembro de 1987. 6- Por óbito do referido (L) a posição contratual de que este era titular transmitiu-se ao seu cônjuge sobrevivo, (D). 7- (D) faleceu em 8 de Maio de 1989. 8- Por morte da referida (D) a posição contratual da arrendatária, de que esta era titular, transmitiu-se ao seu filho (G). 9- No referido processo a A. não foi demandada nem citada para nele intervir. 10- A A. e seu marido habitam no imóvel identificado desde 1978. 11- A A., seu marido e os dois filhos do casal vivem em comunhão de mesa e habitação no imóvel desde há pelo menos 20 anos, ai pernoitando, tomando as refeições e recebendo os amigos e a correspondência.
Apreciando:
3. A questão que se suscita nestes autos é a de saber se o cônjuge de arrendatário da casa de morada de família, que não foi demandado nem interveio em acção de despejo julgada procedente proposta contra o arrendatário, dispõe ou não de algum direito que lhe permita continuar a fruir legitimamente a casa de morada de família.
4. Considerou-se que não na decisão recorrida: o cônjuge não demandado, que não chegou a intervir por forma a obstar ao trânsito em julgado da acção de despejo, apenas dispõe do recurso extraordinário de oposição de terceiro que pressupõe um litígio assente sobre um acto simulado das partes (artigo 778º do C.P.C.).
Pode, portanto, dar-se o caso, certamente mais frequente do que o presente, em que o arrendatário demandado não contesta por lhe ser indiferente a sorte da família e da casa de morada de família (marido que, incompatibilizado, deixou a casa de morada de família onde permaneceram os respectivos familiares) não existindo qualquer acordo entre o senhorio e arrendatário.
Se assim se entender então a ordem jurídica portuguesa, apesar de reconhecer que devem ser propostas contra marido e mulher as acções que possam implicar a perda de direitos que só por ambos ou com o consentimento de ambos possam ser alienados, designadamente as acções que tenham por objecto directa ou indirectamente a casa de morada de família (ver artigo único da Lei nº 35/81, de 27 de Agosto a que corresponde o artigo 28º-A do Código de Processo Civil revisto em 1995/1996 conjugado com o artigo 1682º-A/2 do Código Civil), mostra-se indiferente à violação, desde que bem sucedida, desse dever processual que visa simetricamente garantir no plano do exercício da acção o que, no plano substantivo, por via do direito de anulação do negócio jurídico é reconhecido ao cônjuge que fique alheado de acto de alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada de família.
A ser assim como se decidiu, se o cônjuge arrendatário denunciar o arrendamento respeitante à casa de morada de família (artigo 1682º-B do Código Civil) o outro cônjuge pode exercer o direito de anulação com o limite temporal de três anos sobre a realização do acto (artigo 1687º/2 do Código Civil); no entanto, se a denúncia do arrendamento resultar de acção proposta apenas contra o arrendatário, o outro cônjuge, transitada a decisão, nada poderá fazer, salvo o caso de recurso de oposição.
Os limites impostos em ambas as situações, o temporal e o caso julgado, não parecem, no entanto, garantir exactamente o mesmo: o decurso do tempo tem em vista impedir que uma situação de incerteza se prolongue com todos os inconvenientes que resultam para a segurança jurídica; a inatacabilidade do caso julgado, fora dos casos de recurso extraordinário, traduz garantia de segurança jurídica, mas essa garantia mostra-se aqui afectada de um modo muito acentuado precisamente porque, ao privar-se definitivamente o cônjuge lesado de se poder opor às consequências de um procedimento ilegal do qual resultou uma decisão que o prejudica intensamente, está afinal a impor-se os efeitos do caso julgado em relação a terceiros fora dos casos em que a lei o consente (v.g artigo 674º do C.P.C.).
O cônjuge que devia, por imposição da própria lei, ser demandado na acção que visava a resolução do contrato de arrendamento respeitante à casa de morada de família, fica completamente manietado a partir do momento em que, à sua revelia, é proferida em tal acção decisão final transitada em julgado que, portanto, o vai atingir inapelavelmente pois a lei veda-lhe, a seguir-se um tal entendimento, que se possa opor seja por que meio for à execução da decisão.
Assim, de uma actuação processual ilegal (acção proposta apenas contra um réu quando a lei exige o litisconsórcio necessário) adviria uma consequência, também processual, contra legem: a decisão final proferida contra o réu demandado produz efeitos contra o terceiro que devia ter sido demandado e não foi.
A lei, no caso de litisconsórcio necessário, considera, de forma expressa, ineficaz a confissão, desistência ou transacção de algum dos litisconsortes no que respeita à relação jurídica substancial, salvo quanto a custas (artigo 298º/2 do C.P.C).
Este preceito, aplicável às acções pendentes, compreende-se na medida em que "no caso de litisconsórcio voluntário se entende que há acumulação de acções, conservando cada litigante a sua independência em relação aos seus compartes; no caso de litisconsórcio necessário a acção é uma só, com pluralidade de sujeitos, não podendo cada um deles dispor livremente do objecto da causa" (Comentário ao Código de Processo Civil, Alberto dos Reis, Vol 3º, pág 517).
Há, pois, uma ineficácia da confissão, desistência ou transacção no que respeita à relação fundamental, no caso de litisconsórcio necessário pendente accione; há também uma ineficácia da decisão transitada em julgado, no caso de preterição de litisconsórcio necessário, relativamente ao litisconsorte não demandado.
A A., no que respeita à relação locatícia, pode encontrar-se numa posição estritamente subordinada ou dependente da posição do arrendatário como acontece quando utiliza o local arrendado porque com ele vive em economia comum (artigo 76º/1 do R.A.U.): v.g. arrendamento de prédio destinado a habitação secundária do arrendatário. Nesse caso, apesar de o cônjuge não ser um terceiro juridicamente indiferente em relação à sorte do litígio, o caso julgado é-lhe oponível e, por conseguinte, o mandado de despejo deve ser executado não passando o cônjuge de um mero detentor do prédio (artigo 60º/1 do R.A.U.).
No entanto, tratando-se de casa de morada de família, já o cônjuge é titular de uma posição jurídica própria, posto que subordinada à do arrendatário, na medida em que a utilização do local arrendado não se faz exclusivamente com base na posição de pessoa autorizada a residir com o arrendatário, mas no facto de, face à afectação do imóvel a casa de morada de família, se ter constituído o direito de intervenção e de oposição a todos os actos e negócios dos quais possa decorrer a extinção ou limitação do direito que confere utilização do local arrendado.
Ora, assim sendo, se a lei exige a intervenção de todos sob pena de ilegitimidade é claro que, face a uma tal omissão, não pode ser oposta aos interessados não demandados a sentença que decreta o despejo.
Não é apenas a circunstância de estarmos face a uma posição de subordinação que impõe a ineficácia do caso julgado, é sobretudo o facto de, por se julgar indispensável a intervenção de todos os interessados, a eficácia da sentença contra terceiros jamais poder actuar(artigos 671º a 673º do C.P.C.).
Muito claramente o prof. Alberto dos Reis aponta o caso de, impondo-se em processo de expropriação, para efeito de fixação de indemnização, que sejam citados, além do dono do prédio a expropriar, os interessados que tenham qualquer direito sobre o prédio, ou registado ou eficaz independentemente de registo, e nomeadamente o arrendatário comercial ou industrial, daqui se dever inferir "que, não sendo esses interessados citados para o processo, não lhes pode ser oposta a sentença que fixe o montante da indemnização" (Código de Processo Civil Anotado, José Alberto dos Reis, Vol V, pág 160/161)
Também no caso vertente, não tendo sido citado para a acção o cônjuge do arrendatário de casa de morada de família, não lhe pode ser oposta a sentença que decrete o despejo.
No caso de relação subordinada, ou seja, "que pressupõe necessariamente a relação que foi objecto da acção, a sentença proferida nela aproveita ao terceiro, quando favorável, mas não o prejudica, quando desfavorável" (Alberto dos Reis, loc, cit, pág 160) sendo esta, nas palavras do prof. Antunes Varela, "a única solução que se coaduna com o princípio da eficácia relativa aceite na lei" (Manual de Processo Civil, Coimbra Editora,2ª edição, pág 728).
Em tal circunstância a ora A.( Ré não demandada na acção de despejo) terá de ser convencida, também ela, de que o arrendamento não pode subsistir e, assim, enquanto tal não suceder, não pode, quanto a ela, produzir quaisquer efeitos a sentença que declarou resolvido o contrato de arrendamento e decretou o despejo e, por isso, como é evidente, a A. pode continuar a viver no local arrendado. Ou seja, cabe ao vencedor da acção de despejo proposta apenas contra o marido arrendatário desencadear os mecanismos processuais destinados a convencer a A. do direito da aqui Ré à resolução do contrato de arrendamento da casa de morada de família. 5. Não se afigura, neste contexto, pelas razões expostas e por outras que a final salientaremos, de grande interesse discutir nesta acção de simples apreciação positiva (artigo 4º/2, alínea a) do C.P.C.) se a A. poderia deduzir ou não embargos de terceiro nos termos do artigo 1037º do C.P.C.(redacção anterior à revisão introduzida pelos Decretos-Leis 329-A/95, de 12 de Dezembro e 180/96, de 25 de Setembro que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997 - artigo 5º da Lei nº 28/96, de 2 de Agosto), disposição aqui aplicável, pois, como acima referido, a presente acção iniciou-se no dia 10-10-1994.
No entanto, na decisão recorrida, considerou-se, como já se disse, que os embargos não seriam admissíveis e, por conseguinte, o Tribunal teve por evidente que a A. tão pouco poderia pretender, por tal motivo, que se declarasse em acção de simples apreciação positiva ser titular do direito a fruir legitimamente da casa de morada de família arrendada pelo cônjuge marido.
Um tal entendimento levaria então, logicamente, a que igualmente se mostrasse inútil prosseguir a acção com elaboração da base instrutória podendo mesmo questionarmo-nos sobre a legitimidade da A. encarada sob o ponto de vista do interesse em agir.
Talvez não fosse caso de negar, a partir do referido entendimento da decisão recorrida, que não se acompanha, a utilidade desta acção de simples apreciação, pois admitindo, na tese da decisão recorrida, que a A. se encontra impedida de agir em juízo para poder continuar a utilizar o local arrendado, ela talvez tivesse interesse no reconhecimento de duas coisas particularmente relevantes: que não fora demandada como devia ter sido e que, não obstante tal omissão, a lei não lhe faculta nenhum remédio. Ora, conjugados estes elementos, a A. poderia pretender ressarcir-se dos prejuízos resultantes de um acto processual ilícito.
É por estas razões que nos sentimos na necessidade de tratar da questão da eventual impossibilidade da A. deduzir embargos de terceiro apesar de não ter sido demandada na acção de despejo e apesar de viver com marido e filhos no local arrendado que é há muitos anos a sua casa de morada de família.
6. A introdução na nossa lei da casa de morada de família dá-se com o Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro.
O objectivo da lei foi o de defender a estabilidade da habitação familiar - de a defender, agora não contra ameaças ou perigos externos, senão também contra ameaças ou perigos internos -, no interesse dos cônjuges e eventualmente dos filhos, tanto no decurso da vida conjugal em termos normais como nas situações de crise provocadas, quer pelo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens quer pelo falecimento de algum dos cônjuges.
Mais concretamente: a lei pretenderá, no primeiro caso, proteger cada um dos cônjuges contra actos de disposição sobre a casa de morada de família praticados pelo outro cônjuge e que possam pôr em perigo a estabilidade da habitação familiar; no segundo caso, a lei quererá que a casa de morada de família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribui-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e outro; finalmente, no terceiro caso o propósito da lei será o de assegurar ao cônjuge sobrevivo, tanto quanto possível, a sua permanência na casa de morada de família depois do falecimento do outro cônjuge. Ao falar-se em "protecção da casa de morada de família" (em sentido metafórico, como é óbvio, pois não é a casa ela própria que é objecto de protecção) são estes, fundamentalmente, os reais interesses que a lei tem intenção de proteger" (anotação ao Ac. do S.T.J. de 2-4-1987 B.M.J. 366-502 e seguintes pelo Prof. Pereira Coelho, R.L.J.,Ano 122º, pág 136).
Estamos face a "uma política de protecção da casa de morada de família com carácter global e integrado" (loc. cit, pág 137) que visa dar protecção à habitação da família "um pouco na sequência do pensamento programático da acção do Estado delineado nos artigos 65º e 67º da Constituição da República" (Código Civil Anotado, Antunes Varela, Vol IV, 2ª edição, pág 569). E acrescenta o referido autor: "o pensamento transparente da lei é o de proteger o interesse de qualquer dos cônjuges (e do agregado familiar, em geral) à habitação contra os actos de disposição do outro cônjuge, a título de (cônjuge) arrendatário" (loc. cit, pág 306).
Assim, para garantir a protecção da casa de morada de família contra actos que possam prejudicar a sua utilização, a lei atribui aos beneficiários da protecção, que são os cônjuges, o direito de anulação dos actos de alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada de família que sejam realizados sem o respectivo consentimento (artigo 1682º-A/2 e 1687º), assim como dos acordos que impliquem resolução ou denúncia do contrato de arrendamento pelo arrendatário ou revogação do arrendamento por mútuo consentimento (artigo 1682º-B); a lei (artigo 1793º do Código Civil e 1413º do C.P.C.) permite ainda que seja constituído ex novo arrendamento a favor de qualquer dos cônjuges na sequência de divórcio ou separação judicial de pessoa e bens podendo, na pendência da acção, ser fixado regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família (artigo 1407º/7 do C.P.C.); a lei, tratando-se de arrendamento, no caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens permite que se transmita para o cônjuge não arrendatário a posição de arrendatário (artigo 84º do R.A.U.), transmissão que apenas se produz se o arrendamento incidir sobre casa de morada de família, ou seja, "a residência habitual dos cônjuges, a sua residência principal" (Pereira Coelho, R.L.J. Ano 122º,pág 136).
Dispõem, portanto, os cônjuges para protecção da casa de morada de família de um conjunto de direitos que a lei lhes atribui entre os quais se conta ainda o direito de terem de ser accionados conjuntamente sempre que estejam em causa acções que tenham por objecto directa ou indirectamente a casa de morada de família (ver o actual artigo 28º-A do C.P.C.).
A política de protecção da casa de morada de família "pretende ser global no sentido de que os instrumentos legais em que se traduz devem aplicar-se qualquer que seja o regime de bens do casamento e qualquer que seja o direito através do qual a casa de morada de família é assegurada: direito real (de propriedade, usufruto ou outro) ou direito de crédito (arrendamento)"(R.L.J.,, Pereira Coelho, Ano 122º, pág 136).
Daqui decorre o seguinte: os instrumentos de protecção da casa de morada de família visam garantir a sua permanência e, portanto, hão-de obstar necessariamente à privação do gozo da coisa contra a vontade dos respectivos beneficiários. Ora, tanto face a eventuais agressões externas como internas, os titulares do direito à utilização da casa de morada de família não podem deixar, em razão desse direito, de dispor dos meios procedimentais adequados (artigo 2º/2 do C.P.C.).
Como salienta Pais de Sousa não se trata aqui "do problema da comunicação patrimonial da situação do arrendatário (o que acontece no arrendamento de cariz material como é o caso do arrendamento comercial ou semelhante; trata-se da especial protecção da casa de morada de família, na linha do direito constitucional à habitação - artigo 65º da Constituição- e à protecção da família). Segue-se, assim, que parece certo, embora por razões diferentes, a possibilidade de o cônjuge do arrendatário se opor à execução por embargos de terceiro, se não tiver sido accionado na acção de despejo, quer no caso de morada de família que lhe respeite, quer na hipótese de situação locatícia comercial ou semelhante que se tenha integrado em património que lhe seja comum (cfr. artigo 1038º do C.P.C. antes do Decreto-lei nº 329-A/95 e artigo 352º do C.P.C. após aquele Decreto-Lei. Tudo isto vale por dizer que, mesmo para quem entenda que a fase executiva da acção de despejo não comporta embargos de executado, pode decerto comportar embargos de terceiro. Estes podem ser usados, quando seja caso disso, mormente pelo cônjuge do executado" (Arrendamento Urbano, Notas Práticas, António Pais de Sousa, Cardona Ferreira, A.Lemos Jorge, Rei dos Livros, 1996, pág 202).
A protecção da casa de morada de família contra as agressões que lhe possam ser feitas pressupõe a tutela do respectivo gozo ou utilização, vocábulo este empregue pela lei (artigos 1775º/3 do Código Civil, 1407º/7 do C.P.C).
De uma forma geral a lei sempre que reconhece que o exercício de um direito pressupõe e implica o poder de facto sobre uma coisa atribui, como não pode deixar de ser, ao respectivo titular os necessários meios processuais de defesa.
Assim, fora do campo dos direitos reais, tem sido reconhecida a tutela possessória a meros detentores ou possuidores precários; para além da protecção concedida ao locatário enquanto titular de direito pessoal (artigo 1037º/2 do Código Civil) vejam-se, entre outros os casos, contemplados nos artigos 1125º/2 (parceiro pensador; a opção da lei resultou de um óbvio juízo de equidade),1133º/2 (comodatário), 1188º/2 (depositário).
Como salienta o Prof. Rui Pinto Duarte "a contraposição entre direitos reais e direitos de crédito não é dicotómica; há direitos privados patrimoniais que não se reconduzem a essas categorias; para englobar alguns deles é de fazer apelo à categoria ‘direitos pessoais de gozo’; o direito do locatário cabe aí.
Obviamente, tal entendimento não explica o fundamento da outorga dos meios possessórios em causa. Menezes Cordeiro afirma que o locatário (ao qual foi entregue a coisa locada) dispõe mesmo da posse -‘ainda que não extensiva à usucapião’. Há, porém, outras explicações possíveis. Entre elas a de também a posse ser susceptível de graus, ou seja, a de a contraposição entre posse propriamente dita e posse precária (ou detenção) também poder não ser dicotómica" (Curso de Direitos Reais, Principia, 2002, pág 288).
Não se tem negado a protecção possessória à casa de morada de família com o argumento de que tal protecção se não justifica designadamente por poder o respectivo beneficiário socorrer-se de outro meio processual; tão pouco se nega a protecção possessória com o argumento, que contrariaria toda a realidade, de não haver uma efectiva afectação da coisa com o correspondente poder de facto ou de a defesa da casa de morada de família se justificar apenas contra as agressões que ponham em causa o direito de que ela depende, mas já não contra as agressões que não chegassem a afectar tal direito. Assim, por exemplo, o cônjuge poderia pedir a anulação da denúncia do contrato de arrendamento da casa de morada de família feita pelo cônjuge-arrendatário, mas não poderia obstar ao esbulho violento por parte do senhorio na sequência dessa anulação.
As razões apresentadas têm assumido um cariz mais conceitual: o de que a tutela possessória pressupõe uma posse, ou seja, um exercício de poder de facto correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil) e, no caso, é manifesto que não há posse, mas mera detenção; por isso, salvo disposição expressa da lei, que, como se viu, se verifica noutros casos de posse precária ou mera detenção, não pode o "possuidor" da casa de morada de família recorrer aos meios possessórios. Mais se parece enraizar a convicção que nega a tutela possessória quando a casa de morada de família foi arrendada pois, como é pacífico entendimento, o arrendamento é incomunicável ao arrendatário.
Não nos devemos, porém, esquecer de que as realidades da vida nem sempre estão tingidas apenas por cores primárias não surpreendendo, assim, que as suas expressões jurídicas se projectem com os mais variados matizes.
Ora, no que respeita à casa de morada de família, a protecção legal tem sido realizada, mais do que pela expressa atribuição de poderes, pela adopção de um conjunto de impedimentos que visam, de forma indirecta, obstar a que seja posta em causa a sua estabilidade e permanência salvo vontade unânime em contrário dos cônjuges.
Não quer isto dizer que o casal que destinou a sua casa de morada de família o imóvel que arrendou ou comprou, para nos cingirmos aos casos mais comuns, não tenha a partir desse momento um direito que mereça tutela e que se pode cumular ou não com outra posição jurídica (de arrendatário, por exemplo).
No entanto, como a casa de morada de família nasce, vive e morre sempre à sombra e na medida de um direito real ou de crédito, também a sua protecção não pode deixar, a nosso ver, de ser assegurada na medida desse direito.
Por isso, dada uma tão íntima conexão entre a relação subordinante (arrendamento, propriedade, comodato) e a posição subordinada ( a do cônjuge não arrendatário, não proprietário, não comodatário), que naquela está envolvida em círculo interior concêntrico, a tutela da posição subordinada realiza-se afinal pelos meios processuais necessários concedidos pela lei ao titular da relação subordinante, não porque haja uma comunicabilidade de direitos, mas em razão da existência de um reconhecido direito de efectiva protecção da casa de morada de família.
Por outras palavras: se a lei obriga à intervenção do cônjuge em todos os actos que afectem a disponibilidade da casa de morada de família, mesmo quando está em causa o próprio direito de propriedade (veja-se que, no processo executivo, a lei impõe a citação para a execução do cônjuge do executado quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis que este não possa alienar livremente a fim de o cônjuge poder deduzir oposição à penhora e exercer, nas fases de execução posteriores à sua citação, todos os direitos que a lei processual confere ao executado: artigos 864º/1, alínea a) e 864º-B Revisão 1995/1996) a razão pela qual a lei não lhe atribuiu expressamente, como fez em relação a outros possuidores precários ou detentores, a possibilidade de usar dos meios facultados ao possuidor, explica-se pelo facto de a sua posição jurídica, por sua natureza própria e dependência, não poder deixar de receber imediata e automaticamente os poderes necessários que a lei coloca ao dispor do titular da relação subordinante sob pena de falta de protecção da casa de morada de família tanto mais que os meios possessórios são, na sua essência, meios de defesa face a agressões ilegais.
Seria incompreensível um regime legal que, reconhecendo a necessidade de protecção da casa de morada de família ao ponto de permitir impugnar os actos que a podem afectar, ou seja, concedendo meios de acção e que, do lado passivo, prescreve que essa protecção impõe o litisconsórcio necessário se estiver em causa, directa ou indirectamente a casa de morada de família, não permita outros meios de defesa (os meios de defesa da posse) face a agressões à mera fruição da casa de morada de família.
Se o cônjuge não arrendatário tem o direito de pedir a anulação dos actos de que resulte a perda do direito à sombra do qual a casa de morada de família é utilizada, o sentido teleológico da protecção da casa de morada de família impõe que ele se possa opor a todos os actos, ainda que judicialmente ordenados, que tenham posto em causa o direito que o cônjuge substantivamente poderia conseguir anular; e também pode o cônjuge defender-se de todas as agressões ao seu poder de utilização da casa de morada de família designadamente aquelas que perturbem ou afectem a utilização da coisa que não ponham sequer em causa o direito de crédito ou real subordinante (exemplo: pedido de restituição provisória de posse deduzido pelo cônjuge que vive em casa de morada de família face a um esbulho violento da coisa por terceiro). Assim como na sublocação o sublocador pode usar de todos os direitos concedidos ao senhorio precisamente porque a sua posição advém de um precedente contrato locativo, também aqui existe uma posição jurídica que comunga de um elemento caracterizador comum: a sua existência a partir de um contrato anterior sem o qual ela não pode subsistir.
A jurisprudência, embora não unanimemente, admitiu desde a primeira hora a possibilidade de serem deduzidos embargos de terceiro não obstante as dificuldades de caracterização desta figura jurídica. Assim, o Ac. da Relação de Lisboa de 14-11-1980 (Garcia da Fonseca),C.J., 5, pág 10 admitiu embargos de terceiro em situação similar à presente: a mulher e filhos corriam o risco de se ver privadas da sua habitação por não ter sido a mulher citada para a acção de despejo; o Ac. do S.T.J. de 28-1-1997 (Torres Paulo) C.J., Tomo I, pág 74 e B.M.J. 463-508 igualmente admitiu embargos de terceiro por parte de cônjuge não accionado em acção de despejo onde não se levantou qualquer questão sobre ilegitimidade; o Ac. do S.T.J. de 17-6-1997 (César Marques) C.J., 2, pág 130 também admitiu embargos de terceiro a execução que pretende consumar o despejo pela mulher que não interveio na acção proposta pelo marido.
7. A utilização de meios possessórios pelo cônjuge não proprietário (e, por maioria de razão, acrescenta-se, pelo cônjuge não arrendatário) não foi considerada inconstitucional: veja-se o Ac. do Trib. Const. de 2-11-1999 (Maria dos Prazeres Beleza),DR,II Série, nº 67 de 20- -3-2000, pág 5278
Já poderia suscitar as maiores dúvidas, no plano da constitucionalidade, designadamente por violação do princípio da confiança que vai ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição, admitir-se que a lei reconhece a necessidade de tutela da casa de morada de família e, depois, se recusa a reconhecer ao cônjuge a possibilidade de se defender de agressões ao seu legítimo direito de habitação dessa mesma casa de morada de família.
8. A admissibilidade da utilização de meios possessórios tem sido justificada considerando-se que o caso é de verdadeira lacuna da lei nos termos do artigo 10º, nº3 do Código civil " reclamada pelo espírito e pela unidade (coerência) do sistema já que não faz sentido que este, depois de estabelecer o dever de demandar ambos os cônjuges, vede uma reacção posterior do cônjuge não demandado contra a violação desse dever" (A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, Nuno Salter Cid, Almedina, 1996, pág 263) posição particularmente relevante visto que a admissibilidade do meio processual é vista segundo a perspectiva da necessidade de contrapor à omissão de um dever legal um meio de reacção prescindindo-se, assim, da demonstração de que o recurso ao processo mais não era do que a necessária consequência do reconhecimento de um direito (artigo 2º/2 do C.P.C.).
9. Estamos, no entanto, face a uma acção de simples apreciação.
Nestas acções o apuramento do interesse processual reveste a maior acuidade.
Na petição a A. não declarou qual era o seu interesse. No entanto impõe-se aqui,desde já, esclarecer o seguinte: a admitir-se a procedência da presente acção tal não significa que, por isso, a Ré não pudesse impedir a execução do despejo abrindo-se, portanto, a possibilidade de serem deduzidos embargos. É que "os embargos de terceiro fundados na violação da posse de terceiro, por qualquer diligência de carácter judicial, não constituem, é evidente, um simples incidente da instância, uma pura turbulência da relação processual...Os embargos envolvem a introdução de uma nova instância ao lado daquela na qual se filia o acto judicial ofensivo da posse.
Pense-se no caso frequente de ser o cônjuge do arrendatário condenado na resolução do arrendamento que vem reagir contra o despejo do imóvel, por não ter sido demandado na acção. A prova de que o mandado de despejo ofende realmente a posse do embargante constitui apenas o alvo da primeira fase do procedimento. A esta fase tem de seguir-se uma outra, destinada a saber se o fundamento da resolução do arrendamento invocado pelo autor procede ou não contra o vencedor da primeira fase dos embargos. E essa segunda fase dos embargos constitui, na sus essência, uma nova instância, a introdução de uma segunda relação processual" ("Do Anteprojecto ao Projecto do Código de Processo Civil" por Antunes Varela, R.L.J.,Ano 123º, pág 99).
Ora, no caso vertente, é bom não esquecer, a aqui A. intentou procedimento cautelar em que pretendia que a Ré fosse intimada a abster-se de promover execução da sentença de despejo "como acto preparatório de acção de simples apreciação positiva de um direito (direito a legitimamente fruir a casa de morada de família tomada de arrendamento pelo seu marido nos mesmos termos em que este o faz)".
Este procedimento foi considerado inviável, sem discrepância desde a decisão de 1ª instância até à decisão final do Supremo Tribunal de Justiça, pois traduzir-se-ia afinal num meio ilegal de obstar à execução da sentença o que só pode acontecer nos casos previstos na lei designadamente por meio de embargos de terceiro.
Quer isto dizer que o interesse processual que a A. pretende fazer valer outro não é, como, aliás, ela expressamente refere (ver requerimento inicial do apenso de providência cautelar não especificada), senão o de obter sentença que tenha o alcance de impedir que a Ré contra ela possa executar o despejo (artigo 383º/1; ver anterior correspondente artigo 384º do C.P.C.).
Assim, face a um tal propósito ilegal, a acção não pode deixar de improceder por estar deste modo comprovada a excepção material dilatória da falta de interesse processual, razões estas bem diferentes das que constam da decisão recorrido e que, pelos motivos expostos, não acompanhamos.
Decisão: nega-se provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.