BENFEITORIA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Sumário

Só há lugar ao pagamento de  indemnização por benfeitorias realizadas pelo possuidor da coisa se estiverem em causa benfeitorias necessárias ou benfeitorias úteis que não possam ser levantadas sem detrimento da coisa.
Só há lugar ao levantamento de benfeitorias úteis e de benfeitorias voluptuárias que não causem detrimento da coisa e que tenham sido realizadas de boa ou má fé quanto às primeiras e de boa fé quanto às segundas.
O pagamento de indemnização por benfeitorias necessárias pode ser exigido de imediato por estar em causa a realização de obras que o titular da coisa devia ter levado a efeito.
O pagamento de indemnização por benfeitorias úteis que não possam ser levantadas só pode ter lugar quando a coisa regressa à posse do seu titular, por só então se poder verificar o enriquecimento sem causa por parte deste último.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.
No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, Deolinda ..., residente na Rua do ..., ... Bairro Sr.ª da Cruz, 1500 Lisboa, intentou a presente acção declarativa de condenação com processo sumário, contra Herdeiros Incertos de Ilda ..., pedindo a condenação dos RR. a pagar à A. a quantia de Esc. 1.498.000$00, acrescida de juros vincendos até efectivo pagamento.
Fundamentou o seu pedido, alegando, em síntese, que em 21 de Dezembro de 1981 a mãe da A. prometeu comprar a Ilda ... o 2º andar Esq. do prédio n.º 5 da Rua ..., em Lisboa, do qual lhe foi conferida a posse em Janeiro de 1982, tendo sido acordado que a escritura seria celebrada até 90 dias depois do pagamento, escritura essa que foi sendo adiada e não chegou a ser realizada.
Sucede que nos últimos anos o imóvel tem servido de habitação temporária à A. e seu filho, tendo a A. procedido a obras de reparação urgentes no imóvel, face ao estado de deterioração do mesmo, despendendo para o efeito a quantia de Esc. 1.498.000$00. Tratando-se de benfeitorias necessárias que não podem ser levantadas sem detrimento do imóvel, tem a A. direito a ser ressarcida do valor despendido nas mesmas.
Citado o Ministério Público em representação dos RR. incertos, veio o mesmo contestar, alegando o desconhecimento dos factos alegados pela A., pugnando pela improcedência da acção.
Realizou-se audiência preliminar e foi proferido despacho saneador, procedendo-se à elaboração da base instrutória. Por fim,  procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, sendo depois proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo os RR. do pedido.
Inconformada com a decisão, veio a A. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
1 - A recorrente despendeu 1.498.000$00 em obras indispensáveis a assegurar condições mínimas de manutenção e habitabilidade do imóvel, configurando tal dispêndio um enriquecimento/benfeitoria necessária no imóvel e um dano para a recorrente.
2 - Pelas regras do enriquecimento sem causa, pela indispensável manutenção do imóvel e condições mínimas de habitabilidade a recorrente merece ser ressarcida dos gastos em imóvel propriedade dos réus.
A Sentença recorrida violou os arts. 473 e 1273-2 do Cód. Civil pelo que o recurso merece provimento, assim fazendo Vossas Excelências a mais lídima JUSTIÇA!!!
O Ministério Público contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde foram colhidos os legais vistos, pelo que, nada obstando ao conhecimento da apelação, cumpre decidir.
A questão a dirimir é a de saber se a recorrente tem, ou não, direito a ser indemnizada pelo valor das benfeitorias realizadas no imóvel que habita.
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II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
Consideram-se provados os seguintes factos:
1.  A A. é filha de Mercedes .... (1º)
2. Em 21 de Dezembro de 1981 a mãe da A. prometeu comprar a Ilda ... o 2º andar esquerdo do prédio n.º 5 da Rua ... em Lisboa, do qual lhe foi conferida a posse em Janeiro de 1982. (2º)
3. Ficou acordado entre a mãe da ora A. e a referida Ilda que a escritura seria celebrada até 90 dias "depois do pagamento". (3º)
4. Porém, por conveniência da referida Ilda foi adiada sine die a escritura tendo a mãe da ora A. instaurado no 17º Juízo Cível de Lisboa - 2ª Secção - Proc. 40/97 - acção de fixação judicial de prazo que se encontra pendente. (4º)
5. Na referida acção procedeu-se à notificação edital dos sucessores da referida Ilda que faleceu em 18 de Junho de 1984 e consideraram-se habilitados os herdeiros legais desconhecidos da referida Ilda para prosseguirem a acção. (5º)
6. O referido imóvel serviu de habitação a Mercedes ... até à data da sua morte em 1997 e desde então tem servido de habitação à A. e ao seu companheiro. (6º)
7. A A. procedeu a obras no imóvel, face ao estado de deterioração do mesmo.
8. Trata-se de um prédio com vários anos de construção e que tem sofrido algumas deteriorações pelo decurso do tempo e, nomeadamente, pelas invernias. (8º)
9. Face à grande deterioração das canalizações e infiltrações de humidade nas paredes de todo o imóvel, particularmente, na cozinha e casa de banho, veio a A. a contratar a empresa DIVIPINT, LDA. para proceder às seguintes obras de reparação:
- reparação de canalização,
- execução de reparações em tectos e paredes,
- pintura de tectos e paredes com tinta plástica,
- pintura de tectos de cozinha e casa de banho com esmalte acrílico, incluindo tratamento anti fungos e pintura de vãos de porta e rodapés em madeira. (9º)
10. A empresa contratada pela A. veio a proceder em Março e Abril do corrente ano de 1998 às referidas reparações no valor global de 1.498.000$00, que a A. liquidou àquela em 17 de Abril de 1998. (10º)
11. As obras de reparação do imóvel eram indispensáveis face ao estado de deterioração do mesmo e destinavam-se a evitar as infiltrações de água e humidade. (11º)

III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.
Estipula o artigo 216º do CC, subordinado à epígrafe “Benfeitorias”, que:
1. Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa.
2. As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias.
3. São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante.
Do teor do preceito se induz o conceito de benfeitorias como sendo as obras e despesas realizadas em propriedade alheia com vista a conservá-la, melhorá-la ou simplesmente embelezá-la, assim revestindo o carácter de necessárias, úteis ou voluptuárias.
No tocante às benfeitorias necessárias e úteis estabelece o art. 1273º do CC o seguinte:
I. Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis reali­zadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela.
2. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.
No que concerne às benfeitorias voluptuárias diz o art. 1275º que:
1. O possuidor de boa fé tem direito a levantar as ben­feitorias voluptuárias, não se dando detrimento da coisa; no caso contrário, não pode levantá-las nem haver o valor delas.
2. O possuidor de má fé perde, em qualquer caso, as ben­feitorias voluptuárias que haja feito.
Os preceitos em análise erigem as regras, que a seguir se enunciam, quanto a benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias.
Relativamente às primeiras adopta a regra de o possuidor da coisa, autor das benfeitorias, ter direito à indemnização, a calcular nos termos gerais do direito, quer seja possuidor de boa fé quer seja possuidor de má fé. O que se compreende, porque visando-se com tais benfeitorias evitar o detrimento da coisa, elas não podem deixar de ser vistas como realizadas no interesse do seu legítimo dono. Por isso, o titular da coisa beneficiada adquire sempre o direito à benfeitoria, não podendo haver cabimento para o seu levantamento, pois que se com ela se visou evitar o detrimento da coisa seria um contra-senso levantá-la para, inevitavelmente, provocar tal detrimento. Em contrapartida, e como princípio, o possuidor, de boa ou má fé, tem direito a ser indemnizado nos termos gerais do direito.
No tocante às benfeitorias úteis convenciona a regra de o possuidor da coisa, promotor de tais benfeitorias, ter direito a levantá-las (ius tollendi), desde que o possa fazer sem detrimento da coisa, quer seja possuidor de boa fé quer seja possuidor de má fé. Caso se não possa fazer o levantamento das benfeitorias úteis sem detrimento da coisa, o titular da coisa beneficiada adquire a benfeitoria e então,  quer o possuidor de boa fé quer o possuidor de má fé, tem direito a ser indemnizado, segundo as regras do enriquecimento sem causa.
No que respeita às benfeitorias voluptuárias a regra que o legislador estabelece é a de que o possuidor de boa fé tem o direito a levantá-las, quando não haja detrimento para a coisa. Se houver detrimento da coisa, o possuidor de boa fé não pode levantá-las e o titular da coisa adquire as benfeitorias. Se o possuidor estiver de má fé, nunca pode levantá-las e o proprietário adquire sempre as benfeitorias voluptuárias. E em qualquer destas hipóteses, nunca há lugar ao pagamento de indemnização[1].
Em síntese se pode afirmar que só há lugar ao pagamento de  indemnização por benfeitorias realizadas pelo possuidor da coisa se estiverem em causa benfeitorias necessárias ou benfeitorias úteis que não possam ser levantadas sem detrimento da coisa. E que só há lugar ao levantamento de benfeitorias úteis e de benfeitorias voluptuárias que não causem detrimento da coisa e que tenham sido realizadas de boa ou má fé quanto às primeiras e de boa fé quanto às segundas. E ainda que o pagamento de indemnização por benfeitorias necessárias pode ser exigido de imediato por estar em causa a realização de obras que o titular da coisa devia ter levado a efeito e que o pagamento de indemnização por benfeitorias úteis que não possam ser levantadas só pode ter lugar quando a coisa regressa à posse do seu titular, por só então se poder verificar o enriquecimento sem causa por parte deste último.
Ora, no caso em apreço dúvida se não suscita de que estamos em face de benfeitorias necessárias, uma vez que ficou provado, entre o mais, que as obras de reparação do imóvel eram indispensáveis face ao estado de deterioração do mesmo e destinavam-se a evitar as infiltrações de água e humidade.
Porém, entendeu-se na sentença que a A. não tinha direito à indemnização pedida, uma vez que o direito do possuidor à indemnização das benfeitorias necessárias e úteis só pode ser exercido quando o proprietário reivindica triunfantemente a coisa, sendo como que um contra-direito relativamente à pretensão reivindicatória, como referem Pires de Lima e Antunes Varela[2], aliás citando o acórdão da Relação de Évora, de 10.05.77[3].
Ora, não parece que no tocante às benfeitorias necessárias se possa defender que o direito à indemnização só pode ser exigido se a coisa for reivindicada pelo seu proprietário, não só por tal não decorrer da lei, como por não ser razoável, por poder conduzir a um enriquecimento ilegítimo do titular da coisa à custa do seu possuidor ou, pelo menos, abrir caminho a que aquele não tenha de efectuar qualquer reparação necessária, pois que o possuidor a faria e só teria de ser reembolsado com a entrega da coisa.
De resto, o Acórdão da Relação de Évora citado não diz o que a citação refere. O que diz é que “a indemnização por benfeitorias que não po­dem levantar-se sem detrimento da coisa, como re­sulta claro do disposto no art. 1273º-2 do Cód. civil, destina-se a evitar um enriquecimento sem causa, à custa do possuidor que é obrigado a entregar a coisa benfeitorizada.
Sem obrigação de entrega, não haverá, pois, direito a indemnização, como implicitamente se pressupõe na economia do disposto nos arts. 1.273º a 1275º do Cód.  Civil, é geralmente reconhecido e se declara mesmo expressamente no Código Civil alemão (§ 1 001)”.
Obviamente que o aresto em referência está-se a reportar às benfeitorias  úteis, que são aquelas a que alude o art. 1273º/2 do CC e as que podem dar direito a indemnização com vista a evitar-se o enriquecimento sem causa do titular da coisa. Não às benfeitorias necessárias. Aliás, em relação às reparações urgentes realizadas pelo locatário, o art. 1036º do CC consagra  o direito de reembolso, o que bem se harmoniza com um exercício imediato do direito à indemnização que deve ter lugar em relação às benfeitorias necessárias.
No tocante às benfeitorias úteis, por não serem necessárias, é que já se compreende  que apenas haja lugar ao seu levantamento quando a coisa é reivindicada pelo seu titular e que apenas haja lugar a indemnização se não puderem ser levantadas sem detrimento da coisa e deva evitar-se o enriquecimento sem causa daquele.
Sendo as benfeitorias realizadas pela A. benfeitorias necessárias, teria esta, em princípio, direito à indemnização respectiva, equivalente ao montante das despesas realizadas, apesar de os RR. contra quem é pedida como titulares do imóvel não terem pedido a entrega deste.
Sucede, porém, que o presente caso é peculiar na medida em que o imóvel benfeitorizado passou para a posse da mãe da A. em Janeiro de 1982, em virtude de esta o ter prometido comprar a Ilda ... e por não ter sido celebrada a escritura, conforme tinha sido acordado, até 90 dias "depois do pagamento”, corre termos acção de fixação judicial de prazo que se encontra pendente. O referido imóvel serviu de habitação a Mercedes ..., mãe da A., até à data da sua morte em 1997 e desde então tem servido de habitação à A. e ao seu companheiro.
Ora, tendo a mãe da A. a posse do imóvel e reivindicando a sua titularidade, através da realização da respectiva escritura que não fora efectuada, posição em que a A. lhe terá sucedido na qualidade de herdeira e que há longos anos deveria ter sido realizada, não pode assistir direito à A. a pedir indemnização a quem, afinal, não parece ser o legítimo titular do bem. A entender-se que em todo o caso assistia direito à indemnização por parte da A., sempre se estaria no caso em face de uma situação de abuso de direito, nos termos do art. 334º do CC., por o exercício do pretenso direito exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, ou pelo fim social ou económico desse direito. Na verdade, não parece conforme com os princípios da boa fé nem com os fins do direito que a mãe da A. e ultimamente esta tenham estado na posse do imóvel e pugnem, ainda que legitimamente, pela sua propriedade que, pelos vistos, de há muito tempo deveria estar na esfera jurídica daquela, quiçá hoje na da A., e simultaneamente  venha a Apelante pedir  uma indemnização por benfeitorias necessárias de quem sabe que não devia realizar as obras mas sim a escritura de  transferência da propriedade.
Por esta razão é que se entende que a acção não merece procedência.
Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida, ainda que por fundamentos não inteiramente coincidentes.
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IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento à apelação e confirma-se a sentença recorrida.
Custas nas instâncias pela apelante.

Lisboa,  3  Julho de 2003. 

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES
FERNANDA ISABEL PEREIRA
MARIA MANUELA GOMES

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[1] Vd. Oliveira Ascensão, in REAIS, 5ª Ed., pg. 108 e ss. e Menezes Cordeiro in Direitos Reais, pg. 514 e ss.
[2] in CC Anotado, Vol. III, 2ª ed., pg. 43.
[3] publicado na CJ, 1977, ano III, pg. 546-547.