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LIQUIDAÇÃO DA HERANÇA
Sumário
I- No processo de liquidação de herança vaga em benefício do Estado, há que saber se há sucessores em condições de ser habilitados. Caso contrário, será declarada vaga a herança para o Estado, seguindo-se, depois, a fase da liquidação, adjudicando-se ao Estado o que remanescer das operações, que, nesse âmbito, há que levar a efeito. II- A procuração é um negócio unilateral, enquanto o mandato é um contrato. No mandato, o mandatário tem o dever de o exercer, enquanto, na procuração, o procurador, não tendo esse dever, tem essa possibilidade ou poder. III- Uma procuração não tem, face às normas contidas nos arts. 2179º e segs. do C. Civil, o valor de um testamento, nem o substitui, não podendo ser invocada como título de vocação sucessória. IV - O procurador tem, em regra, interesse na procuração. Mas não é um qualquer interesse que leva a que a procuração seja considerada irrevogável. Tem de ser um interesse específico na conclusão do negócio que constitui a relação subjacente, um interesse directo, que só existe se o procurador for parte no negócio que constitui essa relação subjacente. V –Não carreando o procurador elementos suficientes que, submetidos a prova, sejam susceptíveis de demonstrar a vinculação do dominus num concreto negócio que funcionasse em benefício daquele e impeditivo de que, contra a vontade do mesmo procurador, fosse revogada a procuração, não é possível concluir pela irrevogabilidade desta, apesar da convenção nesse sentido. Daí que nada impeça que, com a morte do dominus, a procuração, assente numa relação de confiança entre o dominus e o procurador, caduque. VI- O art. 1132º do C.P. Civil reporta-se à habilitação de sucessores. VII– Mesmo defendendo a não extinção da procuração, há que considerar que a posição do dominus se transmite para os sucessores que, a partir da morte, ocuparão essa posição na relação de representação. Ora, são precisamente os sucessores que se cuida de habilitar, para tanto não bastando ter um crédito sobre a herança.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I
O Ministério Público, veio, nos termos do art. 1132º e segs. do CPC, propor acção de liquidação de herança jacente, por óbito de (C), com último domicílio na Rua ..., em Lisboa, alegando que:
O autor da sucessão faleceu em 8 de Janeiro de 1991, no estado de divorciado e não deixou descendentes, nem ascendentes, irmãos ou seus descendentes, nem outros colaterais até ao 4º grau.
Embora tenha feito aprovar testamento cerrado em 12 de Setembro de 1967, antes do seu divórcio, o certo é que tal testamento não foi localizado após o seu óbito, tudo levando a crer que foi destruído em vida pelo seu autor.
Terminou, dizendo que a herança deve ser declarada vaga para o Estado, procedendo-se subsequentemente à sua liquidação e requereu que se ordenasse o arrolamento dos bens descritos no doc. de fs. 9 e segs. e se ordenasse a citação, por éditos, de quaisquer interessados incertos para deduzirem a sua habilitação como sucessores.
(R), advogado, com domicílio profissional na R. ..., Seixal, veio, a fls. 78, requerer a sua habilitação como interessado na herança de (C), nos termos do disposto no art. 1132° do C.P.C., alegando, além do mais que aqui se dá por reproduzido, que:
É interessado na herança por ser titular de procuração irrevogável conferida também no seu interesse, que lhe permite dispor da totalidade dos bens do falecido.
O dito (C) conferiu-lhe mandado, com o intuito de assegurar o pagamento dos seus honorários por vários anos de trabalho e ainda no interesse dos empregados do falido, das pessoas que tinham negócios com o falecido, de (M), que com ele vivia e ainda dos seus sobrinhos.
Terminou dizendo, entre outras conclusões, que deve ser reconhecido como interessado nos presentes autos e representante do falecido por virtude de mandato irrevogável.
O Ministério Público contestou, conforme se pode ver a fs. 122 e segs., defendendo, designadamente, que (R) não integra quaisquer das classes de sucessíveis previstas nos art.°s 2132° e 2133° do C. Civil, e, não sendo este herdeiro legítimo, testamentário, nem tão-pouco por direito de representação, carece de legitimidade para deduzir habilitação na qualidade de sucessor do “de cujus”, motivo por que deve ser indeferida a requerida habilitação.
Foi, a fs. 283, com data de 06/06/2002, proferida decisão, na qual se julgou improcedente a habilitação deduzida e, inexistindo outros sucessíveis, nos termos do art. 2155º do Civil e art. 1133º, nº1 do CPC, declarou-se vaga para o Estado a herança de (C).
Inconformado com esta decisão, dela veio recorrer (R), concluindo as suas alegações pela seguinte forma (em síntese):
1ª - No caso dos presentes autos há que fazer a distinção entre mandato e procuração;
2ª - Enquanto que, regra geral, uma das causas de extinção do mandato é a morte do mandante,
3ª- No caso da procuração, a morte do dominus originário não é causa de extinção da procuração;
4ª- A regra geral relativa à morte enquanto causa extintiva de relações jurídicas é a do art. 2025º do Código Civil;
5ª- De acordo com a tese de Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in “A procuração Irrevogável”, a lei não considera a morte do dominus como causa de extinção da procuração;
6ª- A douta decisão recorrida, ao aplicar as normas dos arts. 1174º, al. a) e 1175º, ambos do Código Civil, violou o regime jurídico específico da procuração contido nos arts. 265º e segs. do Código Civil;
7ª- Para além disso, a douta sentença não esclareceu se, no caso em apreço, estaríamos perante uma situação de mandato com representação ou de representação sem mandato;
8ª- Ao caso em apreço apenas se aplicam as normas relativas à procuração;
9ª- Pelo que cumpre afastar as considerações vertidas na douta decisão sobre a morte do mandante ou sobre o mandato de interesse comum;
10ª- No caso dos presentes autos não foi afastada a irrevogabilidade da procuração outorgada ao recorrente;
11ª- Tal irrevogabilidade apenas poderá ser afastada nos termos da norma do art. 2025º do C. Civil e, em concreto, não se verifica nenhuma das situações aí previstas;
12ª- A procuração outorgada ao recorrente é uma “ procuração naturalmente irrevogável”;
13ª- Existe um interesse concreto do procurador na relação subjacente à procuração;
14ª- Tal interesse deriva do facto do procurador, aqui recorrente, ter um direito de crédito sobre o dominus, derivado da remuneração por este último devida em função dos anos de trabalho efectuado pelo primeiro como seu advogado;
15ª- Porque naturalmente irrevogável e conferida no interesse do procurador, a procuração não caducou com a morte do dominus;
16ª- A relação subjacente à procuração não constituiu para o dominus uma situação puramente activa, tendo também elementos passivos;
17ª - Mesmo que se entenda que a situação dos autos configura uma situação de «procuração convencionalmente irrevogável» a sentença não demonstra que se verificam quaisquer causas de excepção à regra de que «a natureza jurídica da procuração não exige a sua extinção em virtude da morte do dominus originário.
Conclui o Apelante que a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 265º e segs. e 2025º do C. Civil, pelo que deve ser revogada.
O Ministério Público contra-alegou, defendendo a manutenção da decisão.
*
O objecto do recurso, definido pelas conclusões do Apelante (arts. 684º, nº3 e 690º, nº1 do CPC), para além daquilo que é de conhecimento oficioso, consiste em apreciar se, na sentença se decidiu mal, ao considerar-se que a procuração em causa caducou com a morte do dominus, julgando-se improcedente a habilitação deduzida pelo Apelante.
*
II
No nº1 do art. 1132º do CPC, preceitua-se o seguinte:
« No caso de herança jacente, por não serem conhecidos os sucessores, por o Ministério Público pretender contestar a legitimidade dos que se apresentarem, ou por os sucessores conhecidos haverem repudiado a herança, tomar-se-ão as providências necessárias para assegurar a conservação dos bens e em seguida são citados, por éditos, quaisquer interessados incertos para deduzir a sua habilitação como sucessores...».
Determina-se neste artigo, além do mais, a citação de quaisquer interessados incertos para deduzir a sua habilitação como sucessores. Foi na sequência desta citação que se apresentou o Requerente, sendo, pois, a questão central a apreciar a de saber se lhe assiste a qualidade de sucessor e, assim, deferir ou não a habilitação.
De acordo com o disposto no art. 1133º, nº1 do mesmo Código, a herança é declarada vaga para o Estado se ninguém aparecer a habilitar-se ou se decaírem todos os que se apresentem como sucessores, estabelecendo-se no nº2 desse preceito, que feita a declaração do direito do Estado, proceder-se-á à liquidação da herança [na redacção anterior ao DL nº 180/96 de 25/09, estabelecia-se que em qualquer dos casos, proceder-se-á à liquidação da herança...] cobrando-se as dívidas activas, vendendo-se judicialmente os bens, satisfazendo-se o passivo e adjudicando-se ao Estado o remanescente.
Alberto dos Reis explica que, para que o Estado seja investido na posição de sucessor legítimo, não basta que a herança esteja jacente, por falta de herdeiros conhecidos; é indispensável que se profira sentença que declare vaga a herança para o Estado, ou que declare herdeiro o Estado. Julgada vaga a herança, proceder-se-á, então, à liquidação ( cf. Processos Especiais, reimpressão,Coimbra Editora, 1982, vol. II, pág. 299).
Do que se trata agora é, pois, de saber se há sucessores em condições de ser habilitados. Caso contrário, será declarada vaga a herança para o Estado, seguindo-se, depois, a fase da liquidação, adjudicando-se ao Estado o que remanescer das operações que, nesse âmbito, há que levar a efeito.
Conforme ensina Galvão Telles, in Direito das Sucessões, 3ª ed., Coimbra Editora, 1978, págs. 89 e segs., quando alguém falece, uma ou mais pessoas são chamadas a suceder. É-lhes oferecida a sucessão mediante a atribuição do direito de aceitar ou repudiar, sendo dois os títulos de vocação sucessória: a lei e a vontade. A sucessão legal desdobra-se em duas espécies: a sucessão legítima e a sucessão legitimária. Por sua vez, a sucessão voluntária apresenta duas subespécies: a testamentária e a contratual.
No art. 2026º do C. Civil indicam-se os aludidos títulos de vocação sucessória.
O testamento é, nos termos do nº1 do art. 2179º do C. Civil, o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles. Trata-se de um acto pessoal, insusceptível de ser feito por meio de representante ou de ficar dependente do arbítrio de outrem, quer pelo que toca à instituição de herdeiros ou nomeação de legatários, quer pelo que respeita ao objecto da herança ou do legado, quer pelo que pertence ao cumprimento das suas disposições (nº1 do art. 2182º do C.Civ.).
A sucessão contratual ocorre quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva, ou dispõe da sua própria sucessão ou da sucessão de terceiro ainda não aberta (nº1 do art. 2028º do C.Civ.).
Os sucessores são, de acordo com o art. 2030º, nº1 do C. Civ., herdeiros ou legatários.
O Apelante estribou-se numa procuração, que consta dos autos, entende que tal procuração é naturalmente irrevogável e, como tal, não caducou por morte do dominus, já que conferida no interesse do procurador, por virtude de um direito de crédito sobre o dominus, derivado da remuneração por anos de trabalho como seu advogado.
Na sentença, considerou-se, além do mais, que:
«Resulta dos autos que (C) constituiu procurador (R), a quem concedeu "os seguintes poderes: a) movimentar, fazendo levantamentos, as contas bancárias números ...vender no todo ou em parte os seguintes prédios ...pelos preços e condições que entender, dando quitação dos preços, assinando e requerendo o necessário para os citados fins podendo ser o mandatário o comprador...". (doc. junto a fls. 54 dos autos).
Nos termos ainda do referido documento o "mandatário está dispensado de prestar contas", sendo que as procuração "...é irrevogável nos termos do número dois do artigo mil cento e setenta do Código Civil." (cfr. doc. junto a fls. 54 dos autos).»
«... não é o facto de na declaração de vontade de (C) (autor da procuração junta aos autos a fls. 54) se ler que "a procuração é irrevogável nos termos do número dois do artigo mil cento e setenta do Código Civil" que a torna irrevogável, havendo que conhecer, concretamente, se ela foi conferida no interesse do mandatário - neste sentido v.g. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 11, pág. 740.
A lei não define o "interesse do procurador ou de terceiro" que se deva ter como relevante, pelo que será de atender à relação jurídica-basilar em que a procuração se baseia, "sendo caso típico daquele interesse ou de qualquer deles ter contra o dador de poderes uma pretensão à realização do negócio ou o direito a uma prestação" - Vaz Serra, RU, ano 109, pág. 124 e Acórdãos do STJ de 24.01.90 (BMJ n.° 393, pág. 588) e de 27.09.94 (CJ-STJ, 1994,111, pág. 68).
"Para haver mandato de interesse comum não basta que o mandatário ou o terceiro tenham um interesse qualquer, é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa, isto é, que o mandante, tendo o mandatário o poder de praticar actos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele, queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário ou terceiro tenham direito" -Acórdão do STJ de 03.06.97, BMJ n.° 468, pág. 361.
Não basta, assim qualquer interesse, como o da remuneração porventura devida pelo exercício do mandato conferido ao procurador (Acórdão do STJ de 13.02.96, CJ-STJ, 1996, 1 °, pág. 88).
No caso subjudice o requerente (R) limita-se a alegar que é titular de uma procuração irrevogável, não justificando o interesse comum subjacente à mesma, pelo que a mesma não se considera irrevogável.
Assim, com a morte do mandante (C), a referida procuração caducou, nos termos do preceituado nos art.s° 1174°, alínea a), e 1175° do C. Civil.
O Apelante discorda da conclusão de que não basta qualquer interesse, como o da remuneração porventura devida pelo exercício do mandato conferido ao procurador, entendendo que tal conclusão diz respeito somente ao caso do contrato de mandato. Não tinha – afirma – de justificar qualquer interesse comum subjacente à procuração irrevogável, bastando-lhe justificar o interesse próprio na remuneração que lhe é devida pelo procurador, em virtude dos anos de trabalho que despendeu como advogado do procurador.
A procuração – é sabido – é um negócio unilateral, enquanto o mandato é um contrato. No mandato, o mandatário tem o dever de exercer o mandato, enquanto, na procuração, o procurador, não tendo esse dever, tem essa possibilidade ou poder ( Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 43).
Seguindo este estudo de Pais de Vasconcelos, pode dele extrair-se, com interesse para o caso, o seguinte:
- No seu caso típico, através da procuração, o dominus atribui poderes ao procurador para que este o represente na prática de certo acto ou na celebração de determinado negócio jurídico por conta ou no interesse deste, reflectindo a procuração típica exclusivamente o interesse do dominus (pág.44);
- Mesmo no caso típico da procuração, o procurador mantém sempre algum grau de autonomia no exercício dos poderes de representação; o procurador, não se limitando a transmitir a vontade do dominus, exerce os poderes de representação recorrendo à sua própria vontade (pág. 45);
- A relação subjacente é a causa da procuração. É na relação subjacente que se encontra e da qual resulta a função económico-social que a procuração irá desempenhar.
É por causa da relação subjacente e para cumprimento do seu fim que é outorgada a procuração (pág. 59);
- O Código Civil, no artigo 265º, nº3, prevê a possibilidade de a procuração ter sido conferida também no interesse do procurador. A principal consequência dessa alteração no equilíbrio de interesses relevantes noa procuração é a irrevogabilidade da procuração (pág. 79);
- Não pode qualquer motivo ou razão do procurador justificar a irrevogabilidade da procuração ( pág. 79);
- Para a concretização do regime da procuração no interesse comum do procurador e do dominus, deve procurar saber-se que interesse é que é relevante para os efeitos de aferir se a procuração também foi outorgada no interesse do procurador (pág. 80);
- Para que se justifique a irrevogabilidade, o interesse do procurador tem necessariamente de ser independente do interesse do dominus, tem de ser um interesse próprio do procurador;
Para ser qualificada como procuração no interesse comum, esta deverá ser outorgada tendo em consideração um interesse próprio do procurador na conclusão ou na execução do negócio que constitui a relação subjacente (pág. 82);
- A mera convenção da irrevogabilidade não implica só por si a irrevogabilidade (pág. 83);
- O interesse primário deverá ser um interesse específico na conclusão do negócio que constitui a relação subjacente;
- O interesse tem de ser um interesse directo na conclusão do negócio;
O interesse só será directo se o procurador for parte no negócio que constitui a relação subjacente (pág. 84);
- Se for convencionada a irrevogabildiade de uma procuração de cuja relação subjacente resulte que o interesse é exclusivamente do dominus, ao nível da procuração a cláusula será ineficaz;
A irrevogabilidade da procuração vigora independentemente de estipulação na procuração, verificando-se desde que exista uma interesse relevante do procurador na procuração e que este interesse seja emergente da relação subjacente (pág. 87);
- Nos caos de procuração em que existam interesses de procurador ou terceiro, o dominus não tem legitimidade para proceder à livre revogação da procuração (pág. 141);
- A revogação da procuração naturalmente irrevogável pode ter efeitos também na relação subjacente. A irrevogabilidade natural resulta de a procuração ter, para o procurador ou terceiro uma utilidade para atingir determinados fins. Esses fins estão relacionados com o negócio que constitui a relação subjacente, consistindo normalmente em obter um instrumento célere e eficaz de executar uma garantia e obter o cumprimento do negócio pelo dominus, ou na possibilidade de o próprio procurador poder praticar os actos de cumprimento que caberiam e princípio, ao dominus. Para atingir esses fins, as partes acordam na outorga de uma procuração irrevogável. Ao acordarem nesse sentido, constituem um direito e o correspondente dever obrigacional de o dominus não revogar a procuração (pág. 170);
- Mesmo a autonomia privada cede perante a lei. Nos termos do art. 280º do Código Civil, o negócio cujo objecto vá contra a lei é nulo. No caso da estipulação da irrevogabilidade, desacompanhada de qualquer interesse primário que a justifique viola o art. 265º, nº2 e nº3 do Código Civil (pág. 175);
- A morte do dominus não é, necessariamente, uma causa de extinção da procuração (pág. 181);
- No caso da procuração naturalmente irrevogável não é de admitir a possibilidade de o dominus determinar por sua vontade a extinção desta por ocorrência da sua morte. Embora a procuração seja um negócio unilateral, o dominus não tem legitimidade para provocar unilateralmente a sua extinção (pág.182);
- Uma vez que a procuração se não extingue por morte do dominus, a posição deste transmite-se para os sucessores que, a partir dessa data, ocuparão essa posição na relação de representação. No caso de se tratar de uma procuração típica, estes poderão revogá-la, modificá-la, definir o conteúdo do seu interesse e exercer todos os direitos da titularidade do dominus nos mesmos moldes em que este o pudesse fazer (págs. 183-184);
- No caso típico da procuração no interesse exclusivo do dominus, em regra a morte deste determina a caducidade da relação subjacente (pág. 184);
- No caso da procuração naturalmente irrevogável, a regra não será a extinção da relação subjacente em virtude da morte do dominus. A relação subjacente é constituída por um negócio do qual resulta uma utilidade para o procurador, ou o terceiro, atingirem fins próprios (pág. 184);
- Em princípio a relação subjacente à procuração naturalmente irrevogável transmite-se para aos sucessores do dominus originário, pelo que a procuração se mantém em vigor (pág. 185).
Alega o Apelante que a procuração foi conferida também no seu interesse – tendo em vista a satisfação do crédito de honorários – e daí que seja irrevogável.
Na procuração em causa outorgam-se ao procurador diversos poderes, sendo possível a este movimentar contas bancárias, representar o dominus junto do Estado Português num processo de atribuição de reserva do prédio rústico Herdade de Morguenhos; bem como, no processo de indemnização pela expropriação desse prédio, receber a indemnização e dar quitação; vender, no todo ou em parte os prédios que ali se identificam, podendo ser o mandatário o comprador; doar esses prédios aos sobrinhos do dominus, por conta da quota disponível, etc., estando o mandatário dispensado de prestar contas. Mais se fez constar da procuração que é ela irrevogável nos termos nº2 do art. 1170º do C. Civil.
O Apelante invoca o facto de ser advogado e confidente, pessoa da inteira confiança do dominus, a quem tratou de processos complexos e com muitas despesas, sendo os eus honorários e despesas de valor superior a 45.000 contos. Refere ainda que o autor da procuração foi muito claro quer por escrito, quer verbalmente perante o requerente quanto à sua vontade “testamentária” ou de últimas disposições.
Naturalmente que a procuração em apreço não tem, face às normas contidas nos arts. 2179º e segs. do C. Civil, o valor de um testamento, nem o substitui, não podendo ser invocada como título de vocação sucessória. Tanto que se prova a existência de um testamento, que o Apelante afirma não lhe ter sido comunicada.
De tal procuração também não resulta a vinculação do dominus indiciadora da existência deste ou daquele negócio subjacente em concreto e os factos alegados também não suficientes, alvo melhor opinião, para se chegar à conclusão de que aquele se tenha querido vincular em termos obrigacionais, de modo a que, ainda que o pretendesse não pudesse revogar a procuração contra a vontade do procurador ou de terceiro interessado. Por exemplo, alude-se na procuração a prédios que podem ser vendidos, mas também doados.
Conclui-se, nas contra-alegações do Ministério Público, com toda a pertinência, que embora exista procuração outorgada a favor do Apelante, convenção da irrevogabilidade, desconhece-se se, ao abrigo da mesma, foram celebrados quaisquer contratos de mandato relativos a bens concretos da herança, entre o falecido e aquele, e que tenham sido celebrados no interesse do próprio interessado/advogado, ora apelante, a terceiros. E porque tal não foi alegado, foi decidido na sentença que a procuração em causa não pode ser considerada irrevogável, o que conduziu à sua extinção por morte do representado, como se fora uma procuração típica.
O procurador tem, em regra, interesse na procuração. Mas não é um qualquer interesse que leva a que essa procuração seja considerada irrevogável. Tem de ser um interesse específico na conclusão do negócio que constitui a relação subjacente, um interesse directo (que só existe se o procurador for parte no negócio que constitui essa relação subjacente).
Entende-se que o Apelante não carreou elementos suficientes que, submetidos a prova, fossem susceptíveis de se concluir pela vinculação do dominus num concreto negócio que funcionasse em beneficio daquele e impeditivo de que o mesmo pudesse, contra a vontade do procurador, revogar a procuração. Assim, face à factualidade constante dos autos não é possível concluir pela irrevogabilidade da procuração, apesar da convenção nesse sentido. Daí que nada impeça que, conforme se ponderou na sentença, com a morte do dominus, a procuração em apreço tenha caducado, assente, conforme alega o Apelante, numa relação de confiança entre aquele e o seu advogado de muitos anos. Neste sentido, pode ver-se o Ac. do STJ, de 23/04/91, acedido em www.dgsi.pt:
«I - Segundo o Código Civil, procuração é o negócio jurídico pelo qual alguém confere poderes de representação a outrem, isto é, poderes para celebrar em nome do dador de poderes, um ou vários negócios jurídicos; mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra.
II - O artigo 265 do Código Civil indica-nos quais os casos em que se extingue a procuração; nestes casos não se menciona a morte do outorgante, antes a cessação da relação jurídica que serve de base a procuração.
III - Não constituem objecto da sucessão as relações jurídicas que devam extinguir--se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei.
IV - Assim, não são transmissíveis por sucessão os direitos pessoais, ou seja, aqueles em que há uma inerência indiscutível do direito com o seu titular.
V - Com a morte do representado (dador de poderes) verifica-se a caducidade da procuração através da qual ele conferiu ao representante poderes para outorgar em seu nome escrituras de venda.»
De qualquer modo, decisivo, tendo em conta o que é visado nesta fase do processo, parece-nos ser o facto de o instrumento em apreço não ser suficiente para atribuir ao Apelante a qualidade de sucessor do falecido, pois não se enquadra nos títulos de vocação sucessória supra referidos. Na verdade, não estamos perante sucessão legal, nem testamentária, nem contratual.
O citado art. 1132º do C.P.Civil reporta-se à habilitação de sucessores.
Mesmo defendendo a não extinção da procuração, há que considerar, conforme refere o próprio Apelante, citando Pedro de Vasconcelos, que a posição do dominus transmite-se para os sucessores que, a partir da data da morte, ocuparão essa posição na relação de representação. Ora, são precisamente os sucessores que se cuida de habilitar nesta fase do processo, para tanto não bastando ter um crédito sobre a herança.
O alegado direito de crédito, decorrente de honorários em dívida, poderá ser exercido na fase da liquidação da herança, conforme se refere na sentença.
Retira-se do disposto no art. 2132º do C. Civil que o Estado é herdeiro legítimo e que, de acordo com o art. 2152º, é chamado à herança na falta de cônjuge e de todos os parentes sucessíveis.
Pelo exposto, entende-se que se decidiu bem ao julgar improcedente a habilitação e ao declarar-se vaga para o Estado a herança de (C).
Assim, julgando-se improcedente a apelação, mantém-se a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.