FUNDAMENTO DE FACTO
CONDUÇÃO PERIGOSA
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
SUBSIDIARIEDADE
Sumário

"I - A descrição dos factos provados só se pode referir aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e não pode descrever factos que não tenham qualquer influência no proferimento da decisão" .
II - Entre o crime doloso de condução perigosa e o crime negligente de homicídio, existe uma certa relação, eventualmente de subsidiariedade...".

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

No processo n.º 103/96 da Vara de Competência Mista Cível e Criminal de Sintra, por acórdão de 06-12-1999 (cfr. fls. 219 a 230), no que agora interessa, foi decidido:

«Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem o tribunal colectivo em julgar procedente a acusação e decidem:
A) Condenar o arguido (P) como autor de um crime de homicídio por negligência p. p pelo art° 137° n° 2 do cód. penal, na pena de TRÊS (3) ANOS DE PRISÃO, em concurso real, como autor de um crime de omissão de auxílio, p. p. pelo art° 200° n° l e 2 do cód. penal na pena de DEZOITO (18) MESES DE PRISÃO; como autor de um crime de ofensas à integridade física por negligência, p. e p. pelo art° 148° n° l do cód. penal, na PENA DE SEIS (6) MESES DE PRISÃO e como autor de um crime de condução perigosa de veiculo, p. e p. pelo art° 291° n° l al. b) do cód. penal, na PENA DE DEZOITO (18) MESES DE PRISÃO.
B) Efectuar o cúmulo Jurídico das penas parcelares, nos termos do art° 77° do cód. penal e condenar o arguido na PENA ÚNICA DE QUATRO (4) ANOS DE PRISÃO EFECTIVA.
C) Condenar ainda o arguido na taxa de justiça de 3 UC, bem como nas legais custas, com 1/4 de procuradoria a favor dos SSMJ e 1% da taxa de justiça nos termos do artº 13º n° 3 do D.L. 423/91 de 30.10. ...».

O supra aludido arguido não aceitou esta decisão e dela recorreu (cfr. fls. 234 a 257), extraindo da motivação as seguintes conclusões:

«1. A audiência de julgamento foi gravada e em consequência é admissível o recurso em matéria de facto, o que se solicitou;
2. A Douta Sentença, ora recorrida é absolutamente omissa no referente aos factos não provados, não referindo se existiram factos não provados, ou, havendo quais foram eles;
3. Não cabe ao Arguido presumir tal elemento da sentença;
4. O Arguido foi cerceado dos seus direitos de defesa, pois, não lhe é possível saber se o julgador tomou conhecimento de todas as questões em debate;
5. Existe uma nulidade da sentença ou do acórdão, nos termos do art.º 379º n.º l alínea a) do C.P.P., por violação do estipulado no art.º 374° n.º 2 que obriga à enumeração dos factos considerados pelo tribunal como provados e não provados;
6. No Douto Acórdão ora recorrido, constam factos não instrumentais, que não integravam a acusação ou a pronúncia, uma vez que resultaram da inquirição de testemunhas em sede de julgamento, assim, também não sabe o Arguido quais os restantes factos instrumentais ou essenciais apurados em sede de julgamento que o Douto Tribunal a quo terá considerado não provados;
7. O Douto Acórdão recorrido é nulo;
8. Como tal deverá ser ordenando o reenvio do processo para nova apreciação da matéria de facto nos termos do art.º 426º do C.P.P.;
9. A sentença, encontra-se também ferida de nulidade nos termos do art.º 379° n.° l alínea b), pois existe uma condenação do Arguido por factos e crimes diversos dos descritos na acusação, em violação flagrante do disposto nos art.°s 358° e 359º do C.P.P.;
10. O Arguido foi acusado por uns e posteriormente condenado por outros crimes, existindo uma clara diferença, que não resulta unicamente de diferente qualificação jurídica, mas sim de uma diferente factualidade e grau de culpa;
11. Embora fosse acusado da prática de três crimes sob a forma negligente, foi o Arguido posteriormente condenado por quatro crimes, sendo dois na forma dolosa, ao que acresce a inclusão na Douta Sentença, como provados, de factos omissos na acusação;
12. É na acusação que se determina o objecto do processo, os factos posteriormente surgidos têm de ser objecto de novo inquérito;
13. Existiu uma clara violação do objecto do processo, ou seja, uma alteração dos factos;
14. As alterações não substanciais, dos factos descritos na acusação importam nos termos do art.º 358° n.º l C.P.P. a sua comunicação ao arguido, concedendo-lhe prazo para a sua defesa;
15. Tal comunicação não existiu;
16. Existiu assim uma clara violação do direito à defesa, com absoluto desrespeito do Principio do Contraditório;
17. Existiu também uma clara alteração substancial dos factos descritos na acusação;
18. Tal alteração foi determinante para efeitos da condenação, quer na determinação dos factos em que se baseou a decisão judicial e fundamentais em termos por exemplo do grau de culpa, quer na determinação da moldura penal aplicável e que veio a ser aplicada;
19. Não foi dado o acordo a que se refere o art.º 359 n.º 2, assim, deveria o Douto Tribunal a quo, ter comunicado os novos factos ao Ministério Público para que fossem objecto do competente inquérito, tudo nos termos do art.º 359 do C.P.P.;
20. A comunicação não foi realizada;
21. A sentença, é assim, nula;
22. A presente nulidade, ao valorar para efeitos de determinação das normas aplicáveis e fixação da medida da pena certos factos que não constam da acusação, é insanável, nos termos legais citados;
23. O Douto Tribunal Superior, deverá, declarar a nulidade da sentença com a consequente repetição do julgamento, tudo nos termos dos art.°s 359º, 379°, 410° e 426º, todos do C.P.P.;
24. A Sentença recorrida, violou também o disposto no art.º 397° n.° l alínea c), pronunciando-se sobre questões de que não podia ter conhecimento, no caso matéria contra-ordenacional, que já foi objecto da competente e oportuna sanção e constituindo à presente data caso julgado, que como tal não pode nem deve ser sujeita a julgamento;
25. O Acórdão ora recorrido, padece ainda de um lapso, que se encontra logo no parágrafo inicial e embora a sua eliminação não importe modificação substancial, deverá ser corrigido nos termos do art.º 380°, n.°s l e 2 do C.P.P.;
26. A sentença ora recorrida, contém ainda uma obscuridade, que corrigida, poderá implicar uma alteração substancial, já que na folha n.° 3 da sentença, correspondente a fls. ... dos autos, no parágrafo que se inicia por: “O Arguido (P)”, existe uma referência a “momentos antes”, mas não se diz antes de quê?;
27. Tal facto, pode ter relevância no apuramento do comportamento do Arguido;
28. Assim, o Douto Tribunal a quem, deverá, não havendo alteração substancial, proceder à correcção da sentença, nesta parte e segundo o prescrito no art.º 380° n.° 2 do C.P.P., ou existindo aquela alteração, proceder nos termos dos art.°s 359°, 379º, 410° e 426º, todos do C.P.P.;
29 Em alguns pontos, a Douta Sentença do Tribunal a quo terá incorrido em erro de facto e na apreciação da prova, nos termos do art.º 410º, n.º 2 do C.P.P.:
30. Existiram também alguns factos que o Douto Tribunal não apreciou ou considerou relevantes, mas, em boa Justiça deveriam ter sido considerados como provados, em violação de igual preceito;
31. Bem como alguns factos notórios que não foram considerados pelo Douto Tribunal;
32. A reapreciação da prova referente à matéria de facto implicará a revogação do Douto Acórdão recorrido, mediante alteração das motivações de facto, nos termos peticionados e em consequência subsunção de forma diferente nos tipos de crime de que o Arguido vem acusado;
33. Assim, terá também de concluir-se que o Arguido terá praticado um único crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art.º 137º n.º l, ao invés do art.º 137 n.° 2, acrescido de um crime de omissão do dever de auxilio, embora com culpa reduzida p. e p. pelo art.º 200° n.° 1, sendo absolvido da prática dos crimes de condução perigosa e ofensas corporais p. e p. pelos art.°s 148º n.° l e 291º n.° l e n.º 2, todos do Código Penal;
34. Na determinação da medida da pena, deverão ser tidos em conta, nos termos dos art.°s 71º e 72º do C.P., como características atenuantes, que é uma pessoa casada, plenamente inserida socialmente em termos pessoais e profissionais, que os factos ocorreram à quase quatro anos, quando ainda era muito jovem, que agiu com negligência simples, que possui baixo grau de escolaridade e que se apresentou livre e pessoalmente às autoridades competentes, bem como a confissão parcial dos factos em sede de julgamento;
35. Desta forma, deve aplicar-se ao Arguido uma pena de multa, ou, quando muito pena de prisão até ao máximo, em cúmulo jurídico, de três anos, embora suspensa na sua execução e serão cumpridas as disposições referentes às regras de prevenção geral e especial dos tipos de crime em apreço.
Nestes termos, e nos demais de direito, que o Douto Tribunal Superior certamente suprirá, devem os autos ser:
a) declarados nulos por falta de indicação da matéria de facto não provada;
b) declarados nulos por considerarem factos e preceitos jurídicos que importam alteração substancial e não substancial dos factos, não tendo sido cumprido o formalismo legal prescrito;
c) declarados nulos, por o Tribunal ter conhecido de factos de que não podia ter conhecimento;
d) corrigidos nos lapsos e obscuridades invocados;
e) reapreciados no respeitante à matéria de facto erradamente dada como provada;
f) ser reapreciados no respeitante aos tipos de crime em que o arguido foi condenado;
g) e ser reduzidos na medida da pena aplicada. ...».

Admitido o recurso (cfr. fls. 263), e efectuadas as necessárias notificações, apresentaram resposta o Mº Pº (cfr. fls. 264 a 270) e os assistentes (ID)e (V) (cfr. fls. 280), que concluíram:

I – O Mº Pº
«1ª - Dando como provada toda a matéria de facto vertida na pronúncia e não tendo sido apresentada pelo arguido outra versão dos factos seria espúria a pretendida referência a factos não provados.
2ª - Todos os factos indiciariamente integradores das quatro infracções por que o arguido foi pronunciado foram considerados provados, pelo que preenchidos que ficaram todos os seus elementos típicos, bem andou o Tribunal em condenar o arguido pelo cometimento das quatro infracções.
3ª - Alguns elementos circunstanciais plasmados na decisão, v.g. o modelo do carro utilizado, que uma das vitimas revelou ter tido medo da condução do arguido ou um desabafo proferido por ele após o acidente, em nada influenciaram a incriminação feita ou afectaram a culpa do agente e por consequência a medida da pena.
4ª - O acidente deu-se devido a culpa grave e exclusiva do arguido - que violou grosseiramente as mais elementares regras estradais -, pelo que tinha a sua conduta forçosamente de ser integrada na norma do artigo 137 n° 2 do Cód. Penal.
5ª - Constitui jurisprudência dominante que em casos como o dos autos a prisão efectiva acautela adequadamente o fim da prevenção das penas.
6ª - As penas concretamente aplicadas revelam adequação ao verificado grau de culpa do agente e à danosidade provocada pela sua conduta.
Devem, pois, V. Exas. manter o douto acórdão na íntegra.»

II – Os assistentes (ID)e (V) acompanhando e fazendo suas as alegações produzidas pelo Mº Pº.

Subidos os autos a esta Relação, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta teve vista no processo (cfr. fls. 278).

Proferido o despacho preliminar e não havendo quaisquer questões a decidir em conferência, prosseguiram os autos, após os vistos dos Exm.°s Desembargadores Adjuntos, para julgamento em audiência, nos termos dos Art.ºs 419º e 421° do C.P.Penal.

Realizado o Julgamento com observância do formalismo legal, consoante se alcança da respectiva acta, cumpre agora apreciar e decidir.

*
O objecto do recurso, em face das conclusões da respectiva motivação, reporta-se às seguintes questões:
1 – existir nulidade do acórdão recorrido, nos termos do Art.º 379º, n.º 1, alínea a) do C.P.Penal, por violação do estipulado no Art.º 374º, n.º 2 do mesmo Código que obriga à enumeração dos factos considerados como não provados, o que não foi feito;
2 – encontrar-se também o acórdão em crise ferido de nulidade, nos termos do Art.º 379º, n.º 1, alínea b) do C.P.Penal, em virtude de existir condenação por factos e crimes diversos dos descritos na acusação, em violação do estatuído nos Art.ºs 358º e 359º do mesmo diploma;
3 - haver violação do disposto no Art.º 397°, n.° l, alínea c) do C.P.Penal, por o acórdão recorrido ter apreciado matéria contra-ordenacional de que não podia conhecer;
4 – existir uma obscuridade na factualidade dada como assente no acórdão recorrido, cuja correcção poderá vir a implicar uma alteração substancial;
5 – ocorrer violação do estabelecido no Art.º 410º, n.º 2, alínea a) do C.P.Penal;
6 - haver violação do estatuído no Art.º 410º, n.º 2, alínea c) do C.P.Penal;
7 – ser a dosimetria da pena de prisão aplicada em resultado do cúmulo jurídico manifestamente exagerada, devendo a mesma ser substituída por pena de multa ou, quando muito, por pena de prisão até ao máximo, em cúmulo jurídico, de três anos, embora suspensa na sua execução.

Muito embora a audiência tenha tido lugar com gravação áudio da prova nela produzida, tal prova não se mostra transcrita nem o recorrente impugna nos termos exigidos pelo Art.º 412º, n.ºs 3 e 4 do C.P.Penal.
Como assim, afigura-se-nos que este Tribunal não poderá conhecer da matéria de facto, já que não a poderá alterar nos termos do Art.º 431º do supra aludido Código.
No entanto, invoca a digna recorrente, nas respectivas “conclusões”, expressamente, no concernente à sentença em crise, a existência dos vícios previstos no Art.º 410°, n.° 2, alíneas a) e c) do predito diploma de direito adjectivo penal.
Tais vícios são de conhecimento oficioso pelo Tribunal ad quem, ainda que o recurso se encontre limitado à matéria de direito, conforme a doutrina constante do Acórdão de Jurisprudência Obrigatória n° 7/95 do S.T.J., de 19-10-95, in D.R., Série I-A, de 28-12-95: - «É oficioso pelo Tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410° n.° 2 do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.»
E porque os mesmos hão-de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (Art.º 410°, n.° 2 do C.P.Penal) convém que atentemos, desde já, na sentença recorrida que é do seguinte teor:
«2 - FUNDAMENTOS
2.1 - MOTIVAÇÃO DE FACTO:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
No dia 21 de Junho de 1996, por volta das 04H00 o arguido (P) conduzia o veículo ligeiro de passageiros, particular, da marca Mini, modelo 1000, ano de 1979, com matrícula (X), no itinerário denominado IC-19, no sentido Sintra > Lisboa.
Com ele seguiam no mesmo carro:
- (E) que ocupava o lugar ao lado do condutor;
- (C), que ocupava o lugar de trás; e,
- (G), que também ocupava o lugar de trás.
A referida via por onde circulavam tem cerca de 7 metros de largura, o piso encontrava-se seco e em bom estado de conservação, com duas faixas de rodagem no mesmo sentido, com separador central e com boa visibilidade.
O arguido (P) fazia uma condução exibicionista, em ziguezague e a cerca de 140 Km horários. A instabilidade e o medo sentidos dentro do carro levaram a passageira (C) a pedir ao arguido, momentos antes, que reduzisse a velocidade.
Ao km 9,7, junto ao Cacém e antes das bombas de gasolina da BP, ao descrever uma curva para a direita, o arguido (P) perdeu o controlo do carro por desatenção e excesso de velocidade, indo embater violentamente no separador central, com a parte da frente do lado direito, despistando-se de seguida.
Em consequência de tal embate a (E) sofreu um forte impacto do seu corpo contra a estrutura do veículo, o qual lhe provocou fracturas múltiplas do crânio, com perda de massa encefálica, fractura das 2a e 3a costelas do lado direito, escoriação no lábio inferior e região malar esquerda, (cfr. fls. 14, 15 e 26).
As fracturas no crânio e a perda de massa encefálica foram causa directa e necessária da morte imediata da (E).
Em consequência do embate a (C) sofreu uma entorse na região tibio-tarsica esquerda.
Ao actuar da forma descrita, o arguido não usou das cautelas necessárias e por falta de perícia e velocidade demasiado elevada para o local, embateu no separador central da via, lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha, perdendo o controlo do automóvel.
Ao fugir, sem prestar auxílio às vítimas, apesar de se ter apercebido do ocorrido, o arguido quis furtar-se às suas responsabilidades.
O arguido conduzia desatento, com velocidade inadequada, de modo a causar perigo e com total inobservância do dever de cuidado que lhe era exigível, susceptível de vir a causar o resultado verificado.
O arguido (P) conduzia sem ter carta de condução que legalmente o habilitasse a guiar automóveis, mesmo sabendo que tal conduta não lhe era permitida.
Logo após o sinistro, o arguido saiu do carro, abriu a porta do lado contrário onde se encontrava a (E), verificou que a mesma não manifestava quaisquer sinais de vida, exclamou: “Foda-se! Isto tinha de acontecer”! Dito isto, pôs-se de imediato em fuga, abandonando o local do acidente.
O arguido andou cerca de uma semana fugido e só se apresentou ao fim desse período na GNR de Lisboa, acompanhado do seu Advogado.
Fê-lo deliberadamente, para se subtrair às eventuais responsabilidades, consciente de que deixava os demais ocupantes sem quaisquer socorros nem ter providenciado pelos mesmos.
A (E) era licenciada em Direito pela Universidade Católica Portuguesa (doc. fls. 97).
O arguido confessou livre e espontaneamente a factualidade da acusação, com excepção da velocidade, embora admitisse que ia aproximadamente a 120 Km/hora e da condução em ziguezague que negou.
Trabalha actualmente como reposítor, aufere mensalmente cerca de 90.000$00 mensais; habita em casa própria, pagando cerca de 27.000$00 por mês; possui a 4a classe de instrução primária.
O proprietário do veículo (X),o (G), havia transferido a responsabilidade civil contra terceiros emergente de acidentes de viação para a Companhia de Seguros, nos termos constantes do contrato de fls. 131/133, cujo teor se dá como reproduzido.
*
2.1.1 - Meios de prova:
Os factos provados fundamentam-se na confissão parcial do arguido, que confirmou em grande parte a acusação, com excepção da velocidade de 140 km/hora e condução em “ziguezague”, que negou, nos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência, com destaque para (C), que ia no lugar traseiro do veículo, pedira para reduzir a velocidade e soube descrever com precisão os demais factos ocorridos, por se encontrar sóbria, lúcida e apenas com ligeiros ferimentos, revelando idoneidade, coerência e credibilidade perante o tribunal.
Serviram ainda de prova os documentos de fls. 15/18, 24, 28, 48/49, 51 e 97.
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2.2 – Motivação de direito:
Aos factos provados impõe-se aplicar o direito, fazendo o respectivo enquadramento normativo.
A acusação e pronúncia imputaram ao arguido a autoria material de:
- Um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art° 137° n° 2 do cód. penal, em concurso real com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art° 291° n° l al. a) do cód. penal, um crime de omissão de auxílio p. e p. pelo art° 200° n° 2 do cód. penal e ainda de um crime de ofensas à integridade física por negligência, p. e p. pelo art° 148° n° l do cód. penal.
Conforme alcança da factualidade acima descrita, resultaram integralmente provados os factos da pronúncia, pelo que apenas nos resta fazer a sua subsunção jurídica.
Quanto ao crime de ofensas à integridade física por negligência, p. e p. pelo art° 148° n° l do cód. penal, respeitante às lesões provocadas na passageira (C), apesar da moldura penal ser de prisão até um ano, a al. c) do n° l do art° 2° da Lei 29/99 de 12.05, exclui a aplicação da amnistia e do perdão aos infractores do código da estrada quando haja abandono de sinistrado, pelo que, não pode o arguido beneficiar da mesma.
As lesões sofridas pela passageira (C), consubstanciam lesões de natureza ligeira, pelo que se enquadra na previsão normativa do n° l do artigo citado, sendo manifesto ter o arguido cometido um crime p. e p. por aquela norma.
«O conceito de negligência compreende, não só as situações em que se não cumpre um determinado dever jurídico prescrito pela lei ou regulamento, como aquelas em que se não procede com diligencia que é um dever geral do cidadão.
A medida da negligência por falta da devida diligência deve ser aferida em função da maneira de proceder corrente no meio social ou profissional do agente». Ac. Rel. de Évora, de 04/02/92, in CJ – ano XVII, t. 1, pág.291.
Quanto ao crime de homicídio por negligência parece não restarem dúvidas quanto à sua verificação, atenta o disposto no art° 137° do cód. penal, já que se mostram verificados todos os elementos objectivos e subjectivos do mesmo, sendo certo que a inobservância do dever de cuidado no caso concreto exigível ao arguido se enquadra claramente na previsão da negligência grosseira atento o elevado grau e a irresponsabilidade da conduta.
«A negligência grosseira a que alude o art° 136°, n° 1 (hoje 137° n° 2) é uma negligência qualificada que consiste num comportamento de clara irreflexão ou ligeireza; ou na falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das cautelas aconselhadas nos actos correntes da vida. Consiste no esquecimento das precauções exigidas pela mais vulgar prudência, ou na omissão das precauções ou cautelas mais elementares». Ac. do STJ, de 27/05/93, proc. nº 43559, citado in Jurisprudência Penal de Simas Santos e Leal Henriques, pág.47.
Há que ter em conta que o arguido não tinha licença de condução, conduzia com exibicionismo, (palavras de testemunha vítima do acidente), a 140 Km/h, numa curva perigosa e em ziguezagues com um carro de pequena dimensão, velho e com 4 pessoas dentro. Atente-se ainda o facto de não se ter demonstrado existir qualquer outra circunstância externa ou acção de terceiros que tivesse contribuído para o descontrolo da viatura, o que demonstra que só a imperícia, o excesso de velocidade e a total inconsideração do condutor foram as causas do trágico acidente. Perante este quadro não restam dúvidas quanto ao grau mais elevado da negligência a imputar ao arguido.
Tendo-se demonstrado que a causa da morte da (E) resultou das lesões sofridas no acidente a que o arguido deu causa, concluímos ter o mesmo cometido um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art° 137° n° 2 do cód. penal, o qual é abstractamente punido com pena de prisão até cinco anos.
Ao arguido competia provar que o despiste e descontrolo da viatura se ficou a dever a circunstância alheia à sua vontade o que na verdade não logrou fazer.
Em situação semelhante decidiu o Tribunal da Relação:
«Não provando o arguido que a invasão da faixa de rodagem contrária (neste caso o embate contra o separador central) se ficou a dever a qualquer avaria mecânica ou a outro facto extraordinário estranho à sua vontade, é de concluir que o acidente ficou a dever-se a culpa sua...», Ac. Rel. Porto de 12.03.86, BMJ 355°, 435.
Assim, a imperícia, traduzida no embate contra o separador central da faixa de rodagem numa auto-estrada com a consequente perda de controlo do carro, a velocidade excessiva e a falta de carta de condução constituem um forte acervo circunstancial que reflectem a elevada gravidade da conduta do arguido.
A culpa deste é por isso grave e exclusiva.
«A culpa grave promana da circunstância de haver sido praticada uma manobra perigosa», Ac. STJ, de 23.10.91, in BMJ 410°, pág.391.
«O conceito de velocidade excessiva é relativo e depende de vários factores, entre eles, as características do veículo, as condições da via e a intensidade do tráfego», Ac. Rel. Porto, de 08.03.89, in CJ tomo II, 232.
Para além do homicídio negligente referido, o arguido cometeu ainda um crime de omissão de auxílio, uma vez que, após o sinistro e depois de ter verificado que a (E) não dava sinais de vida e que a (C) se encontrava ferida, não obstante ter consciência do seu acto, o mesmo pôs-se em fuga, não as socorrendo e vindo apenas a apresentar-se às autoridades uma semana depois. O facto da falecida não apresentar sinais de vida apôs o acidente, não exclui quanto a ela a verificação do crime de omissão de auxílio, dado que não se demonstrou que a mesma estivesse realmente morta, caso em que, seria discutível se o crime de omissão de auxílio se poderia dar como provado, uma vez que só os vivos carecem do mesmo. Impunha-se prestar-lhe o socorro devido, mormente por quem causou o acidente.
Esta actuação revela quanto a nós uma elevadíssima gravidade, demonstrando uma personalidade do arguido, deveras censurável, pois manifestou um total alheamento do sofrimento alheio, causado pela sua própria conduta irresponsável e até um desprezo pela vida humana, ao fugir depois de verificar que uma das ocupantes não apresentava sinais de vida e outra se encontrava ferida.
Com esta conduta, cometeu o arguido o crime p. e p. pelo art° 200° n° l e 2 do cód. penal, o qual é punido abstractamente com pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias.
Para além dos referidos cometeu ainda o arguido um crime de condução perigosa, p. e p. pelo art° 291° n° l al. b) do cód. penal.
O mesmo vinha acusado e pronunciado pela al. a) do n° l desta norma, todavia parece-nos ser de enquadrar na previsão da al. b), dado estarmos perante uma manifesta violação grosseira das regras de circulação rodoviária, face ao circunstancialismo acima descrito e por não se enquadrar a conduta em nenhuma das previsões da al. a).
Foi o arguido quem exclusivamente criou o perigo de onde resultou o acidente, sem intervenção de terceiros ou de factores externos acidentais, tendo plena consciência de que a condução por si efectuada era de molde a por em perigo a vida e integridade física daqueles que transportava consigo e até de outros.
Este crime é punido abstractamente com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
*
Impõe-se agora determinar a medida concreta das penas parcelares, em função da sua culpa, tendo em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e demais circunstâncias que não fazendo parte do tipo, deponham a seu favor ou contra si, em conformidade com as regras previstas no art° 71° do cód. penal.
Como agravantes, temos desde logo a salientar o elevado grau da negligência e a intensidade do dolo, este quanto crime de omissão de auxílio e condução perigosa, a enorme gravidade do resultado, traduzida na morte de uma jovem e nos ferimentos de outra; a sua conduta muito censurável posterior ao acidente traduzida no facto de só ao fim de 8 dias se ter apresentado às autoridades, sendo aqui de fazer a destrinça entre o acto de abandono propriamente dito e que faz parte do tipo de crime do art° 200° do cód. penal e a atitude subsequente de permanecer durante 8 dias fugido, elemento revelador de uma personalidade censurável e que deve relevar aqui como circunstância agravante geral.
A favor do mesmo não se vislumbra nenhuma circunstância atenuante digna de relevo, a não ser a sua idade relativamente jovem e a confissão parcial, embora esta pouco relevante para a descoberta da verdade, face ao condicionalismo objectivo dos factos e a prova existente.
*
Pelo crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art° 137º n° 2 do cód. penal, deverá o tribunal aplicar uma pena que se situe ligeiramente acima do meio da pena abstracta, atenta a gravidade objectiva da conduta e do resultado.
Pelo crime de omissão de auxílio, aquele que quanto a nós nos merece uma forre censurabilidade, inclusive no plano ético, entendemos ser de aplicar uma pena de prisão próxima do limite máximo, tendo em conta o que acima descrevemos e o que objectivamente resulta da matéria provada.
Para o crime de ofensa à integridade física por negligência, uma pena de prisão que se situe a meio da pena abstracta.
Finalmente, quanto ao crime de condução perigosa de veículo, temos por adequada uma pena de prisão situada no ponto médio da pena abstractamente prevista.
Em todos os casos a prisão terá de ser efectiva, atento o conjunto de circunstâncias agravantes e o reduzido número de atenuantes.
«Cometido o crime de homicídio involuntário, com culpa grave e exclusiva, é de afastar a substituição da prisão por multa.
As exigências de prevenção de crimes idênticos impõem a adopção de prisão efectiva». Ac. Rel. do Porto, de 05/03/86 in BMJ n° 355° pág. 435.
«Em caso de homicídio involuntário, cometido com culpa grave no exercício da condução, a pena a impor deve ser de prisão efectiva, salvo quando se verifiquem circunstâncias que a desaconselhem». Ac. do STJ, de 23/03/88 – BMJ n° 375 pág. 223; cfr. ainda Ac. do STJ de 17/11/82 e de 24/03/83, BMJ, n° 321, pág. 297 e n° 325° pág. 413.
Como se alcança da factualidade provada, nenhuma circunstância favorável ao arguido que pudesse desaconselhar a prisão efectiva se provou, pelo que entendemos ser esta a pena adequada ao caso concreto.
Veja-se ainda outro acórdão bem explícito nesta matéria:
«No caso de homicídio involuntário praticado no exercício da condução, com culpa grave e exclusiva do agente e sem concorrência de um circunstancialismo fortemente redutor da culpa, a pena de prisão não deve ser suspensa, nem sequer substituída por multa». Ac. STJ, de 06/03/91 BMJ – n° 405 – pág. 170.
A conduta do arguido foi muito grave na condução do veículo sem carta de condução e no elevado excesso de velocidade; foi gravíssima na omissão de auxílio, (abandonando uma pessoa sem sinais de vida e outra ferida) procurando fugir às suas responsabilidades.
Atente-se ainda no seguinte acórdão:
«Em caso de culpa grave e exclusiva do condutor, responsável por crime de homicídio por negligência, deve o mesmo ser condenado em pena não suspensa de prisão efectiva...», Ac Rel. Porto, de 08.03.89, in CJ tomo II, pág. 232.
Para além de ser conhecida a forte corrente jurisprudencial que defende e aplica a prisão efectiva em casos desta natureza, como a título de exemplo acima enumerámos, no caso em apreço, o grau de culpa e de ilicitude do arguido foi em relação a todos os ilícitos muito grave e sem nenhuma atenuante especial ou geral que pudesse contribuir para uma decisão diferente. ...».

E, por isso, foi proferida a decisão que se deixou transcrita no início do presente acórdão.

Vejamos:

Quanto à primeira questão, é de referir, desde logo, que o Art.º 374°, n,° 2 do C.P.Penal estatui que, na sentença, ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Devem ser submetidos a deliberação e votação pelo tribunal os factos alegados pela acusação e pela defesa e bem assim os que resultarem da discussão da causa (cfr. Art.º 368°, n.° 2 do supra aludido Código).
Isto quer dizer que, em audiência, as questões a decidir, para além de outras que resultem da discussão, são as constantes da acusação e da contestação.
E, por isso, a sentença, na sua fundamentação fáctica, deve conter a enumeração dos factos provados e dos não provados, os quais, em principio, terão que compreender, a um ou outro título, todos os factos provenientes daquela tríplice origem.
Esta exigência visa garantir que o tribunal contemplou todos os factos que foram submetidos à sua apreciação.
Porém, esta garantia tem que ser articulada com o fim em vista – a decisão de uma causa -, só tendo sentido enquanto se refere a factos úteis a essa decisão, na aplicação da ideia de que compete ao tribunal proceder a uma condensação que expurgue aquilo que não interessa.
A descrição dos factos provados e não provados só se pode referir aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e não pode compreender os factos que não tenham qualquer influência no proferimento da decisão.
Como não foi apresentada contestação pelo recorrente, torna-se imperioso salientar que o Tribunal a quo bem agiu ao cingir-se aos factos constantes da acusação que deu como integralmente provados e, ainda, quando deu como assentes alguns outros que, certamente, resultaram da discussão da causa e que, para além do mais, em nada vieram influenciar o núcleo essencial do thema probandum.
Constituiria, pois, um preconceito formalista, perfeitamente espúrio, afirmar a inexistência de quaisquer factos não provados, tal como parece pretender o recorrente.
Resulta, assim, à saciedade não ter ocorrido desrespeito pelo comando do Art.º 374°, n.° 2 do C.P.Penal.
Pelo que, não se verifica, de uma forma patente, qualquer nulidade insanável, susceptível de inquinar a sentença sub judice (cfr. Art.º 379°, n.° l, alínea a) do supra mencionado Código).

No que concerne à segunda questão, impõe-se, prima facie, dizer que o recorrente apenas vinha acusado de ter cometido, em autoria material e sob a forma consumada, um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos art.ºs 26° e 137° n° 2, do Cód. Penal, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos art.ºs 26° e 291° n° 1, al.) b), do mesmo Código e um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelos art.ºs 26° e 200° n° 2, do predito Código (cfr. fls. 45 e 46).
Contudo, quando recebeu o processo para designar dia para julgamento, o juiz procedeu a uma diferente qualificação jurídica dos factos, recebendo a acusação, com base nos mesmos, mas pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ofensas à integridade física por negligência p. e p. pelos art.ºs 26° e 148°, n° l, do Cód. Penal, isto para além das três infracções criminais mencionadas no parágrafo anterior (cfr. 69 a 72).
Apesar de se ter dado conhecimento ao recorrente de que assim se iria proceder, garantindo-se, deste modo, o seu direito a contra-argumentar sobre a divergente qualificação, o mesmo optou por não se pronunciar (cfr. fls. 63, 67 e 68).
Ora, em nosso entender, verifica-se que a conduta do tribunal a quo foi perfeitamente lícita (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 14-10-1999, C. J., Ano XXIV – 1999, Tomo IV, Págs. 150 e segs. e Acórdão da Relação do Porto de 16-05-2001, Ano XXVI – 2001, Tomo III, Págs. 236 e segs.).
Daí que, tendo o arguido sido condenado pela prática dos quatro crimes supra enunciados, com base, aliás, na factualidade indiciariamente constante da acusação que, conforme o já expendido, se deu como assente na sua totalidade, não seja possível entender-se que se operou qualquer alteração, substancial ou não substancial, dos factos nela descritos, à revelia do que vem estabelecido nos Art.ºs 358º e 359º do C.P.Penal.
Por conseguinte, é forçoso concluir que o acórdão recorrido não violou o disposto no Art.º 397°, n.° l, alínea b) do sobredito diploma de direito adjectivo penal, ao contrário do que defende o recorrente.

E também no que diz respeito à terceira questão, de igual modo, não se vislumbra que tenha sido violado o disposto no Art.º 397°, n.° l, alínea c) do C.P.Penal, já que a circunstância de, na motivação de facto do acórdão em crise, se ter dado como provado que o recorrente conduzia sem carta de condução que legalmente o habilitasse a conduzir automóveis, não constitui apreciação de matéria contra-ordenacional que lhe estivesse vedada em virtude das regras da competência ou do caso julgado, tal como se verifica da respectiva motivação de direito que a ela apenas faz referência para efeito de subsunção jurídica.

Perante a quarta questão, entendemos, igualmente, que inexiste a obscuridade aludida pelo recorrente, já que a expressão “momentos antes”, constante da factualidade dada como assente no acórdão recorrido, só pode, efectivamente, reportar-se ao espaço temporal imediato que precedeu a eclosão do acidente, conforme decorre, de uma forma inequívoca, do sentido da frase aí consignada, não havendo, assim, que efectuar qualquer correcção susceptível de motivar uma alteração substancial.

No respeitante à quinta questão, é manifesto que o que o recorrente põe em causa é o apuramento da matéria fáctica feito pelo Tribunal, adiantando a forma como ele próprio apreciaria a prova produzida.
Ora, na ordem jurídica portuguesa, é estabelecido como critério geral de apreciação a livre convicção ou livre apreciação da prova, nos termos do Art.º 127º do C.P.Penal.
A livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e motivável.
Já o Prof. Alberto dos Reis ensinava a este propósito que “o que está na base do conceito é o principio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas. ...O sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica...” (Código de Processo Civil Anotado, Volume III, Edição de 1981, Pág. 245).
Neste mesmo sentido, defende o Prof. Cavaleiro de Ferreira que o Julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório (Curso de Processo Penal, Vol. II, Edição de 1981, Págs. 297 e seg.).
Mais, o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o Julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. ÍI, Edição de 1993, Págs. 111 e seg.).
No que concerne a esta questão, decidiu já o S.T.J. que: “I – Quando o recorrente impugne matéria de facto, para que essa impugnação possa validamente ser tomada em consideração pela Relação, deve aquele especificar, com referência aos suportes técnicos da gravação, as provas que imponham decisão diversa da recorrida, e as que, na sua óptica, devem ser renovadas; II – O princípio contido no Art.º 127° do C.P.P, estabelece três tipos de critérios para a apreciação da prova com características e natureza completamente diferentes: haverá uma apreciação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra, também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente outra, já de carácter eminentemente subjectivo e que resulta da livre convicção do julgador, III - É certo que tudo isto se poderá conjugar, e também é certo que a prova assente ou resultante da livre convicção poderá ser motivada e fundamentada, mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão; IV – Seja como for, a motivação probatória compete sempre aos julgadores e não pode ser posta em confrontação com as convicções pessoais do recorrente (Acórdão de 18-01-2001, in Processo n.º 3105/00).
Ao tribunal superior não cabe fazer um segundo julgamento, mas uma reapreciação da decisão proferida em 1a instância, limitada ao exame e controle dos elementos probatórios valorados pelo tribunal a quo, a qual é feita em face das regras da experiência e da lógica.
Deste modo, ao Tribunal da Relação compete verificar a existência da prova, controlar a legalidade desta, inclusive do ponto de vista da observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório e publicidade e constatar a não adequação lógica da decisão relativamente a ela, afastando, em consequência, qualquer hipótese de os factos dados como provados não passarem de uma mera suspeita ou possibilidade.
Ora, deu-se como provado que, no dia 21 de Junho de 1996, por volta das 04H00, o arguido (P) conduzia o veículo ligeiro de passageiros, particular, da marca Mini, modelo 1000, ano de 1979, com matrícula (X), no itinerário denominado IC-19, no sentido Sintra > Lisboa, que com ele seguiam no mesmo carro: (E) que ocupava o lugar ao lado do condutor; (C), que ocupava o lugar de trás e (G), que também ocupava o lugar de trás, que a referida via por onde circulavam tem cerca de 7 metros de largura, o piso encontrava-se seco e em bom estado de conservação, com duas faixas de rodagem no mesmo sentido, com separador central e com boa visibilidade, que o arguido (P) fazia uma condução exibicionista, em ziguezague e a cerca de 140 Km horários, que a instabilidade e o medo sentidos dentro do carro levaram a passageira (C) a pedir ao arguido, momentos antes, que reduzisse a velocidade e que, ao km 9,7, junto ao Cacém e antes das bombas de gasolina da BP, ao descrever uma curva para a direita, o arguido (P) perdeu o controlo do carro por desatenção e excesso de velocidade, indo embater violentamente no separador central, com a parte da frente do lado direito, despistando-se de seguida.
Mais se deu como assente que, em consequência de tal embate, a (E) sofreu um forte impacto do seu corpo contra a estrutura do veículo, o qual lhe provocou fracturas múltiplas do crânio, com perda de massa encefálica, fractura das 2a e 3a costelas do lado direito, escoriação no lábio inferior e região malar esquerda, que as fracturas no crânio e a perda de massa encefálica foram causa directa e necessária da morte imediata da (E), que, em consequência do embate, a (C) sofreu uma entorse na região tibio-tarsica esquerda, que ao actuar da forma descrita, o arguido não usou das cautelas necessárias e por falta de perícia e velocidade demasiado elevada para o local, embateu no separador central da via, lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha, perdendo o controlo do automóvel, que, ao fugir, sem prestar auxílio às vítimas, apesar de se ter apercebido do ocorrido, o arguido quis furtar-se às suas responsabilidades.
Ficou, ainda, provado que o arguido conduzia desatento, com velocidade inadequada, de modo a causar perigo e com total inobservância do dever de cuidado que lhe era exigível, susceptível de vir a causar o resultado verificado, que o arguido (P) conduzia sem ter carta de condução que legalmente o habilitasse a guiar automóveis, mesmo sabendo que tal conduta não lhe era permitida, que, logo após o sinistro, o arguido saiu do carro, abriu a porta do lado contrário onde se encontrava a (E), verificou que a mesma não manifestava quaisquer sinais de vida, exclamou: “Foda-se! Isto tinha de acontecer”!, que dito isto, pôs-se de imediato em fuga, abandonando o local do acidente, que o arguido andou cerca de uma semana fugido e só se apresentou ao fim desse período na GNR de Lisboa, acompanhado do seu Advogado e que o fez deliberadamente, para se subtrair às eventuais responsabilidades, consciente de que deixava os demais ocupantes sem quaisquer socorros nem ter providenciado pelos mesmos.
Verifica-se, subsequentemente, que a fundamentação de tal factualidade revela a forma como o tribunal chegou à mesma, enunciando todo o percurso lógico percorrido.
Aliás, não restam dúvidas de que os factos provados foram minuciosamente apurados, revelando-se suficientes para a decisão de direito, sem que se consiga vislumbrar qualquer lacuna.
Em face de tudo o que se expendeu, importa concluir que inexiste o alegado vício de insuficiência, já que o tribunal a quo indicou as provas que serviram de base à sua convicção, nos termos do Art.º 127° do C.P.Penal, sendo os factos provados necessários e suficientes para fornecer um juízo seguro de condenação do recorrente como autor de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo Art.º 137°, n.° 2, em concurso real, com um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo Art.º 200°, n.°s l e 2, com um crime de ofensas à integridade física por negligência, p. e p. pelo Art.º 148°, n.° l e, ainda, com um crime de condução perigosa de veiculo, p. e p. pelo Art.º 291°, n.° l, alínea b), todos do C. Penal, tal como bem se entendeu no acórdão sob censura.

No que se refere à sexta questão, impõe-se, de imediato, salientar que, tal como vem configurado na alínea c) do n.° 2 do Art.º 410º do C.P.Penal, o vício aí referido ocorre quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou seja, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido ou quando se retira de um facto provado uma conclusão ilógica.
Trata-se de um erro ostensivo, evidente, que não passa despercebido ao homem de formação média.
Ora, conforme já se enunciou, os factos provados conduzem necessária e logicamente à conclusão de que o recorrente praticou os quatro crimes pelo qual vem condenado e não apenas dois, de acordo com o pretendido pelo recorrente.
A decisão sob recurso é coerente, dela constando os factos que permitem integrar os elementos constitutivos dos crimes de homicídio por negligência, de omissão de auxílio, de ofensas à integridade física por negligência e de condução perigosa de veiculo, sendo certo que, do seu texto, nada resulta que permita a concatenação do sustentado pelo recorrente.
Assim sendo, improcede, nesta parte, o recurso interposto, por não existir qualquer erro notório na apreciação da prova.

Defende, por último, o recorrente que apenas devia ter sido condenado em pena de multa ou, quando muito, em pena de prisão até ao máximo, em cúmulo jurídico, de três anos, embora suspensa na sua execução.
Em abstracto, correspondem aos crimes de homicídio por negligência, de omissão de auxílio, de ofensas à integridade física por negligência e de condução perigosa de veiculo, as penas até 5 anos de prisão, até 2 anos de prisão ou de multa até 240 dias, até 1 ano de prisão ou de multa até 120 dias e até 3 anos de prisão ou de multa, respectivamente (cfr. Art.ºs 137º, n.º 2, 200º, n.º 2, 148º, n.º 1 e 291º, n.º 1, alínea b), todos do C. Penal).
A medida concreta da pena de prisão é determinada de acordo com os critérios estabelecidos no n.° l do Art.º 71° do C. Penal.
Por conseguinte, tal medida deve ser determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, para o que, por força do n.° 2 desse Art.º 71°, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando-se, aí, a título exemplificativo, alguns desses factores, nomeadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente – alínea a); a intensidade do dolo ou da negligência – alínea b); os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram – alínea c); as condições pessoais do agente e a sua situação económica – alínea d) e a conduta anterior e posterior ao facto – alínea e).
Há que ter, porém, em conta que, “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (cfr. Art.º 40°, n.° 2 do mesmo Código).
Importa aqui, pois, referir o exarado no Acórdão do S.T.J. de 23-10-1996, publicado no B.M.J. 460°-410: “De acordo com estes princípios, o limite da pena é o da culpa do agente. O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios da prevenção geral, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.
A medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade. Dai para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras da prevenção especial. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade.”
O tribunal a quo fixou as penas parcelares de prisão em 3 anos de prisão pelo crime de homicídio por negligência, em 18 meses de prisão pelo crime de omissão de auxílio, em 6 meses de prisão pelo crime de ofensas à integridade física por negligência e em 18 meses de prisão pelo crime de condução perigosa de veículo e a pena global de prisão, resultante do cúmulo jurídico efectuado, em 4 anos de prisão.
Entende, no entanto, o recorrente que a condenação por si sofrida se revela particularmente excessiva, alegando, para tanto, que é uma pessoa casada, inserida socialmente de uma forma plena em termos pessoais e profissionais, que os factos ocorreram há quase quatro anos, quando ainda era muito jovem, que agiu com negligência simples, que se apresentou livre e pessoalmente às autoridades competentes e que confessou os factos de que vinha acusado.
Do compulsar dos autos, resulta que o grau de ilicitude da conduta do recorrente é muitíssimo elevado, atendendo a que, devido à sua condução não habilitada e exibicionista dum veículo automóvel de pequena dimensão, velho e com 4 pessoas dentro, em ziguezagues, a 140 Km/h, numa curva perigosa, resultou a morte de uma mulher ainda na flor da idade e ferimentos numa outra também jovem que nem sequer cuidou de socorrer por se ter posto de imediato em fuga, revelando, pois, um enorme desprezo pela vida de um outro ser humano, bem como uma flagrante indiferença perante o sofrimento alheio.
Não restam também dúvidas de que o dolo, nos crimes de omissão de auxílio e de condução perigosa de veículo, foi directo e com bastante intensidade, dado a forma que revestiu o seu comportamento.
Além disso, só se pode concluir que a negligência, nos crimes de homicídio e de ofensas à integridade física, foi grosseira, atingindo o mais elevado grau, já que a conduta do recorrente, ao contrário do que o mesmo parece sustentar, se traduziu numa grande irresponsabilidade e imperícia, por si só violadoras das mais elementares regras de prudência e de circulação rodoviária.
Todavia, importa relevar as circunstâncias pessoais e profissionais do recorrente, nomeadamente o facto de ser ainda um jovem na altura em que tudo ocorreu, bem como a confissão parcial do seu comportamento assumida em julgamento, embora com pouca relevância para a descoberta da verdade, atendendo à respectiva evidência.
Não pode deixar de se referir, ainda, que, entre o crime doloso de condução perigosa e o crime negligente de homicídio, existe até uma certa relação, eventualmente qualificável como de subsidiaridade, susceptível de, em ponderação conjunta, levar a que a medida das penas aplicadas em concreto seja mais benévola para o arguido.
Por conseguinte, concatenando todo o circunstancialismo fáctico dado como assente com o direito aplicável, ressalta que as penas parcelares fixadas no acórdão recorrido pela prática dos crimes de homicídio por negligência e de condução perigosa terão de ser modificadas, reduzindo-se as mesmas para 2 anos e 6 meses de prisão e 1 ano de prisão, respectivamente.
Deste modo, também a pena global de prisão, resultante do cúmulo jurídico, passará a quedar-se apenas pelos 3 anos.
O recorrente pretende, ainda, que se lhe suspenda a pena aplicada na sua execução, por entender dever beneficiar do estatuído no Art.º 50º, n.º 1 do C. Penal.
No entanto, carece o mesmo de razão, dado que não se verificam, no caso concreto, os fundamentos e o circunstancialismo que aconselham a suspensão da execução da pena, bem pelo contrário, antes se apura que as necessidades de reprovação e prevenção criminais afastam, manifestamente, tal desiderato, conforme se salienta, de uma forma esclarecida, no acórdão em crise.
Assim sendo, importa afirmar que o recurso merece parcial provimento, nesta parte, havendo, pois, que alterar o acórdão recorrido, em primeiro lugar, no que concerne a duas das penas parcelares e, subsequentemente, no que diz respeito à pena única, entendendo-se como adequada a condenação do arguido em 2 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo Art.º 137°, n.° 2 do C. Penal e em 1 ano de prisão pela prática do crime de condução perigosa de veiculo p. e p. pelo Art.º 291°, n.° l, alínea b) do mesmo Código e, por força do correspondente cúmulo jurídico, em 3 anos de prisão.

Impõe-se, ainda, reparar o manifesto lapso que consta do segundo parágrafo do relatório do acórdão em crise, já que aí se refere os factos constantes da acusação de fls. 69/72 e em consequência deles a imputação ao recorrente, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo Art.º 137°, n° 2 do C. Penal, em concurso real com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo Art.º 291°, n° l, alínea a) do C. Penal, um crime de omissão de auxílio p. e p. pelo Art.º 200°, n° 2 do C. Penal e, ainda, de um crime de ofensas à integridade física por negligência, p. e p. pelo Art.º 148°, n° l do C. Penal quando se deveria mencionar os factos constantes da acusação de fls. 45 e 46 e em consequência deles a imputação ao recorrente, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo Art.º 137°, n° 2 do C. Penal, em concurso real com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo Art.º 291°, n° l, alínea b) do C. Penal e um crime de omissão de auxílio p. e p. pelo Art.º 200°, n° 2 do C. Penal.
*
Pelo exposto, acordam os juízes em conceder parcial provimento ao recurso, alterando a sentença recorrida nos termos sobreditos e mantendo-a quanto ao demais.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC.
Lisboa, 15 Julho 2003
(José Ssimões de Carvalho)
(Gaspar de Almeida)
(Pulido Garcia)