FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
BURLA
CONCURSO
Sumário

Texto Integral

Acordam, em audiência, os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – No Tribunal Judicial da Ribeira Grande, 1.º Juízo – Processo Comum Singular n.º 284/99.5PCRGR - em que é arguído (E), e recorrente o Ministério Público, foi aquele acusado como autor de um crime de “falsificação de documento”, p.p. nos termos dos artºs. 255.º, al. a) e 256.º, nºs. 1, al, a) e 3, em concurso com um crime de “burla”, p.p. nos termos do art.º 217.º, n.º 1, todos do Código Penal.
Porém, havendo a acusação sido assim recebida, e designado dia para o julgamento, veio, na sequência deste, a ser proferida sentença, a qual, no essencial, dando como comprovados os factos constantes da mesma acusação, veio apenas a condenar o arguído como autor do imputado crime de burla, absolvendo-o do crime de falsificação de documento, por o Mm.º Juíz “a quo” haver entendido estar-se perante um concurso aparente ou impuro de normas, sendo o referido crime de falsificação consumido pelo crime de burla.

Assim, havendo esta decisão sido proferida ao arrepio da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, através do Assento n.º 8/2000, de 4 de Maio, in D.º R.ª n.º 119, I-A, da mesma, e como lhe era imposto, recorreu o M.º P.º, à luz do art.º 446.º, n.º 1, do C.P.P.
(...)

*
2 - Cumpre, pois, apreciar e decidir:

É o objecto do presente recurso, tão só, a prolação da decisão recorrida, pelo juíz singular, contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Vejamos:
Como acima foi referido, o arguído foi acusado de haver praticado um crime de “falsificação de documento”, p.p. nos termos dos artºs. 255.º, al. a) e 256.º, nºs. 1, al, a) e 3, em concurso com um crime de “burla”, p.p. nos termos do art.º 217.º, n.º 1, todos do Código Penal.
Porém, e apesar de comprovada, no essencial, a factualidade imputada ao mesmo, permitindo assim concluir-se pela prática dos referidos crimes, o Mm.º Juíz recorrido, contrariando a jurisprudência obrigatória fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, entendeu estar-se perante um concurso aparente ou impuro de crimes, em que a falsificação seria consumida pela burla, e, invocando o princípio ne bis in idem, condenou o arguído, apenas, como autor de um crime de burla.
Foi a seguinte, no essencial, a decisão impugnada:
 “(...)
2. Factos provados
a) Entre os dias 1 e 5 de Maio de 1999, veio à posse do arguido (E) um cheque com o n.º 4508492264, da conta à ordem n.º 48848910001 de que (J)era titular na Caixa Económica da Misericórdia de Ponta Delgada
b) De posse dele o arguido, ciente do conteúdo criminal da conduta a seguir descrita, preencheu o cheque escrevendo «=20.000$00» no valor, «P. Delgada» no local da emissão, «99/05/05» na data, «vinte mil escudos» no valor por extenso, e assinou com o nome «(J)», pretendendo entregar esse título a alguém que o trocasse em dinheiro.
c) O arguido representou a hipótese de o montante inscrito no título não ser pago pelo banco, que assim causava o prejuízo correspondente à pessoa que lhe trocasse o cheque e que colocava em causa o valor daquele título enquanto meio de pagamento.
c) Assim, no dia 5 de Maio de 1999, na companhia de (JE), o arguido solicitou a (JA) que lhe trocasse o cheque, o que este acedeu entregando ao arguido a quantia de 20.000$00 em dinheiro, uma vez que era conhecido do (JE) e estava convencido de que o título tinha sido emitido pelo titular do mesmo e que seria descontado pelo banco quando o apresentasse a pagamento; o que lhe foi assegurado pelo arguido.
d) O arguido tem cerca de 32 anos, não tem emprego fixo desempenhando várias actividades, entre mecânico e pintor, e auferindo cerca de 2,50 euros por hora. Nunca foi condenado pela prática de qualquer crime.
 
3. Factos não provados
Com interesse à decisão da causa não se apurou:
- que o arguido houvesse subtraído o cheque descrito em a);
- Que no dia 6 de Maio de 1999 (JP) houvesse tentado descontar o cheque na Caixa Económica da Misericórdia de Ponta Delgada tenha sido informado de que a assinatura aposta no cheque não correspondia à do titular da conta;
- Que por essa razão recusassem entregar-lhe o dinheiro titulado pelo cheque;
 
III - Motivação
4. Motivos de facto
A nossa convicção assentou nas declarações do arguido na parte em que admitiu ter ficado de posse do cheque, conjugadas com o teor do esclarecedor relatório de perícia lofoscópica de fls. 55 e ss. Aquelas declarações foram ainda conjugadas com o depoimento da testemunha (JE) no que respeita à entrega do cheque ao queixoso (JP), facto que foi presenciado pela referida testemunha. No mais, quanto às condições económicas do arguido e seus antecedentes criminais valeram ainda as suas declarações conjugadas com o teor do certificado de registo criminal de fls. 63.

5. Motivos de direito
5.1. Incriminação
5.1.1. O crime de falsificação
§ 1. A matéria de facto assente não consente dúvidas quanto à comissão, pelo arguido, dos elementos integrantes do crime de falsificação de documentos de que vem acusado. Os factos carregam nesta parte o toque doce das coisas evidentes - o arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivos do crime de falsificação agravado p. e p. pelo artigo 256.°, n.º 1 al. a) e n.º 3 do CP, com referência, quanto à definição de documento, ao artigo 255.°, al. a) do CP. Nada mais se justifica acrescentar quanto a este ponto.
5.1.2. O crime de burla
§ 2. Que estão também preenchidos os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de burla simples p. e p. pelo artigo 217.°, n.º 1 do CP é algo que não pode, fundadamente, colocar-se em causa. Com efeito, ao imitar ou tentar imitar assinatura de terceiro em declaração susceptível de relevar do ponto de vista jurídico; ao omitir a terceiro a sua falta de legitimidade para o endosso do cheque, sabendo que em tais títulos não estava inserta uma real declaração da pessoa a quem era atribuída a assinatura neles consignada; e actuando com o objectivo de obter o correspondente montante em dinheiro, ciente do dano assim poderia provocar ao ofendido, não pode deixar de concluir-se que o arguido preencheu os elementos objectivos e subjectivos das fattispecie criminosa em causa. E contra o que vem de dizer-se não vale argumentar o não se ter apurado se quem recebeu o cheque obteve ou não pagamento do montante nele inscrito. Das duas uma: ou aquele indivíduo não obteve pagamento e produziu-se logo um dano na sua esfera jurídica; ou obteve-o e “transferiu” esse dano para a esfera jurídica de terceiro. Em qualquer caso, mercê do modo de actuação do  arguido, utilizando cheque e imitando assinatura alheia para efeito de enganar a vítima, aquele título nunca poderia incorporar um real valor.
5.1.3. A questão do concurso.
§ 3. Por duas vezes o STJ fixou jurisprudência no sentido de que entre o crime de falsificação de documento e o de burla se verifica concurso real ou efectivo - Ac. de 19 de Fevereiro de 1992 e Assento n.º 8/2000, de 4 de Maio. Neste último aresto do mais Alto Tribunal, discreta-se essencialmente com base em dois argumentos: a) os bens jurídicos tutelados pelas duas incriminações são distintos; b) nenhuma relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção afasta o concurso real efectivo, nem entre os dois crimes intercede uma relação de “facto posterior não punível”. Salvo o respeito que se impõe não concordamos com uma tal doutrina, quer porque não se nos afigura a dogmaticamente mais acertada, quer, sobretudo, porque é susceptível de menoscabar princípio de dignidade constitucional.
§ 4. Quanto ao primeiro argumento, da disparidade dos bens jurídicos protegidos, sem prejuízo de entendermos não ser liquido que não tenham pontos de contacto ou até sobreposições (veja-se, por todos, a doutrina citada por HELENA MONIZ, Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, II, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 690, § 56), a consideração dele será, talvez, a que menos contribui para a resolução do nó górdio do problema. Pode-se, facilmente, ilustrar a afirmação com vários exemplos: aquele que agride outrem até matá-lo não comete, em concurso efectivo, um crime de ofensas à integridade física e um crime de homicídio; aquele que agride outrem para obrigá-lo a uma conduta não comete, em princípio, um crime de ofensas à integridade física e um crime de coacção; aquele que, violentamente, subtrai a outrém um objecto não comete, em princípio, um crime contra a integridade física e outro de roubo, etc. Em todos os casos apontados os bens jurídicos são distintos e nem por isso haverá concurso efectivo.
§ 5. A questão não está, no que ao caso concreto importa, na similitude ou diferença dos bens jurídicos protegidos. O problema reside, antes, em saber se uma determinada conduta, melhor um “pedaço de vida” que integra uma determinada conduta criminalmente relevante, está ou não contida em outro comportamento típico mais abrangente. E, no caso de concurso entre burla e falsificação, suposta a unicidade de resolução criminosa (evidente na espécie em causa, mas não tida em conta em ambos os aludidos acórdãos do STJ), afigura-se- nos inequívoco que o “crime-meio” está contido no “crime-fim”. A falsificação é tão só um meio, aliás em consonância com o elemento subjectivo especial da ilicitude que comporta (não se olvidará que devido à incongruência entre o tipo objectivo e a intenção requerida pela lei, que vai mais além daquele elemento objectivo, o crime de falsificação é um caso arquetípico de um crime de “resultado cortado” ou, como outros preferem, de “tendência interna transcendente”), de atingir um determinado fim. Substratiza, no crime de burla, o meio enganoso usado pelo agente para atingir o seu desiderato que é o enriquecimento. Trata- se, pois, a nosso ver, de um caso paradigmático de concurso aparente por intercedência, entre as incriminações, de uma relação de consunção. E de consunção impura, pois que é o crime punido com pena mais grave (a falsificação) que é consumido pelo menos grave (a burla) - neste sentido veja-se, ainda, HELENA MONIZ, ob. cit., p. 690, §§ 56 e 57.
§ 6. Mas, como acima já se deixou insinuado, ponto decisivo na resolução deste problema é o da conformidade constitucional da solução que se lhe dê. E estamos em crer que neste particular uma solução que enverede pelo tese do concurso efectivo não pode, mercê do acima exposto, furtar-se à censura da inconstitucionalidade material por violação do princípio ne bis in idem, de acordo com o qual “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” - artigo 29.º, n.º 5 da CRP. E, quando se queira ver nesta decisão uma violação da jurisprudência uniformizada do nosso mais Alto Tribunal (v. nota de rodapé) , então dir-se-á que se recusa a aplicação da mesma nos termos do artigo 204.° da CRP, porque a dimensão interpretativa dos artigos 256.°, n.º 1 al. a), 217.°, n.º 1 e 30.°, n.º 1 do CP, nela vazada, viola, a nosso ver e salvo melhor juízo, o artigo 29.°, n.º 5 da Constituição da República (assim, além da Autora já citada e da doutrina referida na p. 691, § 58 da dita obra, os votos de vencido constantes do Assento n.º 8/2000) (...)”.
            Importa dizer, antes de mais, e como é jurisprudência corrente, que estando aquí em causa uma decisão proferida em primeira instância por juíz singular, susceptível de recurso ordinário, contra jurisprudência fixada pelo S.T.J., o mesmo recurso deve ser interposto para o Tribunal da Relação.
            Assim, o Supremo Tribunal de Justiça, pelo Assento n.º 8/2000, de 4 de Maio, publicado no D.º R.ª n.º 119, I-A, de 23 de Maio, fixou a seguinte jurisprudência: “No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do art.º 256.º, n.º 1, alínea a), e do art.º 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes”.
            Por outro lado, dispõe o art.º 446.º, n.º 3, do C.P.P., que o Supremo Tribunal de Justiça, neste tipo de recursos, pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada. 
Ora, como também dizem Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 5.ª Edição, pg. 200, e reportados agora à intervenção desta Relação, cujo enquadramento assim haverá de ser feito, não havendo aquí qualquer conflito a dirimir “o que se configura é um meio impugnatório apto não só a fazer respeitar jurisprudência fixada anteriormente, mas também a possibilitar o reexame dessa jurisprudência.
            Não está, no entanto, o Supremo obrigado, por via deste recurso, a proceder a tal reexame, só devendo fazê-lo se entender que a jurisprudência fixada está ultrapassada. Se não for esse o caso, o Supremo limita-se a aplicar a jurisprudência fixada, revogando a decisão recorrida e revendo-a ou reenviando o processo, conforme os casos (...)”.
            Assim sendo, e feitas as devidas adaptações, não se considerando ultrapassada a jurisprudência fixada através do referido Assento n.º 8/2000, o qual se destinou a garantir a coerência e a estabilidade nas decisões judiciais, deve revogar-se a decisão recorrida, com o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do seu objecto, devendo a decisão que vier a ser proferida, por outro juíz, e caso se comprovem os respectivos factos, sê-lo no respeito pela doutrina do mesmo Assento.
            3 – Neste termos, e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em audiência, em revogar a decisão recorrida, ordenando-se o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto do mesmo, cumprindo-se, no demais, o disposto no art.º 426.º-A, do C.P.P.
            Sem custas.
            Lisboa, 20/11/03
(Almeida Cabral)
(Francisco Neves)
(Martins Simão)