INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
PRÉ-REFORMA
NULIDADE DE SENTENÇA
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I - Figurando nos acordos de pré-reforma dos AA. uma cláusula (a 3ª) segundo a qual o valor ilíquido mensal da prestação de pré-reforma é o correspondente a uma percentagem do valor da retribuição líquida que os mesmos receberiam se estivessem no activo e, uma outra, segundo a qual a prestação de pré-reforma será actualizada anualmente de acordo com os critérios da lei e em termos de continuar a ser garantido aos AA. um valor líquido apurado nos termos de clausula 3º, qualquer declaratório normal colocado na posição do real declaratário entenderia que tinha direito a uma prestação sempre actualizada e reportada a uma situação virtual, como se continuasse no exercício de funções, beneficiando de todos os aumentos remuneratórios do pessoal no activo.
II - A instituição para o pessoal no activo de um regime de anuidades em substituição das diuturnidades, em data posterior aos acordos de pré-reforma, vem a cair no âmbito de tais acordos por dever integrar a retribuição do activo e qualquer alteração ou eventual aumento que se verifique nas retribuições dos trabalhadores no activo se repercutir nas prestações dos trabalhadores pré-reformados (seja qual for a origem dessa actualização ou desse aumento.)

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO

A, B e C instauraram acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra
TAP Air Portugal, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhes as diferenças entre o valor das diuturnidades que deixaram de receber e o das anuidades a que têm direito, quer vencidas desde 1 de Novembro de 1997, quer vincendas, tudo a liquidar em execução de sentença.
Alegaram para tanto e em síntese o seguinte:
Foram admitidos ao serviço da Ré, respectivamente em 16/11/78, em 1710/70 e em 23/6/59, estando classificadas, ultimamente, com as seguintes categorias: Técnico de Reparação e Tratamento de Material Aeronáutico – 1º A.; Técnica Comercial Grau III – 2ª A. e Técnica de Tráfego – III – 3ª A.;
Desde, pelo menos 1990, a Ré tem incentivado as situações de cessação e/ou suspensão do contrato de trabalho dos seus efectivos, concedendo para o efeito aos reformados um complemento de reforma que integrava a pensão total de reforma e concedendo estímulos aos trabalhadores que cessassem ou suspendessem os seus contratos;
Aos trabalhadores entre os 55 e os 59 anos, e em alguns casos, a trabalhadores com idade inferior a 55 anos, a TAP concedia até à idade da reforma uma situação de pré-reforma, com suspensão do contrato de trabalho e pagamento de prestação.
Convencidos da inalterabilidade dos direitos que lhes eram concedidos, os 1º e 2º AA. e a Ré assinaram, em 25/11/96 e em 31/12/96, um acordo suspendendo o contrato de trabalho entre ambos existente, com efeitos até 1/6/97 e 11/6/97, respectivamente, data em que os segundos outorgantes passariam à situação de pré-reforma, tendo na mesma data celebrado um acordo de pré-reforma.
Com idêntica convicção a 3ª A. assinou, também, com a Ré, em 13/2/96, um acordo de pré-reforma.
Acontece que por protocolos assinados em 28/11/97 entre a Ré e o sindicato representativo do pessoal de terra foi instituído um regime de anuidades em substituição do regime de diuturnidades da companhia [DC] e de diuturnidades de função [DF];
Os trabalhadores reformados, os trabalhadores na situação de pré-reforma ou de suspensão de contrato deixaram de ter direito às diuturnidades e, como não lhes foi garantido o direito a anuidades, a Ré vem, agora, dizer que a percentagem acordada não incide sobre as novas diuturnidades contra o acordado na cláusula 3ª do Acordo de Pré-Reforma e a legítima expectativa dos AA. verem as suas prestações actualizadas nos mesmos termos e moldes dos colegas no activo, como lhes tinha sido prometido.
A Ré contestou a acção, alegando em resumo o seguinte:
Os créditos reclamados pelas AA. C e B encontram-se prescritos, já que desde a data da cessação dos seus contratos de trabalho até à data da citação decorreu mais de um ano.
O protocolo foi negociado entre a Ré e os sindicatos representativos do pessoal de terra, nos quais os AA. estão ou estavam filiados e que, por isso, os representava, pelo que não podem reclamar o que reclamam na acção, porquanto desse protocolo, vinculativo para os AA. por força da sua filiação sindical, resulta que a anuidade convencionada é apenas para pagar ao pessoal no activo.
Concluiu pela improcedência da lide e pela sua absolvição dos pedidos.
Os AA. responderam à excepção invocada pela Ré, tendo concluído pela sua improcedência.
A excepção da prescrição foi julgada improcedente no despacho saneador.

Saneada, instruída e julgada a causa, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou a TAP-Air Portugal, S.A., a pagar aos AA. as diferenças entre o valor das diuturnidades que deixaram de receber e o das anuidades a que têm direito:
(…)



As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes:
1. Saber se a sentença recorrida enferma da nulidade que a apelante lhe imputa (não conheceu de questão de que devia conhecer);
2. Saber se os AA. têm direito a que na actualização das suas prestações mensais seja levado em consideração o regime de anuidades, instituído na empresa em 28/11/87, em substituição do anterior regime das diuturnidades de companhia [DC] e de função [DF];
3. Saber se houve abuso do direito da parte do AA., ao instaurar a acção que instauraram contra a Ré, a reclamar o reconhecimento do referido direito.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. Os AA. foram admitidos ao serviço da Ré, em 16/11/78, 1/10/70 e 23/6/59, respectivamente, e por conta e sob a direcção desta passaram a trabalhar;
2. Tinham ultimamente as seguintes categorias profissionais: 1º autor – Técnico de Reparação e Tratamento de Material Aeronáutico; 2º autor – Técnico Comercial Grau III e 3º autor – Técnico de Tráfico;
3. À data em que foram celebrados os protocolos referidos em 19 os AA. eram filiados nos seguintes sindicatos: o 1º autor no SITAVA (sindicato dos trabalhadores de aviação e aeroportos) e as restantes no SQAC (sindicato dos quadros da aviação comercial);
(…)
12. Aos trabalhadores entre os 55 anos e os 59 anos, e em alguns casos, a trabalhadores com idade inferior a 55 anos, a TAP concedia até à idade da reforma uma situação de pré-reforma, com suspensão do contrato de trabalho e pagamento de prestação;
13. Nessa situação, a Ré atribuía uma prestação de pré-reforma, paga 14 meses por ano, cujo montante líquido era calculado sobre a prestação líquida auferida no termo do semestre em que o trabalhador perfaz a idade requerida, mediante a aplicação de uma percentagem variável, designadamente, com a antiguidade do trabalhador;
14. Na circular C4/14/96, a proposta oferecida pela Ré, emanada do Conselho de Administração, foi a seguinte:
“2. Pré-reformas
(...)
2.2. O regime de pré-reforma, que se mantém inalterado e continuará em vigor, oferece:
a) Uma prestação de pré-reforma, paga 14 meses em cada ano, cujo montante líquido, calculado sobre a retribuição líquida total auferida no termo do semestre em que o trabalhador perfaz a idade requerida, varia de acordo com a antiguidade do trabalhador também nessa data conforme a tabela seguinte:
(...)
b) Descontos para a segurança social (TSU) calculados sobre a retribuição do activo, pelo que não é prejudicada a constituição das pensões de reforma do Estado.
(...)
2. 3. São beneficiários da possibilidade de passagem à pré-reforma:
a) Os trabalhadores com idade igual ou superior a 55 anos;
b) Os trabalhadores com idade igual ou superior a 52 anos, em 31/12/95 e que:
(...)”
15. Mais garantia a Ré a actualização anual, em 1 de Janeiro de cada ano, da prestação de pré-reforma;
16. O 1º Autor e a 2ª Autora celebraram com a Ré acordos de suspensão do contrato de trabalho, nas datas que neles constam;
17. Nesses acordos constam, designadamente, as seguintes cláusulas, iguais em todos eles, salvo quanto a valores de prestação, retribuição anterior e percentagens de cálculo:
Cláusula 1ª: É suspenso, temporariamente, a partir do dia ... e até ao dia ...o contrato individual de trabalho sem termo entre ambos existente desde ....
Cláusula 2ª: A 1ª outorgante durante o período de suspensão acordado na cláusula anterior, fica obrigada, perante o 2º outorgante, a:
a) Pagar-lhe uma prestação retributiva ilíquida mensal de .... esc., cujo valor líquido corresponde ....% do valor líquido da remuneração mensal por ele actualmente percebida, de acordo com as regras actualmente em vigor para o cálculo da prestação de pré-reforma.
b) Manter-lhe as facilidades de passagens de que beneficiaria se ao serviço efectivo se encontrasse (extensiva aos familiares elegíveis pelo respectivo regulamento), a facultar-lhe a utilização do refeitório dos seus Serviços de Saúde, e a garantir-lhe um seguro de doença e um seguro de vida, tudo nas condições em cada momento vigentes.
Cláusula 3ª: Sempre que haja actualização geral das remunerações do pessoal no efectivo da empresa, a prestação retributiva referida na alínea a) da precedente cláusula 2ª será actualizada na mesma percentagem.

(…)
18. Os valores de prestação devida pela suspensão do contrato, e percentagem de cálculo são, para o 1º autor e 2ª autora, e de acordo com as cláusulas 2ª dos respectivos acordos, os seguintes: 144.332$00 e 75% e 220.149$00 e 85%, respectivamente;
19. Todos os autores e Ré celebraram os acordos de pré-reforma juntos aos autos nas datas que neles constam;
20. Nesses acordos constam, designadamente, as seguintes cláusulas, iguais em todos eles, salvo quanto a valores de prestação, retribuição anterior e percentagens de cálculo:
Cláusula 1ª: A 1ª outorgante e o 2º outorgante acordam na suspensão do contrato individual de trabalho entre ambos existente, com efeitos a partir do dia ..., inclusivé, data em que o 2º outorgante passará á situação de pré-reforma, nos termos do presente acordo e do disposto no Decreto-lei n.º 261791, de 25 de Julho.
Cláusula 2ª: 1. A partir da data referida na cláusula anterior, a 1ª outorgante pagará mensalmente ao 2º outorgante a prestação de pré-reforma de esc. ....$00.
2. No cálculo da prestação ilíquida de pré-reforma referida no n.º 1 desta cláusula tomou-se por base a última retribuição ilíquida pelo 2º outorgante auferida, no montante de esc. ...mensais (remuneração de base acrescida das demais compensações fixas).
3. Nos meses de Junho e de Dezembro a prestação de pré-reforma será paga em dobro.
4. A TAP depositará mensalmente na conta bancária do 2º outorgante o valor líquido resultante da prestação ilíquida de pré-reforma.
Cláusula 3ª: O valor ilíquido mensal da prestação de pré-reforma referido na cláusula anterior é o correspondente a uma percentagem (...%) do valor da retribuição líquida que o 2º outorgante receberia se estivesse no activo, acrescido dos valores de IRS e TSU aplicáveis nos termos legais.
Cláusula 4ª: 1. A prestação de pré-reforma será actualizada anualmente de acordo com os critérios da lei, em termos de continuar a ser garantido ao 2º outorgante um valor líquido apurado nos termos da cláusula 3ª.
2. A actualização anual será em percentagem igual á que o 2º outorgante teria se continuasse no activo ou, caso aquele aumento não exista, à taxa de inflacção.
Cláusula 5ª: 1. A 1ª e o 2º outorgante estão sujeitos a contribuições para a segurança Social, as quais, por força do DL 261/91, de 25/6, incidem sobre o valor da remuneração que serviu de base ao cálculo da prestação de pré-reforma do mês a que respeitam.
2. A remuneração a declarar à Segurança Social será a que serviu de base cálculo da prestação de pré-reforma, ou seja, a definida no n.º 2 da cláusula 2ª deste contrato, com as subsequentes actualizações anuais.
Cláusula 9ª: 1. A situação de pré-reforma extingue-se, nos termos legais:
a) Com a passagem do 2º outorgante à situação de reforma, logo que atingida a idade mínima legal em que, como trabalhador da TAP, pode requerê-la, ou com a passagem à situação de reforma por invalidez.
b) Com regresso do 2º outorgante ao exercício de funções, seja por acordo entre e a 1ª outorgante, seja nos termos da cláusula 8ª;
2. Sempre que a extinção da pré-reforma resulte de cessação do contrato de trabalho que conferisse ao 2º outorgante direito a indemnização ou compensação caso estivesse no pleno exercício das suas funções, ele tem direito a uma indemnização correspondente no montante das prestações de pré-reforma até à idade legal de reforma.
3. A indemnização referida no número anterior tem por base a última prestação de pré-reforma devida à data da cessação do contrato de trabalho.
21. Os valores de prestação de pré-reforma, retribuição anterior e percentagem de cálculo são, para cada um dos autores e de acordo com as cláusulas 2ª e 3ª dos respectivos acordos, os seguintes: 119.009$00, 189.000$00 e 75%; 181.417$00, 262.135$00 e 85%; 239.967$00, 282.996$00 e 100%, respectivamente;
22. Por protocolos assinados em 28/11/97 entre a Ré e os sindicatos representativos do pessoal de terra, designadamente o SITEMA, o SITAVA, o SNET/SETS, o SIMA, o STV, o SQAC, o STADE, o SICONT, o SE e o SINTAC, foi instituído um regime de anuidades em substituição do regime de diuturnidades de Companhia (DC) e diuturnidades de função (DF);
23. Na aplicação do novo regime ficou garantido que nenhum trabalhador teria qualquer redução do total recebido de DC e DF, nos termos do ponto 2.4. desses protocolos;
24. E para efeitos do regime de anuidades não contavam os períodos de licença sem retribuição, nos termos do ponto 2.3. desses protocolos;
25. Os protocolos referidos em 22. visavam apenas a situação do pessoal de terra no activo;
26. A atribuição das anuidades, em substituição das diuturnidades, acordada entre a Ré e os sindicatos do pessoal de terra referidos em 22, destinou-se, além do mais, a compensar o aumento da produtividade do pessoal de terra no activo, subsequente à redução de efectivos – em que se inclui a saída do activo de trabalhadores como os autores -, levada a cabo no âmbito do programa de recuperação e saneamento económico-financeiro da TAP;
27. Aos trabalhadores reformados, aos trabalhadores na situação de pré-reforma ou de suspensão do contrato de trabalho não foi garantido o direito às anuidades;
28. O valor das anuidades excede o valor da soma das DC e DF;
29. A Ré, nos recibos de vencimento mensal, e para efeitos, exclusivamente, de descontos para a Segurança Social, inclui as anuidades a que os AA. teriam direito se estivessem no activo;
30. Todos os trabalhadores de terra no activo deixaram de ter diuturnidades passando a ser substituídas por anuidades nos termos dos Protocolos de 28/11/97;
31. O montante que passou a vigorar, e a ser pago mensalmente, acumulando-se por permanência de anos de função, foi o seguinte: 1997 – 1.510$00; 1998 – 2.030$00; 1999 – 2.500$00; 2000 – 3.100$00; 2001 – 3.100$00; 2002 – 15,46 euros;
32. A 2ª autora, B, reformou-se por velhice em 11/6/2002;
33. A 3ª autora, C , reformou-se por velhice, em 6/12/2000.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. O objecto do litígio existente entre os AA. e a Ré começa por reconduzir-se à questão de saber se os acordos de pré-reforma, que cada um deles celebrou com a ora apelante, lhes confere o direito a que na actualização das suas prestações mensais seja levado em consideração o regime de anuidades instituído na empresa em 28/11/97, em substituição do anterior regime das diuturnidades de companhia [DC] e de função [DF].
A apreciação desta questão passa necessariamente pela interpretação das cláusulas dos acordos celebrados pelas partes, que atrás transcrevemos, merecendo especial atenção as cláusulas 1ª, 2ª e 3ª dos acordos de suspensão do contrato de trabalho e as cláusulas 2ª, 3ª e 4ª dos acordos de pré-reforma.
Como negócios jurídicos que são, os referidos acordos postulam uma interpretação, entendida como a actividade dirigida a fixar o seu sentido e alcance decisivos, segundo as respectivas cláusulas integradoras.
Os critérios interpretativos dos negócios jurídicos estão definidos nos arts. 236º e seguintes do Código Civil.
É conhecida a existência, no âmbito da teoria da interpretação dos negócios jurídicos, de posições subjectivistas e de posições objectivistas. Para as primeiras, o intérprete deve buscar, através de todos os meios adequados, a vontade real do declarante, valendo o negócio com o sentido subjectivo, ou seja, como foi querido pelo autor da declaração. Para as segundas, o intérprete não tem de pesquisar a vontade efectiva do declarante, mas um sentido exteriorizado ou cognoscível através de certos elementos objectivos. Trata-se de uma interpretação normativa e não de uma interpretação psicológica (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pág. 446).
Dentre as doutrinas objectivistas destaca-se a chamada teoria da impressão do destinatário, segundo a qual a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria. Para o efeito, “considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável (ob. cit., pág. 447).
O Código Civil define o tipo de sentido negocial decisivo para a interpretação das declarações nos termos da mencionada posição objectivista: a declaração, de harmonia com o art. 236º, n.º 1, “vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.”
Nos negócios formais ou solenes, como são aqueles a que os autos se reportam, o sentido da declaração correspondente à impressão do destinatário sofre um desvio no sentido de um “maior objectivismo”, na medida em que só pode valer se tiver um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, no texto do respectivo documento –art. 238º do Cód. Civil (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, pág. 452).
A sentença da 1ª instância ao interpretar as cláusulas dos acordos atrás transcritas fez apelo aos critérios da interpretação dos negócios jurídicos, nos termos referidos e acabou por concluir, quanto a nós de forma correcta, que qualquer alteração ou eventual aumento que se verifique nas retribuições dos trabalhadores no activo vai-se repercutir na prestação mensal dos trabalhadores pré-reformados.
A Ré discorda e sustenta que a cláusula 4ª dos acordos de pré-reforma e o n.º 2 do art. 6º do DL 261/91 estabelecem apenas o dever de actualizar periodicamente a prestação de pré-reforma tal como saiu quantificada pelo acordo de pré-reforma através de uma taxa de incremento (aumento) aplicada à prestação de pré-reforma em vigor. Sustenta ainda que os AA., depois de terem entrado na situação pré-reforma, não podem razoavelmente pretender que, em cada momento em que se verifica alteração da remuneração dos trabalhadores no activo, também podem legitimamente exigir da TAP, como prestação de pré-reforma, o mesmo quantitativo salarial que auferem os colegas que ainda permanecem em serviço efectivo.
Mas se procurarmos encontrar qual o sentido que um declaratário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria, teremos de concluir que a razão não está do seu lado.
Com efeito, depois de na cláusula 2ª dos acordos de pré-reforma se ter fixado a prestação ilíquida de pré-reforma, com base na última retribuição ilíquida auferida pelo 2º outorgante, diz-se na cláusula 3ª que “o valor ilíquido mensal da prestação referido na cláusula anterior é o correspondente a uma percentagem (...) do valor da retribuição líquida que o 2º outorgante receberia se estivesse no activo, acrescido dos valores do IRS e TSU aplicáveis nos termos gerais.” (O sublinhado é nosso).
Como se vê, já aqui se faz uma referência expressa à retribuição do activo (primeira impressão interpretativa). Ainda assim poderia entender-se que o sentido da mesma consiste em explicitar a fórmula do apuramento da prestação ilíquida mensal de pré-reforma, indicada na cláusula antecedente, como sustenta a apelante. Mas, vendo bem, não se pode concordar com a conclusão retirada pela apelante. É que, logo na cláusula seguinte (cláusula 4ª) o tal declaratário normal depararia com a precisão da sua primeira impressão interpretativa, pois nela se lê que: “A prestação de pré-reforma será actualizada anualmente de acordo com os critérios da lei, em termos de continuar a ser garantido ao segundo outorgante um valor líquido apurado nos termos da cláusula 3ª”.
Como se afirma no Acórdão do STJ, de 20/2/2002 (Revista n.º 3.249 – 4ª Secção), não há equivocidade que resista à impressividade do sentido destas cláusulas. Com elas as partes não se limitaram a estabelecer que essa actualização seria processada anualmente de acordo com os critérios da lei (cfr. art. 6º, n.º 2 do DL 261/91), tendo antes acrescentado que a actualização continuaria a garantir ao trabalhador pré-reformado um valor líquido apurado em função da retribuição líquida que ele auferiria caso se mantivesse no exercício de funções.
Qualquer declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, entenderia que a TAP naqueles acordos de pré-reforma, designadamente nas suas cláusulas 2ª, 3ª e 4ª, se teria comprometido a pagar aos trabalhadores neles outorgantes a pensão a que se obrigou, sempre actualizada e reportada a uma situação virtual, como se eles continuassem no exercício efectivo de funções aquando do processamento dessas actualizações, de modo a que pudessem beneficiar de todos os aumentos remuneratórios do pessoal de terra no activo. Como se afirma no acórdão desta Relação, proferido na apelação n.º 11.460/00 da 4ª Secção, houve o cuidado nítido, na redacção destas cláusulas, de os trabalhadores que acordaram a pré-reforma não perderem quaisquer regalias remuneratórias de que porventura viessem a beneficiar os trabalhadores do activo, a qualquer título.
Não se vê, pois, caminho de interpretação que, sem violência ao texto das cláusulas, conduza a outro resultado interpretativo.
Aliás, tratando-se de negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento ainda que imperfeitamente expresso. E a tese da Ré, como vimos, não tem a mínima correspondência no texto dos acordos.
Por outro lado, ao contrário do que a Ré sustenta, é totalmente irrelevante esses acordos terem sido celebrados muito antes do Protocolo de fls. 153-158 que instituiu o regime de anuidades em substituição do regime das diuturnidades, em termos de à data da celebração desses acordos não ser possível pensar e querer incluir neles o regime das anuidades, só instituído alguns meses mais tarde.
A representação do regime das anuidades não está, nem poderia estar por essa razão nos acordos celebrados com os AA., antes neles vêm a cair quando instituídas, por deverem integrar a retribuição do activo, esta sim, recebida no clausulado dos acordos (cfr. acórdão do STJ, de 20/2/2002, Revista n.º 3.249 – 4ª Secção).
A sentença recorrida não merece, portanto, qualquer censura.

2. Sustenta a apelante que a sentença é nula, nos termos do art. 668º, n.º 1, al. d) do CPC, por não se ter pronunciado sobre a questão que suscitou nos artigos 65º da sua contestação, no qual alegou que tendo o referido Protocolo sido negociado e assinado pela TAP e pelos sindicatos representativos do pessoal de terra, em que os AA. estão ou estavam filiados, estes não podem reclamar o que reclamam nesta acção, porquanto desse mesmo Protocolo, vinculativo para os apelados por força da sua filiação sindical, resulta que a anuidade convencionada é apenas para pagar ao pessoal de terra no activo. Estando provado que o regime assim acordado entre apelante e os representantes sindicais dos apelados visava apenas o pessoal no activo, para compensar aumentos de produtividade que os primeiros tiveram por causa da saída de serviço dos segundos, estes não podem ver ser-lhes reconhecido o direito a esse regime. Mesmo que a interpretação dos acordos de suspensão de contrato de trabalho ou de pré-reforma que, antes dos protocolos, assinaram com a apelante, fosse no sentido de que as respectivas prestações deveriam ser actualizadas sempre que houvesse aumentos retributivos do pessoal no activo, aquele princípio da filiação, ao projectar ao nível dos seus contratos de trabalho (modificados) o resultado do acordo celebrado entre a sua entidade patronal e os sindicatos, sempre neutralizaria, no que ao regime de anuidades respeita, o direito a qualquer actualização dessas prestações.
Desde já se adianta, com o devido respeito, que a sentença recorrida não enferma da nulidade que a apelante lhe aponta, já que a mesma se pronunciou sobre a questão da aplicação do regime das anuidades instituído pelo referido Protocolo aos acordos de suspensão do contrato de trabalho e de pré-reforma celebrados entre a Ré e os AA.. Na verdade, a fls. 21 da referida sentença afirma-se expressamente que a vexatio quaestio que nela se coloca “consiste em saber se o regime de anuidades (instituído pelos Protocolos de 28/11/97, com efeitos a partir de 1/11/97), substitutivo dos regimes de diuturnidades de companhia e de diuturnidades de função, e cujo valor excede a soma das referidas diuturnidades, se aplica à situação dos autos”, tendo-se pronunciado, em seguida, sobre essa questão. É certo que não se pronunciou sobre todos argumentos que a Ré invocou em apoio da sua tese, mas isso não determina a nulidade da sentença.
Nos termos do art. 668º, n.º 1, al. d) do CPC, uma sentença é nula “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”, o que constitui a sanção para a violação do disposto na primeira parte do art. 660º, n.º 2, onde se determina que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Essa expressão “questões” não abrange, como é óbvio, os argumentos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, já que o juiz é livre na “interpretação e aplicação das regras de direito”, nos termos do princípio geral consignado no art. 664º do citado Código, reportando-se antes às pretensões formuladas ou aos elementos inerentes ao pedido e à causa de pedir (cfr. Rodrigues Bastos, Notas ..., pág. 228, A. Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122º, pág. 112 e Acs. do STJ, de 5/11/1980, BMJ 301º, 395 e de 25/2/97, BMJ 464º, 464).
As questões a que se refere a alínea d) do n.º 1 do art. 668º do CPC são apenas as respeitantes ao pedido e causa de pedir invocada pelos autor e não os motivos, argumentos ou razões invocadas pelo réu em sustentação do seu ponto de vista. Não existe, assim, omissão de pronúncia, nem se verifica a referida nulidade, pelo facto de a Sra. juíza não se ter pronunciado sobre todos os argumentos invocados pela Ré na sua contestação em apoio da sua tese.
E não se diga – como diz a apelante – que as normas dos arts. 664º e 662º, n.º 2, parte final, e 668º, n.º 1, al. d), do CPC, interpretadas desta forma são inconstitucionais, pois o art. 205º, n.º 1 a CRP estabelece que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei e segundo a forma prevista na lei as questões a que se refere a alínea d) do n.º 1 do art. 668º do CPC são apenas as respeitantes ao pedido e causa de pedir invocada pelo A., pois é ele quem configura a acção e não o réu. O que seria inconstitucional e não teria qualquer cabimento, seria interpretar aquelas normas no sentido de impor ao tribunal a apreciação de todos os argumentos invocados pelos réus, designadamente os que nada têm a ver com o pedido nem com a causa de pedir da acção e que se destinam apenas a dificultar e a emperrar o andamento do processo e a protelar a decisão da causa. É por causa desse entendimento, que tem muitos seguidores entre nós, que se vêem com frequência, petições iniciais com 30 a 50 artigos, a que seguem contestações com mais de 200 e, mais tarde, sentenças com 30, 40 ou 50 páginas. Quando, se a lei fosse entendida e cumprida nos devidos termos, todo esse trabalho, se podia reduzir substancialmente.

3. Subsidiariamente, a recorrente alega que se não se verificar a nulidade invocada, a sentença enfermará sempre de erro de direito, por não ter levado em consideração as implicações que os factos provados sob os n.ºs 3, 22 e 25 a 27 têm sobre a questão em debate, neste processo.
A apelante, porém, não tem qualquer razão, uma vez que no clausulado do Protocolo nada consta a respeito da matéria que consta nesses n.ºs e só o clausulado vincula os seus outorgantes. De qualquer forma, o facto de ter ficado provado que o Protocolo invocado visava apenas a situação do pessoal de terra no activo e que a atribuição das anuidades, em substituição das diuturnidades, se destinava, além do mais, a compensar o respectivo aumento de produtividade subsequente à redução de efectivos, em que se inclui a saída do activo de trabalhadores como os autores, em nada altera o que ficou dito, pois não é a interpretação de tais protocolos que está em causa, mas sim a interpretação dos acordos de pré-reforma. São estes e não aqueles que constituem a fonte das obrigações da apelante para com os apelados. E se assim é, há que ter em linha de conta que na redacção das cláusulas desses acordos, e no seguimento do que foi garantido, na altura, pela apelante, houve o cuidado de se consagrar que os apelados não perderiam quaisquer regalias remuneratórias de que porventura pudessem vir a beneficiar os seus colegas que continuaram no activo.
As considerações que a apelante faz relativamente à natureza e à eficácia dos protocolos em apreço, também se nos afiguram irrelevantes, pois os direitos que os apelados reclamam nesta acção não emergem desses protocolos mas sim dos próprios acordos de suspensão dos contratos de trabalho e de pré-reforma, ou seja, da aplicação das cláusulas desses acordos à situação de facto verificada na empresa, na qual, a partir de 1/11/97, passou a vigorar, para os trabalhadores no activo, um sistema de anuidades em substituição do sistema de diuturnidades de companhia[DC] e de função [DF], sendo o valor daquelas superior ao destas. Ora, resultando dos acordos celebrados com os apelados que qualquer alteração ou eventual aumento que se verifique nas retribuições dos trabalhadores no activo vai repercutir-se na prestação mensal dos trabalhadores pré-reformados (seja qual for a causa ou a origem dessa actualização ou aumento), a substituição do sistema de diuturnidades pelo sistema de anuidades tem obviamente que se repercutir na prestação mensal dos apelados.
É certo que o Protocolo foi outorgado alguns meses mais tarde pela estrutura sindical onde os AA. estavam ou estiveram filiados, é certo também que esse protocolo têm a natureza de “convenção colectiva”, mais propriamente de “acordo de empresa” (já que o facto de não ter sido depositado e publicado não põe em causa a sua validade inter partes), mas isso não invalida nada do que atrás se disse. Em primeiro lugar, porque em nenhum ponto do seu clausulado se excluem os apelados ou os trabalhadores que se encontram na sua situação do regime das anuidades e, em segundo lugar, porque esse protocolo nunca podia retirar direitos anteriormente estabelecidos em sede de contrato individual de trabalho, nem da sua aplicação podia advir para os apelados um regime menos favorável do que o estabelecido anteriormente nos acordos celebrados entre a apelante e cada um dos apelados (arts. 13º da LCT e 14º, n.º 1 da LRCT). O regime dos contratos individuais de trabalho sobrepõe-se sempre ao do contratação colectiva, desde que se mostre mais favorável aos trabalhadores.
Se na redacção das cláusulas desses acordos houve o cuidado de se consagrar que os apelados não perderiam quaisquer regalias remuneratórias de que porventura pudessem vir a beneficiar os seus colegas que continuaram no activo, é óbvio que os mesmos têm que beneficiar do regime das anuidades. Aliás, a apelante reconhece que o regime das anuidades se aplica aos apelados, pois nos recibos que emite em nome destes, para efeitos de Segurança Social, inclui o valor das anuidades a que estes têm direito e faz incidir as deduções legais sobre esse valor. O que não se compreende é que leve em consideração esse valor para tais efeitos e o não o leve em consideração na prestação que paga aos apelados.
A sentença recorrida não enferma, portanto, do erro jurídico que a apelante lhe imputa.

4. Finalmente, a apelante sustenta que “ao virem deduzir em juízo pretensão a que, de acordo com o definido pelo seu próprio sindicato representativo, não têm direito, os apelados agem contra factum proprium e por isso com abuso de direito”.
Mas também aqui não tem razão, desde logo porque o abuso de direito pressupõe a existência do direito. A apelante não pode imputar aos apelados abuso de direito e sustentar que não lhes assiste o direito que reclamam.
Nos termos do art. 334º do Cód. Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Pode acontecer que determinado preceito, embora justo para as situações normais, venha, quando aplicado a determinada situação concreta, a mostrar-se injusto em virtude das circunstâncias especiais que aí concorram. E, para evitar tais consequências, teve de se criar um modo de evitar essa aplicação injusta, assim surgindo a figura do abuso de direito.
Tal abuso ocorrerá “quando um certo direito – em si mesmo válido – seja exercido em termos que ofendam o sentimento de justiça dominante na comunidade (Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 58 e 59).
Para que o exercício de um direito se considere abusivo é necessário “que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. É preciso, como acentuava Manuel Andrade, que o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.
Segundo o Prof. Vaz Serra (RLJ, 111º, 296), “uma das modalidades ou aplicações do abuso de direito é a do chamado venire contra factum proprium, isto é, a de alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado”. O abuso de direito pode, assim, concretizar-se numa conduta do seu titular que objectivamente interpretada, em face da lei e dos bons costumes e dos princípios da boa fé legitime a convicção de que esse direito não será exercido.
Resulta dos autos com mediana clareza que essa situação não se verificou no caso em apreço. Nem essa nem qualquer outra que pudesse configurar abuso de direito.
Na verdade, os AA. limitaram-se a exercer um direito que lhes assiste, e não se pode concluir, atendendo ao que deixámos atrás exposto, que hajam excedido, no exercício desse direito, os limites impostos pela boa fé, ou pelo seu fim social ou económico, em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico social dominante.
Improcedem, assim, todas as conclusões da apelação.

IV. DECISÃO

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se inteiramente a sentença recorrida.
Custas, em ambas as instâncias, pela apelante.

Lisboa, 16 de Dezembro de 2003
Ferreira Marques
Maria João Romba
Paula Sá Fernandes