DESPEJO
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I- Não é admissível sentença de condenação condicional em que o tribunal, declarando resolvido o contrato de arrendamento, condiciona o despejo à reposição pelo locatário, no prazo de três meses, do imóvel ao estado anterior ao da realização de obras ilegais.
II- Também a lei não considera facto extintivo do direito à resolução do contrato de arrendamento a reposição em prazo a fixar pelo julgador do local arrendado no estado anterior àquele em que se encontrava quando foram realizadas as obras ilícitas fundamentadoras da resolução do contrato de arrendamento nos termos do artigo 64º/1, alínea d) do R.A.U.
III- Incorre em abuso do direito (artigo 334º do Código Civil) o locador que, intimado pela Câmara Municipal a realizar obras não as faz, mas autoriza o inquilino a fazê-las num contexto de grande degradação do imóvel cujo estado inclusivamente afecta a saúde da filha dos arrendatários e, depois, se aproveita, propondo acção de despejo, do facto de o inquilino ter realizado, no decurso  de amplas obras de conservação do local arrendado, duas alterações (eliminação da despensa e da parte da parede que liga a cozinha à marquise substituindo-a por pequeno murete) que, sendo de pequena monta e não reveladoras do propósito de transformação do local arrendado mas apenas de mera adaptação, ainda assim são susceptíveis de ser consideradas alterações substanciais das divisões internas do local arrendado.
IV - O abuso do direito é de conhecimento oficioso e, tratando-se de excepção de direito material, prevalece sobre a regra processual da proibição da reformatio in pejus.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. (M) intentou acção de despejo contra (J) pedindo que se julgue a acção procedente por provada e que, em consequência, se ordene o imediato despejo e entrega do arrendado à A. livre e devoluto de pessoas e bens.

Considera a A. que tem direito a ver judicialmente resolvido o invocado contrato de arrendamento visto que os RR procederam a obras não autorizadas pelo senhorio que integram a previsão normativa constante do artigo 64º/1,alínea d) do R.A.U.

Dentre essas obras destaca-se a destruição das paredes que circunscreviam a despensa da casa e a destruição de parede que dividia a cozinha da varanda.

Foi proferida decisão final nestes termos:

"Julgo a acção procedente por provada e, em consequência, declaro resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre o falecido marido da autora e os réus e condeno-os a despejarem o arrendado no prazo de três meses a não ser que, neste período, reponham o imóvel no traçado anterior, ou seja, construam, no hall de entrada a despensa em falta com a área anterior e reconstruam a parede da cozinha que dá acesso à marquise, acrescentando-lhe a parte em falta e respectiva janela e porta".

A A. invocou nulidade da sentença por ter o Tribunal condenado para além do pedido, mas nas alegações tal nulidade já não foi invocada apresentando a recorrente as seguintes conclusões:

1º- A douta sentença recorrida não podia ter, decretada que foi a resolução do contrato de arrendamento, facultado prazo aos ex-inquilinos para reporem a casa como estava antes das obras, assim obstando à resolução do contrato e ao consequente despejo.
2º- Não existe qualquer base legal que suporte a decisão recorrida, carecendo esta, por completo, de fundamentação jurídica
3º- A douta sentença recorrida viola, entre outros, o artigo 9º do Código Civl e os artigos 63º e 64º/1, alínea d) do R.A.U. aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.

Nas suas alegações a recorrente disse: " a lei não prevê que, julgada procedente a acção de resolução judicial do contrato de arrendamento, a acção de despejo nos autos, o M.mº Juiz possa facultar prazo para reposição do imóvel como se encontrava antes, desta forma se obstando à efectiva resolução do contrato e ao correspondente despejo"

A questão a decidir é, portanto, a seguinte:  tendo sido realizada obra que alterou substancialmente a disposição interna das divisões do local arrendado pode o Tribunal condicionar (condição resolutiva) a resolução do contrato e despejo à reposição do prédio arrendado no estado anterior no que respeita às obras que implicaram essa alteração substancial?

2. Factos provados:

1- Por contrato verbal o falecido marido da A. deu de arrendamento ao réu marido, que o tomou, o rés-do-chão direito do prédio sito na Rua Armindo de Almeida, nº 29, concelho e freguesia do Barreiro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4851 pagando os réus, neste momento, de renda a quantia mensal de esc. 1200$00.
2- A autora é cabeça-de-casal na herança aberta por óbito do seu marido e, além disso, é cônjuge meeiro.
3- No vestíbulo de entrada da casa existia, originariamente, uma despensa para arrumos com quatro paredes e uma porta.
4- A autora foi intimada por decisão camarária a proceder a reparações no imóvel nomeadamente na coluna de abastecimento de água.
5- No que respeita à fracção habitada pelos RR a A. foi intimada a reparar a canalização interior de distribuição de água, tectos da casa de banho, cozinha e quartos, tudo conforme aviso publicado no Jornal do Barreiro de 14-10-1988.
6- Nenhuma das reparações foi efectuada no prazo fixado pela Câmara Municipal do Barreiro.
7- A C.M.B também não procedeu à realização de tais obras.
8- Os RR pediram à C.M.B. que lhes facultasse o orçamento das obras o que aquela fez.
9- Em 22 de Fevereiro de 1989 os inquilinos do prédio  enviaram os orçamentos aos senhorios e declararam que iriam iniciar as obras.
10- A A. nunca se opôs a que o locado fosse conservado pelos RR autorizando aqueles a efectuar as obras simples necessárias para o efeito.
11- Os RR destruíram as paredes que circunscreviam a despensa da casa.
12- E destruíram a porta.
13- Os RR substituíram a porta de entrada da casa
14- E deitaram fora a porta que pertencia à A.
15- Os RR derrubaram uma parede que dividia a cozinha da varanda.
16- Os RR destruíram o chão original da casa.
17- Substituiram-no por outro.
18- Tendo efectuado as mesmas operações com os azulejos e louças da cozinha e da casa de banho.
19- Tais alterações foram efectuadas no arrendado sem o conhecimento, autorização, licença ou consentimento da autora.
20- Os RR repararam as canalizações de água quente e fria, pintaram tectos e paredes, substituíram as instalações eléctricas bem como as madeiras da casa que se encontravam podres e cheias de baratas.
21- Os RR substituíram a porta de entrada da casa a qual se encontrava apodrecida e não oferecia garantias.
22- Os RR substituíram o chão por este se encontrar velho e gasto.
23- Os RR procederam à colocação de azulejos na cozinha e na casa de banho em virtude daqueles terem sido partidos quando se procedeu à canalização e já não existirem azulejos iguais.
24- Os armários da cozinha tiveram de ser substituídos por não permitirem guardar alimentos ou louças por se encontrarem apodrecidos pela água que caía do tecto.
25- O lava-louças, em pedra, permitia infiltrações de água para os armários de baixo e para o chão pelo que teve de ser substituído.
26- A filha dos RR na acção sofre de asma  o que determinou que as reparações tivessem que ser efectuadas.
27- A A. tinha conhecimento das obras por intermédio da sua filha e genro que residem no mesmo edifício.
28- Tais obras foram feitas a expensas e por conta dos RR.

Apreciando:

3. Do ponto de vista processual o caso dos autos é também muito peculiar. Vejamos então porquê.

Na decisão, atenta a matéria de facto provada, considerou-se que os RR incorreram em violação do disposto no artigo 64º/1, alínea d) do R.A.U.visto que "se excederam nas obras...derrubando o que não deviam".

Por isso foi julgada a acção procedente e, em consequência, declarado resolvido o contrato de arrendamento.

Os RR ficaram, quanto a este ponto, vencidos.

No entanto, a sentença, reconhecendo que os RR derrubaram o que não deviam, considerou que deviam " repor o traçado anterior do imóvel".

Até aqui tudo bem. A reposição do traçado anterior do imóvel impõe-se ao locatário e é-lhe exigível no momento da restituição do local arrendado (artigo 1043º/1 do Código Civil).

No entanto a sentença transformou essa obrigação de restituição exigível no termo do contrato de arrendamento em condição resolutiva do despejo: a sentença não se limitou a, declarando resolvido o contrato de arrendamento, condenar os RR no despejo; o que deu com uma mão à autora, tirou-lho com a outra quando determinou que os réus estavam condenados a despejar o arrendado " no prazo de três meses, a não ser que, neste período, reponham o imóvel no traçado anterior, ou seja, construam no hall de entrada a despensa em falta com a área anterior e reconstruam a parede da cozinha que dá acesso à marquise, acrescentando-lhe a parte em falta e respectiva janela e porta.

Aqui a A. passou de vencedora a vencida.

E os RR também ficaram vencidos:  é que, interessando-lhes que a acção fosse pura e simplesmente julgada improcedente, a imposição de uma resolução cria-lhes sempre um risco: o de se vir a reconhecer que a condição se não verificou ou porque as obras não se realizaram ou porque se realizaram depois daquele período ou ainda porque, efectuadas a tempo, no entanto não repuseram efectivamente o local arrendado no estado anterior.

Teriam, portanto, os RR interesse em interpor recurso subordinado (artigo 682º/2 do C.P.C.) onde, por exemplo, poderiam pôr em causa a sentença na parte em que se considerou que tais obras eram ilegais, ou seja, que alteravam substancialmente a disposição interna das divisões do prédio arrendado.

Não o fizeram; assim, este Tribunal tem os seus poderes cognitivos limitados à questão suscitada pelos apelantes e, por isso, as considerações que seguidamente vamos fazer justificam-se e compreendem-se apenas na medida em que a solução da questão suscitada pela apelante pressupõe uma análise do disposto no artigo 64º/1, alínea d) do R.A.U. que não pode deixar de ser feita à luz da matéria de facto concretamente apurada nos autos.

Assim, se for efectivamente considerado que, nas presentes circunstâncias, a lei não admite uma condenação condicional, o recurso deve proceder e a sentença revogada na parte em que condiciona o despejo à realização de obras no prazo fixado a não ser que se verifique excepção de direito material que seja do conhecimento oficioso do tribunal. Ora a apreciação de tal excepção pode levar a que se justifique uma reponderação sobre a efectiva natureza substancial das alterações realizadas ou, pelo menos, do seu grau de intensidade violadora de modo a que se possa aferir se, em concreto, excepção material deve ser reconhecida e declarada.

Refira-se, desde já, que os RR jamais colocaram a possibilidade de se fixar uma tal condição. Não o fizeram, e com toda a lógica, visto que alegaram que " não derrubaram as paredes que circunscreviam a despensa da casa" (artigo 23º da contestação); o que os RR alegaram foi que retiraram um troço da parede porque ela apodreceu bastando que alguém se encostasse a ela para que desmoronasse sendo um perigo para os habitantes da casa (artigo 25º da contestação); para além desse troço da parede os RR optaram ainda por retirar a porta de entrada da despensa não tendo sido mexidas as restantes paredes que são paredes mestras (artigo 26º da contestação).

No entanto o que os RR disseram não se provou absolutamente exacto: assim, ficou provado que os RR destruíram as paredes que circunscreviam a despensa da casa (1) mas não se provou que " os RR retiraram uma parede e a porta que se encontrava podre da despensa para que aquela não desmoronasse" (19).

Também os RR alegaram que " não derrubaram quaisquer paredes que dividissem a cozinha e a sala da varanda" o que se não provou, provando-se que os RR "derrubaram a parede que dividia a cozinha da varanda" (5). Ali deixaram, como salienta a sentença, um murete com cerca de um metro de altura, onde colocaram uma televisão, deixando de existir toda a demais parede até ao tecto e bem assim a janela e a porta que dava acesso à marquise...destruiram por completo as paredes da despensa, situada no hall, bem como retiraram a respectiva porta, pelo que a despensa deixou de existir

Os RR não se limitaram a realizar obras de conservação no local arrendado; contrariamente ao que alegaram eles realizaram também obras de transformação do local arrendado quando estavam apenas autorizados a realizar obras de conservação (10).

4. A sentença pronunciou-se sobre se as obras realizadas eram efectivamente obras que alteravam substancialmente a estrutura interna das divisões.

Ora considerando os factos acima indicados teve a sentença por assente que as obras alteraram a disposição interna das divisões.

Seguidamente passou a analisar a questão de saber se tais alterações foram ou não foram alterações  substanciais.

E a este propósito, depois de se abonar no Ac. da Relação de Lisboa de 30-3-2000 - cremos que a sentença se refere ao Ac. da Relação de Lisboa de 30-3-2000 (Granja da Fonseca) B.M.J. 495-353 -  referiu: " pelo que se conclui que alterações substanciais da estrutura interna do prédio são alterações profundas, essenciais, consideráveis, pondo em causa a segurança, vitalidade do prédio ou modificando profundamente o seu valor funcional ou estético, isto é, a sua morfologia interna".

Chegada aqui a sentença considera que as obras efectuadas não são irreparáveis.

Depois refere que " o carácter reparável da obra ou deterioração é irrelevante como elemento circunstancial a ter em conta já que toda a obra pode ser desfeita com a reposição do estado anterior, toda a deterioração pode ser reparada".

E acrescenta ainda:" o elemento circunstancial a ter em conta para caracterizar a infracção pode ser o de a obra apresentar um carácter definitivo"

E prossegue: " à luz deste critério a eliminação da despensa e de parte da parede que liga a cozinha à marquise não pode relevar em termos de resolução do contrato de arrendamento".

Do exposto pode, portanto, concluir-se:

a) A obra levada a cabo pelos RR alterou a disposição interna das divisões do arrendado.
b) Tal alteração é substancial.
c) A obra não é irreparável dado que pode ser desfeita com reposição no estado anterior.
d) Para caracterizar a infracção, um elemento circunstancial a ter em conta pode ser o de a obra apresentar um carácter definitivo.

Neste ponto da sua argumentação a sentença afirma o seguinte " à luz deste critério a eliminação da despensa e da parte da parede que liga a cozinha à marquise não pode relevar em termos de resolução do contrato de arrendamento.

Significa esta expressão - que é ambígua - que a eliminação da despensa e de parte da parede que liga a cozinha à marquise não leva a que se declare a resolução do contrato de arrendamento (acção improcedente) ou, pelo contrário, significa a frase que à luz do aludido critério (o da definitividade da obra) a eliminação da despensa e de parte da parede que liga a cozinha à marquise não pode relevar em termos de não levar a que se declare a resolução do contrato de arrendamento (acção procedente)?

Se a referida obra não assumisse natureza definitiva, se fosse esse o sentido da sentença, então a acção deveria ser julgada improcedente; se a referida obra, assumindo natureza definitiva, implica a resolução do contrato de arrendamento, então a acção deveria ser julgada procedente.

A sentença afirma logo a seguir: "tal não nos afigura ser justo".

Não é, portanto, justo, para a sentença, que, alterada substancialmente a estrutura interna das divisões pelo arrendatário sem consentimento do senhorio, não seja atendível a circunstância de, sendo possível repor as coisas no estado anterior, se decrete sem mais o despejo designadamente quando a senhoria autorizou que os inquilinos fizessem as obras de reparação à sua conta " só que se excederam nas obras...derrrubando o que não deviam". E "assim devem repor o traçado anterior do imóvel".

Assim, o que impressionou o julgador foi o facto de a actuação ilícita dos RR ter resultado da  necessidade em que se viram de realizar obras que os levou, na execução, a ultrapassar a fronteira dos actos de reparação e de conservação do prédio arrendado embranhando-se já na região proibida dos actos de transformação do prédio arrendado; teria havido, face a este circunstancialismo, uma actuação ilegal, sem dúvida, mas propiciada pela senhoria que, por falta de realização de obras tinha deixado chegar o local arrendado a um ponto de grande miséria.

Relembre-se a matéria de facto que prova isto à evidência: a autora foi intimada a proceder a reparações no imóvel nomeadamente na coluna de abastecimento de água por decisão camarária, a reparar a canalização interior de distribuição de água, tectos da casa de banho, cozinha e quartos. E nada fez. Tão pouco a Câmara Municipal do Barreiro fez obras. A autora nunca se opôs a que o locado fosse conservado pelos réus, autorizando aqueles a efectuar as obras simples necessárias para o efeito. E os réus, para além daquelas obras que, como se disse, alteraram substancialmente as divisões internas, realizaram vastas obras lícitas de conservação: repararam as canalizações de água quente e fria, pintaram tectos e paredes, substituíram as instalações eléctricas bem como as madeiras da casa que se encontravam podres e cheias de baratas, substituíram a porta de entrada da casa a qual se encontrava apodrecida e não oferecia garantias, substituíram o chão por este se encontrar velho e gasto, procederam à colocação de azulejos na cozinha e na casa de banho em virtude daqueles terem sido partidos quando se procedeu à canalização e já não existirem azulejos iguais, substituíram os armários da cozinha por não permitirem guardar alimentos ou louças por se encontrarem apodrecidos pela água que caía do tecto sendo certo que o lava-louça, em pedra, permitia infiltrações de água para os armários de baixo e para o chão pelo que teve de ser substituído a isto acrescendo que a filha dos RR sofre de asma o que determinou que as reparações tivessem que ser efectuadas.

E, para além destas obras de simples conservação e reparação, os RR  eliminaram a despensa e derrubaram a parede que dividia a cozinha da varanda.

A sentença recorrida  sentiu que não era justo, no caso vertente, decretar-se o despejo pura e simplesmente, atento o circunstancialismo referido, que denota o  aproveitamento por parte da locadora de uma situação que ela desencadeou e que não teria ocorrido se ela realizasse as obras de conservação para que fora intimada.

 Sentiu a sentença recorrida que o pecado em que os RR incorreram, dadas estas condições, seria  desproporcionado tendo em atenção o seguinte:

-  Que as obras realizadas quer pela qualidade quer pela quantidade não são daquelas que chocam pelo intenso desrespeito dos poderes que cabem exclusivamente ao senhorio, enquanto  proprietário, de ser ele a transformar o local arrendado.

- Que essa obras foram realizadas numa situação de  necessidade dado o estado em que se encontrava o local arrendado com reflexos na própria saúde da filha dos RR.

- Que a própria locadora também não viu inconveniente, antes aceitou, a realização de obras pelos RR não estando certamente disposta, tão exígua a renda recebida, a suportar ela o custo das obras.

Por outras palavras: foram estas circunstâncias que levaram a sentença a exclamar que não lhe parecia justa a solução que seria ditada pela aplicação do artigo 64º/1, alínea d) do R.A.U. com a interpretação que lhe vem sendo dada pela doutrina e jurisprudência.

Não seguiu a sentença no que respeita ao entendimento do que seja uma alteração substancial - definitiva - , se bem a compreendemos,  orientação diversa daquela que nós acompanhámos quando escrevemos:

XII- A circunstância de uma obra poder ser hoje tecnicamente removível não basta para que improceda acção de despejo com fundamento no referido artigo 1093º/1, alínea d) do CC  (64º/1, alínea d) do R.A.U.); o que releva é o carácter definitivo da obra e, para isso, há que atender à sua natureza duradoura como acontece, no caso em apreço, em que se implanta uma estrutura no imóvel que não permite que a reposição do local arrendado se faça sem causar estragos no imóvel ( Ac. da Relação de Lisboa de Ac. da Relação de Lisboa de 10-5-2001 (P. 2899/2001) CJ, 3, pág 87).

É certo que a sentença não se preocupou em analisar se a obra praticada pelos réus deveria ser ou não considerada obra definitiva no sentido de perene (Veja-se "Resolução do Contrato de Arrendamento em consequência da Feitura de Obras que alteraram substancialmente a Disposição Interna das Divisões do Prédio"por Januário Gomes, O Direito, Ano 125º, 1993, III-IV, pág 439-478).

E não o fez porque se evidenciava uma outra realidade que de algum modo obstava à pretensão de despejo.

Um dos elementos dessa "realidade", a que a sentença faz referência, é o facto de a senhoria nunca ter feito no arrendado qualquer obra de reparação.

Este, a nosso ver, é o único elemento que se não subscreve: não se pode concluir que a senhoria tenha culposamente omitido a realização de obras pois, dado o montante da renda, não é exigível que o locador proceda a obras cujo montante se revela absolutamente excessivo em relação ao montante da renda auferida.

Mas o reconhecimento desta "outra realidade" não pode servir de arrimo a que se não deixe de reconhecer que, realizando o locatário as obras ( ou parte delas) que ao senhorio competem, o senhorio é o  causador da necessidade de o inquilino em determinadas casos se ver compelido no seu interesse a proceder a obras no local arrendado.

Só que a sentença em vez de considerar que a actuação da A. ao intentar nas circunstâncias concretas já evidenciadas acção de despejo contra os réus configurava, no caso vertente, um manifesto caso de  abuso do direito  (artigo 334º do Código Civil) num misto da modalidade doutrinária designada venire contra factum proprium e tu quoque (Tratado de Direito Civil Português, Menezes Cordeiro, Almedina,I, 1999, pág 191 e seguintes), optou por uma outra solução.

5. Já o dissemos - e repetimo-lo - não podemos, delimitados pelas conclusões e sob  o imperativo processual da proibição da reformatio in pejus, reanalisar os factos para ponderar se a sua qualificação nos levaria a um entendimento diferente da sentença designadamente quanto à questão de saber se as referidas obras constituem ou não alterações substanciais (artigos 660º, 661º e 685º do C.P.C.) visto que, se assim procedêssemos, estaríamos a introduzir no recurso uma  questão que está para além da que o recorrente pôs à nossa consideração não se impondo o seu conhecimento oficioso como, por exemplo, sucede com o abuso do direito: ver Ac. do S.T.J. de 13-3-2001 (Silva Salazar) (revista nº 34/01),Ac. do S.T.J. de 29-11-2001 (Ferreira de Almeida) (revista nº 3284/2001), Ac. do S.T.J. de 21-2-2002 (Ferreira Girão) (revista nº 3227/2001)),  Ac. do S.T.J. de 4-7-2002 (Silva Paixão) (revista nº 2056/2002, Ac. do S.T.J. de 10-10-2002 (Abílio de Vasconcelos) (revista nº 1617/2002), Ac. da Relação de Lisboa de 15-12-   -1994 (Guilherme da Igreja) B.M.J. 442-244, Ac. da Relação de Coimbra de 12-7-1994 (Nuno Cameira)  B.M.J. 439-656, Ac. da Relação de Coimbra de 24-1-1995 (Nuno Cameira) B.M.J. 443-453.

Mas - também já o dissemos - o conhecimento da excepção do abuso do direito só adquire uma dimensão compreensiva à luz do tipo de obras que, no presente contexto, os RR realizaram;  não se trata de dizer que tais obras não constituem alterações substanciais, trata-se de dizer se as alterações que foram feitas, dada a sua amplitude e o condicionalismo em que os RR actuaram, afastam ou não a possibilidade do reconhecimento de um abuso do direito.

Evidencia-se que quando nos deparamos com alterações que não se traduzem num "fazer", mas antes num "desfazer", o critério que faz apelo à definitividade da obra no sentido de que ela se incorpora na estrutura do prédio - como acontecia no acórdão que relatámos acima referenciado -  deve de sofrer uma adaptação; valerá em tais casos saber se a alteração da disposição das divisões é uma alteração que afinal configura uma nova planta do prédio locado ou se limita a um pouco significativo aproveitamento de espaços.

Sob o ponto de vista do que é uma "alteração substancial" o entendimento dos tribunais superiores faz apelo, nesta matéria, a critérios de razoabilidade evidenciando-se alguma flexibilidade. Assim, por exemplo, refere-se no Ac. da Relação de Évora de 7-5-1998 (Bruto da Costa) B.M.J. 477-591:

I- Para efeitos da alínea d) do nº 1 do artigo 64º do RAU tanto a alteração da estrutura externa como a da disposição interna das divisões do prédio têm de ser "substanciais”
II- Não é o caso de se derrubar a parede divisória de um quarto, contígua a uma varanda exterior e uma outra parede que dividia o lado exterior da cozinha e a varanda, bem como de um pequeno muro situado entre a zona exterior da cozinha e a varanda e ainda o fecho de uma marquise adjacente a um dos quartos da casa, tudo obras executadas sem autorização do senhorio.

Saliente-se também, como não pode deixar de ser, o  Ac. do S.T.J. de 10-1-2002 (Sousa Inês) (revista nº 3482/01 da 7ª secção):

I- Por alteração substancial - para efeitos do fundamento de resolução previsto no artigo 64º,nº1, al. d) do RAU - ,deve entender-se aquela modificação do prédio, respeitante à sua estrutura externa ou à disposição interna das suas divisões, que afecte o edifício naquilo que ele tem de essencial, de fundamental, de tal sorte que apareça como justificada, à luz de critérios de razoabilidade, de boa fé, e do interesse do locador, a aplicação da sanção severa e drástica da resolução do arrendamento, em lugar da simples condenação do arrendatário a repor o prédio no estado anterior e a indemnizar o senhorio pelo prejuízo sofrido.
II- Constituem alterações de relativamente pequena importância, não muito grandes, pouco notáveis, que não chegaram a atingir a substância do prédio, mas apenas acidentes seus:
  - A abertura de uma comunicação com o prédio vizinho, levada a cabo numa parede meeira, em local não visível do exterior, com as dimensões de uma porta e sem que resulte que haja sido afectada a segurança da construção;
  -  A cobertura das escadas de comunicação entre o rés-     -do-chão e a cave da fracção autónoma arrendada, feita com tábuas de madeira, não se mostrando que haja afectado a escada que terá continuado a existir, embora coberta e sem que pudesse ser utilizada.
 
10-01-2002

Revista nº 3482/01-7ª secção
Sousa Inês (relator)
Nascimento Costa
Dionísio Correia (vencido quanto ao ponto II)
Quirino Soares
Neves Ribeiro


  No entanto a sentença não enveredou por este caminho, ou seja, o de considerar que as obras realizadas não se poderiam considerar daquelas que alteram substancialmente a estrutura externa ou a disposição interna das divisões do prédio arrendado.

6. A solução encontrada foi, pois, como se disse, a de  se fixar um prazo para a reposição do locado no estado anterior.

Admitamos que o direito à resolução do contrato de arrendamento estava sujeito a facto extintivo constituído por dois elementos: o primeiro a traduzir-se na verificação de que o local arrendado pode efectivamente ser restituído ao primitivo traçado quando se não está face a alterações definitivas no sentido atrás mencionado; o segundo a consistir na execução das obras de reposição do imóvel na situação anterior àquelas que implicavam alteração da disposição interna das divisões.

Ainda assim, admitindo que a reposição do locado no estado anterior, pudesse constituir facto extintivo do direito da autora (artigo 342º/2) ela seria atendível se ocorresse antes do momento do encerramento da discussão (artigo 663º do C.P.C.) até para se permitir a sua efectiva verificação.

Não parece que este facto - precisamente porque é um facto sujeito a  produção de prova e aí muito pode haver a dizer - seja daqueles que o tribunal mesmo assim pudesse aceitar supervenientemente à prolação da decisão em 1ª instância o que já não sucede com outros factos supervenientes que valem por si na sua objectividade sem necessidade de produção de prova.

Afigura-se-nos, no entanto, que a realização de obras pelo locatário que o façam incorrer na previsão do artigo 64º/1, alínea d) do R.A.U. são daqueles actos que ou o locatário repõe antes da propositura da acção ou então já nada pode fazer pois, proposta a acção, constituiu-se no autor o direito à resolução do contrato de arrendamento. Como refere Alberto dos Reis " adquirido esse direito, o arrendatário já não pode apagar a consequência legal do facto ilícito que praticou;  não pode privar o senhorio do direito que a lei lhe concede"(Código de Processo Civil Anotado, Vol V, pág 86).

Não se vê, assim sendo, que a lei atribua a natureza de facto extintivo do direito à resolução do contrato de arrendamento à reposição do prédio arrendado na mesma situação em que se encontrava antes de realizadas as obras ilícitas.

A reposição do locado no estado anterior, se fosse valorada pela lei, seria uma condição resolutiva imprópria,  pela sua proveniência ex lege, mas ela não é como tal reconhecida pela lei substantiva.

Isto não quer dizer que haja uma proibição legal absoluta, pela natureza das coisas, a que assim seja. Conhecemos, na nossa lei, o caso do artigo 830º/5 do Código Civil em que a lei condiciona a procedência da execução específica ao depósito da prestação devida; entende-se que a lei  impõe o depósito antes da prolação da decisão o que impede uma sentença de condenação condicional; no entanto tal entendimento não é absoluto, nem deve ser dogmaticamente assumido, evidenciando inconvenientes que o Prof. Almeida Costa afasta quando propõe a interpretação de que a sentença final pode julgar a acção procedente dentro do prazo que o tribunal fixar:

" portanto, uma sentença com o mencionado conteúdo não resolve definitivamente a questão, uma vez que exige uma prestação subsequente do autor.Se ele a não realiza nos termos definidos na sentença e, com base nesta, pede a entrega forçada da coisa, objecto do contrato prometido, através da correspondente acção executiva... produz-se a improcedência. Eis uma interpretação capaz de ultrapassar a dificuldade que se tem visto nas palavras " a acção improcede"com que o nº5 do artigo 830º do Código Ciivl atinge o autor que não efectua a consignação em depósito no prazo estabelecido pela sentença proferida na acção de execução específica...A esta luz, não se vislumbra que a solução que preconizamos - sem dúvida, materialmente, acertada - se mostre incompatível com a letra do aludido preceito, como não se vislumbra que uma decisão proferida nos mencionados termos possa ser posta em causa com o argumento de que se estaria perante uma sentença condicional. Se assim acontecesse, todas as sentenças abrangidas na previsão do artigo 673º do Código de Processo Civil teriam de incluir-se nessa categoria com a inerente controvérsia da sua admissibilidade"(R.L.J., Ano 133º, pág 254/255).

No entanto, no que respeita à fixação de prazo para reposição da obra no estado anterior nada se encontra estabelecido na lei, contrariamente ao que sucede com a execução específica; assim, já se vê que se a lei não atribui à reposição da obra no estado anterior a natureza de condição resolutiva desse direito, não poderia a sentença criar e fixar uma condição que a lei não prevê.

7.  As sentenças condicionais não são " em princípio admitidas no nosso direito"(Manual de Processo Civil, Antunes Varela, Coimbra Editora, 2ª edição, pág 683).  Aí se esclarece ainda que se " não deve confundir a  sentença de condenação condicional em que condicionado é o direito reconhecido na sentença com as sentenças condicionais em que a incerteza recai sobre o sentido da própria decisão"(loc. cit, pág 683); tratar-se-ia de " permitir uma condenação provisória, dotada de exequibilidade, mas resolutivamente dependente da ulterior procedência duma excepção deduzida, mas só posteriormente julgada. Permitida em outros sistemas jurídicos...não é admitida entre nós"(Código de Processo Civil, José Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto, Coimbra editora, Volume 2º, pág 654).

8. Do exposto resulta que a sentença proferida não se pode manter pois fazê-lo seria reconhecer no nosso direito a possibilidade de fixação pelo julgador de uma condição resolutiva.

No entanto, no caso vertente, afigura-se-nos, pelas razões expostas, que a autora agiu com abuso do direito quando, na sequência de obras que os RR se viram na necessidade de realizar, obras que ela não fez apesar de intimada pela Câmara Municipal do Barreiro, se aproveitou do facto de os réus terem realizado pequenas alterações que, embora modificando a disposição interna das divisões, pela sua dimensão não revelam o propósito de pôr em causa a propriedade do senhorio traduzida no direito de transformação do local arrendado.

O abuso do direito é susceptível de ser conhecido oficiosamente designadamente quando, como sucede no caso vertente, estão alegados e provados os factos que o fundamentam.

Prevalece, pois, o regime substantivo sobre a regra processual da proibição da reformatio in pejus.

Se assim não fosse, e porque manifestamente a A. tem razão quando considera que a sentença não pode condicionar o  despejo à reposição pelo arrendatário do local arrendado ao estado anterior àquele que se encontrava quando realizou as obras ilícitas, a solução seria absolutamente contrária, por razões processuais, ao resultado material que se impõe pois ficaria reduzida à sua primeira parte, ou seja, à declaração de resolução do contrato de arrendamento e despejo.


Decisão: nega-se provimento ao recurso absolvendo-se os réus do pedido face à excepção material do abuso do direito.

Custas pela A.


Lisboa, 22/01/04


(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)