ADMINISTRAÇÃO
CONDOMÍNIO
QUEIXA
LEGITIMIDADE
CRIME SEMI-PÚBLICO
Sumário

O administrador do condomínio tem legitimidade para apresentar queixa por furto, dano e introdução em lugar vedado ao público e, assim sendo, também o MºPº tem legitimidade para promover o processo.

Texto Integral

Acordam, precedendo audiência, na Relação de Lisboa:

I
1. Nos autos de processo comum, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Oeiras, o arguido, (F), melhor identificado a fls. 45, sob queixa de (J), foi acusado, pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, pela prática de factos consubstanciadores da autoria material, em concurso real, de um crime de dano, de um crime de introdução em lugar vedado ao público e de um crime de furto, previstos e puníveis, respectivamente, pelos arts. 212.º, 191.º e 203.º, do Código Penal – despacho de fls. 45-47.
Determinado o julgamento (fls. 57), o arguido contestou, suscitando, designadamente a questão da ilegitimidade do queixoso (fls. 81-86).
Realizada a audiência de julgamento, perante Tribunal Singular, o M.mo Juiz proferiu sentença, decidindo absolver o arguido por falta de legitimidade do Ministério Público para a acção penal (fls. 113/114).

2. A Dg.ma Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido interpôs recurso daquela sentença.
Extrai da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1 - O tribunal a quo considerou que a apresentação de queixa crime não cabe nas funções do administrador do condomínio, face à redacção do art. 1437.º n.º 1 do Código Civil, a não ser nos casos em que a assembleia lhe confere poderes para o efeito.
2 - No caso dos autos, o tribunal a quo entendeu que o Ministério Público não tinha legitimidade para exercer a acção penal e, com esse fundamento, absolveu o arguido (F).
3 - Das actas das assembleias (fls. 41 e 100) e das declarações prestadas em inquérito resulta que foi deliberado e está assente que os pilares e correntes em causa passavam a integrar os bens comuns do condomínio, afectos ao seu uso colectivo dos condóminos, visando impedir o acesso ao parqueamento a estranhos ao condomínio. E, embora se tenha procedido à audiência de julgamento, não foram dados como assentes factos de que resulte o contrário.
4 - O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de dano, de um crime de furto e de um crime de introdução em lugar vedado ao público em que, em todos eles, o proprietário é o titular do bem jurídico tutelado pelo tipo.
5 - Dos autos resulta que o queixoso (J), para além de administrador do condomínio, é proprietário e condómino (cfr. acta de fls. 40) sendo certo que os condóminos são comproprietários das partes e bens comuns pertencentes ou afectos ao serviço do condomínio (art. 1420.º n.º 1 do Código Civil).
6 - O art. 113.º n.º 1 do CP considera que é ofendido «o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação».
7 - Logo, o queixoso, na qualidade de (com)proprietário de partes e bens comuns, é um dos ofendidos tinha legitimidade para apresentar a queixa
8 - Ainda que agisse na qualidade de administrador o queixoso tinha poderes para apresentar queixa crime face ao preceituado no art. 1436.º alínea l) do Código Civil segundo o qual cabe ao administrador «assegurar a execução das disposições legais relativas ao condomínio».
9 - Um dos deveres dos condóminos, enquanto comproprietários de partes comuns, é não privarem os outros consortes do uso da coisa a que igualmente têm direito (art. 1420.º n.º 1 e 1406.º n.º 1 do Código Civil) e uma das formas eficazes de impor - pelo menos futuramente - o cumprimento daquele dever a quem danifique ou a quem subtraia um bem comum e de assegurar o cumprimento da lei é a apresentação de uma queixa crime a qual tem um efeito dissuasor na prática de novos actos lesivos do direito.
10 - Doutro modo, sempre se teria de considerar que tal poder, pelo menos, decorreria da alínea f) do art. 1436.º pois, segundo este, compete ao administrador «realizar os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns» e a apresentação de uma queixa contra o autor de um acto lesivo de um direito de propriedade não deixa de ser um acto que visa que o direito violado seja futuramente preservado.
11 - Foram violados os arts. 49.º do CPP, 203.º, 212.º e 191.º do CP e arts. 1436.º al. l(f) e1437.º n.º 1 do Código Civil.
12 - Deverá o despacho-sentença recorrido ser revogado e substituído por outro que declare a legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal e que ordene o prosseguimento dos autos com designação de dia para julgamento a fim de se conhecer dos crimes imputados ao arguido.

3. O M.mo Juiz admitiu o recurso – fls. 123.

4. O arguido respondeu à motivação, propugnando pela confirmação do julgado.

5. O Dg.mo Magistrado do Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.

6. Atentos os poderes cognitivos deste Tribunal (art. 428.º, do CPP) e a conformação que a D.ma Recorrente atribui ao recurso (art. 412.º n.º 1, do CPP), importa examinar a questão de saber se, em caso de queixa de um comproprietário contra outro, por crimes de dano, de introdução em lugar vedado e de furto, o Ministério Público dispõe de legitimidade para acusar.
II

7. O procedimento criminal pelos crimes em referência, de dano, de introdução em lugar vedado e de furto, depende de queixa – arts. 212.º n.º 3, 191.º/198.º e 203.º n.º 3, todos do CP.
Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para a apresentar o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação – art. 113.º n.º 1, do CP.
O Ministério Público dispõe de legitimidade para promover o processo, desde que o ofendido lhe dê conhecimento dos factos, podendo a queixa ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais – art. 49.º n.os 1 e 3, do CPP.
Como acima se deixou editado, questão é a de saber se, no caso, o queixoso dispõe de legitimidade para apresentar a queixa e, reflexamente, se o Ministério Público dispõe de legitimidade para acusar.
Afigura-se que a resposta deve ser afirmativa.
Vejamos porquê.
Está em causa saber se o queixoso é titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação.
Interesses que têm a ver com a propriedade, no caso dos crimes de dano e de furto e com a reserva da vida privada, no caso do crime de introdução em lugar vedado ao público.
Na queixa que faz documento de fls. 3, o ofendido, (J), apresenta-se como comproprietário, como condómino e como co-administrador do «bloco habitacional» que diz ter sido invadido pelo arguido e onde, no seu dizer, se situavam os pilaretes por este estroncados e subtraídos.
Nos termos do disposto no art. 1437.º n.º 1, do Código Civil, o administrador do condomínio pode agir em juízo, seja na execução das funções que a lei lhe atribui, seja quando munido de poderes conferidos pela assembleia de condóminos.
É certo que não resulta, designadamente das actas das assembleias de condóminos insertas a fls. 40-42 e 97-102, dos autos, que haja sido conferida autorização para tanto ao administrador que formulou a queixa.
Sem embargo, nos termos prevenidos naquele segmento normativo, o administrador pode agir em juízo na execução das funções que a lei lhe atribui, designadamente as que tenham a ver com a realização dos actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns e o asseguramento da execução do regulamento e das disposições legais e administrativas relativas ao condomínio [art. 1436.º al. f) e l), do CC].
Ora, como, impressivamente, sublinha a Ex.ma Respondente, resulta das actas referidas (fls. 41 e fls. 100-102) que os pilares e correntes colocados no parque do condomínio, alegadamente estroncados pelo Arguido, estavam afectos ao uso colectivo dos condóminos e, nessa medida, eram bem comum destes.
Nesta medida, afigura-se que o queixoso, enquanto administrador do condomínio, se apresenta com legitimidade para o exercício do direito de queixa.
Por outro lado, o facto de o mesmo queixoso se figurar, nos autos, como comproprietário do bloco habitacional em referência, concede-lhe, fora de dúvidas, a qualidade de portador concreto dos bens jurídicos tutelados e, por essa via, a necessária legitimidade para o exercício do direito de queixa.

Como assim Ponderado, ademais que «a decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do art. 311.º n.º 1, do CPP, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento», cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Pleno das Secções Criminais), n.º 2/95, de 16-5-1995 (DR, 1.ª Série, de 12-6-1995, pp. 3773 e segs.)., o recurso deve proceder.
III

8. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se que, afirmada a legitimidade do Ministério Público, o Tribunal a quo determine o prosseguimento dos autos com a realização da audiência de julgamento.
Não cabe tributação.
Lisboa, 11/02/04

PRESIDENTE DA SECÇÃO: J. Cotrim Mendes
RELATOR: A. M. Clemente Lima
ADJUNTOS: Maria Isabel Duarte / António V. Simões