ADVOGADO
ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
REPRESENTAÇÃO
Sumário

Texto Integral

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa:

No âmbito do Inquérito o queixoso e ora recorrente (C), que além do mais de identifica como Advogado, deduziu participação crime contra quatro pessoas a quem imputa, na sua qualificação, a prática de crimes públicos e particular.
O MP/DIAP determinou então, em fundamentado despacho, a notificação do participante para juntar procuração outorgada a Advogado com vista à sua constituição como Assistente.
Reagindo a esta notificação o participante ora recorrente alegando ser Advogado e invocando o disposto no art. 53º/1 e art. 164º/1 do Estatuto da Ordem dos Advogados veio requerer ao JIC a sua admissão como assistente/advogado em causa própria, desta feita sem necessidade de constituir Advogado outro Colega.
Perante este requerimento, na vista que teve dos autos, o MP DIAP promove no sentido do indeferimento da requerida constituição como assistente, dado o queixoso não juntar procuração a favor de mandatário constituído. E conclusos os autos, o Mmº JIC profere o seguinte despacho:
«Tendo em conta que o queixoso (C), não obstante notificado para constituir mandatário judicial não o fez, concordando com a douta promoção que antecede e com os fundamentos de fls. … não admito a intervenção, indefiro a requerida constituição de assistente – Artº 70º CP».
Ora, é deste despacho que o queixoso (C), invocando além do mais o Ac Rel Lisboa de 25/2/2003, Pº 00104915, in Net, interpôs o presente recurso de cuja motivação extraiu as seguintes conclusões:
1. A ponderação fulcral supratranscrita, segundo a qual a «intervenção dos técnicos de direito deve ser o mais objectiva se o técnico do direito que assiste o ofendido não for o próprio ofendido», representa uma idiossincrática tese filosófica de todo insustentável, porém, no mundo do direito vigorante, onde quer que a lei quer a mais subida jurisprudência notoriamente lhe retiram sustentação. Efectivamente,
2. Quer o Supremo Tribunal de Justiça quer esse Tribunal Superior ad quem, através das suas decisões supracitadas, dão categoricamente por irrefutável, em judiciosa hermenêutica das normas legais aplicáveis, que o advogado pode legitimamente intervir em processo-crime como assistente em causa própria. Manifestamente.
3. O despacho recorrido releva duma interpretação inconstitucional – pois que ofensiva da garantia de acesso ao direito e ao tribunal e, inclusive, do direito à igualdade em sede de direitos processuais fundamentais – das normas legais que quer explicita quer implicitamente aplica: o art. 70º do Código do Processo Penal e os Artºs 53º e 164º do Estatuto da Ordem dos Advogados».

Em resposta, nos termos do art. 413º CPP, o MP/DIAP ofereceu a sua contramotivação, invocando além do mais o Ac Rel Lisboa de 20/5/1998 in CJ 1998/III/147, sustentando em síntese que:
«A constituição de assistente em processo penal implica sempre, conforme prescreve o nº 1 do art. 70º do Código de processo Penal, a representação obrigatória por advogado. Pois assim se entende uma vez que, ao assistente … mesmo que se seja advogado … no âmbito do processo penal, não goza de mais direitos do que o comum dos cidadãos».

O Mmº JIC manteve o seu despacho a mandou subir os autos.

Nesta Relação o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, citando o Ac Rel. Lisboa de 1/10/2002, Pº 4646/02-3, emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto merece provimento.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


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2. FUNDAMENTOS
2.1 - A questão

Preceituando o art. 70º CPP que «Os assistentes são sempre representados por Advogado» constitui objecto do presente recurso a questão de saber:
· Se o queixoso sendo Advogado e querendo constituir-se Assistente em processo penal, terá para tanto de constituir mandatário um outro Colega Advogado (posição do despacho recorrido), ou ----------------------
· Se disso não carece, podendo constituir-se a si próprio assistente / advogado em causa própria ao abrigo dos Artºs 53º e 164º do Estatuto da Ordem dos Advogados / Lei 84/84 (posição do recorrente).

A questão não é nova. Sobre a matéria não tem havido unanimidade na jurisprudência, encontrando-se decisões nos dois sentidos.


2.2 – As normas estatutárias e os seus limites

Do disposto conjugadamente nos Artºs 53º e l64º nº 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados (DL 84/84 de 16/3) resulta que os Advogados podem efectivamente advogar em causa própria em qualquer jurisdição. Porém, uma tal faculdade estatutária não constitui um direito absoluto que se projecte ilimitadamente sobre todo o ordenamento jurídico. Vai até onde pode ir e cede um tiver de ceder. Como direito subjectivo que é está sujeito à regra da colisão de direitos (art. 335º CCivil) e à restrição constitucional de direitos (art. 18º nºs 2 e 3 da CRP). O que de resto acontece com todos os Estatutos. Um exemplo: Aquando da nova Lei Orgânica do Ministério Público (Lei nº 60/98 de 28/8) foi introduzido um segmento de norma segundo a qual «O Ministério Público é representado… no Supremo Tribunal Militar… pelo Procurador-Geral da República» (art. 4º 1). Só que, paralelamente, nunca se procedeu à revisão da Lei de Organização Judiciária Militar segundo a qual no Supremo Tribunal Militar as funções do MP são exercidas pelo Promotor de Justiça, oficial superior dos quadros permanentes de qualquer ramo das forças armadas, licenciado em direito (Artºs 282º a 288º CJM). Conclusão: A norma estatutária do MP nunca funcionou, mantendo-se ainda hoje como norma programática. (E nem chegará a funcionar porque entretanto os Tribunais Militares estão extintos e o novo CJM já aprovado (Lei 100/2003 de 15/11).

2.3- O Estatuto do Arguido e do Assistente

O Estatuto dos Advogados consta como vimos de uma lei avulsa o DL nº 84/84 de 16/3. Por sua vez os Estatutos do Arguido e do Assistente em processo penal constam do normativo do próprio Código de Processo Penal. E quanto à representação judiciária do assistente, com sublinhado nosso, preceitua assim o art. 70º nº 1 deste diploma:
«Os assistentes são sempre representados por Advogado».

Representados…
Este conceito «representado» remete para o instituto da representação regulado nos Artºs 258º a 269º do Código Civil, donde se conclui que para o instituto funcionar torna-se necessário a existência de pelo menos duas pessoas: uma o representado (dominus negotii) e outra o representante (alieno nomine).
Dentre as espécies de representação jurídica (própria, imprópria, legal, voluntária, passiva, activa) não existe a figura da auto-representação isto é, a possibilidade de uma pessoa representar-se a si própria em determinado acto, pelo que tal constitui um impossível jurídico. E isto certamente porque, quando uma pessoa se representa a si própria em determinado acto, está no fundo a agir directamente. (cf. Manuel Andrade, Teoria geral, II/287).
Mas a lei não autoriza que o assistente intervenha directamente, visto que:
«Os assistentes são sempre representados por Advogado».

E «sempre» é sempre independentemente de quem seja o ofendido que se pretenda constituir assistente: médico, professor, advogado, magistrado, político, operário, jornalista, administrador, gestor, etc. Vale aqui o principio constitucional da igualdade (art. 13º CRP). Ninguém prejudicado, ninguém beneficiado, todos por igual.
Significa isto que perante o imperativo «sempre», constante de uma norma geral e abstracta válida erga omnes, terá de ceder a norma sectorial constante do Estatuto da Ordem dos Advogados, concretamente beneficiária apenas desta classe.
O Artº 70º nº 1 CPP consagra assim um norma imperativa, tipo norma preceptiva, donde a contrario resulta uma norma proibitiva de se proceder de outro modo.


2.4- Razão de ser

Como é consabido, relativamente à obrigatoriedade do patrocínio judiciário e à sua razão de ser o Prof. Manuel Andrade discorria assim nas suas «Noções Elementares de Processo Civil» § 53:

«Assim convém ao interesse privado das partes e ao interesse público (boa administração da justiça). Às partes faltaria a serenidade desinteressada (fundamento psicológico) e os conhecimentos e experiência (fundamento técnico) que se fazem mister para a boa condução do pleito».

No caso da constituição de assistente em processo penal por ofendido advogado a questão do fundamento técnico não se poria. Mas quanto ao fundamento psicológico, se o Prof. Manuel Andrade já assim se pronunciava naqueles tempos e em processo civil, por maioria de razão, o seu juízo será valido nos dias de hoje e em processo penal, onde as tensões emocionais são normalmente mais vivas e os desequilíbrios psicológicos mais acentuados como é público, notório e por vezes mediático.

2.5- Fundamento orgânico

Mas não são só razões psicológicas que estão subjacentes ao art. 70º/1 CPP. Existem também razões de natureza orgânica e funcional impeditivas de que as duas figuras (ofendido/assistente e advogado/assistente) se confundam numa única pessoa, dado as situações de incompatibilidade, desigualdade e constrangimento a que daria lugar.
Vejamos uma amostragem:
· Embora sem prestar juramento o ofendido/assistente está sujeito ao dever de verdade e responsabilidade penal (Artºs 145º/2/4 e 346º/2 CPP). Por sua vez o advogado/assistente pode escusar-se a depor mercê do segredo profissional (Artº 135º/1 CPP). Ora poderiam surgir aqui situações difíceis de conciliar numa única pessoa.
· Havendo vários ofendidos, todos Advogados, todos se querendo constituir assistentes e todos querendo advogar em causa própria e dizendo a Lei que «Havendo vários assistentes são todos representados pelo mesmo Advogado» (Artº 70º II parte), surgiria aqui uma dificuldade quanto ao critério da escolha, se nessa escolha divergissem entre si.
· A tomada de declarações ao ofendido/assistente em audiência de julgamento está sujeita à ordem da produção da prova (Artº 341º CPP) e ao regime da prova testemunhal (Artºs 145º/3, 339º/1 e 346º CPP). Assim o ofendido/assistente/advogado após a chamada seria recolhido a uma sala (Artº 634º CPC). Mas então recolhido numa sala impedido ficaria de simultaneamente estar presente na sala de audiências, tomar parte nas exposições introdutórias (Artº 339º/2 CPP), pronunciar-se sobre a documentação da audiência (Artº 364º/1CPP), assistir às declarações do arguido, examinar os documentos ou objectos que e este fossem mostrados (Artºs 342º a 345º CPP), pronunciar-se sobre os requerimentos da defesa (Artº 340º/3 CPP), em suma, exercer o contraditório (Artº 327º CPP). E casos havendo de adiamento da audiência (Artº 330º/2 CPP).
· Mas, por outro lado, se o advogado/assistente/ofendido presente estivesse na sala de audiências, desde o início do julgamento, outras melindrosas questões se poriam. Desde logo o público presente na sala poderia pensar haver aqui uma situação de favor ao queixoso por este ser Advogado. (Em matéria de seriedade e transparência, certamente também não basta sê-lo é preciso parecê-lo). Em segundo lugar a sua presença poderia causar constrangimento e perturbação ao arguido quando este prestasse as suas declarações. E em terceiro lugar permitiria ao assistente desde logo tomar conhecimento do conteúdo das declarações do arguido, o que lhe poderia trazer vantagem.
· Depois em audiência de julgamento o Artº 345º/2 CPP permite ao advogado do assistente solicitar ao presidente que formule perguntas sobre os factos ao arguido. Ora estando confundidos na mesma pessoa o ofendido e o seu advogado, no fundo, redundaria em se permitir pessoalmente ao ofendido formular perguntas ao arguido. Mas a situação inversa não está prevista. O arguido pessoalmente não pode solicitar ao presidente que formule perguntas ao queixoso sobre os factos.
· Ainda em audiência de julgamento o Artº 346º CPP permite ao advogado do assistente solicitar ao presidente que formule perguntas ao assistente sobre os factos. Ora estando confundidos na mesma pessoa o assistente e o seu advogado, no fundo tal redundaria em auto-perguntas, isto é, a mesma pessoa faz a pergunta e dá a resposta.

Estas situações de incompatibilidade (entre as duas figuras),de superioridade (do assistente) e de constrangimento (do arguido) não são legítimas em processo penal face a projecção que sobre ele faz o Artº 2º nº 2 ponto 3 da Lei nº 43/86 de 26/9 (autorização legislativa) ao providenciar «A parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os actos do processo e a incrementação da igualdade de “armas” no processo».
Daí que o suprimento destes inconvenientes se tenha feito legislativamente através do instituto da representação nos termos em que se acha fixado no Artº 70º nº 1 CPP. E feito está feito.

Dir-se-á ainda que o estatuto do arguido e do assistente no Código Processo Penal constituem um ordenamento jurídico de ordem pública, que não deve ser derrogado. O próprio arguido tem direito ao comportamento fixado no Artº 70º/1 para o assistente ou seja defrontá-lo representado por Advogado e não directamente investido de qualquer privilégio pessoal vindo do exterior.

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2.6- Resumindo:

Uma vez aqui chegados podemos então extrair a seguinte conclusão:

As duas figuras de ofendido/assistente e de Advogado/assistente são incompatíveis entre si por razões de natureza psicológica, orgânica e funcional. O queixoso Advogado que queira constituir-se assistente tem necessariamente de constituir mandatário um outro colega.



Com assim se prosseguindo na jurisprudência predominante nesta Relação. (Ac. de 20/5/98 in CJ 1998/III/147, Ac. de 17/6/97 in CJ/1997/III/158 ;
Ac. de 2/10/2002 Pº 106093 e Ac. de 8/1/2003 Pº 69213 in www.trl.pt).

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3. DISPOSITIVO

Termos em que, de conformidade com os fundamentos expostos, acordam os juízes na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, com assim confirmando a douta decisão recorrida.
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Taxa de justiça 3 UC pelo recorrente.
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Lisboa, 12 de Fevereiro de 2004.
Francisco Neves
Martins Simão
João Carrola