TRANSPORTE AÉREO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

Compete ao transportador aéreo a alegação e prova dos factos limitativos da respectiva responsabilidade civil.
A falta de cumprimento desse ónus obriga o transportador a indemnizar o lesado sem a limitação prevista na Convenção de Varsóvia.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., instaurou, em 5 de Fevereiro de 2002, no 5.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, contra DHL – Transportadores Rápidos Internacionais, Lda, acção declarativa, sob a forma de processo sumário, pedindo que a R. fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 5 925,94, acrescida dos juros de mora, à taxa legal de 12 %, desde a citação até integral pagamento.
Para tanto, alegou, em síntese, que, por efeito de um contrato de seguro celebrado com Solbi – Sociedade Lusobritânica de Informática, Lda, pagou-lhe o valor da mercadoria desaparecida durante o seu transporte de Inglaterra para Portugal, confiada à R., tendo ficada sub-rogada.
Contestou a R., impugnando parte dos factos, e concluiu pela total improcedência da acção.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, respondendo-se à base instrutória, nos termos do despacho de fls. 96, do qual não houve qualquer reclamação.
Em 12 de Fevereiro de 2003 foi proferida a sentença, constante de fls. 100 a 107, que, julgando a acção totalmente procedente, condenou a R. no pedido.
Não se conformando, a R. recorreu da mesma e, tendo alegado, formulou, no essencial, as seguintes conclusões:

O art.º 22.º, n.º 2, al. a), da Convenção de Varsóvia limita a responsabilidade do transportador no transporte de mercadorias.
No art.º 25.º da mesma Convenção não existe uma presunção de culpa do transportador.
A limitação de responsabilidade prevista no art.º 22.º, n.º 2, da Convenção de Varsóvia, só não será aplicável caso não seja provado que o dano resulta de acto ou omissão do transportador ou dos seus propostos.
A apelada não alegou factos que provassem a culpa da apelante.
A sentença recorrida violou a al. a) do n.º 2 do art.º 22.º da Convenção de Varsóvia.

Pretende, com o provimento do recurso, a substituição da sentença recorrida por outra que decida pela limitação da responsabilidade do transportador.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está em discussão apenas saber se a responsabilidade civil do transportador aéreo de mercadorias está limitada nos termos da al. a) do n.º 2 do art.º 22.º da Convenção de Varsóvia.

II. FUNDAMENTOS

2.1. Estão provados os seguintes factos:

A R. e Solbi – Sociedade Lusobritânica de Informática, L.da, mediante a carta de porte n.º 3703113632, celebraram um contrato de transporte aéreo de mercadorias de Inglaterra para Lisboa.
Nos termos desse contrato, as partes acordaram que “se o transporte de um envio envolve um destino final ou escala num país diferente do de partida, poderá ser aplicado o regime da Convenção de Varsóvia. Tal Convenção determina, e na maioria das situações reduz a (...) responsabilidade por perdas ou danos relacionados com o envio”.
A mercadoria de material informático, composta de 12 unidades de QUA ATLAS V 7200RPM 6.9HS 2M, com o valor unitário de USD 416,97, que a Solbi havia adquirido a Ideal Hardware, L. td, e a respectiva carta de porte desapareceram durante o seu transporte.
A Autora celebrou com Solbi, L.da, um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 227858, através do qual assumiu todos os riscos que pudessem advir a material informático, no valor de USD 5 946, em que se incluía 10 % de lucro esperado, durante o transporte pela R. de Inglaterra para Portugal.
A 10 de Julho de 2001, a Autora pagou a Solbi, L.da, a quantia de 1 188 044$00, a título de indemnização pelo valor correspondente à mercadoria desaparecida.
A R. pretendeu reembolsar Solbi, L.da, do custo do transporte e do contra-valor em escudos de USD 100.

2.2. Delimitada a matéria de facto relevante, que não vem impugnada, importa conhecer do objecto do recurso, circunscrito pelas respectivas conclusões, cuja questão suscitada foi já posta em destaque.
Não vem questionado que o acordo celebrado entre Solbi, Sociedade Lusobritânica de Informática, L.da, e a apelante corresponda a um contrato de transporte aéreo de mercadorias, apesar de não se ter sido expresso, aceitando-se tal qualificação, designadamente, por alguns dos respectivos termos que ficaram provados.
Por se tratar de um contrato de transporte aéreo de mercadorias é que a apelante vem invocar, contra a decisão recorrida, a violação do limite de responsabilidade civil, estabelecido na al. a) do n.º 2 do art.º 22.º da Convenção de Varsóvia.
Na verdade, a Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, assinada em Varsóvia em 12 de Outubro de 1929, e modificada pelo Protocolo de Haia, assinado em 28 de Setembro de 1955, constituindo direito interno português, aplica-se ao contrato de transporte aéreo celebrado entre Solbi, L.da, e a apelante.
Nos termos da Convenção de Varsóvia, o transportador é responsável pelo dano proveniente da perda da mercadoria (art.º 18.º).
A responsabilidade civil do transportador, no entanto, pode ser excluída ou limitada.
É excluída, quando o transportador prove que ele e os seus propostos tomaram todas as medidas necessárias para evitar o prejuízo ou que lhes era impossível tomá-las (art.º 20.º).
Por outro lado, a responsabilidade civil do transportador é limitada, nos termos previstos na al. a) do n.º 2 do art.º 22.º da Convenção, desde que se prove que o dano não resultou de uma acção ou omissão do transportador ou dos seus agentes, quer com intenção quer, temerariamente, com negligência grosseira (art.º 25.º).
Os factos conducentes à exclusão da responsabilidade civil do transportador ou à sua limitação constituem, respectivamente, factos impeditivos ou modificativos do direito invocado pelo lesado.
Na verdade, aos factos que consubstanciam o direito do lesado, o transportador pode opor-se, alegando, por um lado, ter feito tudo para evitar o dano ou que tal lhe era impossível, por outro, não ter actuado com a intenção de causar o dano, nem, temerariamente, com negligência grosseira.
De harmonia com a regra da distribuição do ónus da prova, consagrada no n.º 2 do art.º 342.º do Código Civil, a prova dos factos impeditivos ou modificativos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
Assim, compete ao transportador a prova dos factos quer daqueles de que resulta a exclusão da sua responsabilidade civil, quer dos que a limitam.
No sentido propugnado, decidiu já o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 30 de Setembro de 1997 Colectânea de Jurisprudência (STJ), Ano V, t. 3, pág. 37 e o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 5 de Abril de 2001 (Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVI, t. 2, pág. 101).

2.3. Enquadrada a questão suscitada pelo recurso, e revertendo ao caso dos autos, verifica-se, desde logo, que a apelante, na sua contestação, para além de não ter alegado qualquer facto tendente a excluir a sua responsabilidade civil pelo desaparecimento da mercadoria transportada, nada invocou, no tocante aos factos, no sentido da sua limitação, nos termos previstos nos art.º s 22.º, n.º 2, alínea a), e art.º 25.º da Convenção de Varsóvia.
Por isso, nem sequer podia cumprir o ónus de prova, que sobre si recaía, nos termos do n.º 2 do art.º 342.º do Código Civil.
Ao invés, ficou provado que a apelante não cumpriu a sua prestação, pois permitiu o desaparecimento da mercadoria que lhe foi confiada para transportar, causando um prejuízo correspondente ao valor da mesma.
Esse incumprimento é imputável à apelante, a título de culpa, porquanto a mesma não ilidiu a presunção decorrente no n.º 1 do art.º 799.º do Código Civil.
Por isso, como devedora que faltou culposamente ao cumprimento da obrigação, a apelante tornou-se responsável pelo prejuízo causado, como decorre, expressamente, do disposto no art.º 798.º do Código Civil.
Nestas condições, não havendo limitação da responsabilidade civil da apelante pelo desaparecimento da mercadoria transportada, está a mesma obrigada a pagar a indemnização resultante da perda da mercadoria, na qual, sem qualquer impugnação, se sub-rogou a ora apelada.
Tendo a sentença recorrida decidido nesta conformidade, sem violação de qualquer disposição legal, designadamente da alínea a) do n.º 2 do art.º 22.º da Convenção de Varsóvia, não pode o recurso obter o pretendido provimento.

2.4. Em face do que fica descrito, pode extrair-se a seguinte síntese:
Compete ao transportador aéreo a alegação e prova dos factos limitativos da respectiva responsabilidade civil.
A falta de cumprimento desse ónus obriga o transportador a indemnizar o lesado sem a limitação prevista na Convenção de Varsóvia.

2.5. A apelante, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade, consagrada no art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.

III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

Negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Condenar a recorrente no pagamento das custas.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2004

Olindo Geraldes
Fátima Galante
Manuel Gonçalves