PECULATO DE USO
INDÍCIOS SUFICIENTES
PRONÚNCIA
Sumário

Concede-se provimento ao recurso do MºPº e determina-se que o despacho de não pronúncia seja substituído por outro que pronuncie a arguida no que respeita à suficiente indiciação da prática de crime de peculato de uso.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na secção criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Processo NUIPC 366/01. 5 TAMTJ, a 20-2-2003 (cfr.fls.385-399), o Exmº Juiz do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo proferiu decisão instrutória de não pronúncia da arguida (A) pelos factos constantes do libelo acusatório.

Por não se conformar com essa decisão, dela recorreu o MºPº, formulando, na motivação apresentada, as seguintes conclusões (cfr.fls.401-417; transcrevem-se):
«1ª- Há indícios suficientes quando deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, com base neles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, princípio que também vale em sede de instrução ( art.ºs 283.º, n.º2 e 308.º, n.º 1, ambos do C.P.P.).
2ª- No despacho impugnado interpretou-se a norma constante do art.º 172.º da Lei Orgânica n.º1/01, de 14 de Agosto, no sentido de o tipo que a mesma define ser um crime de dano ou de perigo concreto, na medida em que se considerou ser necessário, para a consumação do mesmo, que a recorrida tivesse favorecido ou prejudicado um concorrente eleitoral.
3ª- Porém, fazendo uso das melhores regras da hermenêutica jurídica, devia ter interpretado tal norma no sentido de o referido elemento não ser constitutivo do tipo, sendo o mesmo um crime de perigo abstracto, perigo que é presumido “ iuris et de iure” , bastando para a sua consumação, que fique provada a idoneidade da conduta da recorrida.
4ª- O conteúdo do boletim e, sobretudo, os respectivos títulos, bem como o do folheto, com funções apelativas são aptos a causarem impressão nos munícipes e a influenciarem a sua tendência de voto, pelo que os mesmos revelam preocupações eleitoralistas e de “marketing” político, do que resulta que a conduta da recorrida é idónea para o preenchimento dos crimes imputados.
5ª- Deste modo, sendo a recorrida simultaneamente a presidente da Câmara, não suspensa das suas funções, e candidata a novo mandato, a primeira quis favorecer a segunda, criando para a mesma uma vantagem em relação aos restantes candidatos.
6ª- Assim, porque se verificam indícios suficientes de que a recorrida cometeu os crimes que lhe foram imputados na acusação, o despacho recorrido fica desprovido de qualquer base legal que lhe sirva de suporte, pelo que o mesmo deve ser revogado e substituído por despacho de pronúncia, dando--se provimento ao recurso, com o que se fará a devida justiça.»

Admitido o recurso (fls.421), e efectuadas as necessárias notificações, foi apresentada resposta pela arguida (A), que conclui (cfr.fls.440-455; transcreve-se): «
a) O presente recurso vem interposto do despacho de pronuncia proferida nos autos à margem referenciados;
b) O meritíssimo Juiz a quo julgou não existirem indícios suficientes de que a arguida tenha cometido os factos que lhe são imputados na acusação, atendendo à prova que foi produzida na fase de Instrução;
c) No entanto, considera o Recorrente que há indícios suficientes quando deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, com base neles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança, principio que também vale em sede de instrução;
d) Todavia, não assiste qualquer razão ao Recorrente porquanto resultou da prova produzida na fase de Instrução, não ter a arguida praticado quaisquer factos idóneos a preencher o tipo de crime;
e) Alega o ora Recorrente que o artigo 172º da LEOAL deve ser interpretado no sentido de o tipo que a mesma norma define ser um crime de perigo abstracto.
f) Ora, salvo o devido respeito, não é essa a correcta interpretação a fazer dos preceitos legais aplicáveis;
g) O tipo de crime previsto no artigo 172º da LEOAL é um tipo complexo, uma espécie de tipo “aberto”, em que os elementos que fundamentam a ilicitude não estão totalmente determinados na norma incriminadora, de forma que, olhada isoladamente, em causa fica o próprio principio da legalidade.;
h) O crime em questão está tipificado nos artigos 172º, 40º, 41º e 38º da LEOAL;
i) O âmbito de autoria de autoria do crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade é estabelecido pela conjugação dos preceitos dos artigos 172º e 41º da LEOAL e é delimitado pelas entidades que estão legalmente obrigadas a observar esses deveres durante o processo eleitoral.
j) As condutas relevantes para o tipo de crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade são as condutas proibidas ou impostas pela norma contida do n.º1 do artigo 41º da LEOAL;
k) A imposição da observância dos deveres de neutralidade e imparcialidade às entidades públicas, exigível desde a marcação das eleições, não é incompatível com a normal prossecução das suas funções;
l) “O que o principio da neutralidade postula é que no cumprimento das suas competências, as entidades publicas devem, por um lado, adoptar uma posição de distanciamento em face dos interesses das diferentes forças politico-partidárias e, por outro lado, abster-se de toda a manifestação política que possa interferir no processo eleitoral.”
m) Com este tipo de crime, pretende-se prevenir um resultado de perigo – a alteração das condições de igualdade de todas as candidaturas-, como forma de evitar um resultado lesivo, não compreendido no tipo, que é a viciação do próprio processo eleitoral, pelo que os actos que de algum modo favoreçam ou prejudiquem uma candidatura em detrimento ou vantagem de outra serão condutas idóneas que coloquem efectivamente em perigo a posição de igualdade de que devem gozar todas as candidaturas no processo eleitoral, o que configura o crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade como um crime de perigo;
n) A conduta tem que assumir uma gravidade susceptível de influenciar as condições de igualdade entre as diversas candidaturas.
o) Assim, só são censuráveis penalmente aquelas condutas mediante as quais se ponha irremediavelmente em causa a igualdade entre as candidaturas ou a liberdade e esclarecimento do voto, em termos que não possa já o respeito por esses princípios na própria campanha conduzir a uma situação de igualdade e equilíbrio;
p) Ora, a publicação do suplemento e do comunicado não ultrapassam a actividade normal da presidente da Câmara – em especial a actividade de informação e de balanço do mandato que reconhecidamente os autarcas, não apenas podem, como devem desenvolver junto dos munícipes-, não assumindo idoneidade para poder pôr em perigo a igualdade entre as diversas candidaturas;
q) Não estão, pois reunidos os dois requisitos principais para que se tenha violada a lei, a saber, titular do órgão de um ente público tem de estar no exercício das suas funções e tem de forma grosseira favorecer ou prejudicar um concorrente eleitoral;
r) Acresce que, do conteúdo do suplemento em causa não se retira qualquer intenção eleitoralista ou de auto-promoção e de depreciação de candiadatos da oposição;
s) Ora, só condutas com este animo e efeito são susceptíveis de fazer incorrer os seus sujeitos no crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, pelo que há que concluir, não apenas pela inidoneidade da conduta da arguida para o preenchimento do tipo de crime por que vem acusada, mas também pela inexistência do correspondente dolo, capaz de sustentar a tipicidade.
t) A intenção subjacente à contratação da publicação deste suplemento é a de levar a cabo um balanço, através da indicação de quais os objectivos que foram sendo alcançados ao longo de todo o mandato, mas sem que com isso se proceda a quaisquer juízos de valor. O objectivo da publicação deste suplemento era apenas proceder ao levantamento informativo e conclusivo sobre o que haviam sido as obras e as iniciativas levadas a cabo durante o mandato que estava a terminar e não laudar esse desempenho.
u) A publicação do referido suplemento durante o chamado período de pré-campanha eleitoral pela Presidente da Câmara, ora arguida, não constitui qualquer ilícito penal, nomeadamente por violação dos deveres de neutralidade ou imparcialidade. Como bem se compreende, só se poderá aferir da existência ou não da violação destes deveres pelo conteúdo do suplemento e por uma análise do mesmo.
v) Todavia, o conteúdo dos diversos suplementos tal como o que está em questão, não era da responsabilidade da Presidente da Câmara que só dele tomava conhecimento após a respectiva publicação, mas sim do director do Jornal e dos seus jornalistas encarregues da sua redacção.
w) Uma vez que a violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade no tocante à revista não pode basear-se apenas na publicação da mesma enquanto decisão em si mesma, mas tem de assumir que há também intervenção da arguida na determinação do seu conteúdo, faltando-lhe a determinação de vontade da arguida no sentido de decidir sobre o conteúdo efectivo do suplemento, não há como ter por cometido o crime em causa.
x) Mas ainda que a responsabilidade pelo conteúdo do suplemento pudesse ser totalmente imputada à arguida, nesse conteúdo não se verificam actos idóneos à criação de um perigo efectivo para a posição de igualdade entre as diferentes candidaturas.
Pelo que,
y) Não existem indícios suficientes de que a arguida tenha cometido os factos que lhe são imputados na acusação.».

Remetidos os autos a esta Relação (fls.458), neste Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se, profícua e minuciosamente, como é seu timbre, concluindo (cfr.fls.461-470) no sentido de o recurso merecer provimento, «...devendo, por isso ser determinada a substituição da douta decisão de não pronúncia por outra que pronuncie a arguida...».

Tendo sido dado cumprimento ao consignado no artº 417º, nº 2, do C.P.P. (fls.471), foi apresentada resposta pela arguida a defender a manutenção do despacho recorrido.

Colhidos os necessários vistos, cumpre agora apreciar e decidir.

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Compulsados os autos, com relevância para a decisão do recurso, constata-se que:

- Após a realização de inquérito originado por participações da Comissão Nacional de Eleições (cfr.fls.2-74), por despacho de 18-3-2002 (fls.75-79), o MºPº, deduziu acusação pública contra a arguida (A), idª nos autos (transcreve-se):
«...
porquanto indiciam os autos que:
1º- O processo eleitoral com vista à realização das eleições autárquicas de 16 de Dezembro de 2001 iniciou-se com a publicação do Decreto do Governo nº 33/01, de 12 de Setembro, sendo a arguida a titular da presidência da Câmara Municipal do Montijo e, ao mesmo tempo, candidata a novo mandato pelo Partido Socialista.
2º- Em 7 de Novembro, a arguida promoveu a publicação de um boletim em suplemento ao Jornal de Notícias do Montijo, cujo custo foi de 3.624.000$00 (três milhões, seiscentos, vinte e quatro mil escudos), pagos pelos cofres da autarquia.
3º- Com o título de capa “As Marcas do Mandato – 4 Anos de Gestão Socialista”, o boletim publicou uma entrevista em que a arguida se refere às obras e melhoramentos realizados, encontrando-se, ao longo de 51 páginas, vários títulos sugeridos pela mesma, tais como: ”Cumprir os compromissos assumidos”; “Prometido e cumprido – semaforização iniciada neste mandato”; “Planos para o futuro”; “Bairros clandestinos objecto de reconversão urbanística”; “Montijo com mais habitação social”; “Município planeia futuro de Montijo”; “Município recupera património edificado”; “Espaços verdes que triplicaram em Montijo”; “Mais parques infantis”; “ Transferência do cais para o Seixalinho – uma mudança a pensar no futuro”; “Novos transportes e mais baratos”; “Câmara aposta forte nas freguesias”; “ Câmara protege antiga colónia agrícola”; “Afonsoeiro já tem biblioteca”; “Município investe no aumento da reserva de água”; “Uma aposta ganha”; “Montijo de portas abertas”; “Câmara Municipal do Montijo combate loteamentos ilegais”; “A nova praça da República”; “Um investimento colossal no ensino”; “Voltar definitivamente a cidade para o rio é a grande aposta do município montijense” ; “300 mil contos já investidos na Zona Ribeirinha”; “Investir no Parque Desportivo Municipal é aposta no futuro”; “Circular Externa de Montijo – um investimento de três milhões de contos”.
4º- Da entrevista, destaca-se: “Cumprir os compromissos assumidos com o eleitorado nas últimas eleições autárquicas”; “Infelizmente a oposição tem sido estéril, ou seja, não deu nenhum contributo para qualquer decisão ou solução dos problemas. Corrijo o que disse. Na verdade, o contributo que deram foi votar favoravelmente as propostas que apresentámos nos últimos quatro anos”.
5º- De outro passo transcreve-se: “Esperamos que a oposição desempenhe um papel positivo no futuro, como lhe compete e é sua obrigação, deixando de persistir numa atitude do contra pelo contra. Quero acreditar que os eventuais novos protagonistas da oposição venham a ter um papel diferente do que tiveram os seus antecessores.”
6º- E que: “No passado, como reconhecem os responsáveis do executivo, houve uma falta de coragem política para criar mais ruas pedonais”, sendo que, “nos últimos três anos, o executivo socialista tem vindo a tomar um conjunto de medidas, de forma a devolver mais a cidade ao peão.”.
7º- Além disso pode ler-se que: “Na óptica da edil montijense são hoje visíveis as melhorias evidentes reconhecias pelos comerciantes nos seus estabelecimentos comerciais, o que nos leva a concluir que não foram em vão os dinheiros públicos recebidos e não o serão nos investimentos futuros.”
8º- “Ainda dentro dos compromissos assumidos com o eleitorado em 1997, o município criou uma nova biblioteca no Afonseiro, prevendo-se também a abertura de novas extensões” e “A recuperação do mercado nº 1 foi outra das promessas feitas em 1997 e cumprida, bem como a abertura do mercado nº 2.”
9º- “Os locais já recuperados, ao contrário da situação anterior a 1997, apresentam condições de segurança aos seus utilizadores de acordo com os requisitos de segurança impostos pela legislação em vigor.”
10º- Em artigo intitulado “Finalmente um novo quartel após 17 anos de luta”, lê-se que “...tornou-se uma realidade com o grande papel desempenhado pela presidente da Câmara de Montijo, (A). As obras iniciaram-se em 1994. No início da construção, foram feitas vária promessas, que não passaram disso. Só com a entrada de (A) na Câmara Municipal de Montijo, é que a situação se alterou. Este executivo concretizou o nosso sonho.”
11º- “A Praça da República é uma das obras não prometidas na última campanha eleitoral, mas assumida pelo executivo socialista, um investimento de 85 mil contos, que envolve os pavimentos e a própria remodelação.”
12º- Verifica-se, assim, que nas páginas do boletim se descrevem obras e melhoramentos realizados ao longo do mandato que então se aproximava do fim, tais como iluminação pública, bairros clandestinos, habitação social, toxicodependência, ordenamento do território, cultura, espaços de lazer, transportes e ambiente, sendo que os artigos são sempre ilustrados com fotografias e se encontram, no cimo de cada página as seguintes inscrições: “Prometido e cumprido”, “Não prometido e feito” e “Futuro”.
13º- O boletim foi posto à venda com o Jornal de Notícias e introduzido nas caixas do correio dos munícipes deste concelho, nos dias seguintes à sua publicação.
14º- Em folheto com o título “O que serve os cidadãos de Montijo deve ser valorizado”, tendo o timbre da Câmara e sendo assinado pela arguida na qualidade de presidente da mesma Câmara, distribuído à população desta cidade, em 26 de Novembro, pode ler-se, a propósito da atitude que as várias forças políticas tomaram perante a distribuição do boletim:
- “A atitude mais natural, compreensiva e honesta, era esses mesmos partidos manifestarem-se publicamente satisfeitos com as 230 obras, de valor unitário superior a cinco mil contos, no valor global de cerca de seis milhões contos, realizados em todo o concelho, neste mandato”;
- “Prestar contas aos cidadãos eleitores que em nós votaram, ou não, é tão democraticamente responsável e compreensível como prometer o que nos comprometemos fazer no Programa Eleitoral de 1997”;
- “Para estes partidos, que não apresentaram uma única proposta em sessão de Câmara nos últimos quatros anos em prol do desenvolvimento de Montijo, limitando-se a votar por unanimidade as matérias propostas petos autarcas socialistas, o politicamente correcto e justo era calar a obra feita e não apresentá-la em vésperas dos eleitores escolherem, de novo, os seus legítimos representantes.”;
- “Fiel ao princípio democrático de prometer e prestar contas do trabalho realizado, a Câmara Municipal de Montijo orgulha-se da obra feita nos últimos quatro anos, com vista a fazer de Montijo um concelho moderno e uma referência de qualidade de vida na Área Metropolitana de Lisboa.”;
- “Este Montijo que queremos construir com todos, independentemente da sua filiação partidária, religiosa ou cultural, vai orgulhar as nossas gentes e enriquecer sempre a nossa identidade e cultura, de forma a construirmos uma democracia cada vez mais participa» e dignificante.”
15º- A arguida enalteceu a sua actividade e a do seu partido durante o mandato iniciado em 1997, falou de melhoramentos prometidos e realizados, referiu-se a obras não prometidas e realizadas e fez alusão à sua actividade no futuro, querendo levar ao conhecimento dos munícipes eleitores que vai continuar a governar melhor do que os fariam os restantes partidos.
16º- Com a entrevista e a publicação do boletim, à custa do erário municipal, quis a arguida influenciar os eleitores no sentido de votarem em si e no seu partido, nas eleições que se aproximavam, o que conseguiu, tendo obtido mais votos do que obteria de outro modo.
17º- Bem sabia que, ao proceder assim, estava a promover a sua própria candidatura e do seu partido, colocando-se numa posição de favorecimento em relação aos restantes candidatos, que não dispunham de meios idênticos, também não desconhecendo que, enquanto presidente da Câmara, estava obrigada a proceder com neutralidade e imparcialidade em relação a todas as candidaturas.
18º- Também era do seu conhecimento que não podia utilizar o dinheiro da autarquia no pagamento da publicação do boletim, fazendo dele uso para fins alheios àqueles a que se destinava, abusando assim dos poderes e violando os deveres inerentes às suas funções, tudo para obter um benefício ilegítimo.
19º- Agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era contrária à vontade dos restantes candidatos e aos interesses da autarquia e proibida e punível por lei.
20º- Cometeu, assim, a arguida, em autoria material, na forma consumada e em concurso real (artºs 26º, 30º, nº 1, e 77º, nºs 1 e 2, todos do CP):
a) um crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade p. e p. pelo art.º 172.º e agravado pelos art.ºs 162.º, als. a) e f) e 202.º, com referência aos art.ºs 38.º, 40.º e 41.º , n.º 1, todos da Lei n.º 1/01 de 14 de Agosto, sendo ainda agravado pelo art.º 30.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 2/99 de 13 de Janeiro ( Lei de Imprensa);
b) Outro crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, p. e p. pelas citadas disposições legais, com excepção do artº 30º desta última Lei;
c) Um crime de peculato de uso p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1, com referência ao art.º 3.º, al. i), na redacção originária, da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho; e
d) Um crime de abuso de poderes, p. e p. pelo art.º 26.º , n.º 1, com referência ao art.º 3.º, al. i), ambos desta última Lei
...»
- Notificada a acusação do MºPº à arguida (fls.87), requereu a mesma abertura de instrução (fls.88-98).
- Por despacho de 26-9-2002 (fls.207), foi declarada aberta a instrução.
- Finda esta e realizado o necessário debate instrutório a 13-2-2003 (cfr.fls.384), foi, a 20-2-2003, proferida a decisão instrutória ora recorrida, que é do seguinte teor, no agora relevante (cfr.fls.385-399):
«...
O Ministério Público deduziu acusação, sob a forma de processo comum e perante tribunal singular, contra:
(A), [...]
imputando-lhe a autoria material de factos susceptíveis de consubstanciar, em concurso efectivo, de:
- um crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos l72.º, 162.º, alíneas a), e f), e 202.º, 38.º, 40.º e 41.º, n.º 1 da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (aprovada pela Lei n.º 1/2001, de 14 de Agosto) e agravada pelo artigo 30.º, n.ºs 1 e 2 da Lei de Imprensa (Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro);
- um crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 172.º, 162.º, alíneas a) e f), e 202.º, 38.º, 40.º e 41.º, n.º l da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (aprova pela Lei n.º 1/2001, de 14 de Agosto);
- um crime de peculato de uso previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 3º, alínea i), ambos da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho; e
- um crime de abuso de poderes previsto e punido pelos artigos 26.º, n.º 1 e 3.º, alínea i), da citada Lei n.º 34/87, de 16 de Julho.

Inconformada com o libelo acusatório, veio a arguida requerer a abertura da instrução, com os fundamentos constantes de fls. 88 a 98 alegando que a publicação do suplemento ocorreu em data anterior ao início da campanha eleitoral e visando fazer um balanço do mandato ao longo da gestão socialista e sem qualquer intuito de promover a sua imagem ou a do partido pelo qual se candidatou, na sequência de uma prática que vinha de anteriores executivos mandatários, sendo ainda prática habitual em outros municípios, tendo a iniciativa de publicar o suplemento sido da administração do jornal sendo que o município sempre custeou tais publicações por se tratar de um meio para divulgar a actividade da autarquia e promover a imagem do Montijo, surgindo declarações de outros vereadores responsáveis pelos diversos pelouros, não evidenciando qualquer forma de propaganda eleitoral e com intuito meramente informativo, assumindo a autarquia o custo da publicação que foi consignado na rubrica de aquisição de serviços por se tratar de investimento em informação prestado junto das populações, pugnando assim pela prolação de despacho de não pronúncia.
Indicou testemunhas e apresentou documentos.

Procedeu-se à realização da inquirição das testemunhas indicadas pela arguida, o que consta de fls. 263 a 267 e foram solicitados os documentos constantes de fls. 215 a 226, vindo ainda a arguida juntar os documentos de fls. 100 a 200 e 272 a 287 e o parecer que consta de fls. 296 a 379.

Não tendo sido requeridas nem se afigurando necessária a realização de outras diligências complementares em sede de instrução, teve o lugar o debate instrutório, com observância do legal formalismo, conforme resulta da respectiva acta.

[...]

Em termos de prova indiciária recolhida, importa apreciar todos os elementos que se entendem relevantes (prova testemunhal e documental).
O parecer da Comissão Nacional de Eleições consta de fls. 3 a 6 concluindo que a publicação do suplemento patrocinado pela Câmara Municipal do Montijo excede, em larga medida, o balanço da actividade camarária porquanto procede à exaltação da presidente da câmara e restante equipa, não se limita a uma mera enunciação de obras e projectos existindo referências às eleições e as referências sobre o trabalho realizado e prometido.
Ouvida em inquérito, a arguida assumiu a responsabilidade pela publicação e pela informação referida pela Coligação Democrática Unitária e pelo Partido Social Democrata na queixa apresentada junto da Comissão Nacional de Eleições, sabendo todos os eleitores que a presidente da Câmara pertence ao Partido Socialista, pretendendo apenas dar a conhecer a obra que realizaram durante quatro anos e prestar contas das promessas efectuadas em 1997 e cumpridas em 2001, sendo o boletim um elemento não propagandístico; todos os cidadãos sabiam que a candidata pelo Partido Socialista era simultaneamente presidente eleita por este partido; quanto ao folheto informativo, o mesmo surge no âmbito das posições assumidas pelos outros partidos, afirmando que os argumentos apresentados junto da CNE não têm a ver com estes documentos mas sim com o facto dos eleitores não lhes terem reconhecido qualquer ideia ou projecto, não considerando admissível (fls. 47 a 50).
Ouvida em inquérito a testemunha (F) (director do Jornal de Notícias do Montijo), este afirmou que o jornal em causa tem periodicidade quinzenal, sendo realizada uma publicação como aquela que consta dos autos quando ocorrem factos comemorativos, nomeadamente o dia do Município, o Dia Internacional da Mulher e o Balanço do Município; em relação ao balanço de actividades da autarquia, esta publicação saiu aos dois anos de mandato e no final dos quatro anos, sendo publicado antes do início da campanha eleitoral e o qual já estava acordado desde o princípio de 2001; afirmou ainda que costumam realizar outros suplementos sobre temáticas diversas apoiados por diversas entidades, empresas e comerciantes; relativamente ao documento de fls. 64, afirmou que o mesmo contém incorrecções porque não se trata de uma revista da Câmara Municipal mas sim de um suplemento da responsabilidade do jornal e patrocinada pelo município sendo a frase de “quatro anos de gestão socialista” da responsabilidade do jornal e com o espírito de informar as populações sobre os compromissos assumidos pelos candidatos à presidência da câmara municipal; confirmou que a participação do município foi de cerca de 3.624.000$00 afirmando que os candidatos têm o direito de informar os munícipes sobre o trabalho realizado (fls. 71 e 72).
Ouvida a testemunha José António Rodrigues Caetano (representante da CDU no Montijo), este afirmou que a revista de fls. 8 constitui uma revista paga pela câmara e que importou em mais de três mil contos a qual foi publicada enquanto decorria a campanha eleitoral (07/11/2001) existindo ainda outra distribuição individual, tendo sido colocada em caixas de correio sem acompanhar o jornal; a revista não tem publicação periódica e tem conhecimento que no dia 08/03/2001 foi publicado uma separata alusiva ao tema do Dia Internacional da Mulher; afirmou ainda que o folheto de fls. 64 corresponde à verdade e que tem provas documentais da troca de correspondência entre a CDU, a Câmara Municipal e a Comissão Nacional de Eleições (fls. 73 e 74).
Os documentos a que se reporta o libelo acusatório constam de fls. 8 a 33 (suplemento designado “As Marcas do Mandato – 4 Anos de Gestão Socialista”), contendo a indicação na capa do brasão da cidade e a menção “Câmara Municipal do Montijo” e de fls. 40 datado de 26/11/2001 e sendo assinado pela arguida na qualidade de Presidente da Câmara.
Consta de fls. 100 a 107 o boletim municipal tendo por título balanço do mandato 1994-1997; de fls. 108 a 115 um boletim relativo ao mesmo período de 1994-1997; de fls. 116 a 127 um boletim municipal alusivo às alterações trazidas pela construção da Ponte Vasco da Gama; de fls. 128 a 199 constam diversos boletins ou suplementos editados pela Câmara Municipal do Montijo por iniciativa própria ou inseridos em publicações periódicas.
Consta de fls. 200 um documento subscrito pela administração do Jornal Notícias do Montijo datado de 03/10/2001 tendo por assunto “proposta de publicação de revista sobre quatro anos de mandato” propondo a “publicação de uma revista na edição de 07/12/2001 com uma tiragem de 12.000 exemplares distribuídos gratuitamente sendo o custo global de 3.624.000$00 com entrega de 2.000 exemplares à Câmara além dos 12.000 exemplares que acompanharão a edição a distribuir”.
Foram ainda juntos pela Câmara Municipal do Montijo (mediante solicitação do tribunal) os documentos de fls. 215 a 226 sobre o pagamento da publicação da revista no valor total de € 21.149,43 (4.240.080$00) mediante a classificação orçamental 08.0409 assim discriminados:
- factura 2754 (07/11/2001) no valor de € 5.777,58 (1.158.300$00) paga através da ordem de pagamento n.º 7878 e processo de despesa n.º 5403/2001 (fls. 215 a 217);
- factura 2755 (08/11/2001) no valor de € 5.369,06 (1.076.400$00) paga través da ordem de pagamento n.º 7893 e processo de despesa n.º 5426/2001 (fls. 218 a 220);
- factura 2756 (09/11/2001) no valor de € 4.225,22 (847.080$00) paga através da ordem de pagamento n.º 7909 e processo de despesa n.º 5449/2001 (fls. 221 a 223);
- factura 2753 (06/11/2001) no valor de € 5.777,58 (1.158.300$00) paga através da ordem de pagamento n.º 7869 e processo de despesa n.º 5395/2001 (fls. 224 a 226).
Ouvida em sede de instrução, a testemunha (L) (presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira) afirmou que quando tomou posse como presidente da câmara em 05/01/1998 se encontrava em distribuição por iniciativa do anterior executivo a distribuição de um boletim municipal relativo à prestação de contas do trabalho desenvolvido pelo executivo que cessou funções, sendo prática por parte de todos os municípios a publicação e distribuição regular de boletins informativos emitidos pelos municípios, seja qual for a maioria partidária do executivo municipal; sobre a distribuição de boletins insertos em jornais, afirmou que também constitui prática comum, desconhecendo se existiu tal prática nas últimas eleições autárquicas (fls. 263 e 264).
Ouvido novamente em sede de instrução, a testemunha (F) afirmou que o suplemento que consta dos autos foi publicado em 07/11/2001, existindo protocolos com diversas entidades para a publicação de suplementos temáticos, tendo sido sugerido pelo jornal à câmara que fosse efectuado um balanço do mandato no sentido de informar os eleitores sobre a prestação de contas do trabalho realizado, sendo tal prática efectuada em anos anteriores embora não se recordando que tenha ocorrido em qualquer período eleitoral; a definição dos textos, a escolha dos temas e o modo de tratamento dos mesmos foi da responsabilidade do jornal, o qual se socorreu de informação que dispunha em função do acompanhamento que efectuava das reuniões do executivo; o jornal é distribuídos quinzenalmente por todas as freguesias do concelho; relativamente a outras afirmações que constam do suplemento, as mesmas foram recolhidas com base em entrevistas efectuadas a outros responsáveis camarários e outras entidades do concelho, sendo da responsabilidade do jornal as menções efectuadas sobre as referências às promessas eleitorais efectuadas e cumpridas bem como às referências ao trabalho da presidente que não resultam da entrevista de fls. 9 e 10; não houve contactos com outros vereadores de outros partidos uma vez que estes não têm pelouros atribuídos; sobre as críticas relativas ao favorecimento pessoal, afirmou que existiu a disponibilidade do jornal para a publicação de suplemento semelhante e que expressasse a voz de outras forças políticas, o que não veio a suceder (fls. 264 e 265).
A testemunha (T) (vereador da Câmara Municipal do Montijo) afirmou que foi contactado em finais de Setembro ou princípios de Outubro de 2001 pelo director do Jornal Notícias do Montijo no sentido de prestar informações sobre a actividade do seu pelouro (cultura, desporto, recursos humanos, economia, turismo e juventude) expressando o boletim as informações que deu ao director do jornal sendo as mesmas dadas sob a forma de informação; o teor do boletim não foi objecto de discussão no executivo camarário, não tendo conhecimento se foi o município que pagou o custo do mesmo; não tem qualquer responsabilidade sobre a elaboração dos títulos que compõem as informações do suplemento, referindo que a intenção quando facultou a informação ao jornal visava dar a conhecer o trabalho realizado no mandato, sem qualquer intenção propagandística; sabe que existe verba específica na câmara para a publicação de boletins ou de suplementos em jornais no âmbito da divulgação das actividades do município, confirmando ainda que os vereadores eleitos pela CDU e pelo PSD não tinham pelouro atribuído (fls. 265 e 266).
A testemunha (N) (vereador da Câmara Municipal do Montijo) afirmou que foi contactado pelo director do jornal no sentido de dar informações relativamente à actividade do pelouro que dirige (obras municipais e ambiente) tendo existido anteriores iniciativas, relativamente a jornais nacionais e regionais; não teve qualquer responsabilidade na escolha dos títulos e no arranjo gráfico do boletim o qual foi da responsabilidade do jornal, tendo sido contactado em finais de Setembro/Outubro de 2001; sobre a intenção manifestada na publicação do suplemento, não existiu qualquer intenção eleitoral mas apenas de informar sobre o trabalho realizado, existindo muitas oportunidades de divulgação durante a campanha eleitoral; a ilustração do boletim foi também iniciativa do jornal supondo que tenham recorrido aos arquivos do jornal; afirmou ainda que não considera que a publicação do boletim possa ter influenciado os eleitores uma vez que a vitória eleitoral da lista dirigida pela arguida se deveu a outros factores, nomeadamente pelas obras municipais que tiveram um incremento de cerca de 700%, circunstância que não deixa de ser notada pelos munícipes (fls. 266 e 267).
A arguida veio ainda juntar a fls. 272 a 287 excertos de uma publicação denominada “Lisboa – Obra Feita” editada pela Câmara Municipal de Lisboa em Outubro de 2001 sobre o trabalho desenvolvido pelo executivo municipal, sob a directa responsabilidade do presidente da câmara municipal que assinou o texto inicial de apresentação.
Na oportunidade, veio ainda juntar a fls. 288 a 350 um parecer subscrito pela Dra. (S) e pelo Prof. Dr. (M) cujas conclusões entendemos pertinente transcrever integralmente:-
«1. O tipo de crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade previsto e punido no artigo 172.º da LEOAL, tem de ser situado no contexto do ilícito eleitoral, por forma a determinar a sua exacta natureza e o âmbito e finalidades da incriminação nele contida, por forma a delimitá-lo e torná-lo assim compatível com o próprio princípio da legalidade.
2. O ilícito penal eleitoral, em que se integra o tipo de crime em análise, dá hoje mostras de uma notável complexidade, repartindo-se pelo Código Penal e por inúmeras leis eleitorais e referendárias, numa legislação avulsa, descentrada, que é “por sua própria natureza insegura, imperfeita, apressada e, pior que tudo, inevitavelmente contraditória a prazo curto”.
3. Ao tipificar a infracção aos deveres de neutralidade e imparcialidade como crime, o legislador entendeu dotar de protecção penal os princípios gerais de direito eleitoral, consagrados no artigo 113.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP), designadamente o princípio da igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas (alínea b)) e o princípio da imparcialidade das entidades públicas perante as mesmas candidaturas (alínea c)).
4. Este tipo de crime tutela ainda a legalidade e a transparência do exercício dos cargos públicos, muito em especial, de cargos políticos, através da repressão de abusos por parte dos respectivos titulares que, por virtude das suas funções, têm acesso a meios que, utilizados para fins ilegítimos, são susceptíveis de lesar princípios como os que acabámos de referir.
5. O tipo de crime previsto no artigo 172.º da LEOAL é um tipo complexo, uma espécie de tipo “aberto”, em que os elementos que fundamentam a ilicitude não estão totalmente determinados na norma incriminadora, de tal sorte que, olhada esta norma isoladamente, em causa ficaria o próprio princípio da legalidade. Em última análise, no entanto, o crime em questão está tipificado nos artigos 172.º, 40.º, 41.º e 38.º da LEOAL.
6. O âmbito de autoria do crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade é estabelecido pela conjugação dos preceitos dos artigos 172.º e 41.º da LEOAL e é delimitado pelas entidades que estão legalmente obrigadas a observar os deveres de neutralidade e de imparcialidade no decurso do processo eleitoral.
7. As condutas relevantes para o tipo de crime de violação dos deveres de imparcialidade e neutralidade são as condutas proibidas ou impostas pela norma contida do n.º 1 do artigo 41.º da LEOAL aos órgãos de entidades públicas e respectivos titulares.
8. Trata-se de saber se, com a publicação da revista e/ou a divulgação do comunicado, as condutas da arguida podem constituir actos que de algum modo favoreçam ou prejudiquem uma candidatura em detrimento ou vantagem de outra.
9. Com este crime, pretende-se prevenir um resultado de perigo – a alteração das condições de igualdade de todas as candidaturas -, como forma de evitar um resultado lesivo não compreendido no tipo, que é a viciação do próprio processo eleitoral, pelo que os actos que de algum modo favoreçam ou prejudiquem uma candidatura em detrimento ou vantagem de outra serão as condutas idóneas que coloquem efectivamente em perigo a posição de igualdade de que devem gozar todas as candidaturas no processo eleitoral, o que configura o crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade como um crime de perigo concreto.
10. A publicação da revista e do comunicado não ultrapassam a actividade normal do presidente da câmara – em especial a actividade de informação e de balanço do mandato que reconhecidamente os autarcas, não apenas podem, como devem desenvolver junto dos munícipes, como forma, aliás, de mobilização do espírito de cidadania -, não assumindo idoneidade para poder pôr em perigo a igualdade entre as diversas candidaturas.
11. A revista de Novembro de 2001 acaba por consistir num duplo balanço, na medida em que faz o ponto da situação dos diversos projectos e actividades do executivo que em breve cessaria funções, percorrendo, ademais, todos os temas objecto de tratamento nos suplementos anteriores.
12. Uma vez que a violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade no tocante à revista não pode basear-se apenas na publicação da mesma enquanto decisão em si mesma, mas tem de assumir que há também intervenção da arguida na determinação do conteúdo da publicação em causa, faltando a determinação de vontade da arguida no sentido de decidir sobre o conteúdo efectivo da revista, não há como ter por cometido o crime em causa.
13. Falta a situação que permite estabelecer uma imputação objectiva, pois que, não só a arguida não é autora do crime por que vem acusada, como esse crime, tendo em conta a sua natureza específica, não foi sequer cometido.
14. Mas ainda que a responsabilidade pelo conteúdo da revista pudesse ser totalmente imputada à arguida, nesse conteúdo não se incluem actos idóneos à criação de um perigo efectivo para a posição de igualdade entre as diferentes candidaturas.
15. Com efeito, não estão reunidos os dois requisitos principais para que se tenha por violada a lei nestas situações, a saber, “o titular do órgão de um ente público tem de estar no exercício das suas funções e tem de forma grosseira favorecer ou prejudicar um concorrente eleitoral”.
16. A que acresce um terceiro requisito: o de que, em sede de pré-campanha, só sejam censuráveis – principalmente no plano do direito penal – aquelas condutas mediante as quais se ponha irremediavelmente em causa a igualdade entre as candidaturas ou a liberdade/esclarecimento do voto, em termos tais que não possa já o respeito por esses princípios na própria campanha conduzir a um equilíbrio.
17. Nestas situações, a sindicância deve-se limitar a um controlo de limites, ou seja, a uma censura apenas dos casos extremos, inequívocos ou flagrantes.
18. À revista – em especial, à entrevista dada pela arguida – e ao comunicado à população, subjaz um certo orgulho por um trabalho concluído e pela existência de projectos de futuro – totalmente legítimo -, não sendo depreensível uma evidente intenção eleitoralista, nem de auto-promoção pessoal, nem mesmo de depreciação de candidatos da oposição.
19. Só condutas com este ânimo e efeito são susceptíveis de fazer incorrer os seus sujeitos no crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, pelo que há que concluir, não apenas pela inidoneidade da conduta da arguida para preenchimento do tipo de crime por que vem acusada, mas também pela inexistência do correspondente dolo, capaz de sustentar a tipicidade.
20. A conclusão a que se chega nesta sede é a única compatível com a ideia expendida, em especial no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 808/93, de que esta problemática versa um dos temas mais complexos e difíceis do direito eleitoral nos Estados democráticos.
21. Esta complexidade explica as razões da falta de sedimentação deste tipo de crime – afinal da sua descentralidade -, pese embora a relevância dos bens jurídicos por ele tutelados, e que explicam a total inexistência de qualquer jurisprudência nesta matéria.
22. Mas ainda que as condutas em causa não fossem consideradas atípicas – o que não se concede -, a sua punibilidade estaria sempre em causa, na medida em que era altamente problemática a existência da consciência da ilicitude necessária à afirmação de uma culpa dolosa no presente caso.
23. Na verdade, as normas em que se encontra vertido o tipo de crime de violação dos deveres de imparcialidade e neutralidade, para além de terem sido objecto de alterações muito pouco tempo antes dos factos sub judicium, não pertencem ao âmbito nuclear do direito penal, fazem parte de um sector do direito penal secundário descentrado, apenas actualizado – na consciência dos destinatários e na do próprio cidadão comum – em períodos de processo eleitoral, e a sua interpretação, como tivemos oportunidade de analisar em pormenor, é árdua e difícil. Nestas condições, a consciência da ilicitude é tudo menos evidente.
24. Por último, também a agravação prevista no artigo 202.° da LEOAL – inserida na Secção V – do Capítulo II – que trata, única e exclusivamente, dos crimes relativos à votação e ao apuramento em acto eleitoral, é inaplicável aos crimes previstos nas restantes secções do capítulo, em especial ao crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade.
25. Defendendo-se – como defendemos e julgamos ter deixado suficientemente provada – a inexistência da prática de crimes de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade por parte da arguida, torna-se evidente que a acusação pelos crimes de peculato e de abuso de poderes decai desde logo.
26. Mas ainda que se concluísse de modo diverso — o que apenas se admite sem conceder -, nunca se poderiam dar por realizados os crimes de peculato de uso e de abuso de poderes, porque, se assim fosse, estar-se-ia a punir a arguida, pelos mesmos factos, dupla ou até triplamente.
27. O tipo de crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, para além dos princípios constitucionais do sufrágio e democrático, tutela ainda a legalidade e a transparência do exercício de cargos públicos, muito em especial, de cargos políticos, através da repressão de abusos por parte dos respectivos titulares que, por virtude das suas funções, têm acesso a meios que, utilizados para fins ilegítimos, são capazes de lesar aqueles princípios.
28. No presente caso, para excluir a existência de peculato é, ademais, decisivo o facto de o dinheiro despendido pela Câmara Municipal do Montijo ter sido utilizado exactamente para o fim a que o mesmo se destinava e a que se encontrava afectado, não tendo sido, por isso, usado para fins alheios àquele a que se destinava.
29. A violação de deveres integradora do tipo de crime de abuso de poderes, a existir, seria precisamente a que está já prevista e tipificada no artigo 172.° da LEOAL, que constitui uma norma específica relativamente à norma prevista no artigo 26.º, n.º 1 da Lei n.° 34/87.
30. O que nos permite excluir a existência de uma situação de concurso real entre os crimes de violação de deveres de imparcialidade e neutralidade e abuso de poderes, concluindo apenas – sempre sem conceder – pela existência de uma situação de concurso aparente, a resolver pelas regras da subsidiariedade.
31. Ou seja, dado o carácter subsidiário do tipo de crime de abuso de poderes relativamente a tipos legais de crime mais específicos, como o é o crime de violação de deveres de imparcialidade e de neutralidade, aquele recua na sua aplicação por efeito da interferência deste.
32. Concluindo-se igualmente pela impossibilidade de punir a arguida pelo crime de abuso de poderes, uma vez que não são apontados factos indiciadores da existência de dolo ou da especial intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa exigida pelo tipo.»

Vejamos agora cada um dos ilícitos imputados à arguida.
O artigo 172.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (sob a epígrafe de violação dos deveres de neutralidade ou imparcialidade) estabelece que “quem, no exercício das suas funções, infringir os deveres de neutralidade ou imparcialidade a que esteja legalmente obrigado é punido com pena de prisão até dois anos ou pena de multa até duzentos e quarenta dias”.
O dever de neutralidade ou de imparcialidade encontra-se previsto no artigo 41.º da mesma lei e, na parte que interessa, dispõe o n.º 1 desta disposição normativa, que “os órgãos (...) das autarquias locais (...) bem como, nessa qualidade, os respectivos titulares, não podem intervir directa ou indirectamente na campanha eleitoral, nem praticar actos que de algum modo favoreçam ou prejudiquem uma candidatura ou uma entidade proponente em detrimento ou vantagem de outra, devendo assegurar a igualdade de tratamento e a imparcialidade em qualquer intervenção nos procedimentos eleitorais.
Sobre este princípio, afirma-se que “o dever de neutralidade e imparcialidade a que todas as entidades públicas estão parcialmente obrigadas durante o período eleitoral, tem como finalidade a manutenção do princípio da igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas que constitui uma concretização, em sede de direito eleitoral, do princípio geral da igualdade (artigos 13.º e 113.º, n.º 3, alínea b), da Constituição da República Portuguesa) (...) A imposição de neutralidade às entidades públicas, exigível desde a data da marcação das eleições, não é incompatível com a normal prossecução das suas funções. O que o princípio da neutralidade postula é que no cumprimento das suas competências, as entidades públicas devem, por um lado, adoptar uma posição de distanciamento em face dos interesses das diferentes forças político-partidárias e, por outro lado, abster-se de toda a manifestação política que possa interferir no processo eleitoral (...) na medida em que a normal prossecução das suas atribuições não consubstancia uma interferência ilegítima naqueles processos” (Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais Anotada e Comentada, Maria de Fátima Abrantes Mendes e Jorge Migueis, 2001, pg. 63).
Não vindo fixado nenhum regime de suspensão de funções para os candidatos que sejam simultaneamente presidentes de câmaras municipais, na medida em que ocorreriam manifestos prejuízos ao normal funcionamento do órgão autárquico, coloca-se um “problema de extrema complexidade é o que respeita à situação de uma mesma pessoa reunir a qualidade de titular de cargo público e a de candidato.
Há ocasiões em que essa dupla qualidade pode importar a violação do princípio da neutralidade e imparcialidade porque é posta em causa a equidistância e isenção que os titulares dos órgãos devem opor às diversas candidaturas.
A complexidade desta questão está bem patente no Acórdão do TC n.º 808/93 (Diário da República IIª série n.° 76 de 31/03/1994), nomeadamente nas respectivas declarações de voto onde se retira que alguns dos conselheiros do Tribunal Constitucional tenham considerado que a análise do tribunal se devia ater a um “controlo de limites” ou seja, a uma censura de casos extremos, inequívocos ou flagrantes.
Prosseguindo, dizem que “o entendimento radical da igualdade entre as candidaturas parece mais conforme com um sistema onde pura e simplesmente a recandidatura fosse de todo em todo proibida”... “Na realidade, o candidato que exerce um cargo político e que procura a reeleição não está (não pode estar!) em situação «pura» de igualdade de circunstâncias com os demais concorrentes que anteriormente não exerceram as funções para que concorrem”.
Por todo o exposto, constata-se, pois, que são dois os requisitos principais para que haja violação da lei: o titular do órgão de um ente público tem de estar no exercício funções e tem de forma grosseira favorecer ou prejudicar um concorrente eleitoral” (ob. citada, pg. 65).
Tal premissa leva a concluir que apenas são penalmente censuráveis aquelas condutas mediante as quais se ponha irremediavelmente em causa a igualdade entre as candidaturas ou a liberdade e esclarecimento do voto, em termos tais que não possa já o respeito por esses princípios na própria campanha conduzir a um equilíbrio.
Ocorrendo a reunião, na mesma pessoa, de titular de órgão de ente público e de candidato a processo eleitoral, deve verificar-se uma rigorosa separação entre o exercício do cargo que estão a desempenhar e o seu estatuto de candidatos, não podendo utilizar-se daquele para obterem vantagens ilegítimas na sua qualidade de candidatos.
Os princípios gerais de neutralidade e de imparcialidade são aplicáveis desde a data da “publicação do decreto que marque a data das eleições gerais ou da decisão judicial definitiva ou deliberação dos órgãos autárquicos de que resulte a realização de eleições intercalares” (artigo 38.º da Lei Eleitoral) normalmente designado por pré-campanha.
O regime legal em vigor segue como fonte a Lei nº 26/99, de 3 de maio, garantindo, desde o início do processo eleitoral, fixado agora desde a data da publicação do decreto que marque a data das eleições gerais, uma igualdade de oportunidades a todas as candidaturas, nomeadamente no seu tratamento pelos órgãos de comunicação social, no posicionamento das entidades públicas e na actuação dos cidadãos investidos de poder público.
Verifica-se, deste modo, uma diferença face ao regime anteriormente estabelecido pelo artigo 44.º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 701-B/76, de 29 de Setembro, alterada pelo Decreto-Lei n.º 552/76, de 21 de Outubro, Lei n.º 9/95, de 7 de Abril, e Lei n.º 50/96, de 4 de Setembro) o qual fixava o início do período de campanha eleitoral no 12.º dia anterior ao dia designado para a eleição para efeitos de concretização dos princípios de neutralidade e de imparcialidade que obrigam todos os entes públicos.
No âmbito da autoria, enfatiza-se no parecer que os destinatários são “os órgãos das autarquias locais e os respectivos titulares” sobre os quais impende um dever de “rigorosa neutralidade perante as diversas candidaturas e respectivas entidades proponentes”, mostrando-se verificada essa situação no caso da arguida por ser titular do órgão Presidente da Câmara Municipal do Montijo.
Em termos de conduta, proíbe-se aos órgãos e titulares das entidades públicas a intervenção directa ou indirecta na campanha eleitoral e a prática de actos que, de algum modo, favoreçam ou prejudiquem uma candidatura em detrimento ou vantagem de outra ou a imposição do dever de assegurar a igualdade de tratamento e a imparcialidade em qualquer intervenção nos procedimentos eleitorais.
Vejamos então se estão verificados todos os elementos objectivos e subjectivos dos ilícitos em causa.
Em primeiro lugar, e salvo o devido respeito, não acompanho a opinião expressa no parecer junto aos autos, o qual afirma que a novidade da lei que procedeu à extensão do tipo de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade não permitiria uma sedimentação da consciência ética dos seus destinatários, por se tratar de lei muito recentemente entrada em vigor, questão relacionada com o problema de consciência da ilicitude.
Considera-se ainda nessa opinião que o regime da Lei n.º 26/99, de 3 de Maio, seja aplicável ao caso concreto uma vez que o mesmo apenas veio estabelecer que os princípios enunciados se aplicam durante todo o período eleitoral, não acompanhando a sanção penal essa vinculação pois constituem realidades distintas a modificação da configuração de um dever agravado de respeito pelos princípios da neutralidade e imparcialidade e o juízo conducente à tutela penal em caso de violação desses mesmos princípios.
Finaliza ainda que as normas em causa se integram no direito penal secundário, onde a consciência da ilicitude é menos evidente, inexistindo quaisquer indícios que motivassem a arguida no sentido de examinar atentamente a relação dos factos com ordenamento jurídico, concluindo pela dificuldade em considerar-se tais condutas como puníveis na medida em que seria altamente problemática a existência da consciência da ilicitude necessária à afirmação de uma culpa dolosa.
Como afirmei, não partilho essa opinião.
Por um lado, a arguida não podia deixar de ter presente que a evolução legislativa da questão conduzia à solução que veio a ser plasmada no texto da lei eleitoral, importa ainda ter em atenção que a arguida é advogada de profissão (relativamente à qual se exigem especiais ponderações na interpretação de textos legislativos) e a publicação do suplemento em causa não ocorreu poucos dias após a publicação do diploma legal em causa ou do decreto que marcou a data das eleições, tornando-se necessária a interiorização de um conjunto de regras novas sobre o processo eleitoral onde a própria arguida, na qualidade de presidente de uma câmara municipal, tem forte intervenção noutros domínios, designadamente na própria tramitação do processo eleitoral.
Tais argumentos seriam, por si só, suficientes para que se conclua que não se entende problemática a existência de uma consciência da ilicitude uma vez que a arguida sempre teria tempo suficiente para sedimentar a sua consciência ética face à observância dos princípios em causa.
No que respeita ao segundo crime de violação dos deveres de neutralidade e de imparcialidade, entendo igualmente que essa atitude se insere exclusivamente no âmbito do combate político, não surgindo quaisquer apreciações subjectivas sobre as demais candidaturas, concluindo-se pela inidoneidade da conduta da arguida para o preenchimento do tipo de crime em causa.
Em rigor, tal atitude pode ser eticamente censurável uma vez que a arguida parece ter confundido as vestes de presidente da autarquia com a de candidata por uma lista a essa mesma autarquia, não decorrendo desse facto que tal conduta seja penalmente censurável.
O verdadeiro fundamento que nos leva a concluir pela inidoneidade da conduta da arguida para o preenchimento dos tipos criminais em causa radica na circunstância de inexistirem indícios de que a publicação do suplemento em causa tenha derivado de uma intenção eleitoralista ou de auto-promoção pessoal e de depreciação de candidatos da oposição.
Não decorre do processo que a arguida tenha tido intervenção relevante na elaboração do suplemento publicado, para além das respostas que forneceu no âmbito da entrevista e que, por si só, não assumem qualquer intenção naquele sentido mas tão só a de facultar informação sob a forma de balanço do trabalho realizado, não se retirando das afirmações sobre o processo eleitoral que se aproximava qualquer apelo eleitoral.
Tal como afirmou o Procurador-Geral da Republica, o anúncio de medidas destinam-se a convencer ou a mobilizar o eleitorado mas a persuasão e mobilização deste são objectivos comuns a qualquer discurso político (Despacho de 09/12/1993).
A intenção de persuadir, convencer ou mobilizar é conatural a todo o discurso político, apenas sendo legítimo diminuí-lo em face de um princípio de neutralidade e de imparcialidade cujo interesse radica apenas na possibilidade do cidadão eleitor formar a sua convicção de forma livre e sem quaisquer constrangimentos.
Nesta perspectiva, procurar informar e realizar um balanço do trabalho realizado não configura um apelo direccionado ao voto ou a promoção de um candidato mediante o recurso a um processo que não implicasse uma rigorosa separação entre o exercício do cargo e o seu estatuto enquanto candidato.
A própria Comissão Nacional de Eleições entende que, a propósito da dupla qualidade de titular do mandato cessante e de candidato a novo mandato, é admissível a realização de um balanço ou uma demonstração das acções realizadas, sem comentários tendenciosos ou eleitoralistas, cumprindo uma função de esclarecimento do cidadão eleitor.
No caso vertente, o que consideramos mais duvidosa na publicação em causa radica nas expressões «Prometido e Cumprido», «Não Prometido e Cumprido» e «Futuro» mas afigura-se notório que inexistem quaisquer indícios de que a arguida tenha tido qualquer responsabilidade ou intervenção na escolha ou na elaboração dessas referências de texto.
Finalmente, entender sem mais que o candidato que exerce um cargo político e que procura a reeleição está em situação de igualdade de circunstâncias ou de condições face aos demais concorrentes que anteriormente não exerceram as funções conduz a um paradoxo na medida em que colocaria esse candidato numa posição de desfavor face aos demais quando o que se pretende é que o cargo por si ocupado lhe permita uma situação de favorecimento face ao processo eleitoral.
Pressupondo a análise do tipo criminal em causa e o seu preenchimento um controlo de limites, importa concluir por uma violação grosseira e ostensiva dos princípios de direito eleitoral enunciados nas normas em causa o que não se observa na conduta levada a efeito pela arguida (A).

O artigo 21.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho (Crimes da Responsabilidade de Cargos Políticos) (peculato de uso) estabelece que “o titular de cargo político que fizer uso (...) para fins alheios àqueles a que se destinam, de veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável que lhe tenham sido entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções será punido com prisão até dezoito meses ou multa de vinte a cinquenta dias incorrendo na mesma pena o titular de cargo político que der a dinheiro público um destino para uso público diferente daquele a que estiver legalmente afectado.
Trata-se de um crime em que o bem jurídico visa a protecção do bom andamento, legalidade e transparência da administração através da repressão de abuso de cargo ou função por parte do titular de cargo político que, em razão das suas funções tenham a posse ou a disponibilidade do bem objecto do crime, assumindo ainda uma componente patrimonial pois visa ainda penalizar a sua utilização momentânea indevida (Conceição Ferreira da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pg. 705).
A consumação deste ilícito ocorre no momento da utilização indevida e o bem jurídico patrimonial tem de ser de valor apreciável pois que, de acordo com a descrição constante do tipo, o objecto do crime são veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável, ou seja, trata-se de um plus que não constitui elemento essencial para a consumação do crime mas cujo preenchimento releva para a dosimetria da pena ou até para a sua eventual isenção.
Concretizando a ideia de “valor apreciável”, parece que este estará abaixo do valor elevado mas muito além do valor diminuto, tal como afirmam Leal Henriques e Simas Santos (Código Penal Anotado, vol. II, pg. 1200) que entendem que “se queda abaixo do valor elevado como querendo traduzir algum valor, mas não muito”.
Em termos de conduta, a mesma traduz-se em fazer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem os referidos veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável ou que der a dinheiro público um destino para uso público diferente daquele a que estiver legalmente afectado.
No caso vertente, concluindo-se pela inidoneidade da conduta da arguida relativamente aos crimes de violação dos deveres de neutralidade e de imparcialidade, fica prejudicada a apreciação relativamente à utilização do dinheiro despendido pela autarquia na publicação do suplemento ao jornal, a qual foi integrada uma programação previamente decidida e autorizada pela pessoa que detinha a competência para o efeito, não existindo qualquer desvalor no uso dessas importâncias porque não se concluiu que o dinheiro gasto fosse utilizado para promover a candidatura da arguida.

O artigo 26.º, n.º 1 da citada Lei n.º 34/87, de 16 de Julho (abuso de poderes) dispõe que “o titular de cargo político que abusar dos poderes inerentes às suas funções com a intenção de obter para si ou para terceiro um beneficio ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem, será punido com prisão de seis meses a três anos ou multa de cinquenta a cem dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
O bem jurídico protegido é a autoridade e credibilidade da administração do Estado ao ser afectada a imparcialidade e eficácia no exercício de funções públicas.
Conforme afirma Paula Ribeiro de Faria (ob. cit., Tomo III, pg. 775), o abuso de poder traduz “uma instrumentalização de poderes (inerentes à função) para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas”, nomeadamente excedendo os limites da competência, desrespeitando formalidades impostas por lei ou actuando fora dos casos nela estabelecidos ou fazendo uso dos poderes conferidos para fim diverso daquele para o qual foram conferidos.
Não se concluindo pela violação dos deveres de neutralidade e de imparcialidade, difícil se torna configurar a prática deste ilícito uma vez que não se vislumbra a violação dos deveres inerentes às funções do titular do cargo político, salvo pela eventual existência de uma conduta violadora dos deveres de neutralidade e de imparcialidade a que a arguida, na qualidade de titular de cargo político, se encontra obrigada, operando efectivamente uma situação de concurso aparente, a resolver pelas regras da subsidiariedade.

Verifica-se, deste modo que, no conjunto de todos os elementos constantes dos autos (prova testemunhal e documental produzida em inquérito e em instrução), não existem indícios suficientes de que a arguida tenha cometido os factos que lhe são imputados no libelo acusatório. E tais indícios não resultam com essa suficiência por se entender que, dessa análise e apreciação, fica a convicção de que, a manterem-se em julgamento, existiriam maiores probabilidades de conduzir a uma absolvição da arguida pelos ilícitos criminais relativamente ao qual se pretende o julgamento do que a uma condenação.
É pois, com base nesta noção de indícios suficientes que constituem o seu pressuposto que iremos de seguida proferir a necessária decisão instrutória.

Em conformidade com todo o exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 308.º n.º 1 do Código de Processo Penal, não pronuncio a arguida (A) pelos factos constantes do libelo acusatório.
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Como flui das transcritas conclusões - que balizam o respectivo objecto (cfr. artºs. 403º e 412º, nº 1 do C.P.P.) –, e da indicação das normas tidas por violadas, feita aí pelo digno recorrente, afigura-se ser a seguinte a questão a apreciar por este Tribunal:
- Pretensa violação, pelo despacho recorrido, dos artºs 172.º da Lei Orgânica n.º1/01, de 14 de Agosto e 308º, nº 2 e 283º, nº 2, do C.P.P., ao não pronunciar a arguida pelos factos e crimes por que foi acusada por falta de indícios;

Apreciemos:

Da leitura do despacho recorrido, que, no essencial, se deixou atrás transcrito, pode inferir-se que, para o Exmº Juiz a quo, a arguida só não terá sido pronunciada pelos crimes constantes da acusação por, fundamentalmente, não terem resultado suficientemente indiciados os factos descritos nos nºs 15º a 19º da acusação do MºPº, também supra reproduzida.

Na verdade, embora o despacho recorrido tenha sido proferido sem qualquer referência aos factos integradores da acusação do MºPº, o que, logicamente (cfr.artº 286º, nº 1, do C.P.P.), se nos afigurava indispensável, o certo é que, da linha argumentativa usada no mesmo despacho no atinente aos elementos essenciais dos tipos de crime em causa, parece resultar que, de todos esses factos, só os descritos nos nºs 15 a 19º não se mostrarão, para o Exmº Juiz a quo, suficientemente indiciados. E daí, o ter sido proferido despacho de não pronúncia.

Só que, salvo o muito e devido respeito por diferente opinião, afigura-se-nos que todos os factos constantes da douta acusação do MºPº se mostram suficientemente indiciados e que, por isso, e por preencherem os tipos de crime nela referidos, permitem imputar à arguida a sua prática.

Vejamos:

No que se refere aos dois crimes de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, ps. e ps. pelo art.º 172.º e agravado pelos art.ºs 162.º, als. a) e f) e 202.º, com referência aos artºs 38.º, 40.º e 41.º , n.º 1, todos da Lei n.º 1/01 de 14 de Agosto, sendo um deles ainda agravado pelo art.º 30.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 2/99 de 13 de Janeiro (Lei de Imprensa), a que se reportam, principalmente, os factos descritos na acusação sob os nºs 1º a 17º, inclusive, e 19º, é evidente que, tais factos têm de se ter como suficientemente indiciados.
Na verdade, perante o que, além do mais, consta da revista junta de fls. 8-33 e do que consta do comunicado junto a fls. 40, tem, inquestionavelmente, de concluir-se, ao contrário do que foi entendido no despacho recorrido, que a arguida, através de tais publicações, infringiu, de modo claro, e até grosseiro e ostensivo, os deveres de neutralidade e de imparcialidade a que estava legalmente obrigada como presidente da Câmara do Montijo e tendo em conta as eleições que se encontravam designadas para a Câmara Municipal do Montijo.
Isso mesmo resulta, desde logo, do próprio teor da entrevista dada pela arguida, de págs. 3 a 5 da revista em causa. É que, essa entrevista, sendo o pórtico, e procedendo ao enquadramento, e dando o tom, de tudo o mais que dela consta, revela que, embora referindo a sua qualidade de presidente da Câmara, a arguida se assume aí, mais do que tudo, e principalmente, como candidata às eleições que se aproximavam. E, desde logo e claramente, como candidata já vencedora.
Nesse evidente sentido apontam as alusões ao comportamento da oposição que teve e que, consoante perspectiva, continuará a ter e as promessas de acção futura, que, só como candidata poderia fazer (repare-se no que consta de págs. 4 e 5 da revista junta e de que, além do que se mostra reproduzido na acusação, pode ser exº o seguinte: «Caso seja eleita assumo, empenhadamente, o compromisso de proceder...», «Na acção social, apostaremos na criação ...»).
E o mesmo sucede com o comunicado junto a fls. 40, que, oriundo da Câmara Municipal de Montijo, e subscrito pela arguida na sua qualidade de presidente de Câmara, a propósito da publicação da revista supra referida, e procurando justificar a mesma, mais não é do que um elemento da campanha eleitoral do partido pelo qual a arguida era candidata às eleições que se avizinhavam, como resulta do teor da referência feita ao comportamento dos representantes dos partidos que eram oposição na Câmara Municipal do Montijo.
É que, como, esclarecidamente, aduz a Exmª Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer (transcreve-se, no ora pertinente):
«Ora, sendo certo que conforme se pode ler no parecer junto, nomeadamente a Fls. 305 que « Os princípios da neutralidade e da imparcialidade assumem particular relevância para os titulares de cargos públicos quando – como no caso dos autos – são (re) candidatos eleitorais. Essa situação obriga-os a estabelecerem uma rigorosa separação entre o exercício do cargo que estão a desempenhar e o seu estatuto de candidatos, não podendo utilizar-se daquele para obterem vantagens ilegítimas na sua qualidade de candidatos .» .
Ora, como já se referiu isto foi o que efectivamente a arguida fez, pois não separou o cargo que desempenhava do seu papel de candidata, tendo aproveitado a sua qualidade de Presidente da Câmara, no efectivo exercício de funções, para promover junto dos eleitores a sua imagem e a do restante executivo, com vista a obter junto dos mesmos votos para a sua reeleição.
E se a publicação da Revista em causa, da responsabilidade da arguida nos deixou de levantar dúvidas quanto à sua possibilidade de constituir um ilícito criminal, o folheto constante de Fls. 40 e 40v. afigura-se-nos não suscitar qualquer dúvida, na medida em que se encontra assinado pela própria arguida e na qualidade de Presidente da Câmara.
Tais factos, referidos concretamente na acusação, são em nossa opinião, e salvo o devido respeito por opinião contrária, susceptíveis de integrar a prática e um crime p. e p. pelo art.º 172.º da Lei n.º 1/2001 de 14 e Agosto, pois, ao contrário do que se defende no citado parecer e na douta decisão recorrida, entende-se que para que se verifique o crime não é necessário que se verifique um perigo concreto, mas tal ilícito, conforme defende o Ilustre Magistrado do M.ºP.º e bem, enquadra antes um crime de perigo abstracto, uma vez que os actos praticados são idóneos a produzir o resultado pretendido.»

Por seu turno, no atinente ao crime de peculato de uso, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º1, com referência ao art.º 3.º, al. i), na redacção originária, da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho, tem inteira razão a Exmª Procuradora-Geral Adjunta ao aduzir, no seu já referido parecer (transcreve-se):
«Relativamente ao crime de peculato de uso p. e p. pelo art.º 21.º da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho, entende-se, e ao contrário do que consta na acusação deduzida pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público, que os factos ali descritos são susceptíveis de enquadrar um crime de peculato de uso previsto, não pelo seu n.º1, mas sim pelo seu n.º 2. E isto, porque o n.º 1 da citada disposição se refere ao uso “de veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável que lhe tenham sido entregues” , enquanto o n.º 2 do citado artigo refere “ O titular de cargo político que der a dinheiro público um destino para uso público diferente daquele a que estiver legalmente afectado.....”, o que se nos afigura ser o caso dos autos, na medida em que o que foi, na nossa opinião, indevidamente utilizado foi dinheiro público e não qualquer veículo ou outra coisa móvel.
Colocada a questão desta forma, e tendo em conta que é a própria arguida que no seu requerimento de abertura de instrução, refere que « O montante despendido com o suplemento em causa foi imputado na rubrica 0409 – Aquisição de Serviços e Outros, tal como o montante despendido com as outras promoções de informação levadas a efeito através de boletins e órgãos de informação », resta-nos verificar em que normativo se enquadra esta rubrica 0409.
Pela análise do Dec.-Lei n.º 197/99 de 8 de Junho, que estabelece o regime de realização de despesas públicas com locação e aquisição de bens e serviços, bem como da contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e serviços, afigura-se-nos que a arguida pretendeu enquadrar o montante despendido na feitura daquela Revista, no art.º 18.º, n.º 1, al. a) do citado decreto-lei, que dispõe sobre a epígrafe “Competência para autorizar despesas no âmbito das autarquias locais” no seu n.º 1 o seguinte:
« São competentes para autorizar despesas com locação e aquisição de bens e serviços as seguintes entidades:
a) Até 30000 contos, os presidentes de câmara e os conselhos de administração dos serviços municipalizados;...”, sendo conveniente e pertinente verificar agora se a verba despendida se pode ou não enquadrar naquela rubrica.
Afigura-se-nos que não, uma vez que da análise geral do diploma em causa, ressalta a preocupação de os procedimentos a tomar terem sempre em vista o interesse público e os benefícios daí decorrentes para esse mesmo interesse.
Ora, no caso em apreço, a solicitação da feitura da Revista em causa não teve em conta o interesse do município, mas antes o interesse da arguida que a encomendou.
Diferente era a situação se tivesse sido encomendada a feitura de um Revista que pretendesse promover o concelho do ponto de vista turístico e cultural, dando a conhecer não só as riquezas naturais, mas também aquelas que por intermédio do executivo foram sendo melhoradas de modo a criar melhores condições de vida para todos aqueles que visitassem não só o Montijo, como todas as outras localidades que o compõem.
Embora aquela verba esteja na disponibilidade da arguida, na qualidade de Presidente da Câmara ela não pode ser gasta em proveito de uma campanha eleitoral, na medida em que não se trata de interesse público, mas sim de um interesse privado.»
Daí que tenhamos de concluir, perante a forte indiciação do que, além dos outros já referidos, consta dos factos descritos no nº 18º da transcrita acusação, pela existência de fortes indícios da prática, pela arguida, do ilícito p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 2, da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho, pois foi gasto dinheiro público na feitura de uma Revista que outra finalidade principal não teve senão a de, como já se deixou salientado, ser um meio de propaganda do trabalho efectuado pelo executivo camarário do partido a que a arguida pertencia e pelo qual era candidata às eleições que se aproximavam.

E essa forte indiciação, como acaba de se ver, de toda a realidade fáctica vertida na acusação, nomeadamente na que integra o seu nº 18, impõe que se conclua, também, pelo inquestionável preenchimento do tipo legal de crime de abuso de poderes, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 26.º, n.º 1 e 3.º, alínea i), da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho.
E, porque nos movemos no âmbito de uma mera decisão instrutória, tudo vindo a depender dos factos que, a final, dentro do objecto do processo, se vierem a dar como provados no julgamento, não cabe aqui decidir, por isso que tal decisão seria sempre provisória e irrelevante, se, entre este crime de abuso de poderes e o crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade p. e p. pelo art.º 172.º e agravado pelos art.ºs 162.º, als. a) e f) e 202.º, com referência aos art.ºs 38.º, 40.º e 41.º , n.º 1, todos da Lei n.º 1/01 de 14 de Agosto, sendo ainda agravado pelo art.º 30.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 2/99 de 13 de Janeiro (Lei de Imprensa), existe concurso real, como consta da acusação, ou mero concurso ideal, como se afigura entendido no despacho recorrido.

De tudo quanto vem de se explanar, não parece, pois, que se possam levantar dúvidas de que os elementos, até agora, contidos no processo garantem, à partida e indiciariamente, uma possibilidade razoável de a arguida vir a ser considerada criminalmente responsável.

Tanto basta para que deva ser pronunciada pelos respectivos factos, como ordena o artº 308º, nº1, do Cód. Proc. Penal .

O recurso merece, pois, provimento.

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Assim, do exposto, tudo visto e sem a necessidade de maiores considerações:
Acorda-se em conceder provimento ao recurso do MºPº e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento dos autos com a prolação do despacho de pronúncia, que, nos termos sobreditos, quanto ao crime de peculato de uso, deverá ser proferido tendo em conta o disposto no art.º 21.º, n.º2, com referência ao art.º 3.º, al. i), na redacção originária, da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho.

Não são devidas custas.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2004

Pulido Gracia

Vasques Dinis

Cabral Amaral