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LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
Sumário
Para a efectivação da escritura de compra e venda de fracção autónoma é essencial a exibição perante o notário da licença de utilização.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I
C intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra E, S.A., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia de 15.000.000$00, acrescida de juros, à taxa legal, desde 24 de Dezembro de 1997 até efectivo pagamento.
Alega, em resumo, que:
Por contrato-promessa de 22 de Setembro de 1995, a A. prometeu comprar à Ré e esta prometeu vender-lhe a fracção autónoma, em regime de propriedade horizontal, correspondente ao sexto andar D, que então aquela estava a construir no designado Lote 2, ...., bem como arrecadação e lugar de garagem.
Actualmente a fracção prometida transaccionar constitui a fracção AA da descrição predial nº ..../951228 da 8ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa.
A escritura pública deveria ser celebrada no prazo máximo de 90 dias, ou seja, até 30 de Janeiro de 1996, em local e hora a designar pela Ré.
O preço da prometida compra e venda foi de 25.000.000$00, por conta da qual a promitente compradora pagou a quantia de 7.500.000$00.
A Ré estava obrigada à obtenção e entrega à A. de uma garantia quinquenal relativamente à qualidade de construção.
A R. constituiu-se em mora, não tendo designado a outorga da escritura até 30 de Janeiro de 1996.
A R. apenas veio a marcar a escritura para 10 de Maio de 1996, pretendendo celebrá-la antes de reparadas diversas deficiências existentes na fracção, sem estar munida da licença de utilização, sem prestar a garantia quinquenal de qualidade e exigindo a outorga de procuração irrevogável pela Autora, a favor da ré, para esta alterar o título de propriedade horizontal.
A A. recusou-se a celebrar a escritura em tais condições e viria a conceder novo prazo de 90 dias à Ré para esta pôr termo à mora e outorgar a escritura, o qual terminava em 17 de Janeiro de 1997.
A Ré não se disponibilizou a outorgar a escritura nas condições acordadas.
A A. notificou judicialmente a Ré, com cominação admonitória, em 06/11/1997, para comparecer no 14º Cartório Notarial de Lisboa em 15/12/1997, para outorga da escritura de compra e venda e para entrega até ao dia 10 /12/97 dos documentos necessários e pertinentes à celebração da escritura.
A R. não procedeu, até 10 de Dezembro de 1997, à entrega dos documentos para a celebração da escritura, nem compareceu no 14ª Notarial da hora marcada para a outorga da escritura.
Em 22/12/1997, a A. notificou (sendo a comunicação nesse sentido recebida em 24/12/97) a Ré de que resolvera o contrato.
A Ré notificou a A. para a celebração da escritura na sua sede no dia 16 de Janeiro de 1998. Contudo, o contrato já se encontrava resolvido desde 24/12/1997.
A falta de licença de utilização e a sua não obtenção pela Ré, antes da outorga da escritura, constitui incumprimento contratual desta, a justificar só por si a restituição do sinal em dobro à A.
Caiu também a Ré em incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa por não ter celebrado o contrato de seguro a que se obrigou.
O incumprimento motivou a que a A. perdesse objectivamente o interesse na prestação.
A Ré contestou e formulou pedido reconvencional, alegando, em resumo, que:
.............................
Prosseguindo os autos os seus termos, veio a realizar-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença na qual se julgou a acção procedente por provada e, consequentemente, se condenou a Ré a pagar à Autora a quantia equivalente a 15.000.000$00 (quinze milhões de escudos), acrescida de juros à taxa legal desde a data da propositura da acção e até integral pagamento.
Julgou-se improcedente por não provada a reconvenção, absolvendo-se a autora do respectivo pedido.
Inconformada com esta decisão, dela recorreu a Ré, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:
......................................
...................................
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O objecto dos recursos é definido pelas conclusões de quem recorre ( arts. 684º, nº3 e 690º, nº1 do CPC). In casu, há que apreciar se:
- Os documentos juntos pela Apelada com as suas alegações de direito em 1ª instância devem ser desentranhados do processo;
- A Apelada estava obrigada a outorgar a escritura definitiva de compra e venda com a documentação apresentada pela Recorrente e se, ao invés do decidido na sentença, foi ela quem incumpriu o contrato-promessa, havendo, por isso, motivo para a procedência da reconvenção;
- Deve, em caso de assistir razão à Apelada, proceder a acção pelo fundamento em que a A. decaiu ( a problemática do seguro quinquenal) e que foi subsidiariamente invocado em sede de ampliação do objecto do recurso.
*
II
Deram-se, na douta sentença, por provados os seguintes factos:
- Por acordo escrito que denominaram Contrato-Promessa, datado de 22 de Setembro de 1995, a autora prometeu adquirir à ré, e esta prometeu transmitir-lhe, a fracção autónoma em regime de propriedade horizontal correspondente ao sexto andar D, que então estava a construir no designado Lote 2,...., bem como a arrecadação 1.18 situada no piso com a cota 88.00 e o lugar de garagem nº 1.50 situado no piso com a cota 88.00, conforme documento junto a fls. 48 a 54.
- Actualmente, a fracção prometida transaccionar constitui a fracção AA da descrição predial nº ..../951228 da 8ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, conforme certidão de fls. 55 a 69.
- A escritura pública de compra e venda era para ser celebrada no prazo máximo de noventa dias, após a data referida na cláusula 3ª, da qual consta que o acabamento da construção do prédio estava previsto para 31 de Outubro de 1995, em local e hora a designar pela ré, conforme cláusula 5ª, nº 1, do acordo.
- O preço da transmissão foi de 25.000.000$00 (vinte e cinco milhões de escudos), por conta do qual a autora pagou a quantia de 7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos).
- Nos termos do mencionado acordo, a fracção seria vendida “livre de quaisquer ónus ou encargos e, de acordo com as especificações técnicas e qualidade dos materiais de que a Promitente Compradora nesta data tomou conhecimento, através do descritivo de especificações técnicas que, como documento anexo se considera parte integrante do presente Contrato”.
- Ao acordo foi anexado o descritivo e especificações técnicas, conforme documento de fls. 73 a 84.
- Consta do nº 2.31.1 das especificações técnicas, a obrigação de obtenção pela ré e a entrega à autora de uma “Garantia Quinquenal relativamente à qualidade de construção, nomeadamente no que respeita a estrutura e impermeabilização a cargo de uma Companhia Seguradora de reconhecida idoneidade”.
- A promessa da existência para o empreendimento de um seguro de garantia quinquenal foi determinante da vontade de contratar da autora, como repetidamente esta afirmou perante a ré.
- Em Janeiro de 1995, em fase adiantada do empreendimento, foram descobertas galerias subterrâneas no subsolo, o que provocou atrasos em todo o empreendimento.
- A descoberta das galerias obrigou a alterar o projecto inicial, pelo que a ré teve necessidade de obter procurações dos adquirentes para alterar a constituição de propriedade horizontal, por forma a obstar às dificuldades resultantes do elevado número de fracções, nomeadamente a eventuais recusas de algum e no interesse de todos os adquirentes, não sendo previsível, inicialmente, as alterações a introduzir.
- A autora enviou à ré o fax de fls. 137 e 138, datado de 20 de Setembro de 1995, através do qual pediu à ré cópia do projecto da Apólice do Seguro de Garantia Quinquenal.
- A ré respondeu por fax de 21 imediato, do qual consta o seguinte: “não nos é possível enviar, nesta data, cópia da garantia referida, pois esta só será celebrada após a conclusão da obra, e em conformidade com o previsto no novo texto do Código Civil, que regule as garantias dos compradores”, conforme documento de fls. 139 e 140.
- A ré não designou a outorga da escritura até 30 de Janeiro de 1996.
- A ré enviou à autora a carta de fls. 85, datada de 22 de Abril de 1996, na qual lhe comunica que marcara a escritura para 10 de Maio de 1996, nos seus escritórios, a partir das 15 horas.
- A ré entregou à autora, em mão, no dia 26 de Abril de 1996, um envelope contendo diversa documentação, destinada aos preparativos formais da respectiva escritura de compra e venda, nomeadamente a outorga de uma procuração irrevogável a favor da ré para esta alterar o título da propriedade horizontal, conforme documentos de fls. 86 a 90.
- Na altura a fracção não dispunha de licença de utilização e a autora não prestara a garantia quinquenal de qualidade.
- A autora enviou à ré carta registada com aviso de recepção, de 29 de Abril de 1996, na qual, refere que ainda não recebera a fracção por falta de reparações ainda não efectuadas, que não constava da documentação destinada aos preparativos formais da escritura entregue pela ré em 26 antecedente, a licença de utilização, que se recusava a outorgar a procuração para alterar a propriedade horizontal e solicitava o envio do Certificado do Seguro de Garantia Quinquenal, conforme documento de fls. 142 a 146.
- Nessa carta, a autora escreve ainda o seguinte:
“3.6 - A licença de utilização é, de forma inquestionável, parte fundamental do bem objecto do contrato promessa de compra e venda entre nós celebrado.
“3.9 - Não quero, de forma alguma, ver-me envolvida em situações análogas às de tantos compradores de fracções imobiliárias autónomas que, apesar de terem ingenuamente efectuado as suas escrituras há anos, ainda hoje não dispõem das correspectivas licenças de utilização.
“3.10 - Acresce, como, de resto, V.Exs. bem o sabem, que a utilização plena de uma fracção imobiliária autónoma como esta, antes de emitida a respectiva licença de utilização, constitui contra-ordenação sujeita a coima.
“4.5 - Só a título de exemplo - Que garantias passaria eu a ter de que não seria alterada a utilização de alguma ou algumas fracções, com a inerente degradação da qualidade do local?
“4.7 - Mas com igual determinação afirmo a V.Exs. que não é meu propósito criar dificuldade ao normal e necessário ajustamento do título constitutivo.
“4.8 - Para tanto, e para tal desiderato, contarão V. Exas. com a minha presença e homologação, ou procuração casuística”.
Mais referiu que ficava a aguardar a designação pela ré, da data/hora para a recepção da fracção, que ficava a aguardar o fornecimento pela Ré, de certidão da licença de utilização e do certificado do seguro de garantia quinquenal, com o que celebraria a escritura.
- A autora nunca teve em seu poder as chaves da fracção.
- Em 6 de Maio de 1996, a ré envidou à autora o fax de fls. 91 a 93, datado de 6 de Maio de 1996, remetendo-lhe parte da escritura de constituição da propriedade horizontal e em que lhe solicitava que remetesse as alterações que pretendia à procuração para alteração da propriedade horizontal.
- A autora enviou à ré carta registada com aviso de recepção, de 9 de Maio de 1996, na qual, nomeadamente, referia pretender o envio de cópia integral da apólice de seguro que comprovasse a existência de “garantia quinquenal relativamente à qualidade da construção, nomeadamente no que respeita a estrutura e impermeabilização a cargo de uma companhia seguradora de reconhecida idoneidade” e pedia que, para poder propor modificações ao texto da procuração lhe explicitassem, com o rigor possível, quais as futuras alterações que a ré pretendia efectuar e para as quais solicitava o mandato, conforme documento de fls. 94 e 95.
- A ré enviou à autora o fax de fls. 96, datado de 9 de Maio de 1996, do teor seguinte:
“Acusamos recepção dos faxes relativamente ao assunto em epígrafe, cujas questões aí expressas merecem um estudo atento.
“Assim, serve o presente para anular a marcação de escritura para amanhã, dia 10/05, conforme nossa carta de 2 de Abril de 1996.
“Em breve teremos o prazer de entrar em contacto com V. Exa. para aprazar nova data”.
- De 9 de Maio de 1996 a 3 de Junho de 1997, a ré não voltou a contactar por escrito a autora.
- A autora enviou à ré a carta registada com aviso de recepção, datada de 18 de Outubro de 1996, na qual declarava fixar à ré um prazo de noventa dias para realização da escritura, conforme documento de fls. 97.
Mais escreveu a autora na mesma carta o seguinte:
"No entanto, chamo a especial atenção de V. Exas. para o facto da celebração da escritura pública estar dependente da existência da necessária licença de utilização da fracção e da garantia quinquenal prevista no nº 2.31.1 do Descritivo/Especificações Técnicas que constitui anexo ao Contrato-Promessa de Compra e Venda e que dele faz parte integrante.
“Caso não seja observado o prazo ora fixado, reservo-me o direito de actuar em conformidade com as disposições legais aplicáveis”.
- A ré enviou à autora a carta de 3 de Junho de 1997, na qual refere que a sociedade I, S.A., assumia responsabilidade solidária por eventuais defeitos da fracção através de «uma declaração nos termos que venham a ser acordados» a passar «pela I, S.A., enquanto accionista maioritária» da ré, e estar a diligenciar pela obtenção da licença de utilização, conforme documento de fls. 98 e 106.
- A autora notificou judicialmente a ré, em 6 de Novembro de 1997, nos termos e para os efeitos seguintes:
“- Comparecer no 14º Cartório Notarial de Lisboa, sito na Rua da Victória, nº 94-1º, no próximo dia 15 de Dezembro de 1997 às 15 horas, para a outorga da escritura de venda à Requerente, da fracção autónoma em regime de propriedade horizontal, identificada nos arts. 1º e 2º supra, bem como da arrecadação e lugar de estacionamento na garagem, prometidas vender pelo Contrato de 22 de Setembro de 1995;
“- Que faça entregar, o mais tardar até ao dia 10 de Dezembro anterior, no mencionado Cartório Notarial, ao cuidado do Senhor Segundo Ajudante D, todos os documentos que lhe respeitam necessários e pertinentes à celebração da escritura, por ser o período de tempo indispensável à preparação da mesma.
“- Que inclua nesses documentos a licença de utilização, cuja existência constitui elemento essencial na formação da vontade de a Requerente contratar, conforme repetidamente foi dito, à Requerida, e constitui ainda elemento essencial ao cumprimento do Contrato-Promessa, de conformidade, aliás com o imposto no art. 10º do DL 268/94 de 25 de Outubro;
“- Que, também até 10 de Dezembro de 1997, faça a entrega pessoal à Requerente, de cópia autenticada da apólice do Seguro de Garantia Quinquenal, contratualmente obrigatório, e cuja existência também constituiu elemento essencial na formação da vontade de a Requerente contratar;
“- Que, caso não satisfaça o acima referido, a Requerente põe termo ao mencionado Contrato-Promessa de Compra e Venda, de 22 de Setembro de 1995, da sempre dita fracção, que rescinde, por exclusivo incumprimento da Requerida;
“- Que, em consequência, exige desta o dobro do sinal passado, ou seja, a quantia de 15.000.000$00 (quinze milhões de escudos)”, conforme documento de fls. 107 a 115.
- A ré não procedeu à entrega no 14º Cartório Notarial, até 10 de Dezembro de 1997, de qualquer dos documentos referidos.
- No dia 11 de Dezembro de 1997, a ré entregou do 14º Cartório Notarial de Lisboa cópia da procuração a favor do seu procurador e cópia da certidão predial.
- A autora efectuou, em 12 de Dezembro de 1997, o pagamento da sisa, referente à escritura, do montante de 1.751.000$00, através do conhecimento 397/721, do 10º Bairro Fiscal de Lisboa, conforme documento de fls. 116.
- A ré não compareceu no 14º Cartório Notarial para a outorga da escritura, até às 15.35 horas.
- A autora fez lavrar um termo de protesto notarial do qual consta, nomeadamente, a declaração da autora de que:
“... lavra o seu protesto, perante a falta de comparência à outorga da escritura pela promitente vendedora, e tendo em conta que já repetidamente havia conferido à mesma promitente vendedora diversos prazos para esta por termo à mora em que incorrera, considera definitivamente incumprido o contrato por facto apenas imputável à promitente vendedora, motivo por que rescinde o mesmo, com exigência do dobro do sinal passado.
“Que esta rescisão é feita sem prejuízo da invocação de outros incumprimentos contratuais por parte da promitente vendedora, nomeadamente pela falta de um seguro de "garantia quinquenal", relativo à qualidade da construção, cuja subscrição e emissão pela promitente vendedora foi expressamente estipulado no contrato promessa de compra e venda, acrescendo que também é motivo do presente protesto, e só por si, fundamento para a rescisão, além da falta de comparência do representante da promitente vendedora, a inexistência de licença de utilização”, conforme documento de fls. 117 e 118.
- Quando se estava terminando a elaboração deste protesto, apresentou-se no 14º Cartório Notarial um representante da ré.
- O representante da ré chegou atrasado devido à intensidade de tráfego rodoviário, bem como à falta de estacionamento junto do cartório, tendo avisado o cartório por duas vezes de tal atraso.
- Quando o mesmo chegou ao cartório a autora ainda ali se encontrava.
- A ré pretendeu então celebrar de imediato a escritura, o que a autora recusou.
- No dia 15 de Dezembro de 1997, quando compareceu no notário, a ré não estava munida da licença de utilização referente à fracção e não entregou à autora o certificado da apólice de seguro quinquenal.
- A autora enviou à ré fax e carta registada com aviso de recepção, de 22 de Dezembro de 1997, tendo nomeadamente escrito:
“Ficam pela presente V. Exas. devidamente notificados de que rescindi no passado dia 15 do corrente mês, o Contrato-Promessa de Compra e Venda de 22 de Setembro de 1995, relativo à fracção autónoma designada pelas letras “AA” que corresponde ao Bloco A três, com os respectivos parqueamento e arrecadação nos pisos inferiores, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no......
“Essa rescisão ficou a dever-se ao incumprimento definitivo por Vossa parte do mencionado Contrato-Promessa, o qual foi claramente caracterizado, além do mais, pela Vossa falta à outorga da escritura para a qual haviam sido judicialmente notificados, à inexistência de licença de utilização, e ainda à inexistência de seguro de “Garantia Quinquenal”, relativo à qualidade da construção.
“Acresce, também, ao Vosso incumprimento definitivo que, nas circunstâncias que criaram e que apenas são imputáveis ao Vosso comportamento, perdi também qualquer interesse objectivo na aquisição da fracção em causa.
“Nesta conformidade, venho exigir, de V. Exas., o pagamento imediato da quantia de quinze milhões de escudos, correspondente ao dobro da importância que lhes entreguei como sinal”, conforme documento de fls. 119 e 120.
- Esta carta foi recebida pela ré em 24 de Dezembro de 1997.
- A ré escreveu à autora a carta de 31 de Dezembro de 1997, junta a fls. 122 e 123.
- Em anexo a essa carta, a ré enviou à autora cópia de um seguro que dizia satisfaria o previsto no acordo dos autos, documento de fls. 127 a 131.
- Mais disse notificar a autora para a celebração da escritura, na sua sede, no dia 16 de Janeiro de 1998.
- A autora enviou à ré a carta registada com aviso de recepção, de 7 de Janeiro de 1998, da qual constava nomeadamente, o seguinte:
“1. As razões que me forçaram a rescindir o Contrato-Promessa por incumprimento definitivo da parte de V. Exas., são as que constam da carta que lhes enderecei em 22 de Dezembro p.p., e transcendem a falta (que também se verificou) de comparência no Cartório Notarial para que haviam sido notificados, falta essa que, de resto, ultrapassou os limites razoáveis de espera, para um acto da natureza do que estava em causa.
“2. Rescindido, como foi, o Contrato-Promessa, por exclusivo incumprimento definitivo da Vossa parte, perde qualquer sentido a Vossa actual pretensão de celebrar a escritura.
“3. De qualquer forma, V. Exas. não procederam à entrega no 14º Cartório Notarial, até 10 de Dezembro p.p., da licença de utilização (nem sequer de licença de construção), nem, até essa data, me entregaram cópia autenticada do Seguro de Garantia Quinquenal.
“4. Bem ao contrário do que afirmam, a licença de utilização é um elemento essencial à efectivação da transacção, já que a sua falta impede a plena usufruição e a disposição da fracção (como V. Exas. não podem ignorar), à qual teria incontestável direito, como proprietária.
“5. Quanto à fotocópia, não legalizada, de um pretenso Seguro de Garantia Quinquenal, que só me enviaram pela primeira vez acompanhando a carta sob resposta, a mesma não corresponde e não satisfaz, nem de perto nem de longe, ao nº 2..31.1 do Anexo ao Contrato-Promessa de Compra e Venda que dele faz parte integrante.
“Aliás, V. Exas. têm perfeito conhecimento desta circunstância.
“6. Rescindido como foi, por mim, o Contrato-Promessa, em consequência do incumprimento definitivo por parte de V. Exas., a pretensão que agora formulam de outorgar a escritura (em condições, aliás, que sempre violariam o mesmo) não tem em conta a boa-fé de que deveriam ter usado, por subjacente a qualquer relação contratual, e não tem cabimento legal face à mencionada rescisão, já operada - a qual Vos foi por mim notificada e que produziu, desde logo, os seus efeitos legais.
“7. De qualquer forma, e como é óbvio, perdi objectivamente interesse na transacção.
“8. Irei, em consequência desse Vosso incumprimento definitivo, exercer os direitos que me assistem, considerando-me, face ao conteúdo da Vossa carta sob resposta, livre de fazê-lo desde já”, tudo conforme documento de fls. 124 e 125.
- A autora não compareceu na data indicada para celebração da escritura.
- A ré escreveu à autora a carta de 30 de Janeiro de 1998, através da qual pretendia então considerar “definitivamente incumprido o contrato-promessa de compra e venda”, acrescentando que “tal consideração prende-se com o facto de V. Exa. não ter comparecido nas nossas instalações no passado dia 16 do corrente mês, para outorga da escritura....”, conforme documento de fls. 133.
- A autora enviou à ré, a carta de 5 de Fevereiro de 1998, escrevendo nomeadamente:
“A Vossa pretensão de realizarem a escritura de um contrato inexistente, por resolvido já devido ao vosso incumprimento definitivo anterior, não passa de mera “habilidade” lamentável da vossa parte, que merece o meu inteiro repúdio.
“Como é evidente, não admito a possibilidade de V. Exas. se locupletarem, ilicitamente, com a quantia de PTE. 7.500.000$00 (sete milhões e quinhentos mil escudos) de sinal.
“Ao invés, eu é que sou credora dessa Sociedade pelo montante de PTE 15.000.000$00, correspondente ao dobro do sinal, em consequência do Vosso incumprimento, cujo pagamento, aliás, já reclamei, na minha carta de 22 de Dezembro próximo passado”, conforme documento de fls. 136.
- No dia 15 de Dezembro de 1997, no 14º Cartório Notarial de Lisboa, ré fez lavrar o termo de fls. 195 a 198.
- O bloco A3 do empreendimento, onde se situa a fracção dos autos, ficou concluído em Março de 1996 e o empreendimento em Outubro de 1996.
*
III
Analisemos as conclusões da Apelante:
Começa a Apelante por defender que os documentos juntos pela Apelada com as suas alegações de direito em 1ª Instância devem ser desentranhados do processo.
Com as suas alegações de direito juntou a A./Apelada, a fs. 549 e segs., uma fotocópia de um parecer do Conselho Técnico da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado e fotocópias de quatro acórdãos ( um do Tribunal da Relação do Porto e três do Supremo Tribunal de Justiça) publicados em www.dgsi.pt..
A R./Apelante, considerando que não se trata de pareceres de advogados, professores ou técnicos, opôs-se à junção daquelas peças, defendendo o seu desentranhamento.
O Mmº Juiz a quo considerou, a propósito, o seguinte:
«A ré veio requerer o desentranhamento de documentos juntos pela autora com as suas alegações sobre o aspecto jurídico da questão.
Sucede, porém, que a autora não juntou documentos. Limitou-se a juntar cópias de decisões judiciais e um parecer que, no seu entender, sustentam a sua posição sobre o referido aspecto jurídico da causa.
Ora, se não tinha que o fazer, uma vez que o tribunal os poderia e deveria consultar oficiosamente, nada obsta a que o faça.
Assim, vai indeferido o requerido.».
Sublinha a Apelante que a lei não distingue entre documentos, afirmando que estes só podem ser juntos até ao encerramento da discussão em 1ª instância (art. 523º, nº2 do C.P. Civil) e que, depois do encerramento da discussão, só os documentos que não tenha sido possível juntar até ao referido encerramento (art. 524º, nº1). Mais refere a lei (art. 525º) – acrescenta – que os pareceres de advogados, professores ou técnicos podem ser juntos, nos tribunais de 1ª instância em qualquer estado do processo, mas da leitura dos documentos juntos pela recorrida com as suas alegações de direito, apura-se que ela não juntou quaisquer pareceres de advogados, professores ou técnicos.
Vejamos:
Os documentos a que os arts. 523º e 524º do CPC se referem são documentos destinados a fazer prova dos factos alegados nos articulados ou posteriores a estes. Por outro lado, os pareceres devem ser entendidos, conforme se refere no Ac. STJ, de 04/10/95, C.J./Acs. do STJ, 1995,III, 48, como «uma contribuição para “esclarecer o espírito do julgador” sendo a sua força probatória, enquanto tal, nula».
Igualmente no Ac. do STJ, de 26/09/1996, BMJ, 459º, 513, se exarou, além do mais, o seguinte:
«I- Os documentos destinam-se exclusivamente a servir como meio de prova real de determinados factos.
II- Os pareceres são peças escritas susceptíveis de contribuir para esclarecer o espírito do julgador, que são juntos ao processo para serem tomados pelo tribunal na consideração que os mesmos merecem.».
As peças juntas aos autos pela A. não constituem documentos no sentido definido pelos mencionados preceitos, já que não se destinam a fazer prova dos factos em discussão neste processo.
O parecer emanado da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado, foi elaborado por técnicos daquele organismo, podendo, naturalmente, funcionar como elemento auxiliar da tarefa do julgador, já que versa sobre uma problemática que interessa àquilo que se debate nos autos, não se vendo, por isso, por que não se há-de permitir a sua junção, nos termos do art. 525º do CPC.
No que concerne às fotocópias dos acórdãos, trata-se tão-só de trazer aos autos o texto integral de arestos publicados, os quais, precisamente por estarem publicados, seriam de livre acessibilidade. A A. até poderia citá-los, na totalidade, no corpo das suas alegações, sem que, com isso, fosse atingido algum direito da parte contrária. A sua junção aos autos, não ofendendo o princípio do contraditório ou o da igualdade, tem cabimento à luz do princípio da cooperação (art. 266º do CPC). E porque não redunda na ofensa de qualquer direito, antes se traduzindo numa atitude coadjuvante, consistente em trazer à colação decisões jurisprudenciais úteis à decisão da causa, não se vê motivo para rejeitar tal junção.
A argumentação ora expendida, quanto às fotocópias dos acórdãos, também seria invocável relativamente ao aludido parecer, se ele não se enquadrasse na previsão do art. 525º do CPC.
Entende-se, pelo exposto, que bem andou o Mmº Juiz ao recusar o desentranhamento das aludidas peças.
Defende a Apelante que a Recorrida estava obrigada, pelo contrato-promessa que assinou, a outorgar a escritura definitiva de compra e venda com a documentação apresentada pela recorrente, designadamente com a licença da construção do prédio onde se situava o andar prometido vender.
Importa que centremos a nossa atenção nalgumas passagens da matéria provada, cruciais para a análise da questão em apreço:
Está assente que as partes celebraram entre si, em 22 de Setembro de 1995, um contrato-promessa de compra e venda incidente sobre a fracção autónoma supra identificada que, então se estava a construir, no designado Lote 2, edifício A3 ......., bem como a arrecadação e lugar de garagem.
A escritura pública era para ser celebrada no prazo máximo de 90 dias, após a data referida na cláusula 3ª, da qual consta que o acabamento da construção do prédio estava previsto para 31 de Outubro de 1995 ( o que se significa que a escritura deveria ser marcada até 30 de Janeiro de 1996).
Certo que se provou que em Janeiro de 1995, em fase adiantada do empreendimento, foram descobertas galerias subterrâneas, o que provocou atrasos em tal empreendimento, mas não se poderá olvidar que ao contrato-promessa foi celebrado alguns meses ( em Setembro de 1995) após essa ocorrência.
A Ré não designou ( e nos termos da cláusula 5ª do contrato tal obrigação impendia sobre ela) a escritura de compra e venda até 30 de Janeiro de 1996, vindo a fazê-lo mais tarde, pois através de carta datada de 22/04/1996, comunicou à A. que a marcara a escritura para 10/05/96.
A Ré entregou à A., em 26 de Abril de 1996, um envelope contendo diversa documentação, destinada aos preparativos formais da escritura, mas, na altura, a fracção não dispunha de licença de utilização, nem fora prestada a garantia quinquenal de qualidade.
A A. enviou à Ré carta registada com a.r., de 229/04/1996, na qual refere que não recebera, além do mais, a licença de utilização, que considerava ser «de forma inquestionável, parte fundamental do bem objecto do contrato promessa de compra e venda entre nós celebrado».
A Ré viria a enviar à A. um fax, datado de 09/05/1996, no qual anulava a marcação da escritura para o dia seguinte (10/05) e referia:
“Em breve teremos o prazer de entrar em contacto com V. Exa. para aprazar nova data”.
De 9 de Maio de 1996 a 3 de Junho de 1997, a Ré não voltou a contactar por escrito a Autora.
A Autora enviou à Ré a carta registada com aviso de recepção, datada de 18 de Outubro de 1996, na qual declarava fixar à ré um prazo de noventa dias para realização da escritura, chamando a atenção «para o facto da celebração da escritura pública estar dependente da existência da necessária licença de utilização da fracção e da garantia quinquenal prevista no nº 2.31.1 do Descritivo/Especificações Técnicas que constitui anexo ao Contrato-Promessa de Compra e Venda e que dele faz parte integrante.».
A Ré enviou à Autora uma carta, de 3 de Junho de 1997, na qual refere, além do mais, estar a diligenciar pela obtenção da licença de utilização.
A Autora notificou judicialmente a Ré, em 6 de Novembro de 1997 para comparecer no 14º Cartório Notarial de Lisboa, no dia 15 de Dezembro de 1997, às 15 horas, para a outorga da escritura de venda à Requerente e para, além do mais, fazer entregar, até ao dia 10 de Dezembro anterior, no mencionado Cartório Notarial, todos os documentos que lhe respeitam necessários e pertinentes à celebração da escritura, por ser o período de tempo indispensável à preparação da mesma, devendo incluir nesses documentos «a licença de utilização, cuja existência constitui elemento essencial na formação da vontade de a Requerente contratar, conforme repetidamente foi dito, à Requerida, e constitui ainda elemento essencial ao cumprimento do Contrato-Promessa, de conformidade, aliás com o imposto no art. 10º do DL 268/94 de 25 de Outubro», bem como a garantia quinquenal.
Acrescentava que, caso não a R. satisfizesse o acima referido, a Requerente punha termo ao mencionado Contrato-Promessa de Compra e Venda, de 22 de Setembro de 1995, que rescindia, por exclusivo incumprimento da Requerida e, em consequência, exige desta o dobro do sinal passado, ou seja, a quantia de 15.000.000$00.
A Ré não procedeu à entrega no 14º Cartório Notarial, até 10 de Dezembro de 1997, de qualquer dos documentos referidos.
No dia 11 de Dezembro de 1997, a Ré entregou do 14º Cartório Notarial de Lisboa cópia da procuração a favor do seu procurador e cópia da certidão predial.
A Autora efectuou, em 12 de Dezembro de 1997, o pagamento da sisa, referente à escritura.
A Ré não compareceu no 14º Cartório Notarial para a outorga da escritura, até às 15.35 horas do dia 15 de Dezembro, o que levou a A. a lavrar um protesto notarial, apresentando-se, no 14º Cartório Notarial, um representante da Ré quando se estava terminando a elaboração deste protesto.
O representante da Ré chegou atrasado devido à intensidade do tráfego rodoviário e à falta de estacionamento junto ao Cartório, tendo avisado, por duas vezes, do seu atraso.
A Ré pretendeu, de imediato, celebrar a escritura, o que a A. recusou, sucedendo que, quando compareceu no notário, a R. não estava munida da licença de utilização referente à fracção e não entregou à A. o certificado da apólice de seguro quinquenal.
Na sentença, o Exmº Juiz, analisando os motivos por que a escritura não foi celebrada em 15 de Dezembro de 1997, considerou que, quanto à questão do atraso, não pode proceder a argumentação da Ré, pois, é do conhecimento público, e obviamente da própria ré, a situação caótica do trânsito em Lisboa e as dificuldades de estacionamento invocadas. Acrescenta que o aconteceu foi que a Ré teve ainda necessidade de requerer a emissão da licença de utilização, para poder por esse meio justificar a regularidade do prédio e da fracção prometida vender, tratando-se de situações que demonstram que a Ré não cuidou de atempadamente promover a realização da escritura na data fixada.
Pondera, no entanto, o Exmº Juiz que, em obediência ao princípio da boa fé contratual, sempre se poderia exigir a outorga da escritura por parte da autora.
Crê-se que, na verdade, ao abrigo do princípio basilar da boa fé contratual, estando a A. no Cartório Notarial quando ali chegou a R., seria de estranhar que, apenas pelo atraso (não se discutindo que este pudesse ter sido evitado, nem o quão desagradável tal possa ter representado para quem aguardava ), a A., mostrando-se reunidas as condições para o efeito, se recusasse a celebrar a escritura.
Da leitura da sentença resulta, como factor primacial para se considerar legítima a recusa da A. na realização da escritura, a não apresentação pela Ré da licença de utilização.
Entende-se que, na sentença recorrida, se fez uma correcta avaliação da situação, quando se ponderou o seguinte:
« A ré não apresentou licença de utilização, que requereu no próprio dia, tendo apresentado uma licença de construção. Pretende a ré que tal licença seria suficiente para a celebração da escritura.
A autora, por seu lado, vem salientar que a licença de construção aludida não dizia respeito ao prédio onde se situa a fracção objecto do contrato promessa, mas outro prédio do mesmo empreendimento, estando ainda caducada a licença de construção do prédio em causa.
Tal circunstância impediria, desde logo, a realização da escritura. De todo o modo, importa analisar da relevância da falta de licença de utilização. Sustenta a autora a sua essencialidade e a ré que bastava para o efeito a licença de construção.
Nos termos do disposto no art. 410º, nº 3, do C. Civil, o contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma de prédio urbano depende da certificação da existência de licença de utilização ou de construção. Como é evidente, no caso de prédio em construção, apenas se terá que comprovar a existência da licença de construção.
Mas, no caso vertente, o contrato-promessa diz respeito à aquisição de uma fracção, obviamente já construída e concluída. Ou seja, o contrato-promessa tem por objecto um bem futuro, a fracção já concluída.
Não se ignora que, no caso de primeira transmissão, alguma jurisprudência vem aceitando que a escritura se possa celebrar apenas com a apresentação da mesma licença de construção. Porém, não se pode perfilhar tal entendimento.
Efectivamente, se a licença de construção visa demonstrar que a obra não é clandestina, sendo logicamente presumível que a mesma obedecerá a todas as condições legais para a sua regular utilização, já tal comprovação só pode ser feita mediante a atribuição da licença de utilização. Não se pode ignorar que a simples ocupação da fracção sem a emissão de tal licença constitui contraordenação.
Imagine-se a situação, infelizmente não rara, de alguém que adquire uma fracção de um prédio se confronta, posteriormente, com a recusa das autoridades administrativas de emitir a licença de utilização por não ter sido observado na construção do prédio o projecto apresentado para o mesmo, nomeadamente por se ter excedido a área de construção.
Ou seja, independentemente da questão de saber se era ou não admissível a realização da escritura apenas com a apresentação da licença de construção, o que entendo não ser aceitável, o que se apresenta inquestionável, é que não era exigível à autora que se bastasse com aquela.
Assim, era legítima a sua recusa em outorgar a escritura.».
No nº3 do art. 410º do C. Civil, preceitua-se:
«No caso de promessa relativa à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial da assinatura do promitente ou promitentes e a certificação, pelo notário, da existência da licença respectiva de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.».
Em vários arestos dos nossos tribunais superiores tem-se entendido – e com isso concordamos – que, relativamente a prédio construído, é essencial, para a realização da escritura, a licença de utilização.
No art. 44º, nº1 da Lei nº 46/85 de 20/09 (em vigor ao tempo dos factos em discussão nestes autos) dispunha-se:
«Não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanas sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial e da existência da correspondente licença de construção ou de utilização, quando é exigível, da qual se fará sempre menção na escritura.»
Este preceito foi revogado pelo DL nº 281/99, de 26 de Julho.
No Ac. do STJ, de 11/03/1997, C/Acs. do STJ, 1997, I, 148, considerou-se, tendo em conta o disposto no art. 44º da Lei nº 46/85 de 20/09, que não existindo licença de habitabilidade ou de utilização do prédio, estava vedada a realização da escritura de compra e venda de uma fracção e o que tinha de ser exibido ao notário, para efeito de celebração da escritura, era a licença de utilização de um prédio construído. Por isso – refere-se ainda – «qualquer eventual exibição da licença de construção constituiria facto irrelevante» e cumpria à promitente-vendedora «munir-se da licença de habitabilidade, por absolutamente necessária à realização da escritura da prometida venda.».
No Ac. do STJ, de 24/02/1999, BMJ 484º, 186, exarou-se o entendimento de que a licença a exibir ante o notário, nos termos do artigo 44º da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, será a da construção ou da utilização, conforme se trate de edifícios em construção ou de edifícios construídos.
Na fundamentação deste aresto, refere-se, a dado passo, que a exigência legal «não se destina tão-só a combater a venda de edificações clandestinas, construídas sem a necessária licença municipal de construção ou de loteamento, mas também a garantir a conformidade da obra concluída com o projecto aprovado, as condições do seu licenciamento e uso previsto no alvará de licenciamento».
Também no Ac. da Rel. de Lisboa, de 05/12/2000, CJ, 2000,V, 118, se considerou que «A exigência feita no art. 44º da Lei nº 46/85 de 20/9, de na escritura pública onde se transmita a propriedade do prédio urbano ser feita prova da licença de construção ou da licença de utilização refere-se à primeira se se tratar de prédio em construção e à segunda se se tratar de prédio já construído».
No Ac. do STJ de 17/01/2002, acedido em www.dgsi.pt (cuja fotocópia se mostra inserta a fs. 572 e segs. dos autos) alinhou-se pelo mesmo diapasão e vincou-se que «a dicotomia constante do art. 44º não é uma pura alternativa em sentido técnico do termo: a apresentação de uma ou outra das licenças não é equivalente, devendo apenas fazer-se a prova daquela que, no momento da escritura for exigível», havendo que concluir que sempre que a escritura se refere a prédio já construído, deve exigir-se a licença de utilização ou de habitabilidade. E refere-se, a dada altura:
«Não pode – seria claramente contrário aos princípios da boa fé que devem presidir à celebração e execução dos contratos – é admitir-se que, contra a vontade do comprador, venha este a ser obrigado , mais tarde, num altura em que o vendedor está livre de responsabilidades, a requerer a vistoria do prédio ( e não só da fracção que adquiriu e a solicitar a licença de utilização, com as inerentes dificuldades e encargos.».
Neste aresto faz-se menção ao Parecer do Conselho Técnico da Direcção Geral dos Registos e Notariado, de 24/03/93 – aquele cuja cópia foi junta a estes autos – aludindo-se ao seu carácter vinculativo para os notários. Ora, em tal parecer concluiu-se, além do mais, que:
«I- Não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos sem que se faça perante o notário prova suficiente da existência da correspondente licença de construção, ou da utilização, quando for esta a licença exigível.
II- A licença de construção – que tem de estar dentro do prazo de validade, quando exibida perante notário – é a exigível, se o prédio estiver em construção; no caso de prédio já construído, é exigível a licença de utilização e não a de construção.».
O entendimento plasmado nos aludidos acórdãos ( e outros se poderiam citar no mesmo sentido) e parecer foi reforçado pelo DL nº 281/99, de 26 de Julho, que visou ultrapassar dúvidas existentes quanto à interpretação da expressão «licença de construção ou de utili-zação, quando exigível», estabelecendo no seu art. 1º, nº1:
«Não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça perante o notário prova suficiente da inscrição na matriz pre-dial, ou da respectiva participação para a inscrição, e da existência da corres-pondente licença de utilização, de cujo alvará, ou isenção de alvará, se faz sempre menção expressa na escritura.».
Estando o prédio dos autos concluído, como aliás se retira da certidão de registo predial de fs. 57, na qual se menciona como data de conclusão a de 24/10/96, impunha-se a exibição pela Ré da licença de utilização para que a escritura se celebrasse em 15/12/1997, verificando-se que a R. dispôs de largo tempo para a obtenção de tal licença.
Tratando-se de documento essencial ( e essa essencialidade já fora antes sublinhada pela A.) para a celebração da escritura, dele deveria a Ré ter-se atempadamente munido, tendo até em conta o facto de a A. lhe ter fixado um prazo de noventa dias para a celebração da escritura e, finalmente, haver procedido à interpelação admonitória, nos termos do art. 808º do C. Civil.
Não é, pelo que se deixou dito, correcta a tese da Ré no sentido de que havia condições para a celebração da escritura na data fixada pela A. (15/12/97), sendo imputável à Ré a falta de exibição da licença de utilização.
Na sentença, fez-se, como se vê, ajustada análise da situação, quando se considerou legítima a recusa da A. em celebrar a escritura.
A jurisprudência e a doutrina (quanto a esta, vide, por todos, A. Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, Coimbra, 2000, vol. I, págs. 344 e segs.) têm, maioritariamente, entendido que não basta a mora para a resolução do contrato, sendo necessário que ela se converta em incumprimento definitivo, costumando apontar-se, quanto a isso, à luz do disposto nos arts. 801º e 808º do C. Civil, as seguintes situações (sintetizadas no sumário do Ac. R.C., de 14/11/2000, acedido em www. dgsi.pt):
«I - Mesmo posteriormente às alterações introduzidas pelo DL 379/86, de 11 de Novembro, deve entender-se que, para que o credor possa resolver unilateralmente o contrato, desonerando-se da sua prestação, torna-se necessário que esta se tenha tornado impossível por culpa do devedor ou que a mora deste se tenha convertido em incumprimento definitivo;
II - Além das situações de inobservância de prazo fixo absoluto, contratualmente estipulado, o carácter definitivo de incumprimento de contrato-promessa poderá verificar-se nestas situações:
a) -se, em consequência da mora do devedor, o credor perder o interesse na prestação;
b) - se, estando o devedor em mora, o credor lhe fixar um prazo razoável para cumprir e, apesar disso, aquele não realizar a prestação em falta;
c) se o devedor declarar inequívoca e peremptoriamente ao credor que não cumprirá o contrato;
III - Na fixação de um prazo razoável para cumprir, estamos perante uma interpelação admonitória, uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para cumprir, a qual deverá conter três elementos:
a) - a intimação para o cumprimento;
b) - a fixação de um termo peremptório para o cumprimento;
c) - a admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo;
IV - O principio da boa fé, irrefutavelmente consagrado, com autonomia, na vida jurídica, embora proclamado apenas para o cumprimento dos direitos de crédito, deve considerar-se extensivo a todos os casos em que exista uma especial relação de vinculação.».
A A., face à mora da R., procedeu à interpelação admonitória, pois notificou-a judicialmente, em 6 de Novembro de 1997, para comparecer no 14º Cartório Notarial de Lisboa em 15 de Dezembro de 1997, às 15 horas, para a outorga da escritura e para fazer entrega dos documentos necessários à celebração da mesma, advertindo-a de que, em caso de insatisfação do referido, punha termo ao contrato-promessa de compra e venda, por incumprimento, exigindo, em consequência, o dobro do sinal.
Na sentença concluiu-se – e bem, face ao que se tem vindo a explanar – pelo incumprimento definitivo da Ré, na data referida ( 15/12/97) .
Ora, face a esse incumprimento, e conforme se refere na sentença, perde relevância a não comparência da A. para a celebração da escritura, na sede da Ré, no dia 16 de Janeiro de 1998, na sequência da convocação, pela mesma R. feita, posteriormente àquela infrutífera interpelação da A., com os efeitos já enunciados.
Tendo já havido incumprimento definitivo por parte da R., não lhe assiste razão quando afirma que, ao recusar-se a outorgar a escritura, apesar de ter sido relevantemente notificada para esse acto pela recorrente, a recorrida incumpriu definitivamente, pelo que deverá perder o sinal que pagou.
Teria, em consequência, como foi decidido na sentença, de improceder o pedido reconvencional.
Não merece reparo a sentença, na medida em que considerou haver incumprimento definitivo por parte da R. por não se ter munido, quando tal se impunha, da licença de utilização, inviabilizando a realização da escritura, daí derivando as consequências vertidas em tal sentença: satisfação do sinal em dobro, face ao disposto no art. 442º, nº2 do C. Civil, com juros de mora.
A A. ampliou o objecto do recurso, nos termos do art. 684º-A, nº1 do CPC, a título subsidiário, prevenindo a necessidade de apreciação do fundamento em que a Apelada decaiu: o da realização de seguro quinquenal de garantia de construção, considerando o Exmº Juiz que o seguro em questão cobre as responsabilidades referidas nas especificações técnicas do contrato-promessa.
Uma vez que improcede a apelação, deixa de haver motivo para apreciação da ampliação do recurso, dado o seu carácter subsidiário, motivo por que não se tomará conhecimento dessa matéria.
Por tudo o que se deixou exposto, julga-se improcedente a apelação.
Custas pela Apelante.