LOTEAMENTO CLANDESTINO
CONTRATO-PROMESSA
NULIDADE
Sumário

O proprietário de uma parte alíquota de um prédio rústico (363,5/10600 avos) pode vender essa fracção desde que com a alienação não altere a situação já existente, designadamente no que respeita ao loteamento clandestino.
Não pode, no entanto, vender os imóveis urbanos nele implantados sem que o loteamento esteja legalizado.
É nulo, por impossibilidade objectiva da celebração do contrato definitivo, o contrato-promessa de compra e venda da moradia e garagem integrados na referida parcela de prédio rústico.
Declarada a nulidade do contrato-promessa, cada uma das partes restituir à outra o que recebeu, tendo o proprietário da parcela direito aos frutos correspondentes ao valor da utilização da moradia e garagem até à sua entrega definitiva.

Texto Integral

I - RELATÓRIO:

1 – D. G. e mulher, J. M., residentes na Rua A., em Laranjeiro, intentaram a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra F. C. e mulher, M. A., residentes na Rua º, A, Cruz de Pau, pedindo que:
a) Seja reconhecido o direito dos AA. à resolução do contrato-promessa de compra e venda exercido através de carta registada com aviso de recepção, em 05/02/01;
b) Seja reconhecido o direito dos AA. a fazerem sua a quantia de 7.320.000$00, que lhes foi entregue pelos RR., a título de sinal;
c) Sejam os RR. condenados a entregar aos AA., livres e devolutos de pessoas e bens, a parcela de terreno correspondente aos 363,5/106000 avos indivisos ou ao futuro lote n.º 866, bem como a moradia e garagem ai existentes;
d) Sejam os RR. condenados a pagar aos AA. uma indemnização no montante de 300.000$00, correspondente ao rendimento que os imóveis propriedade dos AA. lhes proporcionariam se estivessem na sua posse, à qual deve acrescer o valor mensal de 100.000$00, desde Julho de 2001, inclusive, até à data da entrega dos referidos imóveis.
Alegam, para tanto, e em síntese, que:
Em 13/05/99 os AA. celebraram com os RR., mediante documento particular, um contrato, nos termos do qual os AA. prometerem vender aos RR. e estes prometeram comprar-lhes, 363,5/106000 avos indivisos do prédio rústico identificado no art.º 1 ° da p.i., os quais fazem parte de um loteamento clandestino que se encontra em fase de reconversão, bem como a moradia e a garagem já implantadas na parcela de terreno correspondente ao futuro lote n°. 866, pelo preço de 21.000.000$00;
No referido contrato ficou convencionado que as construções não seriam incluídas na escritura de compra e venda, por se prever que na data da sua celebração não estaria concluído o processo de reconversão, e que a escritura de compra e venda dos 363,5/106000 avos ou do lote n°. 866, se entretanto fosse emitido e registado o alvará de loteamento, deveria ser celebrada até 30/01/00, incumbindo a respectiva marcação aos ora RR.;
Os AA. entregaram aos RR., em Fevereiro de 1999, a parcela de terreno e a moradia e garagem nela construídas;
Os RR. não marcaram a escritura de compra e venda até à data acordada, nem posteriormente, apesar de terem sido, por diversas vezes, instados pelos AA., pelo que estes, através de carta registada com A/R, enviada em 05/02/01, comunicaram aos RR. que perderam o interesse no negócio e consideraram resolvido o contrato por incumprimento dos RR., solicitando aos mesmos que lhes entregassem, no prazo de 30 dias, a parcela de terreno e os imóveis nela construídos, o que os RR. não fizeram.
Até Abril de 2001, os RR. entregaram aos AA., a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 7.320.000$00.
Os RR. tendo sido devidamente citados, contestaram, alegando, em síntese, terem as partes acordado que a marcação da escritura de compra e venda, ficava dependente da concessão de um empréstimo bancário aos RR. e a obtenção deste tinha como pressuposto a emissão e registo do alvará de loteamento, pelo que não tendo este sido emitido até ao momento e incumbindo aos AA. di1igenciar pela sua emissão e registo, não existia obrigação dos RR. de marcarem aquela escritura e, nessa medida, não se verifica incumprimento contratual nem sequer mora dos RR.. Requerem os RR. que os AA. sejam condenados como litigantes de má-fé, em indemnização que o Tribunal venha a entender por conveniente.
Concluem pela improcedência da acção.
Os AA. replicaram, impugnando os factos alegados pelos RR., e mantendo a posição inicial. Os RR. vieram requerer o desentranhamento da réplica, o que foi indeferido (cfr.fls. 55/56), tendo os RR, interposto recurso dessa decisão, o qual foi admitido, como agravo, com efeito meramente devolutivo (cfr. fls.75).
Procedeu-se á elaboração do despacho saneador, com a selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória, e após a instrução realizou-se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença, na qual se julgou a acção improcedente por não provada e em consequência, foram os RR. absolvidos do pedido formulado pelos AA.
*
2 – Inconformados com a decisão, dela vieram interpor recurso os AA., que foi admitido e oportunamente foram apresentadas as alegações e contra alegações, concluindo os apelantes nas suas pela forma seguinte:
1. Os recorrentes são titulares de 363,5/106000 avos indivisos do prédio rústico sito no Pinhal Conde da Cunha, freguesia da Amora, concelho do Seixal, com área de 106.000 m2, que constitui a AUGI 11 do Pinhal da Cunha (Fase V) que se encontra em fase de reconversão.
2. Trata-se de uma vasta zona que foi objecto de um loteamento clandestino, actualmente em fase de reconversão (Proc. 10/M/96 da Câmara Municipal do Seixal), em conformidade com a Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, com as actualizações introduzidas pela Lei n.º 165/99, de 14 de Setembro.
3. São, por isso, os apelantes comproprietários do identificado prédio rústico, estando sujeitos ao regime da compropriedade e, bem assim, ao regime especial previsto nos instrumentos legais acima referidos.
4. Nos termos do disposto no art.º 1408.º n.os 1 e 2 do Cód. Civil, ao comproprietário é lícito dispor, no todo ou em parte, da sua quota-parte do direito de propriedade, conquanto não aliene ou onere parte especificada da coisa comum.
5. Assim, dispõem os recorrentes do direito de alienar os 363,5/106000 avos indivisos de que são titulares no citado prédio rústico.
6. Sendo que a realização de tal negócio não traduz, directa ou indirectamente, um acto de divisão ou fraccionamento do mesmo prédio, contrariando o disposto no art.º 53.º n.º 1 do DL n.º 448/91.
7. Tão pouco consubstancia uma violação do regime legal de reconversão dos loteamentos urbanos, designadamente do disposto no art.º 54.º n.º 1 da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro.
8. Pois que nem dos factos provados, nem do teor do contrato promessa junto aos autos, resulta, no caso vertente, a ampliação do número de compartes ou o parcelamento físico do prédio em causa, em consequência da transmissão para os RR. dos avos de que os AA. são titulares.
9. A nível do processo de reconversão urbanística em curso, apenas se registará uma única alteração - a atribuição do futuro lote 866 aos RR. e não aos AA., aquando da emissão do alvará de loteamento, sendo igualmente aqueles a outorgar a escritura de divisão de coisa comum a celebrar oportunamente.
10. Assim sendo, inexistia qualquer obstáculo legal que impedisse a celebração, em 30-01-2000, da escritura pública de compra e venda da quota de que os AA. são titulares do prédio rústico em causa.
11. Pois que, contrariamente ao entendimento perfilhado pelo M.º Juiz “a quo”, tal negócio não consubstanciaria qualquer operação de loteamento ilegal, em contravenção ao art.º 53.º n.º 1 do DL n.º 448/91 de 29 de Novembro.
12. De resto, entendem os apelantes que ao Tribunal recorrido não competia declarar se a realização da referida escritura era viável ou não, pertencendo tal competência aos cartórios notariais.
13.Tanto mais que os apelados nem sequer alegaram ter feito qualquer tentativa de marcação da escritura prevista no contrato promessa junto aos autos.
14. Assim, ao proceder como procedeu, o Tribunal recorrido pronunciou-se, no entender dos recorrentes, sobre uma questão que não se inclui na sua esfera de competências, ferindo, por isso, de nulidade a sentença recorrida - art.º 668.º n.º 1 al. d) do C.P.C..
15. Por outro lado, se o Tribunal “a quo” entendia, como foi o caso, que a realização da escritura de compra e venda do direito aos 363,5/106000 avos indivisos, prevista expressamente na parte inicial do n.º 1 da cláusula 4.ª não era legalmente admissível, então era sua obrigação declarar a nulidade do negócio jurídico celebrado pelas partes, como decorre do disposto no art.º 294.º do Cód. Civil.
16. Pois que não lhe era lícito supor, nem os factos apurados lho permitiam, que os AA. teriam firmado o contrato promessa sem a parte viciada - art.º 292.º do Cód. Civil.
17. Por tal motivo, padece a sentença recorrida de contradição manifesta entre os seus fundamentos e a decisão proferida.
18. O que a fere igualmente de nulidade, nos termos do disposto no art.º 668.º n.º 1 al. c) do C.P.C..
19. Ficou provado nos autos que os apelados se obrigaram a proceder à marcação e realização da escritura de compra e venda dos 363,5/106000 avos indivisos de que os apelantes são titulares no Pinhal Conde da Cunha, o mais tardar, até 30 de Janeiro de 2000 - als. A) E) e F) dos factos assentes.
20. Ficou, igualmente, demonstrado que os Réus não marcaram a referida escritura até à data acordada, nem posteriormente - al. I dos factos assentes.
21. Assim, é a conduta dos RR. manifestamente violadora do teor do contrato promessa firmado com os AA. e, consequentemente, do disposto no art.º 406.º n.º 1 do Cód. Civil.
22. Pelo que aos AA. assistia o direito de declarar resolvido o aludido contrato, por incumprimento reiterado e culposo dos Réus, o que fizeram através de carta registada com A/R de 2001/02/05 - al. J) dos factos assentes.
23. Incumprimento que nos termos do disposto nos art.os 808.º, 442.º n.º 2 e 1311.º, todos do citado diploma legal, é definitivo e implica para os ora recorridos a perda das quantias já entregues aos Autores e, ainda, a obrigação de proceder à entrega a estes da parcela de terreno correspondente aos 363,5/106 000 avos indivisos ou futuro lote 866, bem como a moradia e a garagem aí existentes.
24. Os apelados são, ainda, responsáveis pelo rendimento que os AA. poderiam ter percebido dos aludidos imóveis, se os mesmos se encontrassem, como era devido, na posse destes.
25. Rendimento que o Tribunal fixou em 100.000$00 mensais (al. p) dos factos provados) e que é devido desde Abril de 2001, inclusive, até à data da restituição aos apelantes dos aludidos imóveis.
26. O Tribunal recorrido andou, ainda, mal ao não condenar os RR. como litigantes de má-fé, por terem alegado factos manifestamente contraditórios com o teor do contrato promessa por si firmado e cuja falsidade não podiam ignorar.
27. Embora não fosse essa a sua intenção, a sentença recorrida premeia, objectivamente, a conduta de quem não cumpre os contratos e de quem não honra a palavra dada, sendo manifestamente contrária ao espírito da boa-fé que deve nortear a formação e o cumprimento dos contratos.
28. Constituindo, por isso, um claro abuso de direito, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes - art.º 334.º do C. Civil.
29. Assim, ao decidir como decidiu, interpretou ou aplicou o Tribunal “a quo”, de forma incorrecta, o disposto nos artigos 53.º n.º 1 e 56.º n.º 3, ambos do DL n.º 448/91, de 29 de Novembro, 54.º n.º 1 da Lei n.º 91/95, de 2 de Setembro, 292.º, 294.º, 334.º, 406.º n.º 1, 442.º n.º 2, 808.º, 1311.º, 1406.º n.º 1 e 1408.º n.os 1 e 2, todos do Cód. Civil e 265.º n.º 1, 266.º-A e 456.º n.os 1 e 2 als. a), b) e d), ambos do C.P.C..
Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente Recurso, revogando-se a decisão recorrido e substituindo-a por outra que julgue a acção procedente e condene os Réus nos pedidos formulados na P.I..
- Nas contra alegações os apelados pronunciam-se pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da decisão recorrida.
- Corridos os vistos e tudo ponderado cabe apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) Factos provados:
No tribunal recorrido, foram dados como assentes os seguintes factos:
a) Em 13 de Maio de 1999, mediante o documento n°. 1, que intitulado "Contrato-promessa de Compra e Venda" os AA. declararam prometer vender e os RR. declararam prometer comprar o direito a 363,5/106000 avos indivisos do prédio rústico sito no Pinhal Conde da Cunha, freguesia da Amora, concelho do Seixal, com área de 106.000 m2, que constitui a A.U.G.I. 11 do Pinhal da Cunha (Fase V) que se encontra em fase de reconversão (al.A) dos factos assentes) ;
b) Após terminar a fase de reconversão do imóvel referido em a), no futuro loteamento, e segundo plano de pormenor já aprovado pela Câmara Municipal do Seixal, será atribuído aos AA. o lote 866 (al. B) dos factos assentes);
c) Na área que constituirá o referido lote 866, os AA. construíram uma vivenda e uma garagem, que também prometeram vender aos RR. e estes prometeram comprar, mediante o documento referido em a) ( al. C) dos factos assentes);
d) As partes acordaram que a venda seria pelo preço de 21.000.000$00, tendo declarado na cláusula 3.ª do mesmo documento que o pagamento da mesma quantia seria de:
" 5.000.000$00 neste acto, a título de sinal e princípio de pagamento, de que se confere a competente quitação (...), 60.000$00 por mês a pagar até ao dia trinta de cada mês, a partir do mês de Abril de 1 999, inclusive até à data da outorga da escritura (...), 1.000.000$00 em 30 de Junho de 1999, a título de reforço de sinal e continuação de pagamento (...), o remanescente do preço será pago (...) no acto da celebração da escritura de compra e venda" (al. D) dos factos assentes);
e) Na cláusula 4.ª do mesmo documento declararam as partes que "A escritura de compra e venda do direito aos 363,5/106000 avos indivisos ou ao lote 866, se entretanto for emitido e registado o competente alvará de loteamento, deverá ser realizada até 30 de Janeiro de 2000" (al. E) dos factos assentes);
f) Ainda na cláusula 4.ª declararam que: "A marcação da escritura incumbe aos promitentes compradores, devendo estes avisar os promitentes vendedores; com antecedência mínima de 15 dias, o dia hora e local da realização da mesma" (al. F) dos factos assentes);
g) Na cláusula 5.ª declararam as partes que "Os promitentes compradores já estão na posse das construções atrás referidas desde Fevereiro de 1999, onde realizaram algumas benfeitorias, que só serão quantificadas, se a escritura do contrato definitivo não vier a ser outorgada"(al. G) dos factos assentes);
h) Em Fevereiro de 1999, na sequência do acordado, os AA. entregaram aos RR. a parcela de terreno correspondente ao lote 866, bem como a moradia e a garagem nela construídas (al. H) dos factos assentes);
i) Os RR. não marcaram a escritura de compra e venda até 30/01/2000 nem posteriormente (a1. I) dos factos assentes);
j) Em 5/02/2001 os AA. enviaram aos RR. uma carta registada com aviso de recepção cuja cópia foi junta com a petição inicial como documento n°.2, a fls.10, na qual declararam que "dado que decorreu um ano sob o prazo ajustado para a concretização do referido negócio, venho (...) informar que considero resolvido o contrato promessa celebrado em 13/5/99 por incumprimento reiterado da vossa parte (...). Solicito ainda que procedam no prazo máximo de 30 dias à devolução dos imóveis objecto da citada promessa de compra e venda"(al. J) dos factos assentes);
k) Os RR. não procederem à entrega da parcela de terreno aos AA., continuando a ocupá-la (al. L) dos factos assentes);
I) Até Abril de 2001 em consequência do contrato descrito em a), os RR. entregaram aos AA. a quantia de 7.320.000$00 (al. M) dos factos assentes);
m) O alvará de loteamento relativo aos imóveis objecto dos presentes autos ainda não foi emitido e registado (al. N) dos factos assentes);
n) Os RR. depositam mensalmente a quantia de 60.000$00 na conta dos AA., quantias essas que nunca lhes foram restituídas (a1. o) dos factos assentes);
o) As partes acordaram na cláusula 4ª, ponto 3 do documento referido na al. a), o seguinte: "Ambos os outorgantes têm conhecimento de que as construções referidas (...) são clandestinas não sendo, portanto legalmente possível incluir as mesmas na (...) escritura de compra e venda" (resposta ao ponto 1° da base instrutória);
p) Atendendo à sua área e localização os imóveis caso estivessem na posse dos AA. iriam proporcionar-lhes um rendimento mensal de 100.000$00 (resposta ao ponto 3° da base instrutória).
B) Direito aplicável:
Os apelantes manifestam a sua discordância da decisão recorrida, através das 29 conclusões que tiram das alegações. Uma vez que o objecto do recurso é balizado pelas conclusões, como resulta do disposto nos art.º 684º nº3 e 690º nºs 1 e 4 do Cód. Proc. Civil e vem sendo orientação da jurisprudência - Vejam-se entre outros os Acs. STJ. de 2/12/82, 25/07/86, 3/03/91, 29/05/91 e 4/02/93, do STA de 26/04/88 (in BMJ, n.º 322º- 315, 359º-522, 385º- 541, Acórd.Doutrin.364-545, Col.Jur./STJ,1993, 1º-140 e Ac.Dout.,322 -1267 respectivamente). , a elas nos cingiremos na sua apreciação.
Desde já se adianta que se concorda com o conteúdo das primeiras 11 conclusões, por as três primeiras conterem matéria de facto dada como assente e por também nós entendermos que é lícito o proprietário de uma parte alíquota de um prédio rústico, alienar essa fracção, sem que com isso viole os dispositivos referidos na legislação referida dos Dec-Leis n.ºs 448/91 de 29 de Novembro e da Lei n.º 91/95 de 2 de Setembro.
Isto tendo-se em consideração que com a venda dessa fracção de 363,5/10600 avos indivisos, do prédio rústico, situado na freguesia da Amora, concelho do Seixal, com a área de 106.000 m2, não se altera a situação já existente, designadamente no que respeita à alteração do loteamento clandestino que constitui a A.U.G.I. 11 do Pinhal Conde da Cunha (fase V) que se encontra em fase de reconversão (facto assente al. a)).
O que os AA. já não podem é vender verbalmente ou através de documento particular, são os imóveis implantados na parcela de terreno, que no caso são uma vivenda e uma garagem.
Também não se põe a questão de saber se os contratos promessa de compra e venda das fracções de terrenos pertencentes a loteamentos clandestinos, em vias de legalização pela via da reconversão, são ou não válidos, porquanto nesta parte, a decisão recorrida mostra-se em conformidade com a jurisprudência que é unânime nesta matéria, e tem por base a orientação definida nos assentos do STJ de 19/11/1987 e de 3/10/1989 - BMJ n.º 371.º pp. 105 e BMJ n.º 390.º pp. 89. , que não obstante os diplomas posteriormente publicados sobre esta matéria, terem vindo definir regras sobre a forma de legalização desses talhões que constituem loteamentos clandestinos, mantêm em pleno a sua vigência e devem ser aplicados pelos tribunais comuns no âmbito da jurisprudência uniformizada.
Entendem os Apelantes que ao Tribunal recorrido não competia declarar se a realização da escritura era viável ou não, uma vez que tal tarefa pertence aos notários. Não têm razão.
É verdade que a execução material das escrituras públicas cabe aos notários e funcionários do respectivo cartório, mas o Juiz para apreciar e decidir sobre o alegado incumprimento do contrato promessa de compra e venda, não poderia deixar de apreciar se em seu entender, era legalmente possível celebrar a respectiva escritura pública relativa ao contrato em causa.
Só sendo possível a sua celebração, os Réus poderiam estar em mora. Esta apreciação de natureza técnica nada tem a ver com a intervenção do juiz na actividade do notário, como os AA pretendem demostrar. Assim, o Juiz “a quo”, por esse motivo não cometeu qualquer nulidade. Improcedeu assim as conclusões 12.ª, 13.ª e 14.ª.
Para saber se há incumprimento por parte dos Réus, a questão que se deve pôr e que em nosso entender constitui o aspecto essencial a apreciar e decidir, é saber se o contrato promessa, subscrito pelas partes é ou não exequível, tal como se mostra elaborado.
Em nosso entender o contrato promessa de compra e venda subscrito pelas partes e junto ao processo de fls.6 a 9, (docº n.1), enferma de invalidades, que o conduzem necessariamente à nulidade.
Vejamos as razões do nosso entendimento:
Na alínea c) da cláusula n.º1 os promitentes vendedores dizem que são “os únicos donos de uma moradia implantada no referido lote 866 composta por três quartos, uma sala de jantar, duas casas de banho, cozinha, copa e de uma garagem, ainda omissos na matriz.....” e depois na cláusula 2.º afirmam que: “ Pelo presente contrato os primeiros outorgantes prometem vender e os segundos prometem comprar, o direito aos avos atrás referidos, bem como a moradia e garagem igualmente identificadas no artigo anterior, no estado em que as mesmas actualmente se encontram , pelo preço de 21.000.0000$00 (vinte e um milhões de escudos)”.
Depois no n.º 3 da cláusula 4.ª acrescentam que: “Ambos os outorgantes têm conhecimento de que as construções referidas na cláusula primeira são clandestinas não sendo, portanto, legalmente possível incluir as mesmas na referida escritura de compra e venda”.
Resulta das cláusulas transcritas que os AA. prometeram vender aos Réus a moradia e a garagem implantada no terreno conjuntamente com este pelo preço de 21.000.000$00, o que como se sabe não é legalmente possível, porquanto o contrato de compra e venda de imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública (art.º 875.º do CC). Se não revestir esta forma legalmente imposta, o contrato é nulo (art.º 220.º do CC.).
De resto, só assim se compreendem as razões porque os AA. vêm pedir a resolução do contrato com fundamento em mora dos Réus, quando na cláusula 7.ª do mesmo contrato convencionaram que: “As partes sujeitam o presente contrato às regras da execução específica prevista no art.º 830.º do C.Civil”.
Se o contrato fosse válido, certamente os AA. iriam exigir o cumprimento do contrato aos RR. pelo meio convencionado entre eles, que foi a execução específica, e não com o fundamento em mora e perda do interesse na execução do contrato, uma vez que a perda do interesse tem sempre, como se sabe, por base a mora do devedor (art.º 808.º do CC).
Para além de tudo isto, poder-se-ia questionar a legalidade da atribuição do carácter de sinal, às prestações entregues pelos RR. aos AA., como princípio e reforço do pagamento do preço, que constitui sempre uma sanção pelo incumprimento do contrato e ainda , os pedidos do pagamento de prestações pelos danos causados aos AA., pelo privação da utilização do imóvel, durante o período que decorre entre a entrega do imóvel aos Réus e a restituição dele aos autores se fosse julgado procedente, o pedido de resolução do contrato de promessa de compra e venda entre eles celebrado.
Pensamos ter deixado bem claro e sem necessidade de mais alongadas considerações que não podendo o contrato promessa de compra e venda em apreciação ser cumprido nos moldes em que se mostra elaborado, e muito menos no prazo que foi acordado pelas partes, por ser ilegal, a venda da moradia e da garagem, sem ser escritura pública, uma vez que o valor destas está incluído no preço (prestação a afectuar pelos Réus), o contrato é efectivamente nulo (como se aceita nas conclusões 15ª a 18ª), por impossibilidade objectiva da sua celebração por documento particular (art.ºs 294.º, 220.º e 875.º do CC) e como tal se declara, ao abrigo do disposto no art.º 286.º do C. Civil, revogando-se em consequência a sentença recorrida.
Por outra banda, entendemos que, embora estejam provados os factos integrados nas conclusões 19.ª, 20.ª, pelas razões que julgamos ter deixado bem claras, não se podem aceitar como legalmente certas as conclusões 21.ª, 22.ª e 23.ª.
Quanto à questão suscitada da má fé dos Réus, entendemos que da matéria dada como assente, não resulta claramente que os eles ao celebrarem o contrato nos moldes em que o fizeram, e ao não satisfazerem os compromissos a que se obrigaram no escrito que ambas as partes designam por contrato promessa de compra e venda, tenha actuado com dolo ou com negligência grave e não tendo isso acontecido, não se pode entender que agiram com má fé. Assim, confirma-se nesta parte a sentença recorrida e julgam-se improcedentes as conclusões 26.º e seguintes.
Quanto às conclusões 24.º e 25.ª, pensamos que assiste alguma razão aos apelantes.
Efectivamente, com culpa ou sem ela, no não cumprimento do contrato, os Réus vêm utilizando a moradia dos AA., e apurou-se que o seu rendimento normal seria de 100.000$00/mês, (facto assente p)), sendo certo que eles apenas vêm pagando aos AA. 60.000$00/mês, ficando assim com um superavit de 40.000$00 mensais.
Tendo-se declarado nulo o contrato promessa de compra e venda, os efeitos resultantes da declaração de nulidade são os previstos no n.º 1 e 3 do art.º 289.º e 1270.º do C. Civil, que consistem em o negócio ficar sem efeito retroactivamente, devendo cada uma das partes restituir tudo o que tiver recebido do outro, tendo no caso os AA. direito aos frutos que foram no montante de 60.000$00/mês até à citação efectuada em 27/06/2001 e que passarão a ser no montante de 100.000$00, correspondente a € 498,80 a partir de Julho de 2001 e até à entrega efectiva do imóvel aos Autores livre de pessoas e bens.
Uma vez que os AA. têm de restituir aos Réus a quantia de 7.320.000$00, correspondente a € 36.512,01, deverá proceder-se à compensação.

III – DECISÃO:
Em face de todo o circunstancialismo descrito e do preceituado nas aludidas disposições legais, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso embora por motivos diversos, declara-se nulo o contrato promessa de compra e venda por impossibilidade objectiva do seu cumprimento, condenam-se as partes a restituir, cada uma o que recebera da outra, excepto os fruta da coisa utilizada pelos Réus, devendo estes continuar a pagá-los aos AA. no montante de € 498,80/mês, desde a citação até à entrega efectiva do imóvel em causa, que detém em seu poder e em consequência revoga-se a decisão recorrida.
Custas por ambas as partes na proporção de vencidas.

Lisboa, 18-3-04

Gil Roque
Sousa Grandão
Arlindo Rocha