ACÇÃO DE DESPEJO
TRESPASSE
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
DIREITO DE PREFERÊNCIA
COMUNICAÇÃO
Sumário

O trespasse do estabelecimento comercial não está sujeito a autorização do senhorio; mas o arrendatário, nos termos da al. g) do art. 1038º do CC, tem a obrigação de lhe comunicar, dentro de 15 dias, a sua realização, sob pena de aquele poder resolver o contrato nos termos do art. 64º, 1, f), do RAU- excepto se tiver reconhecido o trespassário como tal ou se a dita comunicação lhe for feita por este.
Tal comunicação deve ser feita mesmo que tenha comunicado ao senhorio o projecto do trespasse para efeitos do exercício do direito de preferência.
Embora comunicação a que se refere a al. g) do art. 1038º não esteja sujeito a qualquer requisito especial de forma, é irrelevante que o senhorio venha a tomar conhecimento do trespasse para além daquele prazo.
Sendo o prédio arrendado bem comum do casal e nada se demonstrado no sentido de que o marido não ocupa a posição de senhorio, a comunicação referida também lhe deve ser feita.
A notificação deve ser feita ao senhorio, ou aos senhorios, não sendo excepção a circunstância de os donos do prédio serem casados no regime de comunhão geral de bens e viverem na mesma casa ou só um deles receber as rendas e passar os recibos.
A própria comunicação para a preferência deve ser feita a qualquer dos titulares do direito de preferência que possa exercê-la, pois, como estabelece o art. 116º do RAU, são aplicáveis os artigos 416º a 418º e 1410º.

Texto Integral

Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa:
António ...  e   Maria ..., casados entre si, intentaram
contra
Maria ... e marido, José ..., e Alfredo ... e mulher, Patrícia ...,
a presente acção declarativa com processo ordinário, em que pedem que seja decretada a resolução de contrato de arrendamento relativamente ao espaço onde se encontra instalado o estabelecimento comercial denominado G.., com a consequente “entrega do imóvel devoluto ao autor marido”.
Subsidiariamente pedem que lhes seja reconhecido o direito de preferência no trespasse do aludido estabelecimento e em consequência lhes seja o mesmo adjudicado.

Para tanto, em síntese, alegaram que:
 são donos do imóvel em que se encontra instalado o estabelecimento comercial de que a primeira ré é inquilina;
esta, em 20/3/2000, ofereceu à autora mulher o trespasse do referido estabelecimento, pelo preço de 15 000 000$00, conforme acordo negocial que tinha com o réu Alfredo;
em 7/6/2000 a autora recebeu uma carta pela qual o segundo réu (Alfredo) lhe comunicou que por via de trespasse sucedeu ao anterior inquilino;
tal trespasse foi feito pelo valor de 10.000 000$00 e não pelos anunciados 15.000.000$00;
ao autor marido nada foi comunicado, quer quanto  ao projecto do trespasse do estabelecimento, quer quanto à sua realização.

Contestaram os réus dizendo que:
o trespasse foi efectivamente feito pelo valor de 15.000.0000$00, sendo que o valor de 10.000.000$00 constante da escritura pública teve origem num erro que foi posteriormente corrigido;
os autores declararam aos trespassantes não estarem interessados  em exercer a preferência no trespasse;
o autor marido é casado no regime da comunhão geral de bens com a autora e com ela vive, pelo que teve conhecimento do que se foi passando, para além de que tais comunicações lhe foram feitas também a ele verbalmente.

Deduziram também os RR reconvenção, pela qual pedem a condenação dos autores na indemnização de 15.000.000$00, valor do trespasse, em caso de procedência da acção, por enriquecimento sem causa.

Replicaram os autores dizendo que a aludida rectificação do valor do trespasse se efectuou apenas na sequência da interposição da presente acção, não lhes sendo oponível a simulação do preço efectuada.

Relativamente à reconvenção disseram os reconvindos que da resolução do contrato de arrendamento não resulta para os autores qualquer enriquecimento ilegítimo, nem o causal empobrecimento dos réus, pelo que deve ser a mesma julgada improcedente.

Proferido o despacho saneador e instruído o processo, efectuou-se a audiência de discussão e julgamento.

Seguidamente foi proferida competente sentença nos termos seguintes:
«a) – absolvo os réus Maria...e José..da totalidade dos pedidos contra eles formulados na presente acção.
b) – procedente a acção e, em consequência da natureza constitutiva da mesma, declaro a substituição do réu marido Alfredo pelos autores no contrato de trespasse, celebrado por escritura pública no dia vinte e quatro de Maio do ano dois mil, entre
Maria e José (como vendedores/trespassantes), e Alfredo (como comprador/trespassário), relativamente ao estabelecimento comercial de venda a retalho de livraria, papelaria, recordações e brinquedos, denominado “A G...”, instalado no rés-do-chão esquerdo do prédio urbano sito à Rua......considerando que os aqui autores António e Maria, são os adquirentes de tal estabelecimento comercial, no exercício do seu direito legal de preferência, pelo preço de quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos (o equivalente a dez milhões de escudos).
c) - consequentemente, ordeno o cancelamento de qualquer registo respeitante ao dito prédio efectuado a favor dos referidos réus.
d) – absolvo os autores/reconvindos dos pedidos reconvencionais contra os mesmos formulados».

Dela recorreram AA e RR, formulando as seguintes conclusões:

(...)

Entretanto, os RR foram condenados como litigantes de má fé.
Desta decisão também eles recorreram, concluindo em síntese:

- o preço do trespasse foi de 15.000.000$00 e não de 10.000.000$00;
- os RR tinham conhecimento de que esse preço era de 15.000.000$00;
- os RR tentaram a rectificação do preço declarado na escritura antes de terem sido citados para esta acção.

Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1 – Os autores são donos do prédio urbano sito à Rua.....de cujo rés-do-chão esquerdo é a ré Maria ... , inquilina, local onde esta tem instalado um estabelecimento comercial de venda a retalho de livraria, papelaria, recordações e brinquedos, denominado A G... (Al. A) Factos Assentes)
2 – Por carta de 20/3/2000, a dita Maria ofereceu à autora Maria o direito de preferência no trespasse do estabelecimento que ia fazer a Alfredo, pela contraprestação de 15 000 000$00. (Al. B) Factos Assentes)
3 – Por escritura pública realizada em 24/5/2000, no cartório notarial de..., os réus Maria e José, pelo valor de 10.000.000$00, que se encontra pago, trespassou ao réu Alfredo, casado com Patrícia, o referido estabelecimento, denominado A G.., com todos os seus pertences, designadamente móveis, mercadorias, respectivas licenças, alvará e direito ao arrendamento. (Al. D) Factos Assentes)
4 –A autora Maria  soube que o preço do trespasse era por 15.000.000$00, bem como as demais condições do negócio. (Resp. ao quesito 2º)
5 – Foi-lhe comunicado, por escrito, que o valor do trespasse era de 15.000.000$00, pagos integralmente no acto da escritura pública, sendo trespassário o réu Alfredo. (Resp. ao quesito 9º)
6 - Foi advertida do prazo para exercer a preferência. (Resp. ao quesito 16º)
7 - E no prazo de 8 dias nada disse. (Resp. aos quesitos 10º e 17º)
8 - Na escritura pública os réus declararam como valor do trespasse a quantia de 10.000.000$00. (Resp. quesito 19º).
9 – A presente acção deu entrada em juízo em 10/7/2000, os réus foram citados em 31/10/2000 e contestaram em 30/11/2000. (fls. 1, 22, 23, 25 e 38 dos autos)
10 – No dia 28/11/2000, no cartório notarial de ... foi lavrada uma escritura pública epigrafada de «Rectificação», na qual, os réus, Maria e José, por um lado, e Alfredo, por outro, declararam que no dia 24/5/2000, naquele cartório, «outorgaram uma escritura de trespasse (...) Que dessa escritura, por manifesto erro, ficou a constar que o valor do trespasse era de 10 000 000$00. Que no entanto o valor do trespasse foi de 15 000 000$00, pelo que a referida escritura é neste momento rectificada no sentido de ficar a constar que o valor do trespasse é 15 000 000$00 e não como erradamente consta naquela escritura». (Al. F) Factos Assentes)
11 – A senhoria, Maria, é a pessoa a quem as rendas são pagas e quem sempre assinou os respectivos recibos. (Resp. ao quesito 11º).
12 – O réu Alfredo comunicou à autora, primeiro verbalmente e depois por escrito, que tal como havia sido informada pela ré G.., havia adquirido o estabelecimento por trespasse. (Resp. ao quesito 6º)
13 – Por carta enviada à autora, a 7/6/2000, o réu Alfredo , comunicou a esta que sucedia ao anterior inquilino nos seus direitos e deveres, por força do trespasse de 24/05/00. (Al. C) Factos Assentes)
14 – Ao autor António nada foi comunicado pelos réus, quer no que toca ao projecto de trespasse e cláusulas do respectivo contrato, quer no tocante à comunicação de cedência do gozo do prédio arrendado ao réu Alfredo. (Al. E) Factos Assentes)
15 – Os autores são casados um com o outro desde 23/9/1956, no regime da comunhão geral de bens (doc. fls. 173/174)

O DIREITO.

Questões a decidir:
a) No caso de trespasse do estabelecimento comercial se é necessário que o inquilino comunique ao senhorio a cedência do gozo do local arrendado, nos termos do artigo 1038º g) do CC, sob pena de, não o fazendo, poder este resolver o contrato nos termos do artigo 64º, nº 1, f) do RAU;
b) Se, sendo o prédio onde se encontra instalado o estabelecimento comercial propriedade de marido e mulher, por serem casados sob o regime de comunhão geral de bens, a comunicação deve ser feita a ambos;
c) Se pode ser alterada a matéria de facto;
d) Sobre a litigância de má fé;
e) Se deve ser conhecida a apelação dos RR face ao que vier a ser decidido em relação à apelação dos AA.


I
Os autores (ambos) formulam contra os réus (todos os réus) dois pedidos:
1. Um de despejo, em que requerem a declaração da resolução do contrato de arrendamento relativo à parte do prédio de que são donos e onde está  instalado um estabelecimento comercial de papelaria, com a “consequente entrega do imóvel ao A. marido”;
2. Subsidiariamente que os RR sejam condenados a reconhecer-lhes o direito de preferência no trespasse do estabelecimento comercial referido, pela quantia de 10.000.000$00, devendo o 2º réu abrir mão dele a favor dos AA.

Como vimos, o pedido de resolução do contrato foi julgado improcedente em 1ª instância quanto ao invocado fundamento na falta da comunicação a que alude o artigo 1038º, g) do Código Civil. E daí o recurso dos AA.
Vejamos.
Por contrato celebrado por escritura pública, os réus Maria e José, trespassaram ao réu Alfredo o estabelecimento comercial sito no rés do chão...
Na data da realização da escritura de trespasse, em 24/5/2000, a ré Maria G tinha a posição de arrendatária e os autores a posição de proprietários do prédio onde se situa o R/C em causa.
Com efeito, como consta da certidão de fls. 5, o prédio foi comprado pelo autor, casado com a autora, sob o regime de comunhão geral de bens. Trata-se, portanto, de um bem comum do casal (artº 1732º do C.C. - diploma do qual serão todos os artigos a citar, sem indicação doutra origem).
 A inquilina quis trespassar o seu estabelecimento comercial e, por isso, depois de encontrar interessado e com ele negociar as respectivas cláusulas, deu delas conhecimento à autora Maria para esta, querendo, exercer o direito de preferência que lhe cabe por força do disposto no artigo 116º do R.A.U. Todavia não o fez relativamente ao autor, António.
Mas os RR alegam, por um lado, que o autor não é senhorio e, por outro, que o mesmo teve conhecimento pessoal do trespasse e ainda que, tendo a comunicação sido feita à mulher deve considerar-se que se encontrava feita também em relação ao marido, por serem casados sob o regime de comunhão geral de bens e viverem na mesma casa.
Na sentença recorrida, depois de se considerar que a inquilina tinha o dever de comunicar o projecto de trespasse ao autor marido, por também ser ele titular do direito de preferência e poder exercê-lo,  até desacompanhado da  mulher (não obstante ser casado com ela no regime da comunhão geral de bens), foi referido o seguinte: «não obstante, a falta de comunicação das condições do trespasse e da ocorrência deste não gera qualquer vício no contrato de trespasse, nem constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento. Por um lado porque o trespasse é permitido pela lei, sem dependência de autorização do senhorio (cf. artigo 115º, nº 1 do RAU); e por outro, porque a falta da referida comunicação se não integra em nenhuma das causas típicas que conferem ao senhorio o direito à resolução do contrato. Efectivamente, as causas de resolução do arrendamento urbano para o exercício da actividade comercial (artigos 3º, nº 1 e 110º do Regime do Arrendamento Urbano - RAU) constam na lei e têm assento no artigo 64º do RAU, o qual revogou o artigo 1093º do Código Civil, que antes regia a mesma matéria. Ora, pretendem os autores (rectius: o autor marido) que a falta das aludidas comunicações (ele não indica se qualquer delas ou as duas juntas...) integra a estatuição normativa contida na al. f) do citado retábulo do RAU (é a esta que o(s) autor(es) se pretende(m) referir na sua p.i., sendo a indicação da al. d) um lapso manifesto). Mas nessa alínea apenas se compreendem os negócios jurídicos ali referidos, e o trespasse não é seguramente nenhum deles. O que bem se compreende visto que a comunicação do trespasse ao senhorio não tem em vista qualquer autorização por banda deste, antes visa, apenas, duas coisas completamente distintas: permitir o exercício do direito de preferência, por um lado; e por outro, permitir o conhecimento por banda do senhorio da existência e identidade do novo inquilino, sem o que não haverá, por exemplo, mora do credor na recusa de recebimento das rendas. Por isso, quanto ao trespasse, existe regulamentação específica (artigos 115º e 116º do RAU).
A falta de comunicação das condições do trespasse (das concretas cláusulas do mesmo), nas circunstâncias do caso sob julgamento, apenas relevará na acção de preferência (como adiante se explicitará) e já não na de despejo.
Por falta de fundamento legal deverá, sem mais delongas, concluir-se pela improcedência do pedido de resolução do contrato de arrendamento, formulado a título principal».
Mas, salvo o devido respeito, não é assim.
Nos termos do nº 1 do artigo 115º do RAU, é permitida a transmissão por acto entre vivos da posição do arrendatário, sem dependência de autorização do senhorio, no caso de trespasse do estabelecimento comercial ou industrial.
Portanto, o trespasse do estabelecimento comercial pode ser feito sem autorização do senhorio.
Trata-se, contudo, de um caso especial em que não é necessária a autorização do locador para a cessão da posição contratual. Com efeito, como estabelece o nº 2 do artigo 1059º, a cessão da posição do locatário está sujeita ao regime geral dos artigos 424º e seguintes, sem prejuízo das disposições especiais desse capítulo. Deste modo, em princípio, é necessária a autorização do locador para a cessão da posição contratual, como resulta do artigos 424º e da alínea f) do artº 1038º. E um dos casos previstos na parte final do nº 2 do citado artigo 1059º é precisamente o trespasse do estabelecimento comercial.
Todavia, estabelece o artigo 1038º, al. g) que é obrigação do locatário comunicar ao locador, dentro do prazo de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada.
É, pois, obrigação do locatário comunicar ao locador, dentro do prazo de 15 dias, o trespasse do estabelecimento comercial. E para o caso sub judice, como melhor se verá, é importante reter que essa comunicação deve ser feia no prazo de 15 dias após o trespasse, embora não esteja sujeita a qualquer forma especial[1].
Entretanto, nos termos da alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU o senhorio pode resolver o contrato... se o arrendatário ceder a sua posição contratual, nos casos em que estes actos são ilícitos, inválidos por falta de forma ou ineficazes em relação ao senhorio, salvo o disposto no artigo 1049º do CC.
A propósito do preceituado na alínea f) do nº 1 do artigo 1093º então em vigor (agora 64º, nº 1- f. do RAU) já dizia Pinto Furtado que a enumeração das três causas que facultam a resolução do contrato pelo senhorio devia ser entendida a título meramente exemplificativo[2].
E nesse mesmo sentido o ac. TRE, de 10.05.84 (CJ ano 1984, III, 319): é exemplificativa a indicação dos negócios jurídicos constantes dos artigos 1038º, al. g) e 1093º, al. f) do C.C.. E ainda Henrique Mesquita in RLJ Ano 126-345: “a alínea f) do artigo 1038º deve interpretar-se no sentido de que a enumeração que nela se faz, dos actos relativos ao gozo da coisa locada, que ao locatário é vedado praticar não reveste carácter taxativo”.
Em sentido contrário o Conselheiro Aragão Seia[3], dizendo que a enumeração (da alínea f) do artigo 64º do RAU) das situações que permitem ao senhorio a resolução do contrato é taxativa.
Mas, seja qual for a interpretação a dar a este artigo, nesta parte, parece-nos não haver qualquer dúvida em relação ao trespasse do estabelecimento comercial, como dissemos, que é o que está em causa.
Em suma: o trespasse não está sujeito a autorização do senhorio; mas o arrendatário, nos termos da citada alínea g) do artigo 1038º, tem a obrigação de lhe comunicar, dentro de 15 dias, a sua realização, sob pena de aquele poder resolver o contrato nos termos do artigo 64º, 1, f) do RAU- excepto se tiver reconhecido o beneficiário da cedência como tal (o trespassário), ou se a dita comunicação lhe for feita por este (artº 1049º) (e já assim era nos termos da alínea  f) do nº 1  do artigo 1093º ).
É que se não for feita aquela comunicação, o trespasse é ineficaz em relação ao senhorio, ainda que o mesmo tenha sido autorizado (autorização não necessária). Se essa obrigação de comunicar a realização do trespasse não for cumprida atempadamente, terá o senhorio o direito de pedir a resolução do contrato nos termos da alínea f) do nº 1 do artigo 64º do RAU.
Portanto, um dos casos em que não é necessária a autorização do senhorio para a transmissão por acto entre vivos da posição do arrendatário é o trespasse do estabelecimento comercial. Mas o arrendatário tem a obrigação de fazer a comunicação dentro de 15 dias. E isto é assim mesmo que o arrendatário tenha comunicado ao senhorio o projecto do trespasse para este, querendo, exercer o seu direito de preferência, nos termos do artigo 116º do RAU. Trata-se de duas comunicações diferentes.
A cessão da posição contratual é a transmissão da posição do arrendamento a terceiros. Como estabelece o artigo 424º, nº 1, nos contratos com prestações reciprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o  outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão. Mas se o consentimento for anterior à cessão, esta só produz efeitos a partir da sua notificação (ou reconhecimento) (nº 2 do mesmo artigo).
Portanto, não obstante este consentimento, para que a cessão seja eficaz torna-se necessária a sua notificação ou reconhecimento pelo outro contraente.
O trespasse é o contrato pelo qual se transmite definitiva, e em princípio onerosamente, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado[4].
Aquela comunicação destina-se a proporcionar ao senhorio o conhecimento do negócio pelo qual se tenha operado a cedência da coisa, permitindo-lhe averiguar desse modo se corresponde a alguma das hipóteses em que a lei dispensa a sua autorização ou se, pelo contrário, se trata de uma cedência ilícita, contra a qual possa reagir. Destina-se, no fundo, a fornecer-lhe a identidade do novo inquilino e a possibilidade de aferir da legalidade da cedência a fim de poder defender os seus eventuais direitos dela resultantes.
E, por isso, é irrelevante o conhecimento que o locador tenha da cedência do locado a não ser que isso se traduza inequivocamente no reconhecimento do beneficiário, que não é  caso, no que concerne ao autor marido.
Ora, como ficou provado, esta comunicação foi feita à autora.

Todavia não foi feita ao autor.
Dizem, contudo,  os RR o seguinte:
que a senhoria é a autora Maria, pois é ela que recebe as rendas e assina os recibos;
que mesmo que se entenda que também o autor é senhorio, os AA são casados sob o regime de comunhão geral de bens, pelo que as comunicações feitas à mulher “a ele também se lhe referem”, o qual sempre teve, desde o início, pleno e efectivo conhecimento do projecto e condições do trespasse, e a acção é proposta por ambos.
mesmo que o autor marido tivesse o direito de resolver o contrato, tal direito seria manifestamente ilegítimo, pois excederia manifestamente os limites impostos pela boa fé e envolvente económica, com manifesto prejuízo para os RR e para segurança e certeza jurídica do comércio jurídico.
Há, assim, três questões a decidir.
A primeira consiste em saber se, não obstante serem os AA casados entre si, sob o regime de comunhão geral de bens, a comunicação tinha que ser feita a ambos; a segunda se se deve considerar que essa comunicação foi feita valida e eficazmente ao autor; a terceira, em saber se se verifica o alegado abuso de direito (embora nos pareça que esta última foi abandonada pelos RR nos recursos interpostos).
Vejamos.
II
Os AA dizem que dormem em camas separadas. E utilizam uma expressão sui generis ao afirmarem que não vivem “em comunhão geral de corpos, pois dormem há vários anos em quartos diferentes”.
Como é evidente, essa circunstância em nada releva, pois não alegam que se encontram separados de facto, sendo certo que vivem na mesma casa e nem sequer dizem que não comem à mesma mesa. Por isso não competia aos RR provar que os AA comem à mesma mesa e dormem na mesma cama. É questão que diz respeito aos AA.. E que estes vivem na mesma casa encontra-se abundantemente provado nos autos, por confissão expressa deles próprios.
Como se disse, o prédio onde se situa o andar foi comprado pelo autor e encontra-se registado a seu favor na respectiva CRP, pelo que se presume que lhe pertence (artº 7º do CRP). Mas aqui o que releva é a qualidade de senhorio. Sendo certo, contudo, que neste caso ambas as situações se confundem, pois não consta que o local tenha sido dado de arrendamento com base em qualquer outro título.
E dizem os RR que é a mulher que recebe as rendas e assina os recibos. E na verdade ficou provado que esta “é a pessoa a quem as rendas são pagas e quem sempre assinou os respectivos recibos”.
Mas isso não significa que só ela tenha a qualidade de senhoria, salvo melhor opinião. Na verdade, quando o prédio foi comprado já o local onde se situa o estabelecimento comercial se encontrava arrendado, o que significa que ambos os cônjuges passaram a ser senhorios. Mas, como é normal, os recibos apenas são assinados por uma pessoa, neste caso pela autora. A simples circunstância de só ela assinar os recibos não significa por si só que apenas ela fosse a senhoria e que, por isso, só ela tivesse de ser notificada nos termos e para os efeitos referidos. É que nem sequer se encontra provado (aliás não alegado) que só ela tratava de todas as questões relativas ao arrendamento. E este já vigorava à data da compra do prédio pelo autor. E os RR não põem em causa que o prédio pertença a ambos os autores, pois afirmam várias vezes serem eles casados sob o regime de comunhão geral de bens (e dizem mesmo que ambos os AA compraram o prédio).
Esta questão poderia eventualmente ter relevância no caso de, sendo embora os AA casados sob o regime de comunhão geral de bens, o arrendamento tivesse sido feito apenas pela mulher, assumindo ela a qualidade de única senhoria e criando nos inquilinos a convicção de que o marido não tinha tal posição. Mas nem sequer é isso o que conta dos autos.
Como resulta das respostas dadas aos vários artigos da BI, não ficou provado que o autor tivesse tido conhecimento do trespasse, nem o mesmo lhe foi comunicado expressamente pelos RR (ver respostas aos quesitos 12, 13 e 14).
É certo que mal se compreende que o marido, vivendo na mesma casa, não tivesse tido conhecimento destes factos. A verdade é que competia aos réus fazer a respectiva prova, o que, como se viu, não conseguiram. E não nos parece que tal conhecimento se possa presumir, invertendo-se assim o ónus da prova (artº 344º).
E na verdade, a comunicação a que se refere a alínea g) do artigo 1038º não está sujeito a qualquer requisito especial de forma. Mas tem de ser feita no prazo de 15 dias, sendo irrelevante que o senhorio venha a tomar conhecimento do trespasse para além desse prazo. E assim sendo, mesmo que se provasse que o autor teve mero conhecimento do trespasse, por exemplo através de terceiros ou do seu cônjuge, ainda assim haveria que averiguar se esse simples conhecimento seria suficiente para evitar a resolução do contrato.
Mas caso tal prova tivesse sido feita é que se poderia pôr a questão do abuso de direito que os RR invocaram na contestação, mas que parece terem abandonado nas alegações de recurso e respectivas conclusões. Todavia, em face da falta de prova, é questão que nem se coloca, pois, no mínimo, o marido tinha o direito de ter tomado conhecimento do trespasse dentro do prazo de 15 dias.
Portanto, sendo o autor dono do prédio, e nada se demonstrado no sentido de que não ocupa a posição de senhorio, a comunicação referida também lhe deveria ter sido feita.
O acórdão TRC de 06.11.84 (BMJ 341-482) decidiu que se o arrendado se encontra em situação de compropriedade, a comunicação do trespasse efectuado deve ser dirigida a todos os comproprietários (por todos eles se encontrarem na posição de senhorio) salvo se estiverem representados por um deles. Por sua vez decidiu-se no acórdão do STJ de 30.04.91 (BMJ 406-674) que é ineficaz em relação aos comproprietários do estabelecimento que não intervieram no negócio o trespasse feito pelos restantes comproprietários.
O assento do STJ de 25.06.87 (D.R de 10.10.88) (BMJ 368-147) decidiu o seguinte: “com a entrada em vigor da CRP de 1976, e mesmo antes da modificação introduzida no artigo 1463º do CPC, a notificação para o exercício da preferência deve ser feita a ambos os cônjuges, por aplicação do princípio da igualdade jurídica estabelecido no artigo 36º, nº 3 da CRP.”
É certo que se tratava de uma questão de inconstitucionalidade relativa ao princípio da igual de direitos  entre marido e mulher. Todavia, nos termos do artigo 1463º do CPC, se o direito de preferência pertencer em comum a ambos os cônjuges, deve ser pedida a notificação de ambos. E embora não estamos aqui a apurar da falta dessa notificação, a razão de ser é a mesma. E, como se disse, nenhuma prova foi feita no sentido de que apenas a mulher é senhoria. E a notificação deve ser feita ao senhorio, ou aos senhorios, se for caso disso, não sendo excepção a circunstância de os donos do prédio serem casados no regime de comunhão geral de bens e viverem na mesma casa. (veja-se o artigo 419º do CC e 1464º do CPC).
Aliás, a própria comunicação para a preferência deve ser feita a qualquer dos titulares do direito de preferência que possa exercê-la, pois, como estabelece o artigo 116º do RAU, são aplicáveis os artigos 416º a 418º e 1410º  (vejam-se também os artigos 419º do CC e 1464º do CPC).
Como resulta do preceituado no artº 1682º-A , carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se vigorar entre eles o regime de separação de bens, designadamente o arrendamento de imóveis próprios ou comuns e a alienação, oneração ou locação do estabelecimento comercial, também próprio ou comum, qual quer que seja a duração estipulada para o contrato. E por isso devem ser propostas por marido e mulher, ou por um deles com o consentimento do doutro, as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos (artº 28-A do CPC).
De resto, esta qualidade de senhorio de ambos os cônjuges foi reconhecida na douta sentença recorrida quando se refere: ...e têm razão uma vez que são senhorios do imóvel onde o mesmo (estabelecimento) se encontra instalado. E são-no porque adquiriram tal qualidade quando adquiriram a propriedade do prédio para a comunhão conjugal, sucedendo na posição de senhorio de um dos anteriores proprietários ...
Mas não se compreende, salvo o devido respeito, a doutrina defendida na sentença no sentido de que os RR inquilinos deveriam ter sido julgados parte ilegítima no despacho saneador.
Com efeito foi referido na douta sentença:
«Desde logo deverá questionar-se, no âmbito quer da acção de despejo quer da acção de preferência, o interesse em demandar dos trespassantes. É que com o trespasse estes deixam de ser arrendatários e de ter interesse no locado, sendo que a eventual procedência das pretensões dos autores, seja a resolução do contrato de arrendamento, seja a substituição do trespassário pelos autores, na preferência, isso em nada os prejudica, pelo menos directamente, pelo que nenhum interesse têm em contradizer os respectivos pedidos....... Justamente porque os réus trespassantes (Maria e José) não são já parte no arrendamento, nem têm qualquer relação com o locado (uma vez que na acção de despejo a questão se coloca entre senhorio e inquilino, e na preferência se coloca entre o preferente preterido e o adquirente), deverá, quanto a eles, improceder a acção».
É certo que esta questão foi muito debatida nas acções de preferência, face à redacção do nº 1 do artigo 1410º[5].
Mas se algumas dúvidas existissem quanto ao interesse dos RR inquilinos em contradizer, ficariam elas desfeitas face à decisão que vai ser proferida. E no que diz respeito ao pedido de resolução do contrato de arrendamento é questão que nem se colocaria, pois, sendo a transmissão do estabelecimento ineficaz em relação ao autor marido, continuariam eles a ser os arrendatários.
E também foi dito na sentença recorrida: os alienantes, onerados com a preferência dos autores, não cumpriram com as suas obrigações, por não terem facultado a estes, cabalmente, como a lei exige, o exercício do seu direito e preferência.
Quer isto dizer que foram precisamente os inquilinos que praticaram o acto ilegal que teria conduzido à procedência da acção nos termos julgados em primeira instância.
Portanto, nenhuma justificação haveria para que os RR inquilinos tivessem sido absolvidos do pedido ou  da instância com tal fundamento.
III
Os RR entendem que os números 5, 7, 8, 12, 13, 14 e 18 da BI devem ser dados como provados, de acordo com os depoimentos prestados pelas testemunhas .....
Sucede, porém, que os RR foram citados (e contestaram) no ano de 2000, pelo que não é aplicável o artigo 690º-A do CPC na redacção dada pelo DL 183/2000, de 10.08.
Com efeito nos termos do nº 3 do seu artigo 7º, o regime nele estabelecido é imediatamente aplicado aos processos pendentes em que a citação do réu ou de terceiros ainda não tenha sido efectuada ou ordenada.
E como os RR foram citados antes da sua entrada em vigor (01.01.01) deveriam os recorrentes ter procedido à transcrição dos depoimentos nos termos do nº 2 do artº 690º-A na anterior redacção, sob pena de rejeição do recurso nessa parte.
Significa isto que o novo regime estabelecido pelo nº 2 do artigo 690-A não é aplicável ao presente processo. Consequentemente, não se pode dizer que a decisão proferida sobre matéria de facto tenha sido impugnada nos termos desta disposição legal (na redacção anterior ao DL 183/2000).
E assim sendo não poderá ser alterada a matéria de facto nos termos e com os fundamentos pretendidos pelos RR.

IV
Consequentemente, há que julgar procedente a acção, mas quanto ao pedido principal, ficando prejudicado o conhecimento do pedido subsidiário.
Com efeito, declarado resolvido o contrato de arrendamento, fica sem objecto o pedido de reconhecimento do direito de preferência no trespasse do estabelecimento comercial.
E da mesma forma ficaria sem qualquer fundamento o pedido reconvencional, sendo embora certo que não há que conhecer agora dessa questão (artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC)[6].

V
Há que decidir ainda sobre a litigância de má fé.
Os RR (todos) foram condenados como litigantes de má fé, essencialmente pela alegada divergência entre o preço declarado na escritura e respectiva rectificação e o efectivamente pago.
E, como vimos, a acção foi julgada procedente pelo pedido subsidiário.
Mas apenas os RR Alfredo e mulher foram condenados.
Como resulta das respostas aos quesitos não se apurou qual o verdadeiro preço do trespasse.
Apesar disso, em resposta ao quesito 2 ficou provado que a autora Maria soube que o preço do trespasse era de 15.000.000$00...
Ora, se era de 15.000.000$00, a acção não poderia proceder com o alegado fundamento.
Parece-nos que poderá haver lapso na resposta dada a esse quesito, devendo querer dizer-se que a autora foi informada de que o preço seria de 15.000.000$00. E daí talvez se justificasse mesmo a anulação do julgamento para esclarecimento desta situação, se a acção não devesse proceder quanto ao pedido principal (mas como procede com este fundamento nenhuma utilidade teria tal anulação).
Portanto, não se justifica a condenação dos RR como litigantes de má fé.
VI
No que diz respeito a este recurso também não há qualquer razão para condenar qualquer da partes como litigante de má fé, por não se verificarem os pressupostos a que alude o artigo 456º do CPC.
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Por todo o exposto acorda-se em julgar procedente a apelação dos AA e improcedente a apelação dos RR em relação ao pedido subsidiário, mas procedente em relação à condenação como litigantes de má fé e, em consequência:
a) condenam-se os RR a entregarem imediatamente aos AA o local arrendado livre e devoluto;
b) fica prejudicado o conhecimento do pedido subsidiário formulado pelos AA;
c) em tudo o mais é revogada a sentença recorrida;
d) absolvem-se os RR da condenação como litigantes de má fé.
e) Neste recurso não se justifica a condenação de qualquer da partes como litigante de má fé.

Custas pelos RR em ambas a instâncias.

Lisboa, 23.03.2004.

Pimentel Marcos
Jorge santos
Vaz da Neves.
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[1] Sobre a necessidade de comunicação do trespasse veja-se em tempos mais recuados Januário Gomes /Constituição da relação de Arrendamento, 1980, pag.182., Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao então artigo 1118º do CC (1968) onde se refere expressamente que não é necessária a autorização do senhorio para a transmissão da posição do arrendatário por acto entre vivos em caso de trespasse do estabelecimento comercial, mas que o inquilino “fica com a obrigação de comunicar ao senhorio, no prazo de 15 dias, a cedência do gozo do prédio....” Mais recentemente veja- se Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano”, pag. 533 e Pinto Furtado in Manual  do A. Urbano (1999), p.75.                                                                
[2] Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos, pag. 505.
[3] Ob. cit. pag. 351, onde cita no mesmo sentido o ac. STJ de 03.07.97 (BMJ 469-486).
[4] Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, pag. 531.
[5] Agora com nova redacção dada pelo DL 68/96, de 31.05.
[6] Como vimos dizendo, a acção deve ser julgada procedente quanto ao pedido de despejo, com fundamento na falta de comunicação do trespasse ao senhorio (ou melhor, a um dos senhorios) autor marido.
Há que reconhecer que poderá estar-se perante uma grande injustiça, se efectivamente, o senhorio teve conhecimento de todas as condições do trespasse e, nomeadamente, se teve conhecimento da sua realização pela carta enviada à mulher ou por qualquer outra informação desta no prazo de 15 dias. Mas, por um lado, esses factos não ficaram provados e, por outro, há que ter em consideração o preceituado no nº 2 do artigo 8º.