CONTRA-ORDENAÇÃO
AUTO DE NOTÍCIA
AUDIÊNCIA DO ARGUIDO
NULIDADE
Sumário

I – Por contra-ordenação ao Código da Estrada foi lavrado auto de notícia do qual constavam todas as informações e requisitos de validade de tal acto.

II – O acoimado recusou-se a assinar o respectivo auto.

III – Apesar de o acoimado se ter recusado a assinar o auto de notícia dele lhe foi dado conhecimento pelo que não foi preterido o direito de audição do arguido não se verificando a decidida nulidade insanável

Texto Integral

Acordam, em audiência, na Secção(5.ª) Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório
Neste recurso é recorrente o Ministério Público e é recorrido o arguido (J).
Vem interposto do despacho judicial, que, com fundamento na nulidade insanável da falta de audição do Arguido pela autoridade administrativa, decorrente das disposições conjugadas do art.º 50.º do DL n.º 433/82 de 27/10, 32.º, n.º 10, da CRP e 119.º, alínea c), do CPP, decidiu absolvê-lo da contra-ordenação por que vinha acusado, proferido, em 28/11/2003, no processo de impugnação de contra-ordenação da 3.ª Secção do 1.º Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa.
O Ministério Público termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - A douta decisão recorrida foi proferida por despacho nos termos do disposto no art.º 64.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, sem que tenha sido dada a oportunidade ao Ministério Público e ao Arguido de se oporem, ou não, a que tal decisão fosse proferida nesses moldes, tal como impõe o n.º 2 do referido art.º 64.º.
2 - Resulta do art.º 50.º da Lei Quadro das Contra-Ordenações que " não é permitida a aplicação de uma coima ou medida de segurança sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre".
3 - Tal omissão viola o direito de audição e de defesa do arguido, consignados no art.º 32.º, n.º 10, da C.R.P., enquanto uma garantia constitucionalmente consagrada do processo de contra-ordenação.
4 - Tal vício constitui a nulidade insanável a que alude o art.º 119.º, n.º 1, al. c) do CPP, aplicado subsidiariamente ao processo das contra-ordenações por força do art.º 41.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27/10.
5 - As consequências de tal declaração de nulidade estão previstas no art.º 122.º do CPP que define no seu n.º 1 que "as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar"; e no n.º 3 "ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela".
6 - Assim, ao verificar tal nulidade deveria o tribunal "a quo" ter determinado a anulação da decisão da autoridade administrativa (DGV) que aplicou ao recorrente uma coima de 45 Euros, por alegada violação do art.º 50.º, n.º 1, al. a), do CE, e o reenvio dos autos à referida autoridade administrativa, a fim de ser suprida a omissão do art.º 50.º do DL n.º 433/82, de 27/10, aproveitando-se o auto de notícia.
7 - Ao absolver por despacho o recorrente, violou o disposto nos art.ºs 64.º, n.º 2, do DL n.º 433/82, de 27/10 e o art.º 122.º, n.º s 1 e 3 do CPP.
8 - Deve, pois, ser substituída por outra que determine a anulação da decisão da autoridade administrativa (DGV) e o reenvio dos autos à mesma a fim de ser suprida a omissão do art.º 50.º do DL n.º 433/82, de 27/10, aproveitando-se o auto de notícia.
Não foi apresentada resposta, apesar de haverem sido notificados, para o efeito, o Arguido e o seu Advogado constituído.
Nesta Relação, o Ministério Público apôs o seu visto.
Efectuado o exame preliminar, colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.

Questões a decidir
1.ª - Se foi, ou não, preterido o direito de audição e de defesa do Arguido, prescrito pelo art.º 50.º do DL 433/82 de 27/10 e pelo art.º 32.º, n.º 10, da CRP, antes da prolação da decisão administrativa que lhe aplicou a coima de € 45 pela contra-ordenação prevista e punível pelo art.º 50.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código da Estrada.
2.ª - Se aquela preterição do direito de audição e de defesa do Arguido só podia ser conhecida e decidida pelo despacho recorrido, caso previamente tivesse sido dada oportunidade ao Ministério Público e ao Arguido para se pronunciarem sobre essa forma de decisão e a ela se não houvessem oposto.
2.ª - Se aquela preterição do direito de audição e de defesa do Arguido configura uma nulidade insanável e se esta implica a absolvição do Arguido da contra-ordenação por que vinha acusado ou se implica a anulação de todo o processado, com excepção do auto de notícia, e a consequente remessa do processo à autoridade administrativa para prática do acto omitido e dos actos necessários à prolação de nova decisão administrativa.

II- Fundamentação

Factos a considerar
1 - Em 16/09/2002, pelas 22.45 horas, o Arguido foi autuado, pela PSP, por, no local Chegada de Voos do Aeroporto de Lisboa, haver estacionado e abandonado o veículo automóvel ligeiro de passageiros matrícula 78-75-DG, por ele conduzido, de forma a impedir a formação de uma fila de trânsito, infringindo, assim, o disposto no art.º 50.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada, punível pelo n.º 3 daquele artigo com a coima de € 30 a €150 (cfr. auto de fls.1).
2 - Do auto de contra-ordenação de fls.1 e da certidão de fls.3 consta que, em 16/09/2002, pelas 22.45 horas, foi dado conhecimento pelo Autuante ao Arguido do conteúdo daquele auto de contra-ordenação(frente e verso) e que o Arguido se recusou a assiná-lo e a receber o respectivo triplicado junto a fls.2.
3 - Do auto de contra-ordenação de fls.1 verso e do triplicado de fls.2 e verso constam: os factos imputados ao Arguido, as disposições legais infringidas e o montante mínimo e máximo da coima aplicável; a informação sobre a faculdade do pagamento voluntário da coima pelo montante mínimo, respectivo prazo, demais instruções para tal pagamento, e sobre os efeitos do pagamento voluntário da coima, conforme a contra-ordenação seja punível apenas com coima ou com coima e com sanção acessória; a indicação do prazo de vinte dias, a contar da notificação(16/09/2002), para o Arguido, querendo, contestar o auto de contra-ordenação, a efectuar por escrito dirigido ao Governador Civil do Distrito em cuja área a infracção foi praticada e a apresentar na correspondente Delegação Distrital de Viação, podendo arrolar até três testemunhas e juntar outros meios de prova e devendo indicar o número de identificação do auto de notícia.
4 - O Arguido não apresentou contestação, nem arrolou testemunhas, nem indicou outros meios de prova, nem interveio por qualquer outra forma no processo, antes de ser proferida decisão final pela autoridade administrativa.
5 - Estando o processo instruído apenas com os referidos auto de notícia, seu triplicado, certidão de notificação e com a ficha informática daquele auto e com cópia do registo individual de condutor relativo ao Arguido, em 13/12/2002, a Direcção Geral de Viação de Lisboa proferiu a decisão final de fls.6 e 7, aplicando ao Arguido, pela referida contra-ordenação, a coima de € 45 e as custas de € 39,91, decisão esta notificada ao Arguido por carta simples depositada em 08/01/2003 no receptáculo postal do seu domicílio, presumindo-se notificado em 14/01/2003 (cfr. fls. 8).
6 - Por requerimento enviado por correio registado em 05/02/2003(cfr. fls. 16) o Arguido impugnou judicialmente aquela decisão administrativa, onde, em síntese, reconhece a prática da infracção, mas argui a falta de notificação do auto de contra-ordenação, por o respectivo Agente lhe não haver entregue cópia do impresso, nem qualquer outro documento, o que o impediu de pagar voluntariamente o montante mínimo da coima, no prazo legal, como pretendia e pretende; conclui pedindo a procedência da impugnação com a redução ao montante mínimo da coima aplicável(€ 30) e a sua absolvição do restante, designadamente do pagamento de custas; como meios de prova, requereu a sua própria inquirição e a do Agente autuante(cfr. fls.10 a 15).
7 - Por ofício de 12/11/2003, a DGV enviou o processo ao Ministério Público junto do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, onde o Ministério Público, por despacho de 18/11/2003, ordenou a remessa do processo a Juízo, para apreciação do recurso e, caso fosse recebido e designada data para julgamento, requereu a notificação, como testemunhas, do Agente autuante e da testemunha identificada no auto de notícia(cfr. fls.22 e 23).
8 - Distribuído o processo em 20/11/2003 à 3.ª Secção do 1.º Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa, foi proferido, em 28/11/2003, o primeiro despacho judicial, ora recorrido, cujo teor se transcreve:
«(J), com domicílio em Lisboa, veio interpor recurso de uma decisão do D.G.V. que lhe aplicou uma coima de 45,00 euros, por alegada violação ao art. 50.º, n.º 1, a) do C.E..
lnconformado(a) com a decisão, o(a) acoimado(a) interpôs o presente recurso.
O Tribunal é competente.
Importa conhecer de uma questão prévia.
Compulsados os autos verifica-se que nos mesmos não existem elementos comprovativos de que a autoridade administrativa tenha dado cumprimento ao disposto no art. 50.º do D.L. n.º 433/82, de 27-1 0.
Na verdade, apenas consta, a fls.1, o respectivo auto de notícia não assinado pelo(a) autuado(a).
Decorre dos princípios gerais que para ser aplicada uma coima e/ou uma sanção acessória tem de se ter previamente concedido ao infractor a possibilidade de se defender, de se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados. Tal princípio está expresso no mencionado art. 50.º e resulta, aliás, de uma garantia constitucional consagrada no art. 32.º, n.º 10 da C.R.P..
Constituição essa que constitui o vértice da ordem jurídica portuguesa; Lei Fundamental com a qual todo o demais ordenamento deve compaginar-se.
Assim, se o infractor, por qualquer motivo, não é notificado no momento da sua autuação, deverá a autoridade administrativa, posteriormente, mas sempre em momento anterior à aplicação da coima e/ou sanção acessória, proceder a tal notificação.
A omissão de tal notificação acarreta nulidade insanável.
Com efeito, o art.119.º, al. c) do C.P.P. dispõe que a ausência do arguido, nos casos em que a lei exige a sua comparência, constitui uma nulidade.
Quando se fala em ausência do arguido está-se a referir não só a sua ausência física mas também a sua ausência processual, ou seja, a sua não intervenção por não lhe ter sido formulada, como devia, a notificação a fim de tomar posição sobre os factos que lhe são imputados.
É essencial que o arguido tenha possibilidade de se pronunciar sobre o caso, só assim se exercendo os direitos constitucionalmente consagrados de defesa (cfr. neste sentido, Ac. R.E., de 24.03.92, C.J. 92, II, pág. 308).
Compulsados os autos, constata-se que o(a) recorrente não foi notificado(a) para apresentar a sua defesa, tendo-lhe sido denegado um direito constitucionalmente previsto, logo na fase preliminar do procedimento contra-ordenacional.
Face ao exposto, entendo ter havido preterição de uma formalidade essencial, designadamente do disposto no art. 50.º do D.L. n.º 433/82, de 27.10 e art. 32.º, n.º 10 da C.R.P., constituindo nulidade insanável a falta de audição do(a) arguido(a) sobre a matéria objecto do processo; nulidade que "fere" o mesmo na sua totalidade.
Assim, absolve-se o(a) recorrente (J) da prática da contra-ordenação pela qual vinha acusado(a). ...»


Análise das questões e sua solução

Em causa está a tramitação processual duma contra-ordenação ao Código da Estrada, ocorrida em 16/09/2002.
Nos termos do art.º 150.º, n.º 1, do Código da Estrada, aprovado pelo DL 114/94 de 03/05, revisto e republicado pelo DL 2/98 de 03/01, alterado pelo DL 162/2001 de 22/05, revisto e republicado pelo DL 265-A/2001 de 28/09, rectificado em DR-I-A, de 29/09, alterado pela Lei n.º 1/2002 de 02/01, alterado pela Lei n.º 20/2002 de 21/08, às contra-ordenações nele previstas e em legislação complementar são aplicáveis as normas gerais que regulam o processo das contra-ordenações, com as adaptações constantes dos artigos seguintes.
Entre as especialidades da tramitação das contra-ordenações ao CE, estão: os respectivos autos fazem fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário(cfr. art.º 151.º, n.º 3, do CE); sempre que possível, compete ao agente autuante, no acto da autuação, notificar o arguido dos factos que lhe são imputados, da legislação infringida, das sanções aplicáveis, do concreto prazo que tem para os contestar, do local onde deve apresentar a sua defesa, da forma dela e a quem a deve dirigir, dos meios de prova que pode apresentar para sua defesa, da possibilidade de pagamento voluntário da coima mínima, respectivo prazo, local, efeito, nomeadamente quanto a sanções acessórias aplicáveis e sua defesa quanto a elas e consequências do não pagamento voluntário da coima; se o notificando se recusar a receber ou a assinar a notificação, o funcionário certifica a recusa, considerando-se efectuada a notificação(cfr. art.º 155.º e 156.º do CE).
A competência administrativa para instruir e para decidir a contra-ordenação em apreço, por que punível apenas com coima, nos termos conjugados do art.º 34.º, n.º 2, da LGCC e do n.º 2, b), do Despacho n.º 521/98 do Ministro da Administração Interna de 12/12/97, publicado no DR n.º 7, II, de 09/01/98, pertence ao Director-Geral de Viação.
Segundo o auto de notícia de fls.1 e verso e a certidão de fls.3, cujos factos foram presenciados pelo Autuante, apesar deste, na altura, deles haver dado conhecimento o Arguido, este recusou-se a receber dele a notificação dos factos que lhe eram imputados, da norma infringida e da atinente sanção, bem como do prazo, meios e forma para, querendo, os contestar ou para pagar voluntariamente a coima mínima, recusando-se também o Arguido a receber o triplicado do auto de contra-ordenação junto a fls. 2 e verso.
Como se referiu, o Agente autuante tinha competência legal para efectuar a referida notificação, constituindo a mesma um acto de instrução da contra-ordenação tendente a assegurar ao arguido os direitos de audiência e defesa, previstos no artigo 32.º, n.º 2, da CRP e no artigo 50.º da LGCC.
Como se mencionou, até prova em contrário, esta versão do Agente autuante faz fé em Juízo e equivale à notificação a recusa do Arguido em receber do Autuante a notificação relativa aos factos contra-ordenacionais que lhe eram imputados, normas infringidas, sanções aplicáveis e relativa ao prazo, meios e forma legais de que dispunha para os contestar.
Está, assim, demonstrado nos autos, através duma presunção legal «juris tantum», que, antes da decisão administrativa que aplicou uma coima ao Arguido, foram-lhe assegurados os direitos de audição e de defesa, no prazo previsto na lei, e que o mesmo prescindiu de os utilizar, mostrando-se, pois, presuntivamente, observados o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da CRP e no artigo 50.º da LGCC, ao invés do afirmado na fundamentação do despacho recorrido.
Como o Arguido, na impugnação judicial da decisão administrativa, veio suscitar a sua falta de notificação do auto de notícia e da indicação do prazo para contestar e para pagar voluntariamente a coima mínima, o que o terá impedido de oportunamente a pagar, a referida notificação do Arguido, presuntivamente garantida pelo auto de notícia e pela certidão de fls. 3, tornou-se facto controvertido e objecto da impugnação judicial, a apurar e a decidir pelo Tribunal «a quo», após produção, em audiência de julgamento, dos meios de prova indicados pelo Arguido e pelo Ministério Público(cfr. art.º 41.º, n.º 1, 64.º, 65.º e 66.º da LGCC, e 311.º, n.º 1, 388.º, n.º 1 e 2, 368.º do CPP).
O despacho recorrido, embora sob a epígrafe de questão prévia, acabou por acolher a versão do Arguido sobre a sua falta de notificação e por decidir a impugnação por simples despacho, em medida(absolvição da contra-ordenação) que nem o próprio Arguido pediu, sem previamente ouvir o Arguido e o Ministério Público sobre se concordavam, ou não, com tal forma de decisão e sem previamente produzir as provas por eles indicadas, violando, assim, o disposto nos art.º 64.º, nº 2, e 65.º da LGCC, nos art.º 151.º, n.º 3, e 156.º, n.º 9, do CE e nos art.º 311.º, n.º 1, 388.º, n.º 1 e 2, 368.º do CPP, "ex vi" do art.º 41.º, n.º 1, da LGCC.
Flui do sobredito que o despacho recorrido não pode manter-se, ficando, em consequência, prejudicada a apreciação das demais questões supra equacionadas.

III - Decisão
Termos em que se decide revogar o despacho recorrido e determinar a sua substituição por outro que, ordenando o prosseguimento do processo, designe data para a audiência de julgamento.
Sem custas.
Honorários legais ao Sr. Defensor Oficioso.
Notifique e comunique à Direcção Geral de Viação.

Lisboa, 04/05/2004.

Pereira da Rocha
Simões Carvalho
Pulido Garcia
Celestino Nogueira-Presidente da secção