COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário

O processo em que se pede a declaração de nulidade da classificação – por acção de um município – de prédios urbanos, pretendendo-se que regressem à classificação de prédios rústicos, atenta a violação de direitos do ambiente e qualidade de vida, é da competência dos tribunais administrativos, pois o conhecimento do pedido pressupõe a avaliação de acto praticado por ente público, no exercício de gestão pública, estando vedada ao tribunal comum a apreciação da legalidade de actos administrativos dos órgãos da administração pública regional ou local.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I (A), empregado de mesa, intentou a presente acção popular civil, sob a forma ordinária, contra ÁLVARO EUSÉBIO - Construções, Lda, com sede em Bairro do Hilarião, lote 14, Torres Vedras; MUNICÍPIO DE TORRES VEDRAS, com sede em Edifício da Câmara Municipal, Av. 5 de Outubro, Torres Vedras; (N) e mulher, (S), Torres Vedras e (C), alegando, além do mais que aqui se dá por reproduzido, que:

A 1º Ré é dona dos lotes de terreno para construção urbana, inscritos na matriz predial sob os artigos 7185, 7186 e 7187 da freguesia de São Pedro, concelho de Torres Vedras.
Nos referidos lotes de terreno encontram-se, em fase de acabamentos, três prédios que a 1ª R. pretende destinar a habitação e comércio.
Os artigos 7185, 7186 e 7187 correspondem, respectivamente, aos lotes 3, 4 e 5.
No lote 2, correspondente ao artigo 7738, da matriz predial urbana de Torres Vedras, foi construído um prédio para habitação e comércio, sendo a 1ª Ré proprietária de algumas fracções que se encontram por vender e os 3º e 4º RR, proprietários, respectivamente, do 1º andar “C” e 2º andar “C”.
Os artigos 7185, 7186, 7187 e 7738 provêm todos do artigo 39-“DD”.
Esse artigo 39-“DD” era denominado ou mais conhecido por Várzea da Palma e era composto por terra de cultivo de classe 1, isto é, a melhor terra para cultivo, com a área global de 28.936 metros quadrados.
O mencionado art. 39 “DD” era banhado, a nascente, pela Vala do Alpilhão, correndo a céu aberto, e, a poente, pelo Rio Sizandro.
Era, nesses terrenos, proibido edificar qualquer construção urbana, há cerca de 12/15 anos.
Os terrenos em causa, situados em plano inferior à rua São Gonçalo de Lagos, e em leito de cheia, são, por isso, propícios a inundações e cheias, como sucedeu em 1968 e em 1983, tendo a Vala do Alpilhão transbordado e inundado toda a zona envolvente e o Rio Sizandro atingido uma capacidade excessiva de águas, provocando inundações em toda a cidade.
Os terrenos ínsitos ao artigo matricial 39 "DD" deram origem ao artigo 7093, que, por sua vez, deu origem ao artigo 7136 e, finalmente, aos actuais artigos urbanos 7738, 7185, 7186 e 7187.
Tal aconteceu por acção da Câmara Municipal de Torres Vedras e da 1ª R., que entenderem considerar aqueles terrenos como urbanos, quando os mesmos eram, em 1989/1990, apenas uma várzea, com terra de classe 1 e em leito de cheia. É, pois, um local inidóneo para a construção.
Nesse local, foi implantado um “pavilhão de exposições”, em alumínios e cores berrantes, a escassos 200 metros de um monumento nacional - o Castelo de Torres Vedras.
A Autarquia nunca realizou nem solicitou um estudo hidráulico, que era conditio sine qua non para a construção do referido pavilhão.
A margem do Rio Sizandro foi transformada e a Vala do Alpilhão foi igualmente modificada, pela Autarquia, tudo à revelia do Ministério do Ambiente.
A Câmara Municipal de Torres Vedras procedeu a trabalhos de terraplanagem, alteração das linhas de água e concedeu licenças para construir edifícios, chegando mesmo a entubar uma linha de água (a Vala do Alpilhão) para possibilitar a construção.
Já em 13 de Janeiro de 1986, a Autarquia havia sido advertida pela Direcção Regional dos Serviços de Hidráulica do Tejo de que "careciam de licença todas as obras projectadas para os leitos e margens de corrente de águas públicas".
A Autarquia actuou de forma ilícita, à revelia dos interesses da população e das gerações mais novas, em flagrante desrespeito pela Lei de Bases do Ambiente.
Refere, ainda, o A., designadamente, que:
A criação/construção de artigos urbanos como os artigos 7738, 7185, 7186 e 7187, todos provenientes do antigo artigo 39 “DD”, à revelia dos direitos de ambiente e qualidade de vida, são nulos e ferem princípios legais e constitucionais.
A presente acção tem em vista considerar a violação de princípios basilares, como a qualidade de vida, a preservação do ambiente - art. 66 da Constituição da República - e a defesa de terrenos agrícolas, essenciais para a população e unicamente aptos a cultivo.
Visa-se, com esta acção popular destrutiva ou anulatória, declarar a nulidade da classificação de prédios rústicos, conforme era composto o artigo 39 “DD”.
Termina dizendo que:
-Deve ser declarado que os artigos 7185, 7186, 7187 e 7738 da matriz predial urbana de Torres Vedras - provenientes do artigo 39 secção "DD" - "Várzea da Palma" - constituem, em toda a extensão, local inidóneo para a construção de prédios de habitação.
- Deve ser declarada a nulidade da inscrição dos referidos artigos como "urbanos", atenta a violação dos direitos de ambiente e qualidade de vida e a aptidão natural que o artigo 39-“DD” – Várzea da Palma – tinha para o cultivo – 1 classe.
- Deve ser declarada a nulidade dos destaques que ocorreram sobre o artigo 39 "DD", declarados nulos todos os actos subsequentes e considerado que os terrenos da “Várzea da Palma” estão inclusos em leito de cheia.
- Deve ser reposta a “Vala do Alpilhão" no estado em que se encontrava antes dos trabalhos executados pela Autarquia de Torres Vedras, embargados em 29 Junho 2001.
-Deve ser declarado que os terrenos que compõem o inicial artigo 39-"DD" não foram objecto de estudo hidráulico e que o "Pavilhão de Exposições" foi implantado em local inidóneo e inapto para equipamentos.
- Nos termos do art. 22º da Lei 83/95 de 31/08, deve ser fixada indemnização a pagar pelos 1° e 2° RR ao A. e ainda aos interessados, em montante reputado adequado.

Foi proferido despacho, no qual se considerou o Tribunal Judicial de Torres Vedras absolutamente incompetente para o presente processo, por competentes serem os tribunais administrativos, e, assim, indeferiu-se liminarmente a petição inicial, nos termos dos artigos 66°, 101° e 105°-1, do Código de Processo Civil e 15° da Lei 83/95, de 31-08.

Inconformado com este despacho, dele agravou o A., concluindo as suas alegações pela seguinte forma:
«1- A LEI DISTINGUE A ACÇÃO POPULAR CIVIL DA ACÇÃO POPULAR ADMINISTRATIVA E CONFERE ÀQUELA A COMPETÊNCIA PARA CONHECER DAS OFENSAS AOS DIREITOS CONSIGNADOS NO ART. 1° - LEI 83/95 DE DE 31 AGOSTO
2- SEGUNDO O SR. PROF. LEBRE DE FREITAS “...ainda que a violação do interesse colectivo ou difuso se faça a coberto duma licença ou autorização administrativa, a tutela respectiva é conseguida através da acção popular civil...” in Revista Sub Judice – Janeiro de 2003 – pag 22
3- OS TRIBUNAIS COMUNS TÊM COMPETÊNCIA PARA JULGAR ACÇÕES EM QUE OS AUTORES PEÇAM A CESSAÇÃO DAS CAUSAS DE VIOLAÇÃO E A RESPECTIVA INDEMNIZAÇÃO – Ac. STJ, Col. STJ, 1993, III – pag.26
4- ESTANDO EM CAUSA CESSAR A VIOLAÇÃO – IMPLANTAÇÃO DE PRÉDIOS DE HABITAÇÃO EM ZONA DE LEITO DE CHEIA – E REPOR UMA LINHA DE ÁGUA NO ESTADO EM QUE SE ENCONTRAVA ANTES DAS OBRAS ILÍCITAS LEVADAS A CABO PELA CÂMARA E EMBARGADAS PELO MINISTÉRIO DO AMBIENTE, PARECE AO RECORRENTE QUE O TRIBUNAL DE TORRES VEDRAS É O COMPETENTE.»
Termina, dizendo que foram violados os arts. 1º e 12º a Lei nº 83/95 de 31 de Agosto e arts. 105 e 101 do C.P.C. e que deve ser julgado competente o Tribunal a quo para conhecer do processo.

Contra-alegaram a R. Câmara Municipal de Torres Vedras e a R. Álvaro Eusébio-Construções Lda., defendendo a manutenção do despacho.

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O objecto dos recursos é definido pelas conclusões (arts. 684º, nº3 e 690º, nº1 do CPC). In casu, há que saber se a competência para a presente acção é dos tribunais comuns, ou, como foi decidido no despacho recorrido, dos tribunais administrativos.
*

II

Está em causa, no presente processo, conforme – bem – se refere no despacho recorrido, matéria que se enquadra na previsão do art. 5º da Lei nº 11/87 de 07/04 (Lei de Bases do Ambiente).

As questões de ambiente e qualidade de vida são interesses protegidos pela Lei nº 83/95 de 31/08 (lei que regula o direito de participação procedimental e de acção popular).

No art. 45º da lei nº 11/87 de 07/4, preceituava-se (na redacção anterior à Lei nº 13/2002, de 19/02) o seguinte:
«1 – O conhecimento das acções a que se referem os artigos 66º, nº3, da Constituição e 41º e 42º da presente lei é da competência dos tribunais comuns.
2- Nos termos dos artigos 66º, nº3, da Constituição e 40º da presente lei, os lesados têm legitimidade para demandar os infractores nos tribunais comuns pela obtenção das correspondentes indemnizações.
3...».
No art. 212º, nº2 da Constituição da República Portuguesa (Versão de 1982), estabelecia-se que podiam existir tribunais administrativos.
No nº3 do art. 66 da mesma CRP, conferia-se «a todos o direito de promover, nos termos da lei, a prevenção ou cessação dos factores de degradação de ambiente, bem como, em caso de lesão directa, o direito à correspondente indemnização».
A Lei nº 1/89 de 08/07 (2ª Revisão Constitucional), eliminou o nº3 do art. 66º.
No nº2 do art. 52º da CRP reconhecia-se «o direito à acção popular, nos casos e termos previstos na lei.».
Este nº2 passou a nº3 com a seguinte redacção:
«É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, nomeadamente o direito de promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, a degradação do ambiente e da qualidade de vida ou a degradação do património cultural, bem como de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização.».
Foi aditado um novo art. 214º da CRP (actual art. 212º), sendo o seu nº3 deste teor:
«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.»
Conforme se exarou, entre outros, no Ac. do Tr. de Conflitos de 11/01/2000, acedido em www.dgsi.p:
I - A revisão constitucional efectuada através da Lei Constitucional n. 1/89, de 8/7, reconfigurou a jurisdição administrativa no sentido de a converter numa nova e verdadeira jurisdição destinada à apreciação das questões relativas a relações jurídicas administrativas.
II - Nesta perspectiva não há fundamento para que questões jurídico-administrativas de incidência ambiental sejam da competência dos tribunais judiciais.
III - A circunstância de a acção popular em matéria ambiental ser actualmente, por força de lei expressa, da competência de uma e outra ordem de tribunais consoante os casos torna incoerente e insustentável um regime que, fora do campo da acção popular, retire a competência para a sua apreciação, em qualquer caso, aos tribunais administrativos.
IV - O art. 45, n. 1 da Lei n. 11/87 está, desde a revisão constitucional de 1989, derrogado no tocante a relações jurídicas administrativas onde se levantem questões ambientais, às quais não tem aplicação.
V - Tendo a revisão constitucional de 1989 eliminando o n. 3 do seu art. 66, a reacção por via judicial contra a degradação do ambiente e o consequente pedido de indemnização para o lesado ou lesados ficaram previstos como um direito de acção popular a exercer pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, nos termos do n. 3 do art. 52 da Constituição.
VI - Nesta acção popular distingue-se, por força do art. 12 da Lei n. 83/95, de 31/8, entre a acção procedimental administrativa e a acção popular civil, aquela da competência dos tribunais administrativos e esta da competência dos tribunais judiciais.».

No mesmo sentido, pode ler-se, designadamente, o Ac. do Tribunal de Conflitos, de 06/04/2000, aliás citado no douto despacho recorrido.
Em tal despacho, concluiu-se, da análise do que foi alegado pelo A., «serem de natureza administrativa não apenas as relações jurídicas estabelecidas como ainda as normas legais alegadamente postas em causa pela actuação da Câmara Municipal de Torres Vedras (classificação de prédios como urbanos em "espaços urbanos e urbanizáveis", loteamentos e destaques, licenciamentos de construção de edificações, normativos regulamentares dos PMOT e PDM, licenciamento da utilização do domínio hídrico).».
Alude-se, além do mais, no mesmo despacho, à al. c) do n° 1 do artigo 51° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pelo Decreto Lei n° 129/84 de 27 de Abril, segundo a qual compete aos tribunais administrativos do círculo conhecer dos recursos de actos administrativos dos órgãos da administração pública regional ou local e das pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, bem como à alínea e), de acordo com a qual compete aos tribunais administrativos do círculo conhecer dos recursos de normas regulamentares ou de outras emitidas no desempenho da função administrativa.
Fez-se constar do sumário do Ac. do STJ, de 24/01/2002, acedido em www.dgsi.pt,:
«I- A competência material do foro - se administrativo, se comum - define-se em função da natureza do acto atacado: de gestão pública ou de gestão privada.
II - Pedindo-se que a referida se abstenha da prática de actividade que apenas é o cumprimento da deliberação tomada no uso do jus imperii pelo órgão administrativo, o foro materialmente competente é o administrativo.».
Na fundamentação deste douto aresto, estabelece-se, com pertinente citação de doutrina e jurisprudência (como sucede também no despacho recorrido), a destrinça entre actos de gestão pública e gestão privada, concluindo-se que:
«...os actos praticados pelo Estado ou por pessoas colectivas públicas serão de gestão pública ou de gestão privada em função da natureza do regime jurídico a que estejam subordinados: de gestão pública se sujeitos ao direito público, de gestão privada se sujeitos ao direito privado. E estarão sujeitos a um ou outro ramo de direito, conforme a natureza do próprio acto.».
Estando em causa, no processo em que este acórdão foi proferido, a implantação de um aterro sanitário em determinado local, ponderou-se:
«...a invocação da Lei 83/95, de 31 de Agosto, não chega para dizer competente o tribunal comum, quando em causa está uma relação jurídico-administrativa.
O pedido formulado no procedimento incide directamente sobre a construção do aterro naquele local, pretendendo-se que a mesma não seja levada a efeito ("abster-se de proceder à execução"). Mas incide indirectamente sobre o acto administrativo que autorizou a construção do aterro naquele local, pelo que não podemos considerar uma coisa sem considerar a outra, visto que a construção do aterro ali é resultado do acto que ali a autorizou.».

No Ac. do Tribunal de Conflitos de 11/01/2000 (acima citado) considerou-se que:
«VII - Respeita a uma relação jurídica administrativa o litígio onde se visa obstar à prática de actos regulados pelo direito administrativo e em que a Administração, aprovando um determinado plano de urbanização, age no exercício de gestão pública.
VIII- Fundando-se os pedidos formulados contra a Administração na existência de um determinado direito ao ambiente susceptível de ser violado por aquela, este direito configura-se como questão prejudicial para a qual são competentes os tribunais administrativos.».

O próprio A. refere, no caso que nos ocupa, que visa, «com a presente acção popular destrutiva ou anulatória declarar a nulidade da classificação dos artigos 7185, 7186, 7187 e 7738 como urbanos, devendo regressar à classificação de prédios rústicos, conforme aliás era composto o ARTIGO 39 “DD”».
Os pedidos formulados, acima transcritos, estão em consonância com este desiderato, estando em causa a nulidade de actos advindos do exercício de gestão pública.
Ora, conforme se conclui no despacho recorrido, não poderia aquele Tribunal apreciar o pedido formulado pelo A., na medida em que essa apreciação pressupunha uma avaliação da legalidade do acto praticado pelo ente público - Réu Município de Torres Vedras – estando vedada ao tribunal comum a apreciação da legalidade de actos administrativos dos órgãos da administração pública regional ou local.

Por tudo o que se deixou exposto, entende-se que o douto despacho recorrido não merece reparo, sendo de manter, razão por que se nega provimento ao agravo.

Custas pelo Agravante.

Notifique.

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Lisboa,13/05/2004.
(Tibério Silva)
(Silveira Ramos)
(Graça Amaral)