BURLA
FALSIFICAÇÃO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
COMPETÊNCIA INTERNA
Sumário

Precedido de crime de falsificação, meramente instrumental, o crime de burla consuma-se quando ocorre o efectivo prejuízo patrimonial da vítima.
Tendo a actividade criminosa tendo início na Venezuela mas consumando-se o prejuízo no Funchal não há motivo para excluir a jurisdição nacional.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. O BANCO TOTTA & AÇORES, SA, com sede em Lisboa, apresentou, em 16.1.2003, queixa contra (A), residente no Brasil, que endereçou ao Mº.Pº. junto da Comarca do Funchal.
Os fundamentos desse pedido de instauração de procedimento criminal contra o denunciado resumem-se como segue:

- recebeu o banco queixoso em 25.10.2002 no seu balcão do Funchal uma ordem subscrita por um seu cliente emigrado na Venezuela, na qual era solicitada a transferência de USD 317.000 da conta deste cliente para uma conta do CITY BANK titulada pelo denunciado domiciliado em Miami, EUA;
- a ordem foi executada mas, quando os escritórios do banco queixoso pretenderam confirmar a sua regularidade junto do cliente na Venezuela, por este foram informados de que não tinha sido dada por ele;
- conclui o banco queixoso que a assinatura do seu cliente foi imitada, tendo por essa forma sido induzido em erro que lhe causou prejuízo correspondente ao valor da transferência que efectuou.

Imputa ao denunciado a prática dos crimes de falsificação de documento p. e p. pelo artº. 256º, 1, a) do C. Penal e de burla p. e p. pelo artº. 217º do mesmo diploma legal.

*

Para além disto, o banco queixoso requereu a sua constituição como assistente e deduziu contra o denunciado pedido de indemnização civil, requerendo também ao Dº. Magistrado do Mº.Pº. que diligenciasse no sentido de solicitar cooperação judiciária internacional.

2. O Dº. Magistrado destinatário remeteu os autos ao Mmº.Juiz da Comarca do Funchal para apreciação do pedido de constituição como assistente, o qual veio a ser deferido.
De seguida, o Dº. Magistrado do Mº.Pº. lavrou despacho em que recusou a competência do Tribunal Judicial da Comarca do Funchal para conhecer de qualquer dos alegados crimes denunciados, invocando para o efeito o artº.19º, 1 do CPP e sustentando que o crime de falsificação se consumara na Venezuela, país onde o documento foi redigido e o crime de burla se tinha consumado nos EUA, uma vez que a quantia em causa foi depositada nesse país.
Após argumentar no sentido de que a consumação do crime de burla só ocorre quando o agente do crime recebe ou tem à sua disposição o dinheiro, acrescentando que, se o agente do crime não chegar a recebê-lo, se verifica mera tentativa, o Dº. Magistrado determinou o arquivamento dos autos por impossibilidade legal de procedimento (artº.277º, 1 do CPP).

3. Notificado deste despacho, o banco queixoso requereu a abertura de instrução.
Expõe as razões da sua discordância face ao arquivamento do processo.
No tocante aos factos indiciariamente integradores do crime de falsificação de documento, sustenta não ser certo que possa afirmar-se com segurança que o documento em causa tenha sido redigido na Venezuela, visto que esta conclusão não pode retirar-se do acto de ter sido enviado de Caracas.
Quanto aos factos atinentes ao denunciado crime de burla, sublinha que a execução da ordem de transferência forjada, determinante do empobrecimento do património do banco queixoso, ocorreu no Funchal, aqui ocorrendo também a reposição do montante transferido na conta bancária do depositante.
Argumenta juridicamente fazendo apelo, quanto ao crime de falsificação, ao disposto nos artº.s 21º e 22º do CPP, preceitos legais que, no seu entender, conferem a competência territorial para o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime isto é, o Funchal.
O fundamento jurídico da competência do tribunal referido, busca-o o banco queixoso quanto à burla na consideração de que a consumação deste crime não está na dependência do enriquecimento do agente do crime e sim no empobrecimento da última, no caso, verificado no Funchal.

Requereu a audição de três testemunhas, pedindo a pronúncia do denunciado pela prática dos referidos crimes.

4. Foi determinada a abertura da instrução e designada data para a inquirição das testemunhas arroladas pelo banco assistente.
Todavia, a Mmª. Juiz, conforme consta da acta de fls. 73 e 74, não procedeu a qualquer inquirição, com a justificação de que verificara que em causa estava apenas uma questão de direito, designando então data para a realização do debate instrutório.
Após vicissitudes várias, veio a ser proferida “por apontamento” decisão instrutória, a qual, a solicitação do assistente foi vertida por escrito nos autos.
Consta de tal documento o que segue transcrito:

«O tribunal é o competente.
Existe uma questão prévia que cumpre conhecer e obsta ao conhecimento de mérito.
Efectivamente, nos termos do art° 19° do CPP, é competente para conhecer de um crime, o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação.
Se suspeitarmos que o documento de fls. 11 é falsificado, tal falsificação ocorreu na Venezuela pois foi o local onde o mesmo foi redigido ( ver art° 256° do CP ). No que á eventual burla respeita, só com o depósito ( e não com os meros actos de transferência) dos 317000 dólares se consuma o crime. Tal depósito ocorreu em Miami, Flórida, EUA.( ver ainda arts° 317 e 318° do CP )
Podemos assim concluir que o tribunal Judicial do Funchal não é territorialmente competente para conhecer dos crimes denunciados, pelo que não se pronuncia o denunciado pelos crimes denunciados.
Nestes termos e pelo exposto, não pronuncio o arguido (A), e determino o oportuno arquivamento dos autos.
Custas pelo Assistente, cuja taxa se fixa em 2 UC's, tendo-se em conta a já paga.
Notifique».

5. O banco assistente interpôs recurso desta decisão de arquivamento. Da motivação do recurso extraiu o recorrente as seguintes conclusões:

«1 - Está em causa, no caso em apreço, a competência territorial do Tribunal, para conhecer apreciar os crimes participados pelo Banco Queixoso, um crime de falsificação e outro, de burla
2 - Entendeu o Tribunal "a quo" que não se considerava competente para conhecer desta questão.
3 - Ora, o nosso ordenamento jurídico contempla o Princípio da Territorialidade no que respeita à aplicação. da Lei Penal no espaço, consagrado no artigo 4.° do C.P., o que remete para questão da determinação do lugar da prática do facto, em relação à qual, é adoptado o critério plural, quer do lugar da acção, quer do lugar do resultado material do crime, que se encontre consagrado no artigo 7.o do Código Penal.
4 - Quanto ao crime de falsificação de documento, não se verifica, em concreto, que o documento tenha sido elaborado ala Venezuela, como o têm entendido o Ministério Público e o Tribunal, em sede de Instrução.
4.0 Assim, entende-se que poderíamos lançar mão do critério do lugar do resultado típico da acção criminosa, plasmado no artigo 7º do C.P., "in fine", pelo qual, o Tribunal Judicial da Comarca do Funchal seria o competente, por ter sido nessa comarca que se verificou a violação 3o bem jurídico tutelado com a criminalização do facto ilícito em causa, nomeadamente, o tráfico e a segurança jurídica relacionada com documentos. Violou o despacho recorrido, o disposto no artigo 7.° n.° 1, 2ª parte, do Código Penal.
5 - Mas, mesmo que não se entenda poder lançar mão do critério do lugar do resultado típico da acção, cingindo-se ao critério do lugar da acção, nem por isso, o Tribunal do Funchal deixaria de ser competente para conhecer deste crime, pois, o que é certo é que este crime de falsificação, partindo-se do critério da acção, tem uma localização duvidosa, o que determina a aplicação do artigo 21.° do C.P.P., disposição legal que o Tribunal recorrido não aplicou a este caso concreto.
6 - De acordo com este critério, o tribunal competente é o da área onde se localizar o elemento irrelevante do crime de falsificação de documento e, se esta não for conhecida, o da área onde primeiro tiver havido notícia do crime. Sendo certo que no caso em apreço, não existem elementos nos autos, susceptíveis de determinar a área onde foi praticado o elemento relevante o crime, terá que se considerar competente o Tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime que é o Tribunal Judicial da Comarca do Funchal. Violou o despacho recorrido disposto no artigo 21.o n.° 1 e 2 do C.P.P.
7 - Quanto ao crime de burla, dada a sua natureza de crime material ou de resultado e, nesta categoria, como crime de resultado parcial ou cortado, não subsistem dúvidas de que este crime de consumação meramente material, isto é, para a sua consumação, requisito necessário suficiente é que o sujeito passivo tenha incorrido efectivamente num prejuízo patrimonial, por acto próprio, e que tenha sido levado a isso por uma terceira pessoa que actuou com a intenção de obter para si, um enriquecimento ilegítimo. Contudo, para estarmos perante a prática deste crime, não é essencial que o enriquecimento do agente tenha se verificado efectivamente, tendo porem, o Tribunal "a quo" entendido que o essencial para a consumação do crime seria o enriquecimento do agente.
8 - Com o que não se pode concordar, pois o que é essencial é que tenha havido um prejuízo e no local onde se verifica o prejuízo, que se determina a área competente para apreciar o mesmo de acordo com o critério do lugar da verificação do resultado típico da conduta criminosa consagrado no artigo 7.° do C.P. e, bem assim, do critério da consumação do crime expresso no artigo 19º do C.P.P. Violou o despacho recorrido, o disposto nos artigos 7º e 217º do C.P. e 19º do C.P.P.
9 - A consumação do crime de burla ocorre quando ocorre o efectivo prejuízo patrimonial vítima, pois é nesse momento que é violado o bem jurídico tutelado com a criminalização do facto ilícito, razão pela qual, de acordo com os supra referidos artigos 7º do C.P. e 19.° do C.P.P., competente para conhecer da prática deste crime é o Tribunal Judicial da Comarca d Funchal.»


5.1. A Dª. Magistrada do Mº.Pº. junto do Tribunal Judicial do Funchal, admitido que foi o recurso, respondeu à respectiva motivação, pronunciando-se no sentido da manutenção do despacho impugnado.
Formulou na sua resposta as conclusões que seguem transcritas:

«1. Tendo em consideração o materialismo fáctico carreado para os autos, resulta que a ordem jurídica portuguesa não é aplicável aos factos denunciados (cfr. art. 4° do Código Penal) e que o Tribunal da Comarca do Funchal não é o territorialmente competente para conhecer os crimes denunciados.
2. De facto, atenta a materialidade fáctica apresentada pela queixosa, a fis. 2 a 5, entende-se que o denunciado crime de falsificação de documento se consumou na Venezuela e o denunciado crime de Burla nos EUA, uma vez que o documento alegadamente falsificado foi redigido e enviado da Venezuela e os 317.000 dólares foram depositados numa conta em Miami, Florida, EUA.
3. Tendo em consideração os factos denunciados e que o crime de burla se verifica logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima, entende-se que a vítima apenas sofreu um prejuízo patrimonial no momento em que os 317.000 dólares foram depositados numa conta de uma instituição bancária sita em Miami, Flórida, EUA, deixando de estar à sua disposição.
4. No que respeita, por seu lado, ao crime de falsificação de documento e tendo em consideração o facto de o documento ter sido redigido na Venezuela (cfr. fls. 2 vs., 11 e 12) e o facto de o crime de falsificação de documentos consumar logo que o agente tenha falsificado o documento com uma intenção fraudulenta, entende-se que não subsistem dúvidas de que foi naquele pais que se consumou o crime denunciado.
5. É compreensível a ratio do artº 4° do Código Penal, ao pretender manter a proximidade entre a consumação do facto ilícito criminal e o tribunal competente para o apreciar, por forma a garantir que o mesmo disporá de todos os meios físicos e humanos para uma correcta investigação do caso concreto.
6. De facto, não só os sujeitos eventualmente envolvidos, como todos os meios de prova eventualmente existentes se encontram nos países supramencionados, pelo que a investigação do presente caso concreto apresenta todas as vantagens em sê-lo no país onde se verificou a consumação dos crimes denunciados.
7. Mesmo que assim não se considere e, em consequência se entenda que a ordem jurídica portuguesa é a competente para a apreciação do caso dos presentes autos, sempre se dirá que, de igual forma, o Tribunal Judicial do Funchal é incompetente para a investigação dos crimes denunciados, uma vez que, de acordo com o disposto no art. 22° do Código de Processo Penal, se o crime for cometido no estrangeiro, é competente para dele conhecer o tribunal da área onde o agente tiver sido encontrado ou do seu domicílio (que, no caso dos presentes autos é o tribunal competente na área da residência do denunciado, sita no Rio de Janeiro, Brasil - cfr. fls. 2).»


5.2. Nesta instância o Exmº. Procurador-Geral-Adjunto apôs visto e manifestou concordância com a posição assumida pela sua Colega na 1ª instância.

6. Parece não haver dúvida de que a controvérsia estabelecida entre o banco assistente e as autoridades judiciárias que se sucederam no desempenho das suas funções decisórias nos presentes autos, não se põe no âmbito da mera competência territorial e sim no campo da jurisdição dos tribunais portugueses, isto é, na aplicabilidade da ordem jurídico penal portuguesa aos factos denunciados.
Quer-se com isto dizer que tal controvérsia não deve ser resolvida mediante as regras de repartição de competências em razão do território dos tribunais nacionais (cf. artº.19º e ss do CPP), residindo a normação a considerar nos artºs 4º a 7º do C. Penal. São estes preceitos legais, pela “remissão” que da aplicação da lei penal portuguesa se faz depender a competência dos tribunais nacionais, que importará considerar.
É assim que terá de concluir-se que no despacho recorrido não foi efectuada uma ponderação correcta dos parâmetros legais a considerar e, na sequência do já anteriormente decidido pelo Mº.Pº., entendeu-se que o Tribunal Judicial do Funchal não era o territorialmente competente para conhecer dos factos, ordenando-se o arquivamento dos autos.

6.1. Mas vejamos se, por ventura, o decidido arquivamento colhe fundamento nas regras sobre o âmbito da jurisdição penal nacional contida no C. Penal.
O artº.4º do C. Penal, com a ressalva da existência de tratado ou convenção em contrário, acolhe o chamado princípio da territorialidade, afirmando que a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados no território português, ou a bordo de navios ou aeronaves portuguesas, seja qual for a nacionalidade do agente
Considerada a descrição dos factos feita pelo banco assistente, a literalidade deste preceito não aponta para a competência dos tribunais portugueses.
E também no artº. 5º do C.Penal se não encontra acolhimento para a jurisdição nacional no caso vertente.
Todavia, sob a epígrafe “lugar da prática do facto” o artº.7º do C.Penal estabelece uma definição juridicamente ficcionada de locus delicti, na qual dentre o mais, se considera como local relevante aquele onde se produziu o resultado típico e ainda o resultado não compreendido no tipo de crime.
Esta latíssima definição compreende seguramente a dependência bancária do assistente no Funchal como lugar da prática do denunciado crime de burla, visto que aí ocorreu o empobrecimento patrimonial típico do crime em questão.
No que respeita à denunciada falsificação de documento, não poderá ignorar-se o Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19.2.1992 que se pronunciou no sentido do concurso real de crimes em situação como a denunciada.
É certo que não há elementos nos autos que permitam concluir o que quer que seja sobre o lugar onde foi efectuada a falsificação, sustentando o banco assistente que recebeu tal documento pelo correio em correspondência proveniente da Venezuela. Fazendo-se notar que não foi efectuada qualquer diligência de prova, não poderá afirmar-se que o documento em causa foi redigido naquele país, conforme é afirmado no despacho. É apenas possível que tal tenha acontecido e que aí tivesse então consumado o denunciado crime de falsificação.
Porém, neste estado de dúvida e ponderando que se trata de ilícito meramente instrumental da burla, não se vê motivo para excluir da jurisdição nacional também o conhecimento dos factos consubstanciadores do crime de falsificação.
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Conclui-se assim que o despacho determinativo do arquivamento dos autos não pode substituir uma vez que é desconforme com a lei aplicável.

Nestes termos, dando provimento ao recurso interposto pelo assistente revoga-se tal despacho que considerou incompetente o Tribunal do Funchal e que deverá ser substituído por outro que apreciando a prova que consta dos autos e eventualmente outros meios de prova que a Mmª. Juiz entenda dever recolher, decida conforme considerar que é de direito.

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Sem tributação.
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Lisboa, 19 de Maio 2004

António Simões
Moraes da Rocha
Carlos Almeida