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ADMISSIBILIDADE
GRAVAÇÃO ILÍCITA
Sumário
A ilicitude na obtenção de determinados meios de prova não conduz necessariamente à sua inadmissibilidade, mas também não implica a garantia do seu aproveitamento. Numa acção em que se pretende a indemnização decorrente de ofensas ao bom nome imputadas ao ex-cônjuge é pertinente a junção de uma gravação audio referente a uma conversa mantida entre a R. e outra pessoa mediante a qual o autor pretende demonstrar a inveracidade de alegadas cenas de violência domésticas que a R. lhe imputou. Ao invés, por falta de pertinência relativamente ao objecto da acção de indemnização, deve ser indeferida a junção de uma gravação video reportando factos integrantes de uma situação de adultério em que foi interveniente a R., ainda que a gravação tenha sido feita através de um sistema instalado na casa de morada do ex-casal com o conhecimento de ambos. A tal junção obstaria ainda o facto de a gravação abarcar não apenas a pessoa do ex-cônjuge, mas ainda uma terceira pessoa.
Texto Integral
ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
A intentou, na 16ª Vara Cível de Lisboa, acção ordinária contra B e C, pedindo a condenação das Rés no pagamento de indemnização a título de reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo A.
Juntou documentos, designadamente cassete áudio de conversa com M. e cassete video para prova dos factos alegados nos arts. 177º a 188 da petição.
A fls. 477 e segs., veio a Ré B opor-se, além do mais, à junção do documento constituído pela cassete de vídeo, contendo gravações efectuadas no interior da que foi casa de morada de família do autor e da R. B, alegando que não consentira nem consente na utilização de quaisquer gravações ou filmagens da sua pessoa.
Trata-se de gravação ilícita. A gravação foi manipulada pelo autor ou alguém a seu mando.
Notificado o Autor, pronunciou-se nos termos constantes de fls. 498 e segs., referindo que a cassete vídeo recolheu imagens obtidas através do sistema de segurança da casa do autor, de que a Ré tinha conhecimento e corresponde ao excerto das imagens necessárias para prova articulado nos artigos 177 a 188 da petição.
A fls. 525 veio também a Ré opor-se à junção da cassete áudio, contendo as gravações das declarações que fez a uma jornalista, cuja utilização também não consente. Trata-se de gravação ilícita.
A fls. 622 e segs. foi proferida decisão no sentido de admitir a junção aos autos dos documentos em causas, assim indeferindo o pedido de rejeição apresentado pela Ré.
Inconformada, a Ré agravou da decisão proferida, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. A manutenção nos autos dos documentos em causa como meios de prova nos termos em que foram admitidos é susceptível de prejudicar o direito à imagem e à reserva da vida privada de terceiros, e da própria 1ª R., e de enraizar junto do tribunal a ideia errada, e oportunamente impugnada, de que a cassete áudio contém gravação feita a pedido da R. com determinado objectivo, ideia essa que vem já reproduzida no despacho de que ora se recorre; uma e outra circunstâncias são susceptíveis de acarretar prejuízos irreparáveis a todos os envolvidos, atenta a natureza dos bens jurídicos em jogo e dos interesses postos em causa.
2. Quanto à cassete de vídeo, a circunstância invocada no despacho recorrido de a Agravante ter conhecido e consentido na existência de um sistema de vídeo vigilância, por exclusivos motivos de segurança, como o próprio Autor confessa no artigo 188º da p.i., no interior da que foi a casa da família que formava com o Autor, não legitima a utilização e divulgação das imagens alegadamente assim colhidas da intimidade da sua vida privada e domiciliar contra a sua vontade expressa, e para fins diversos do único consentido, designadamente o fim confesso de ofender a sua integridade moral e de revelar a intimidade da sua vida privada e domiciliar, como expressamente resulta do alegado nos artigos 175 a 188 inclusive da petição inicial da acção.
3. Tal utilização constitui infracção penal, por integrar o crime de gravações Ilícitas, previsto e punido no art. 199° n° 2 alínea b) do Código Penal.
4. A lei processual civil - cfr. art. 519° n° 3 do CPC- e a Lei Fundamental, na norma do seu art. 32° n° 8, excluem a admissibilidade de meios de prova cuja produção envolva a violação de certos bens jurídicos, sendo unânimes em incluir entre tais bens e lesões a intromissão abusiva na vida privada e no domicílio, bem como a integridade moral das pessoas.
5. Da conjugação do disposto nas normas dos arts. 511° n° 1 e 543° n° 1 do CPC, face à posição expressa pela 1ª R., cumpria ao Mmo Juiz recorrido apreciar da pertinência e da necessidade do meio de prova na perspectiva de se tratar, ou não, de matéria de facto controvertida com relevo para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
6. A sua admissão nos autos, contra vontade expressa oportunamente manifestada da Agravante, integra violação das normas dos arts. 511°, 519° e 543° do CPC, 32° n° 8 da Constituição da República Portuguesa e 199° n° 2 alínea b) do Código Penal.
7. Quanto à cassete áudio, o Tribunal a quo alicerça a decisão de indeferir o pedido de rejeição desta prova em fundamentos de facto não verdadeiros ou amplamente deturpados.
8. O Mmo Juiz a quo dá por assentes factos no mínimo controvertidos, e que a Agravante expressamente impugnou e apodou de falsos, sobre os quais não recaiu prova, e que invoca como fundamentos factuais da decisão de que se decorre.
9. Factos esses, naturalmente não atendíveis nesses termos, o que torna a decisão tomada com base neles nula, por falta absoluta de fundamentação factual, nos termos do disposto nos arts. 668° n° 1 alínea b) e 666° n° 3 do CPC.
10. A Agravante reitera a sua alegação expressa de que as palavras por si proferidas e dirigidas a Margarida constantes da gravação em causa não eram destinadas ao público, e que não consentiu na gravação com esse fim, nem consente que a mesma seja utilizada nos termos e para os efeitos em que o Autor dela pretende agora servir-se; mantém que se trata de utilização de uma gravação ilícita, criminalmente prevista e punida no art. 199º do Código Penal, com a intenção de violar a sua integridade moral.
11. E, como tal, não deve também ser admitida como meio de prova legal, dando-se aqui por reproduzidas as considerações atrás expendidas nesta matéria a propósito da cassete de vídeo.
12. Enquanto relativamente à cassete áudio o Mmo Juiz a quo teve a preocupação de afastar a ilicitude penal da sua utilização com os fundamentos - ainda que falsos - de a mesma ter sido gravada a pedido da R., para certo fim conhecido e consentido, destinado ao público, já no que toca à cassete vídeo não valorou a circunstância de a gravação ter sido efectuada para fim absolutamente privado, e totalmente diverso da sua utilização nos termos agora pretendidos.
13. Pelo exposto, também a admissão nos autos da cassete áudio, contra vontade expressa oportunamente manifestada da Agravante, integra violação das normas dos arts. 519° e 543° do CPC, 32º n° 8 da Constituição da República Portuguesa e 199º n° 1 alínea b) CP, pelo que deverá ser revogado.
Contra-alegou o A., tendo formulado as seguintes conclusões:
1. A manutenção nos autos da cassete vídeo e da cassete áudio não viola o direito à imagem da ora Agravante, porquanto o conteúdo deste direito se prende com o direito que cada pessoa tem de não ver o seu retracto exposto em público, sem o seu consentimento, com o direito que cada pessoa tem de não ver o seu retracto apresentado em forma gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida ou infiel, com o direito que cada pessoa tem de determinar a própria aparência externa.
2. A manutenção da cassete vídeo e da cassete áudio nos autos não viola o direito à reserva da vida privada da Agravante, quando a própria, em sede processual, ainda não fez prova do âmbito do seu consentimento para a utilização das imagens constantes do vídeo.
3. A visualização da cassete vídeo, ou a audição da cassete áudio, por um Tribunal, sujeito a estritas regras de segredo, não pode consubstanciar uma violação de direito à vida privada, na medida em que os elementos informativos constantes destes meios de prova apenas serão do conhecimento do Tribunal, que não os pode facultar a terceiros.
4. O facto de tais imagens terem sido captadas por um sistema de segurança não pode só admitir a significação que a Agravante apenas consentiu na utilização das imagens para esses fins.
5. Cumpre à Agravante fazer prova do que afirma. Cumpre à Agravante, fazer prova do âmbito da autorização dada nesta sede. O que não fez.
6. O momento processual em que a Agravante se insurge contra vídeo, não é idóneo para conclusões quanto a condutas passadas ou quanto à inexistência de condutas passadas no âmbito de autorização para utilização dessas imagens.
7. O sentido do processo civil não é o de facilitar à parte contra quem a prova é produzida, o afastamento dos efeitos que tal prova produzirá por valia das pretensões da outra parte, apenas pela alegação de factos, para enquadramento da mesma num regime de ilicitude e de inadmissibilidade da mesma, sem uma única prova apresentada quanto a essa invocada ilicitude.
8. Ainda que se aderisse à argumentação da Agravante, no sentido de que esta aceitou ser filmada e que restringiu a utilização das imagens para fins de segurança, sempre se dirá que a introdução de pessoas naquela que era casa de morada de família da Agravante e Agravado, especialmente, quando uma dessas pessoas se passeia nua pela casa, onde os filhos menores de ambos se encontravam, atenta contra a segurança moral dos menores e contra a segurança do próprio Agravado.
9. A prova dos factos constantes dos artigos 175º a 188º da petição inicial também enfoca na questão da segurança do lar, que é profundamente ameaçado, em termos morais, com as actuações e imagens que constam da cassete vídeo.
10. A norma do artigo 199º n° 2 alínea b) do Código Penal não pode ser aplicada ao caso concreto, porque não foi feita prova cabal que permita a sua aplicabilidade, prova essa que teria que ser no sentido de que a Agravante não teria autorizado o Agravado a utilizar as imagens constantes da cassete vídeo para fins diversos dos de segurança.
11. Com a junção aos autos da cassete vídeo, o Agravado apenas visa fazer prova do articulado na petição inicial, mais concretamente, do disposto no artigo 175º a 188º da referida peça processual.
12. Ainda que se considerasse a cassete vídeo como prova ilícita, não seria aplicável o disposto no artigo 519º n° 3 do Código de Processo Civil, para concluir pela inadmissibilidade da mesma como meio de prova.
13. O artigo 519º n° 3 do Código de Processo Civil não pode ser invocado como argumento para a inadmissibilidade de uma prova pretensamente ilícita, porque a sua previsão não se refere a actos praticados extrajudicialmente, como sucede na gravação das imagens constantes da cassete vídeo.
14. Se o juiz obtiver uma prova ilícita (podendo a mesma ser obtida ainda que não haja recusa da parte), o artigo 519º n° 3 do Código de Processo Civil não resolve o problema da sua inadmissibilidade.
15. Uma prova que é o único meio de prova no quadro da defesa de direitos como o direito à honra, ao bom nome não pode ser afastada, por estarmos perante valores que são prioritários.
16. O artigo 32º n° 8 da Constituição da República Portuguesa é aplicável ao processo penal, não se estendendo ao processo civil.
17. Os artigos 175º a 188º da petição inicial visam a fundamentação de facto do pedido enunciado pelo Agravante na petição inicial quanto à aplicação, ao caso concreto, da norma do artigo 70º n° 2 do Código Civil. Sendo a sua prova essencial.
18. O artigo 543º do Código de Processo Civil visa o afastamento dos autos de documentos considerados impertinentes ou desnecessários, neles não se enquadrando a cassete vídeo.
19. A manutenção da cassete vídeo nos autos não é violadora da norma do artigo 511º do Código de Processo Civil, que respeita à selecção da matéria de facto, não tendo que ver com provas pretensamente ilícitas.
20. A decisão do Meritíssimo Juiz "a quo" quanto à manutenção da cassete áudio não assenta em fundamentos de facto controvertidos, na medida em que a junção daquela aos autos visava a prova dos factos que basearam a fundamentação do Meretíssimo Juiz “a quo" para decidir pela manutenção da cassete áudio nos autos.
21. Da cassete áudio decorre que a Agravante sabia e queria que a sua conversa fosse gravada e que consentiu na gravação das suas conversas para efeitos de publicitação do seu teor.
22. Da cassete áudio decorre que a agravante só gravou as conversas que de lá constam para que a história do seu discurso fosse publicitada em livro.
23. A junção da cassete áudio aos autos não viola o disposto no artigo 199º do Código Penal.
24. A utilização da cassete áudio não viola a integridade moral da Agravante, porque o visado da mesma é o Agravado.
25. A manutenção da cassete áudio nos autos não integra violação da norma dos artigos 519º n° 3, 511º e 543º do Código de Processo Civil, nem o art. 32º, nº 8 da CRPortuguesa.
26. A cassete áudio visa a prova de factualidade alegada na petição inicial.
A matéria de facto a ter em conta é a que já consta do relatório respeitante à junção feita pelo A.:
- de uma cassete vídeo cassete de vídeo, com captação de imagens da Ré e de terceiros, cuja gravação foi obtida, pelo sistema de vídeo vigilância, existente no interior da que foi a casa da família que a Ré B. formava com o Autor;
- de uma cassete áudio que contém gravação de relatos feitos pela Ré, gravação que foi feita com o conhecimento da Ré/Agravante.
Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste Tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que fundamentalmente importa apreciar e decidir se a cassete de vídeo, contendo as gravações do sistema de segurança existente na casa que foi residência do casal e cassete áudio, contendo as conversas havidas entre a Ré C e uma jornalista, juntas aos autos pelo A., podem ou não ser admitidos como prova.
1. Da prova ilícita
O direito à prova surge no nosso ordenamento jurídico com assento constitucional, consagrado no art. 20º da Lei Fundamental, como componente do direito geral à protecção jurídica e de acesso aos tribunais.
Dele decorre, por um lado, o dever de o tribunal atender a todas as provas produzidas no processo, desde que lícitas, independentemente da sua proveniência, princípio acolhido no art. 515º, nº 1 do CPC, e, por outro lado, a possibilidade de utilização pelas partes, em seu benefício, dos meios de prova que mais lhes convierem e do momento da respectiva apresentação, devendo a recusa de qualquer meio de prova ser devidamente fundamentada na lei ou em princípio jurídico, não podendo o tribunal fazê-lo de modo discricionário [1].
Porém, o direito à prova, não é absoluto, antes contém limitações de natureza intrínseca e extrínseca.
Aliás, como bem salienta o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 209/95 de 20 de Abril o direito à produção de prova não significa que “o direito subjectivo à prova implique a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, em qualquer tipo de processo e relativamente a qualquer objecto do litígio”[2].
No que ao caso importa, o problema diz respeito ao modo como determinados meios de prova foram obtidos e decidir se o tribunal, ao formar a sua convicção, poderá entrar em linha de conta com os mesmos.
Estamos aqui no âmbito da problemática da prova ilícita, mais concretamente, perante provas (cassetes de vídeo e áudio) pré-constituídas, porque já existentes antes de exibidas em tribunal, verdadeiras (a Ré aceita que as imagens e as palavras gravadas aconteceram) e que foram obtidas por particulares.
Na doutrina, encontram-se autores que defendem a admissibilidade das provas sem restrições, porque em causa está sempre a descoberta da verdade.
Outros autores, porém, defendem a inadmissibilidade da prova obtida através de um acto ilícito, já que deve impedir-se que uma das partes consiga ilicitamente o que não obteve por meios lícitos [3].
Uma terceira corrente admite a prova, mas com restrições, devendo a questão ser resolvida caso a caso, mediante a apreciação das circunstâncias concretas e consoante os valores em jogo [4].
2. No actual ordenamento jurídico português não é possível encontrar qualquer norma de processo civil que expressamente se refira à prova ilícita,[5] contrariamente ao que sucede no processo penal, prescrevendo o art. 125º que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
No que se refere ao processo civil, há que ter presente que o fim primeiro do processo é a composição justa de um litígio o que implica a pesquisa da verdade. Para atingir esse fim mostra-se necessário que em princípio todas as provas relevantes sejam admissíveis. É o que decorre do disposto no art. 515º do CPC, sob a epígrafe “provas atendíveis” e que é um afloramento do princípio da aquisição processual [6].
Mas, importa, também, ter em consideração que a lei não se desinteressa dos meios empregues com vista à prossecução desse fim. Nessa medida, pese embora o art. 519º do CPC constitua um afloramento do princípio da cooperação para a descoberta da verdade, admite-se, em certos casos a recusa dessa colaboração, designadamente, se a obediência importar violação da intimidade privada e da vida familiar, da dignidade humana ou do sigilo profissional.
De onde se conclui que, face à nossa lei, determinados valores são em princípio intangíveis, podendo até justificar uma recusa do dever de colaboração e fundamentar a inadmissibilidade de certos meios de prova que com eles colidam.
João Abrantes defende que a liberdade de prova não deve pôr em causa valores como a intimidade da vida privada, a dignidade da pessoa humana ou a integridade pessoal, a que se refere o art. 25º da CRP, defendendo que o art. 32º da Lei Fundamental é aplicável não só ao processo criminal, como, por interpretação analógica, ao processo civil, com as necessárias adaptações.
Este preceito constitucional prescreve, enquanto garantia do processo criminal, que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva introdução na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
Segundo este autor[7], é possível “encontrar na Constituição a fonte para afastar certos meios de prova cuja admissibilidade não é expressamente repudiada pelo legislador ordinário: os meios de prova obtidos de uma forma imoral ou que implique violência, grosso modo os que são obtidos pela violação de direitos individuais (...) Essas provas são em princípio inadmissíveis, só assim não sendo quando se mostrar serem a única via possível e razoável de proteger outros valores quem no caso concreto, devam ser prioritários.”
“O problema é, como se vê, de conflito de interesses: a garantia constitucional dos direitos fundamentais funcionará sempre que aos interesses nela tutelados não se sobreponham outros interesses, que no caso concreto (...) se mostrem merecedores de maior protecção. O mesmo é dizer-se que será sempre necessário o recurso às regras respeitantes ao conflito de direitos ou valores – e nomeadamente ao critério da proporcionalidade”[8].
Salazar Casanova[9], que põe algumas reservas quanto à referida interpretação analógica, se a mesma implicar uma transposição automática, do disposto no art. 32º da Constituição ao processo civil, entende que a problemática acerca da admissibilidade das provas se deve colocar mais no campo da valoração do que na admissão da prova à luz da doutrina da ponderação de interesses.
Seja como for, parece-nos que a orientação que admite a prova com algumas restrições, consoante o caso concreto e os interesses em conflito[10], independentemente de se aceitar com maior ou menor reserva a aplicação analógica do art. 32º da Constituição, é a mais razoável e a que melhor se ajusta aos princípios e normas em vigor, sem olvidar, obviamente, a relevância que a prova, cuja junção se pretende, tem no caso concreto .
Ou seja, a ilicitude na obtenção de determinado meios de prova não conduz necessariamente à proibição da sua admissibilidade, mas também não implica, a garantia do seu aproveitamento.
De facto, como conclui Salazar Casanova, uma protecção sem limites a certos direitos fundamentais “deixaria em muitos casos sem efectiva tutela o próprio direito de acção” [11] e os direitos fundamentais poderiam vir a ser invocados em claro abuso de direito.
Postos perante estes considerandos, vejamos, então, o caso concreto.
3. Quanto à cassete áudio
O escopo da presente acção que o aqui Agravado intentou contra a Agravante é um pedido de ressarcimento pelos prejuízos alegadamente sofridos, em consequência da ofensa à honra e consideração e ao bom nome do A., feitas através da publicação do livro da autoria da Ré C, onde são descritas cenas de violência doméstica, de que a Ré alegadamente diz ter sido vítima, perpetradas pelo então seu marido, aqui Agravado.
Pretende o A./Agravado, com a junção aos autos de uma cassete que contém a gravação de vozes da Agravante e da pessoa que a entrevistou, M. - alegadamente, para servir de base ao livro que veio a ser publicado da autoria da aqui Agravante - demonstrar que as descrições feitas no referido livro não são verdadeiras, tanto assim que as gravações que em princípio iriam servir de suporte, não têm correspondência com o que é afirmado no dito livro.
Com a junção da gravação em causa, pretende o A/Agravado por em crise as descrições de cenas de violência doméstica feitas no referido livro e provar, através da junção da referida cassete e por comparação com os relatos da vida conjugal aí gravados, que o conteúdo do livro da autoria da Ré/Agravante não é verdadeiro, pela que a Ré ao fazer constar do livro em causa as afirmações e descrições que dele constam e que sabe não serem verdadeiras, é responsável pelos danos que causou e causa ao A.
Opõe-se a Agravante à junção da cassete, alegando que embora soubesse que a conversa que manteve com a referida M. estava a ser gravada, jamais tais cassetes se destinaram a ser divulgadas publicamente, designadamente, para servirem de suporte a qualquer publicação escrita.
Ou seja, embora a Agravante admita que tinha conhecimento e consentiu na gravação, alega que as palavras por si proferidas e constantes da gravação em causa não eram destinadas ao público, não tendo autorizado a que a gravação fosse utilizada para os efeitos agora pretendidos pelo A./Agravado.
A violação de direitos, como a intromissão na vida privada que a Agravada invoca, está na divulgação do conteúdo da prova, isto é, na circunstância de o facto constante do documento chegar ao conhecimento de outros sujeitos. Se essa utilização for injustificada pode, em determinadas circunstâncias, constituir crime, nos termos do art. 199º do CPP.
Estaremos, então, perante uma situação de “prova ilícita em si mesma”[12], ou seja aquela cuja utilização, independentemente do modo de obtenção, suscita problemas de ilicitude?
In casu, estamos perante uma gravação entre presentes, da fala de duas pessoas feita com a concordância da Ré/Agravante.
Impugna a Ré que tal gravação tenha sido feita para ser divulgada, nomeadamente, para ser utilizada como base do livro.
Porém, neste caso, mais do que saber qual a intenção da Ré ao fazer os relatos em causa, permitindo a sua gravação, importa verificar se este meio de prova deve ser considerando pertinente ou não, para efeitos do disposto no art. 543º do CPC.
Ora, tendo presente o pedido e a causa de pedir desta acção, a resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Efectivamente, ao A. interessa demonstrar que os relatos e as imputações que lhe são feitas no livro em causa, pela aqui Agravada, não são verdadeiros, fundando-se na existência de alegadas contradições entre o que está escrito e o que está gravado, sendo certo que ambos (o livro e a gravação) foram escrito e relatado, pela aqui Agravante.
A esta matéria se referem os arts. 34º a 59º da petição inicial.
Obviamente que a gravação, cuja junção se pretende, pode vir a ser de importância fundamental para a prova dos ditos factos e, consequentemente, para o desfecho da acção.
É o direito à prova que aqui está em causa, que, como se referiu, tem também assento constitucional.
Por outro lado, não pode deixar de ter-se em consideração que a divulgação em causa se destina a um fim muito específico: a prova em audiência de discussão e julgamento dos factos que o A. alega, constitutivos do seu direito, que, nos termos do art. 342º, nº 1, lhe cabe fazer.
E também é duvidoso que possa qualificar-se a divulgação da gravação como uma intromissão na vida privada da Agravante, (pelo menos é menor do que a divulgação, consentida, da vida privada feita no livro, sendo certo que se refere ao mesmo assunto).
Aliás, ainda que se aceite a aplicação analógica ao processo civil do disposto no art. 32º, nº 8 da Constituição, embora sem transposição automática, sempre se dirá que a existir intromissão na vida privada ela só seria abusiva em termos de obstar à admissibilidade do meio probatório se não se tivesse visado a sua utilização como meio probatório.
Conclui-se desta forma que para além de não se configurar no caso uma intromissão na vida privada, à luz da valoração da prova em causa e da ponderação de interesses justifica-se a divulgação em tribunal dos relatos feitos pela aqui Agravante e que constam da gravação.
A cassete áudio deve ser, como foi, admita a sua junção aos autos.
4. Quanto à cassete vídeo
Pretende o A./Agravado a junção aos autos de uma cassete vídeo que contém imagens captadas por um sistema de segurança existente na casa da Agravante.
Embora esta não ponha em causa que tinha conhecimento e deu o seu consentimento à gravação de imagens, alega que essa autorização se destinava apenas a fins de segurança e não à divulgação das mesmas.
Mais uma vez estamos aqui no âmbito de uma alegada intromissão na vida privada. E mais uma vez estamos perante a situação de saber se existe uma violação de um direito constitucionalmente protegido e se de alguma forma está justificada essa utilização.
Em suma, está em causa saber qual dos direitos com assento constitucional deve prevalecer: o da prova ou o da reserva da vida privada.
Comecemos por avaliar a relevância probatória deste documento - cassete vídeo.
Alega do A. que, com a junção da cassete em causa, pretende provar a matéria que alega nos arts. 175º a 188º.
Porém, como facilmente se constata, mesmo que a cassete pudesse vir a relevar para efeitos de prova da referida matéria, a verdade é que, a mesma não tem qualquer interesse para o desfecho da presente lide.
Saber se a Ré/Agravante cometeu ou não o adultério na casa que foi morada de família, podia ter interesse se estivéssemos no âmbito de uma acção de divórcio litigioso (e talvez justificasse a junção deste meio probatório) e não é pelo facto de a Ré alegadamente ter cometido o adultério que os actos de violência doméstica são menos verdadeiros.
Por outro lado, a “questão de segurança” que, no dizer do Agravado, é posta em causa devido à presença de “terceiros” na casa onde residem a Agravante e os filhos do casal, não é objecto desta acção, sendo certo que também não estamos perante uma acção de regulação do exercício do poder paternal.
De onde se conclui que este documento não tem qualquer relevância para o êxito ou inêxito da acção.
Assim sendo, a referida junção deve ser considerada como impertinente e desnecessária.
Afinal, o que o A. pretende é provar que a Ré pôs em causa o seu bom nome, “inventando” factos que descreve no referido livro, sendo por isso responsável pelos prejuízos causados.
Ora, a referida cassete vídeo, atendendo à relação material controvertida, em nada pode contribuir para a prova de factos susceptíveis de gerar uma obrigação de indemnizar por banda da Agravante.
Ademais, na cassete vídeo em causa foram captadas imagens de pessoas estranhas a esta acção, que certamente não deram o seu consentimento para as filmagens e provavelmente desconheciam a existência do sistema de vigilância (e neste caso era ao A./Agravado que cabia alegar e provar que esses terceiros sabiam que estavam a ser filmados). Tal divulgação, constitui, uma abusiva intromissão da vida privada e a violação do direito à imagem de terceiros (cfr. art. 79º do CCivil e 26º da Constituição).
Estamos, portanto, neste caso, perante uma situação de utilização injustificada da prova.
Trazendo à colação os argumentos pelos quais se entendeu justificar-se a junção da cassete de áudio, constata-se que, ao invés, no caso da cassete áudio, não há qualquer fundamento para a pretendida junção aos autos.
Assim, à luz da ponderação de interesses e dos direitos supra referidos, tendo ainda presente que, nem sequer o A. pode aqui invocar o direito à prova, que neste aspecto não é posto em crise até porque o art. 543º, nº 1 do CPC, manda verificar da pertinência das provas apresentadas, não se justifica a divulgação em tribunal das imagens obtidas através do sistema de vigilância existente na casa que foi a morada do casal.
Em suma,
No processo civil a regra continua a ser a afirmação do princípio dispositivo, pelo que, como se referiu, uma protecção sem limites de certos direitos fundamentais, como o direito à imagem ou à palavra que não podem deixar de se considerar como relativos na sua oponibilidade à produção de prova, ao direito à prova, seria vista como uma desprotecção dos meios de prova mais valiosos a favor dos mais falíveis.
Por isso, mesmo quando estão em causa certos direitos fundamentais, não pode pretender-se uma transposição automática do disposto no art. 32º da Constituição, respeitante às garantias do processo criminal, para o processo civil.
Não decorrendo da lei a proibição absoluta de admissibilidade da prova, é em função das circunstâncias como foi obtida e da relevância que possa ter, que será ou não admitida pelo Tribunal.
Razão por que se entende ser de admitir a junção aos autos da cassete áudio, mas já não da cassete vídeo, que, por isso, deve ser desentranhada.
IV DECISÃO
Termos em que se acorda em conceder parcial provimento ao Agravo, revogando a decisão recorrida na parte em admitiu a junção aos autos da cassete vídeo identificada nos autos.
Custas na proporção de ½ para cada uma das partes.
Lisboa, 3 de Junho de 2004.
Relatora
Fátima Galante
Adjuntos
Manuel Gonçalves
Urbano Dias
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[1] Neste sentido, Rui Rangel, O Ónus da Prova em Processo Civil, Almedina, 2ª edição, 2002, pags. 71/73. [2] Relator Ribeiro Mendes, in DR II Série, nº 295 de 23.12.1995. [3] Neste sentido Marcelo Caetano in Manuel de Direito Administrativo, 9ªed., TII, Lisboa, 1972, pag. 827 e Parecer nº 12/66, de 13/5/1966, da PGR, in BMJ 163º-137. [4] Vide João Abrantes, Rev. Jurídica, nº 7, Julho/Setembro 1986, AAFDL, pags. 15/16. [5] O Tribunal Constitucional, Ac. nº 241/2992 de 29.5.2002 (relator Artur Maurício), in DR II Série, nº 168 de 23-7-2002, embora reconhecendo que no tocante ao processo civil nada se estabelece quanto à questão de saber se são nulas as provas obtidas por meios ilícitos, entendeu que no caso concreto a prova era nula porque obtida com a utilização de documentos que veiculavam informações relativas a facturação detalhada de linha telefónica. [6] Isabel Alexandre, ob. cit., pag. 232. [7] João Abrantes, ob. cit., pag. 36. [8] Ainda sobre as restrições aos direitos fundamentais em confronto com outros interesses vide J. J. Canotilho e Vital MoreiraConstituição da Republica Portuguesa, Anotada, Coimbra, 1978, pags. 78 e segs. [9] Salazar Casanova, Provas Ilicitas em Processo Civil, Sobre a Admissibilidade e Valoração de Meios de Prova Obtidos por Particulares”, Março de 2003, publicação da Biblioteca do TRL, pag. 53. [10] Neste sentido, embora nem sempre coincidente, João Abrantes, Rev. Jurídica, nº 7, Julho/Setembro 1986, AAFDL e Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998. [11] Salazar Casanova, ob. cit. Pag. 53. [12] Isabel Alexandre, ob cit., pag. 273 e segs.