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CARTÃO DE CRÉDITO
CAUSA DE PEDIR
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Sumário
Na acção de condenação no pagamento de quantia resultante da utilização de um cartão de crédito, a causa de pedir é complexa, abrangendo, por um lado, a emissão de um cartão de crédito e, por outro lado, a sua efectiva utilização geradora de créditos por parte dos fornecedores de bens ou dos prestadores de serviços. Só com a explicitação dos bens e serviços adquiridos mediante a utilização do cartão o réu fica em condições de tomar posição sobre os factos, tanto na vertente da efectiva realização das aquisições, como na da eventual extinção da dívida mediante pagamento anterior. A deficiência radical da petição no que respeita a um dos elementos em que se decompõe a causa de pedir complexa gera a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – A ... intentou contra B ... e C ... a presente acção declarativa, com processo sumário, pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe a quantia de esc. 703.834$10, acrescida de juros de mora vencidos até 29.03.01 no valor de 50.242$30 e dos juros de mora vincendos até efectivo pagamento, à taxa de 2,047% ao mês.
Alegou, em síntese, ter emitido e entregue, a pedido da primeira ré, um cartão de crédito para ser utilizado exclusivamente pelo 2º réu, sócio-gerente daquela, o qual permitia a aquisição a crédito de bens e serviços até ao montante de 600.000$00; que a primeira ré, através do 2º réu, fez aquisições com o dito cartão no valor de esc. 703.834$10, não tendo, apesar de instada pela autora a fazê-lo, procedido ao pagamento daquela quantia que esta última oportunamente liquidara aos respectivos estabelecimentos comerciais; que o segundo réu, enquanto utilizador do cartão, é solidariamente responsável pela satisfação da dívida em questão.
Apenas o 2º réu contestou, arguindo o vício da ineptidão da p. i., impugnando factos e pedindo a sua absolvição da instância ou, quando assim se não entenda, a sua absolvição do pedido.
Em sede de despacho saneador julgou-se improcedente a invocada excepção de ineptidão da petição inicial e, fazendo-se uso da faculdade estabelecida no art. 787º, nº 2 do C. P. Civil – diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem indicação de diferente proveniência –, não se procedeu à selecção da matéria de facto.
Contra tal despacho, na parte em que teve como não verificada a excepção aludida, agravou o 2º réu, recurso que foi recebido para subir diferidamente.
No seu âmbito, agravante e agravada produziram alegações, e houve despacho sustentando a decisão agravada.
Realizou-se a audiência de julgamento no final da qual se proferiu decisão sobre os factos julgados provados e não provados e, subsequentemente, foi proferida sentença que, julgando a acção inteiramente procedente, condenou os réus no pedido.
Apelou o 2º réu, tendo ele e a apelada apresentado alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Estando aqui em causa uma apelação e um agravo que subiu arrastado por ela, há que começar pelo conhecimento deste último por haver sido interposto anteriormente, tal como impõe o nº 1 do art. 710º.
II - Quanto ao agravo:
No seu âmbito o agravante apresentou alegações pedindo a revogação do despacho que dele é objecto e formulando conclusões onde, em síntese nossa, defende o seguinte:
1 – A pretensão formulada assenta em alicerce vago, genérico, abstracto e conclusivo, pois não se descrevem as utilidades obtidas com o uso do cartão nem da conta-corrente constam os lançamentos geradores do saldo exigido;
2 – Por isso falta a causa de pedir, ou esta é ininteligível, de modo que a petição é inepta.
Defende a agravada a improcedência do recurso.
Vejamos.
A petição inicial tem uma estrutura que, em termos simplificados, pode resumir-se, esquematicamente, da seguinte forma:
A – A pedido e no interesse da ré sociedade, a autora emitiu e entregou a esta, em 2.8.94, um cartão de crédito para utilização exclusiva do réu, gerente daquela, o qual permitia a aquisição a crédito de diversos bens e serviços;
B – Ambos os réus aceitaram as condições de utilização do cartão;
C – De acordo com estas, a ré comprometeu-se a pagar o saldo devedor que lhe seria comunicado pela autora, sendo o réu solidariamente responsável por esse pagamento;
D – Em diversos estabelecimentos comerciais a ré, através do réu e mediante o uso do cartão, adquiriu alguns dos bens e/ou serviços referidos, no valor de 703.834$10, que a autora pagou mas que lhe não foram pagos por qualquer dos réus, apesar de convidados a fazê-lo.
Na petição inicial deve o autor expor, além do mais, os factos que servem de fundamento à acção – art. 467º, nº 1, al. d).
A causa de pedir é o facto jurídico de que emerge a pretensão – art. 498º, nº 4.
Faltando ou sendo ininteligível a indicação da causa de pedir, a petição inicial é inepta, o que dá lugar à nulidade de todo o processo, excepção dilatória geradora de absolvição da instância – arts. 193º, nº 1 e 2, al. a), 493º e 494º, al. b).
Ao contrário do que é sustentado pela agravada, não pode dizer-se que nesta acção a causa de pedir seja o contrato de emissão do cartão de crédito, tendo este sido emitido para ser utilizado pelo agravante.
Diversamente, o crédito que invoca resulta de uma dupla ordem de factores: por um lado, a emissão de um cartão de crédito acompanhada de um clausulado com as menções acima descritas e, por outro lado, os actos de efectiva utilização do mesmo cartão, geradores de créditos por parte dos fornecedores de bens ou dos prestadores de serviços, sobre a agravada, créditos esses que, uma vez satisfeitos por esta, a terão tornado, nessa justa medida, credora do agravante e da ré.
Trata-se, pois, de uma causa de pedir de natureza complexa.
Segundo o ensinamento do Prof. José Alberto dos Reis [1] “... a causa de pedir em qualquer acção não é o facto jurídico abstracto, mas o facto jurídico concreto ...”. E estes factos são, como dizem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [2], as ocorrências concretas da vida real, e também o estado, a qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas.
Por outro lado, Artur Anselmo de Castro [3] salientou que da não formulação completa e exaustiva da causa de pedir não resulta a falta desta, causadora de ineptidão da petição.
O conteúdo da petição inicial não oferece dúvidas no que respeita ao contrato de emissão de cartão de crédito e à sua efectiva emissão e entrega, mas o mesmo não pode afirmar-se quanto à utilização que, alegadamente, dele terá sido feita.
A agravada disse, no art. 3º da petição, que o cartão se destinava “... à aquisição a crédito de bens e serviços, tais como, viagens, combustíveis, roupas, calçado, refeições, bebidas, dormidas, bens alimentares, levantamento de numerário em caixas Multibanco, aluguer de veículos, consultas e/ou internamentos médicos, etc...”.
E no art. 9º alegou ter sido feita a aquisição de “... alguns dos supra identificados bens e/ou serviços, no valor de Esc. 703.834,10”.
E com a petição inicial juntou documentos, dois dos quais são extractos de conta, um de 9.2.01, outro de 9.3.01.
Do primeiro destes resulta a indicação de um saldo anterior de 702.170$10 que, pela adição de juros e de quantias relativas a imposto de selo e encargos, sobe a 739.668$90.
Do segundo consta a menção de um saldo anterior de 703.834$10 – correspondente ao anteriormente referido de 702.170$10 acrescido das verbas de 1.600$00 e 64$00, mencionadas no primeiro destes extractos como encargo com devolução de pagamento e respectivo imposto de selo – que, acrescido de juros sobre o saldo em dívida e de imposto de selo, atinge o valor de 754.076$40.
É manifesto, perante a forma como a agravada expôs os fundamentos da sua pretensão, que o alegado montante de 703.834$10 supostamente proveniente de aquisições de “bens e/ou serviços” – sic – o não pode ser, ao menos na sua totalidade.
É, assim, patente que a agravada não soube explicitar, com a necessária clareza, quais foram as aquisições de “bens e/ou serviços” – ela própria parece não saber se foram bens e serviços, ou apenas bens, ou só serviços – feitas pelos réus, mais tarde por ela pagas aos estabelecimentos comerciais, de onde lhe adviria o direito de crédito que invoca.
E é para nós evidente que só com a sua explicitação ficariam os réus em condições de poder tomar posição sobre esses factos, tanto na vertente da efectiva realização das aquisições, como na da eventual extinção da sua dívida para com a agravada mediante pagamento anterior. Na verdade, se é certo que lhes cabia o ónus da prova desse pagamento, também o é que se não pode dizer que estivessem em condições de o fazer quando, ao fim de quase sete anos de vigência do contrato, se invoca um saldo devedor que, segundo a ordem natural das coisas, não pode corresponder a todas as aquisições feitas com o cartão, o que significa que algumas (muitas?...) terão sido pagas.
Quais seriam, então, as geradoras do crédito invocado?
A petição inicial mostra-se elaborada de forma que não habilita os réus a compreenderem a posição da autora e a organizarem a sua defesa, uma vez que nela se não diz em que consistiram as supostas aquisições e quando tiveram lugar, nem, ao menos, foram juntos pela autora documentos que, contendo a sua discriminação, suprissem essa lacuna.
Trata-se de uma deficiência radical e total da petição no que respeita a um dos elementos em que se decompõe a causa de pedir complexa subjacente ao pedido, o que, na linha do entendimento já adoptado em acórdão da Relação de Coimbra [4], leva a que se conclua pela falta de causa de pedir, dada a absoluta carência de factos de que padece a petição no apontado âmbito.
Assim, existe ineptidão da petição inicial, geradora de nulidade de todo o processo e que leva à absolvição dos réus da instância.
A procedência do agravo estende-se à ré não agravante visto que, sendo devedores solidários, o agravo, respeitando à causa de pedir que contra ambos os réus foi invocada como geradora da dívida comum, não respeita apenas à pessoa do agravante – art. 683º, nº 2, al. c).
Esta procedência, por outro lado, leva a que fique sem objecto o recurso de apelação, ficando, por isso, prejudicado o seu conhecimento.
III – Pelo exposto, julga-se procedente o agravo e revoga-se o despacho saneador agravado, declarando-se nulo todo o processo e absolvendo-se os réus da instância.
Custas pela agravada, aqui e na 1ª instância.
Lisboa, 8-6-04
Rosa Maria Ribeiro Coelho
Roque Nogueira
Santos Martins
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[1] Em “Comentário”, Vol. II, pág. 375 [2] Em “Manual de Processo Civil”, págs. 391, 392 [3] Em “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, pág. 221 [4] Proferido em 20.1.81 no recurso nº 11163/27506, sumariado no B.M.J. nº 305, a págs. 344