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DIREITO DE PREFERÊNCIA
RENÚNCIA
Sumário
I- Na preferência legal não é admissível a renúncia antecipada ao exercício da preferência. II- Se a preferência tiver de ser exercida conjuntamente, como acontece quando os herdeiros sucederam ao titular do direito de preferência (comproprietário: artigo 1409º e 2091º/1 do Código Civil), a renúncia antecipada de um dos herdeiros, ainda que válida, não obsta ao exercício do direito de preferência que se não extingue o que só acontece se houver renúncia conjunta. III- O abuso do direito é de conhecimento oficioso e pode ocorrer quando o preferente renunciou antecipadamente criando a convicção fundada de que a preferência não seria exercida; mas, para isso, não basta a mera comprovação de factos que demonstram uma renúncia antecipada, impõe-se a alegação de outros factos que conduzam à ideia de que o exercício do direito de preferência seria um exercício abusivo desrespeitando manifestamente as regras da boa fé. IV- A não invocação pelos RR dessa renúncia (excepção peremptória) não obsta ao seu conhecimento pelo tribunal se ela permitir enquadrar a situação na figura do abuso do direito (modalidade do venire contra factum proprium).
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. (A) e marido (B), (C) e marido (D), (E) e esposa (I), (F) e (G), (H) e marido (J), (L) e esposa (M) e (L), na qualidade de únicos e universais herdeiros de (P)e (PN), viúva, que deduziu incidente de intervenção principal espontânea fazendo seus os articulados dos AA, propuseram acção declarativa de preferência com processo ordinário contra (X) e esposa (Y) e ainda contra (S) e esposa (T), estes como vendedores e aqueles como compradores, pedindo o seguinte:
a) Que se reconheça à herança o direito de preferência que lhe assiste e, consequentemente, o direito de haverem para si a quota de metade indivisa alienada na escritura de compra e venda (metade indivisa essa do prédio rústico denominado “Sendieira Grande”, descrito na CRP de Mafra sob o nº 531 inscrito na matriz cadastral sob o artigo 177 da secção B, sito nos limites da Azueira de Baixo, freguesia da Azueira, concelho de Mafra. b) Que sejam condenados os RR a aceitar essa substitição e consequentemente a reconhecerem e respeitarem a transmissão do direito de compropriedade de metade indivisa do prédio identificado para o acervo da herança. c) Que os RR sejam condenados a abrir mão do aludido direito de compropriedade permitindo que o preferente entre de imediato na sua posse. d) Que os RR (X) e esposa sejam condenados a plantar 108 árvores de fruto de valor ocrrespondente àquelas que arrancaram ou a pagarem à herança a quantia de 1.080.000$00 correspondente a metade do valor das árvores destruídas. e) Que seja ordenado o cancelamento de qualquer registo de transmissão efectuada com base na escritura referida no artigo 3º deste articulado, bem assim como quaisquer outras inscrições que após ele tenham sido requeridas e que incidam sob o prédio em causa.
Alegam os autores que não foi dada à herança na pessoa dos seus titulares e representantes a possibilidade de exercer oportunamente o direito de preferência na aquisição da metade indivisa do aludido prédio que os RR (S) venderam ao Réu (X) e mulher.
Contestaram todos os réus alegando que o presente processo constitui exercício abusivo do direito de preferência pois foi por culpa de alguns autores que os réus não comunicaram as condições concretas em que se iria processar a transmissão do direito de propriedade.
Assim, no que respeita à autora Idolinda, por mais do que uma vez ela disse ao réu vendedor (S) para vender a terra por não necessitar do terreno; quanto ao A. (F), cabeça-de-casal, contactado mais do que uma vez para comprar a parte da terra pertencente ao (S), referiu sempre que a não queria comprar e inclusivamente foi por sua própria indicação que o réu contactou uma tal Mário interessado na aquisição por 4 mil contos, mas que se desinteressou da compra porque a terra não era susceptível de servir para construção; a A. (C) declarou por telefone ao réu vendedor que a terra não lhe interessava por mais de 3.000.000$00 e que só por esse preço a compraria; a A (H), residente em França, disse à mulher do réu comprador que faziam muito bem em comprar a terra e que já não era sem tempo que a mesma era vendida pois a placa anunciando a venda encontrava-se ali há mais de 2 anos.
Criaram, assim, os réus a convicção de que nenhum daqueles AA em nome próprio ou a herança que em parte lhes petencia estariam interessados em exercer o direito de preferência na aquisição do direito de propriedade fosse qual fosse o preço desde que superior a 3.000.000$00.
Verifica-se, portanto, que uns autores, de forma activa e outros, de forma passiva, criaram a convicção nos ora réus de que nenhum deles em particular nem todos em conjunto pretendiam exercer o direito de preferência.
Referiram ainda os réus que o terreno, formalmente em regime de compropriedade, encontra-se dividido em duas partes devidamente demarcadas há mais de 50 anos que foram cultivadas autonomamente com a convicção pelo comproprietário (S), sogro do réu, de ser o único proprietário da respectiva metade.
No decurso dos presentes autos houve duas ocorrências processuais relevantes: a absolvição da instância dos réus vendedores; a desistência do pedido formulado em d) supra.
A acção foi julgada improcedente e os réus absolvidos do pedido com fundamento em abuso do direito.
Da decisão recorrem os AA que, nas suas conclusões, sustentam que não se pode considerar, sob pena de violação do disposto no artigo 2091º do Código Civil, que pelo facto de três representantes da herança terem declinado o exercício do direito de preferência se deve entender que esse exercício foi declinado pelos demais; tal entendimento não se conjuga com a posição assumida pelo tribunal de afastar a renúncia antecipada por não ter sido feita por todos os herdeiros, mas já valer para os restantes herdeiros os actos praticados por aqueles três representantes; por outro lado os artigos 416º e 1409º do Código Civil devem ser interpretados no sentido de se impor a comunicação do projecto de venda com indicação do preço e da pessoa do adquirente ainda que tenha havido anteriormente uma recusa de proposta de venda; salientam ainda os recorrentes que o abuso do direito apenas ocorre quando o fim do direito utilizado é diferente do fim social e económico visado com o artigo 1409º do Código Civil ou então se os AA tivessem alterado a realidade ou invocado inverdades induzindo os réus em erro, prejudicando-os; sucede que os réus não cooperaram com os AA limitando-se a agir em função do que julgaram sr os seus interesses e os AA, por sua vez, limitaram-se a exercer os seus direitos em conformidade ocm a lei; por último salientam os recorrentes que, sem pedido formulado nesse sentido, não se pode ocnsiderar que os RR adquiriram metade do terreno por usucapião o que, aliás, levaria a um fraccionamento ilícito por ser inferior à área mínima de unidade de cultura: por isso a preferência que os autores exercem funda-se na venda de fracção de prédio indiviso (artigo 1409º do Código Civil) e não na venda de terreno confinante de área inferior à unidade de cultura (artigo 1380º do Código Civil)
2. Factos provados:
1- Por escritura pública de habilitação outorgada em 25-7-2000 no Cartório Notarial de Mafra foram habilitados como únicos e universais herdeiros de (P): (A), casada com (B); (C), casada com (D); (E), (F), (G), (H), (L) e (JL). 2- Encontra-se inscrito a favor de (P)o direito de compropriedade, na proporção de metade indivisa, do prédio rústico denominado “Sendieira Grande” , sito nos limites da Azueira de Baixo, composto de cultura arvense, com árvores de fruto e dependência agrícola com a área de 5250m2 inscrito na matriz sob o artigo 117 da secção B e descrito na C.R.P. de Mafra sob o nº 00531 da freguesia da Azueira. 3- (S) e mulher (T) Portela foram titulares inscritos da restante metade indivisa do referido prédio rústico denominado “Sendieira Grande” sito nos limites da Azueira de Baixo, inscrito na matriz sob o artigo 117 da secção B da referida freguesia e descrito na C.R.P. de Mafra sob o nº 00531 da freguesia da Azueira. 4- Por escritura pública lavrada em 17-5-1999 no Cartório Notarial de Mafra os Réus (X) e mulher adquiriram a (S) e esposa a compropriedade de metade indivisa do prédio rústico denominado “Sendieira Grande”, sito nos limites da Azueira de Baixo, freguesia da Azueira, concelho de Mafra, descrito na C.R.P. de Mafra sob o nº 00531 e inscrito na respectiva matriz cadastral sob o nº 117 da secção B. 5- Os RR fizeram registar a seu favor a referida compra no dia 25-5-1999 pela inscrição G-4. 6- Na escritura referida em 4 foi declarado que o preço de venda foi de 6.500.000$00 tendo os adquirentes pago de sisa o montante de 520.000$00 e de emolumentos notariais a quantia de 93.090$00. 7- O prédio cujo direito de compropriedade de metade indivisa foi vendido estava, à data de compra e venda, plantado de árvores. 8- Após a realização da escritura a que se alude em 4 os RR adquirentes arrancaram cerca de 108 árvores de fruto as quais estavam implantadas no solo. 9- Os restantes comproprietários não deram qualquer autorização para a destruição das árvores. 10- Os restantes comproprietários na qualidade de legais representantes da herança aberta por óbito de (P)enviaram ao réu (X) a carta de fls 26-27, datada de 16-7-1999, na qual, para além do mais, informam não ter autorizado o arrancamento das árvores, afirmando que autorizam a utilização do prédio apenas e só para cultura arvense. 11- Os RR (X) e mulher receberam a carta referida em 10. 12- O prédio identificado na escritura a que se refere 4 insere-se em reserva Ecológica Nacional de acordo com o Plano Director Municipal para o concelho de Mafra 13- Primitivamente a metade do prédio objecto de venda titulada pela escritura a que se refere em 4 era composta de terra de amanho vindo a ser plantadas árvores de fruto há mais de 30 anos. 14- Embora normalmente em regime de compropriedade o prédio dos autos encontra-se de facto dividido em duas partes devidamente demarcadas há cerca de 50 anos. 15- Na parte atribuído ao pai e sogro dos AA, (P), este construiu um edifício de arrecadação. 16- O pai do vendedor (S) permitiu que o seu rendeiro (K) plantasse a sua metade com árvores de fruto várias designadamente com pessegueiros e pereiras e delas recolhesse os respectivos frutos. 17- Do mesmo modo, os pais do vendedor (S) nada comunicaram ao pai e sogro dos AA sobre as suas intenções por se encontrar na convicção de ser o único dono da respectiva metade do prédio rústico. 18- Durante o período em que o referido (K) foi rendeiro da metade do prédio, que os pais do vendedor (S) tinham como sua, foi substituindo as árvores que iam perecendo. 19- O réu (X) procedeu ao arrancamento das árvores convencido de que exercia um direito próprio. 20- As árvores arrancadas eram pertença do vendedor (S) por terem sido implantadas no terrreno pelo seu rendeiro (K) 21- Jamais os AA ou seu falecido pai, (P), retiraram das árvores arrancadas ou de qualquer outra parte do prédio sob administrçaão dos réus qualquer utilidade ou quaisquer frutos ou rendimentos. 22- Os AA encontravam-se convencidos de que a metade do prédio detida pelos vendedores (S) e mulher era própria destes tendo numa ocasião a A. (A) respondido à (T), a declaração desta no sentido de o marido pretender vender o terreno, que se precisavam de o fazer que o fizessem. 23- Cerca de 2-3 anos antes da data da escritura a que se refere em 4 já os vendedores projectavam vender o terreno nele tendo colocado uma placa a anunciar a venda. 24- Tal placa esteve colocada no prédio durante mais de um ano. 25- Por mais de uma vez o vendedor (S) em conversa que manteve com o (F), único filho que com o falecido (P)vivia à data do óbito e subscreveu a relação de bens apresentada na Repartição de Finanças lhe referiu “fica tu com isto”, respondeu-lhe sempre o (JL) que não estava interessado em comprar. 26- Face ao referido em 25 o (S) convenceu- -se de que aquele (F) não queria adquirir o terreno. 27- Pessoa não identificada contactou o (S) a fim de adquirir o terreno mas após ter constatado que o mesmo não era susceptível de ser utilizado para a construção desinteressou-se da compra. 28- Na altura referida em 27 o (D) contactou o vendedor marido oferecendo 3000 contos pelo terreno ao que este contrapôs pretender 4000 pelo que, antes da celebração da escritura a que se refere em 4, o mesmo (S) efectuou contacto telefónico para casa daquele indagando se mantinha o interesse no terreno e tendo falado então com a autora (C) foi-lhe referido por esta que a palavra do marido se mantinha não mais tendo existido qualquer contacto por banda de qualquer das partes. 29- Face ao referido em 25 e 28 os vendedores (S) e mulher formaram a convicção de que os AA, nem em nem próprio nem em nome da herança, estariam interessados em exercer o direito de preferência na venda que projectavam fazer aos réus (X) e mulher por valor superior a 3000 contos. 30- A preferência foi encarada na perspectiva de serem as duas metades como prédios autónomos, confinantes entre si. 31- Os vendedores não comunicaram aos réus as condições concretas do negócio por se encontrarem convencidos de que aqueles não estavam interessados em comprar o terreno.
Apreciando:
3. A questão essencial suscitada nestes autos desde o início é a de saber se os AA, intentando acção de preferência, agiram com abuso do direito.
A sentença recorrida entendeu que sim com este argumento: “ a conduta dos representantes da autora, em particular do cabeça-de-casal, mesmo após a alienação, foi de molde a criar na contraparte a convicção de que o direito não seria exercitado, sendo com base nessa confiança que o negócio foi celebrado. Deste modo o exercício tardio e inesperado do direito violou a confiança criada consubstanciando um ´venire contra factum proprium’”.
Teremos, então, duas condutas, uma prévia à alienação, outra posterior, que teriam criado a convicção de que o direito não seria exercitado.
A conduta posterior reconduz-se à carta de fls 26/27 (facto 10 supra)dos autos datada de 16-7-1999 ( a escritura foi outorgada em 17-5-1999 e a acção de preferência foi proposta no dia 16-11-1999).
Ora nessa carta dirigida ao réu (X) o cabeça-de-casal salienta que, tendo conhecimento de que foram arrancadas da propriedade 108 árvores de fruto que ali existiam há cerca de 25 anos, nenhum dos herdeiros titulares de 1/2 da compropriedade autorizaram ou concordaram que fosse dado ao prédio um fim diferente daquele a que o mesmo se destina, pois o prédio sempre se destinou a cultura e só para esse fim é que pode ser usado. E termina a carta dizendo: “ tendo em conta que os titulares do direito de compropriedade na proporção de 1/2 só autorizam a utilização do prédio para o fim da cultura arvense, deverá V.Exª repor de imediato a cultura que existia no terreno sob pena de lhe ser exigida a indemnização legal correspondente ao prejuízo causado, conforme estipulado no artigo 1407º,nº3 do citado diploma legal”.
Desta carta não se pode inferir que os autores, conhecedores da venda, renunciavam ao exercício do direito de preferência; bem pelo contrário os autores, pela pena do cabeça-de-casal, mostram-se interessados na administração do prédio e insurgem-se contra o arrancamento de árvores que lhes cria a suspeita de que o terreno poderia vir a ser utilizado para fim diverso da cultura arvense.
Claro que dessa carta se infere que, nessa ocasião, os herdeiros sabiam já que o réu (X) tinha adquirido 1/2 do prédio indiviso o que só poderia relevar se tivesse sido colocada a questão da caducidade da acção, ponto que está absolutamente fora de causa.
E quanto às condutas anteriores?
Essas condutas estão referidas nos factos anteriormente indicados sob os números: 22, 23, 25, 26, 27,28.
Os herdeiros de (P)falecido em 25-6-1986, são (H) Mais (viúva) e os filhos: (A) , (C), (E),(F), (G), (H), (L),(JL).
Desses herdeiros apenas se manifestaram sobre a compra da metade indivisa do terreno os herdeiros (A), (JL) e (D), casado este com a herdeira (C).
Todas as declarações que proferiram, a relevar, poderiam traduzir renúncia antecipada visto que está assente (31) que os vendedores não observaram o disposto no artigo 416º do Código Civil.
A renúncia antecipada, tal como se reconhece na decisão recorrida, não é aceite nas preferências legais: “tratando-se de preferências legais, o titular não pode renunciar ao direito ou poder legal, mas pode renunciar ao seu exercício em cada caso concreto” (Código Civil Anotado, Antunes Varela, Vol I, 4ª edição, pág 392).
A jurisprudência é aqui pacífica: Ac. da Relação de Évora de 27-9-1990, B.M.J. 454-706, Ac. do S.T.J. de 13-2-1996, B.M.J.454-706, Ac. do S.T.J. de 22-4-1997, B.M.J. 466-491, Ac.da Relação de Coimbra de 7-1-1992, B.M.J. 413-624, Ac. do S.T.J. de 24-4-1991, B.M.J. 406-593, Ac. da Relação do Porto de 18-5-1993, C.J.,3, 207.
Permitimo-nos salientar o que cremos ser o mais recente aresto neste sentido:
I - A renúncia pressupõe, em regra, que houve uma comunicação dos elementos essenciais do negócio pelo obrigado à preferência. II - Referindo-se os factos provados a meras conversas entre o A. e o R. com vista a uma compra e venda distinta da que foi concretizada na escritura de 21-01-2000, e no contexto das quais aquele A. afirmou, de forma genérica, não lhe interessar a compra seja qual for o preço, não houve qualquer renúncia quanto ao direito de preferência que os AA. exercem nesta acção.
01-07-2003 Revista n.º 2115/03 - 6.ª Secção Afonso de Melo (Relator) Fernandes Magalhães Azevedo Ramos.
Ainda assim vejamos se as declarações proferidas por aqueles herdeiros poderiam traduzir renúncia antecipada ao exercício da preferência.
A (A) limitou-se a dizer à mulher do que viria a ser o vendedor que “ se precisassem de vender o terreno que o fizessem”. Ora daqui nada se poderia concluir no sentido de ela renunciar antecipadamente à preferência; com aquela declaração diz-se o óbvio: que o proprietário pode vender o que é seu.
O (JL) referiu que não estava interessado em comprar. Mas uma renúncia para justificar o convencimento de que não há efectivo interesse em comprar não se basta com uma declaração tão vaga. Não estava ele interessado me comprar fosse qual fosse o preço? E ser-lhe-ia indiferente a pessoa do comprador? E esse desinteresse era definitivo ou circunscrevia-se ao momento em que a declaração foi feita, mas já não abrangeria uma venda que se viesse a realizar anos mais tarde, por exemplo?
Ora também aqui se nos afigura que uma tal declaração enquanto declaração de renúncia antecipada não poderia ser aceite.
Quanto ao (D), marido da uma das herdeiras, mostrou-se interessado na aquisição por 3000 contos, mas isso não significa que, caso fosse conhecedor de uma proposta de venda por preço superior, mantivesse ele a sua posição. Ora, lendo o que se refere em 28, constata-se que afinal ele nenhuma posição tomou, apenas a mulher reiterou o interesse em comprar por 3000, mas nada se alegou quanto a dois pontos essenciais: que essa posição fosse inalterável ainda que houvesse interessado na aquisição por preço superior. Repare-se que no contacto telefónico a que se alude em 28 não se diz que ele foi informado de que iria ser outorgada escritura de compra e venda. Mas mais: desconhece-se o período de tempo que decorreu entre a primeira conversa e a última declaração.
Não se questiona que os vendedores terão formado a sua convicção no sentido de que os herdeiros não estavam interessados na aquisição da metade indivisa.
Mas de igual se modo se nos afigura inquestionável que essa convicção não tem fundamento justificado.
Primeiro, porque as declarações que foram efectuadas não eram de molde a criar uma tal convicção assim se dispensando o vendedor de observar o dever de comunicação que a lei impõe.
Segundo, e este ponto é decisivo, nada, rigorosamente nada, foi declarado pelos outros herdeiros.
Ora os direitos relativos à herança não podem deixar de ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros (artigo 2091º do Código Civil) e um desse casos é precisamente o exercício da acção de preferência.
Tratando-se de direitos relativos à herança, que têm de ser exercidos conjuntamente, não dispõe cada um dos herdeiros de um autónomo direito de preferência que se pode extinguir, mas conservando-se o respectivo direito dos outros preferentes. Como salienta Vaz Serra “ se o direito de preferência de um dos comproprietários se extinguir, não acresce aos restantes: o que se verifica é que os restantes conservam o seu direito de preferência, com exclusão daquele que o perdeu” (Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 105º, pág 160).
No caso vertente, porém, não há uma preferência encabeçada pluralmente em cada um dos herdeiros, mas uma preferência que tem de ser exercida conjuntamente e conjuntamente renunciada.
E só nessa medida, de uma renúncia conjunta, é que se poderia falar na extinção da preferência; é por isso que, mesmo que as declarações proferidas por aqueles herdeiros traduzissem renúncia, tais declarações seriam de todo irrelevantes no sentido de os excluir da acção por ilegitimidade substancial visto que elas são inócuas na medida em que não configuram a extinção de um direito próprio de preferência e, de igual modo, não são suficientes para extinção do direito de preferência que assiste à herança indivisa o qual pode ser renunciado apenas pelo exercício conjunto dos herdeiros.
4. O abuso do direito não é o estrito reverso positivo da renúncia antecipada; se assim fosse, então a figura do abuso do direito seria um mero instrumento de anulação de direitos ou proibições legais.
Se a lei não permite a renúncia antecipada no que respeita aos direitos legais de preferência, o abuso do direito não pode servir para, reconhecida uma renúncia antecipada, declará-la válida e operante por se considerar abusivo que assim não seja.
O reconhecimento do abuso do direito produz, sem dúvida, os mesmos efeitos que produziria uma renúncia antecipada, mas, para tal, impõe-se reconhecer que as condições de exercício concreto em que tal renúncia se efectivou assumiram uma tal dimensão que repugnaria ao direito não conceder tutela a comportamentos que excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé (artigo 334º do Código Civl)
Seria, por exemplo, o caso de os herdeiros conjuntamente terem manifestado ao outro comproprietário que não estavam interessados na aquisição da fracção fosse qual fosse a quantia, sendo-lhes indiferente o comprador, colaborando ainda com o vendedor na busca de um interessado, apresantando-lhe posíveis compradores e depois, no fim de tudo isto, viessem a apresentar em juízo acção de preferência.
Refira-se, no entanto, que a sentença, quando recorre à figura do abuso do direito, não vai utilizar uma figura jurídica que em abstracto seja inadmíssível no que respeita à acção de preferência.
Sucede apenas que os factos provados não justificam, do nosso ponto de vista, o reconhecimento no caso concreto do abuso do direito.
Dir-se-ia que não tendo sido invocada a renúncia, não poderia o tribunal reconhecê-la qualificando-a sob diverso nomem juris. Não nos parece: não se trata de reconhecer que a renúncia antecipada é válida, trata-se de reconhecer, com base numa particular realidade factual, que o exercício do direito é um exercício abusivo na medida em que despreza uma realidade que não pode ser ignorada. Há, portanto, algo que acresce, quando se reconhece o abuso do direito, a uma situação que, não fora esse acréscimo, não obstaria em si ao o exercício de determinado direito.
De facto a renúncia traduz-se numa excepção peremptória (ver Ac. do STJ de 11-5-1993, BMJ 427-491 e Ac. do STJ de 8-11-1994, BMJ 441-250).
As excepções peremptórias consistem na invocação de factos que impedem, modifiquem ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor (artigo 493º/2 do CPC); o réu defende-se por excepção quando alega factos que obstam à apreciação do mérito da acção ou que, servindo de causa impeditiva , modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido (artigo 487º/2 do CPC); às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (artigo 264º/1). É certo também que na contestação o réu deve individualizar a acção e expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor, especificando separadamente as excepções que deduza (artigo 488º do CPC).
Significa isto que ao tribunal está vedado, apenas porque houve omissão de qualificação de uma realidade fáctica invocada, dar à excepção cujos factos foram alegados o nomen juris que lhe cabe?
A resposta a dar pareceria ser negativa. No entanto, há que ter em atenção o disposto no artigo 496º do CPC segundo o qual o tribunal conhece oficiosamente das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado.
Ou seja, o interessado, quando não se está face a uma excepção peremptória que seja do conhecimento oficioso, não se pode bastar com a mera alegação factual; terá de a invocar expressamente (Veja-se a anotação de Antunes Varela ao Ac. do STJ de 17-1-1985, BMJ 343, 301 in RLJ, Ano 122º, págs 312/314).
A renúncia e o abuso do direito parecem ser, neste domínio, as duas faces de uma mesma moeda.
Se alguém renuncia extrajudicialmente à preferência e vem depois a pretório invocar o seu direito de preferência, não poderá o tribunal, se chegar à conclusão de que os actos e comportamentos assumidos são susceptíveis de causar dano naqueles que confiaram nas declarações proferidas, inviabilizar a pretensão recorrendo à figura do abuso do direito?
O comportamento contraditório de quem renuncia a um direito que depois pretende actuar seria afinal sempre penalizado através da figura do abuso do direito o que, em contas direitas, significa que esta última figura pela sua marcada oficiosidade acabaria por retirar eficácia prática à regra processual da não oficiosidade no tocante oa conhecimento dessa excepção peremptória.
Parece-nos, na verdade, que esta conclusão deve ser abraçada mas com a nota que já referimos - a de que na base das duas figuras está uma realidade não inteiramente coincidente - pela necessidade cada vez mais evidenciada de afirmação do primado da boa fé e da substância sobre a forma.
Defende-se inclusivamente que o abuso do direito pode actuar mesmo naqueles casos em que a renúncia não é válida em si mesma, mas criou fundadas expectativas e determinou comportamentos naqueles que confiaram nas declarações do renunciante. Assim, refere Henrique Mesquita que " a renúncia a um direito subjectivo de opção, segundo a regulamentação legal, só pode ter lugar depois de o preferente conhecer os termos essenciais da alienação projectada...Uma renúncia antecipada é, pois, contrária ao regime imperativamente fixado na lei e deve, por isso, considerar-se nula. Isto não exclui, no entanto, que o comportamento do preferente que renuncia anrtecipadamente e de modo peremptório à prelação e que, mais tarde, efectivado o negócio de venda ou de dação em cumprimento, se apresenta a exercê-la, não possa qualificar-se, nos termos do artigo 334º, como um abuso do direito e, portanto, como uma actuação ilegítima" (Obrigações e Ónus Reais, Manuel Henrique Mesquita, 1997, pág 207).
No caso de renúncia antecipada a aplicação da figura do abuso do direito não actuará da mesma forma com que actuará nos casos de renúncia válida. Ali poderá ter havido uma precipitação e, por conseguinte, o tribunal apenas considerará aplicável a previsão do artigo 334º do CC se considerar, por exemplo, que as razões que levaram à renúncia antecipada permaneceriam inalteráveis se o preferente tivesse afinal renunciado posteriormente ao conhecimento do projecto de venda (Pense-se por exemplo numa renúncia antecipada por não estar disposto o preferente a dar pela coisa mais de 1000, declaração emitida seriamente, fosse qual fosse o comprador tendo, pouco tempo depois da renúncia (antecipada), sido alienada o referido bem por 2000).
Já vimos que os factos invocados não traduzem, a nosso ver, renúncia válida antecipada mesmo que fosse admissível; já vimos que os factos invocados não justificam o convencimento dos RR de que não seria exercida a preferência; já vimos que jamais se deveria reconhecer a renúncia à preferência quando esta não foi exercida conjuntamente por todos os herdeiros; já vimos que em determinadas situações de facto, aqui não verificadas, é possível o recurso à figura do abuso do direito.
5. Fica uma nota final: os réus não invocaram a usucapião. A preferência legal que está em causa nestes autos é aquela a que se refere o artigo 1419º do Código Civil e não aquela a que alude o artigo 1380º do Código Civil.
Afigura-se-nos que a alegação dos RR de que a divisão da propriedade indivisa foi de facto feita há vários anos tinha em vista justificar a falta de direito dos AA sobre as árvores plantadas nessa metade do terreno, ponto que agora não interessa discutir face à desistência do pedido, mas tinha igualmente em vista explicar o mais fácil convencimento dos RR vendedores quanto ao desinteresse dos AA sobre a venda da fracção do terreno.
A mera divisão de facto, se não for acompanhada da vontade de partilhar a propriedade, não significará mais do que uma mera divisão para efeitos outros, como, por exemplo, a fruição separada de rendimentos provenientes da exploração do terreno. Ora isso nada tem a ver com a divisão de coisa comum, ou seja, com a divisão da propriedade.
Se os RR e seus antecessores dividiram o terreno, partilhando a propriedade, exercendo sobre aquela metade poderes correspondentes ao exercício da propriedade, considerando-se proprietários plenos daquela metade por usucapião, não poderiam deixar de formular o correspondente pedido, invocando a usucapião o que não fizeram (artigo 1288º do Código Civil e 661º do C.P.C.).
Não o tendo feito, o tribunal não pode, até pela presunção que dimana do registo (artigo 7º do Código do Registo Predial) que os Réus alienantes não puseram em causa quando efectivaram a transacção (ou seja, reconhecendo que eram comproprietários de metade indivisa do referido prédio rústico: ver fls 17), reconhecer aquela divisão e declarar adquirida por usucapião a propriedade plena sobre aquela parcela de terreno.
O que os réus, a nosso ver, visaram com a alegação de factos destinados a provar que a propriedade estava dividida foi trazer aos autos uma “realidade” que acentuaria a sua boa fé no seu convencimento de que os AA renunciariam à aquisição daquela parcela enquanto proprietários confinantes.
Mas isso pressupõe a ideia de que há uma intensidade de conteúdo diferente na preferência legal quando se trata de prédios confinantes daquela que se verifica quando se trata de compropriedade. Uma tal pressuposição não a temos por verificada.
Seja como for não foi deste modo que o litígio se objectivou: os autores invocaram direito de preferência enquanto comproprietários e, para que assim não fosse, o tribunal teria de reconhecer que não havia compropriedade e, para tal, deveriam então os réus ter pedido o reconhecimento da aquisição por usucapião da metade de terreno. Não o fizeram, o que se compreende, porque, quando alienaram, afinal declararam alienar a metade indivisa e não o terreno dividido.
Decisão: concede-se provimento ao recurso e, consequentemente, julga-se a acção procedente.