OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
LEGÍTIMA DEFESA
PRESSUPOSTOS
ERRO SOBRE A ILICITUDE
Sumário

“...é forçoso concluir que se está em face de uma situação de erro desculpável sobre os pressupostos da legítima defesa, a qual só pode conduzir à absolvição do recorrente, quer dos crimes que lhe são imputados, quer do pedido de indemnização civil, por se verificar que o mesmo, no respectivo comportamento, incorreu, legitimamente, em erro sobre a ilicitude”.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal (5') do Tribunal da Relação de Lisboa:

No processo n.° 165/01.4GACDV do Tribunal Judicial da Comarca do Cadaval, por sentença de 12-12-2002 (cfr. fls. 219 a 242), no que agora interessa, foi decidido:

«Nos termos e pelos fundamentos expostos o tribunal decide:
PARTE CRIME:
1. Condenar o arguido (A) pela prática, em concurso efectivo, de três crimes de ofensas à integridade física, nas seguintes penas parcelares:
e Pelo praticado contra (B), em 40 dias de multa;
e Pelo praticado contra (C), em 40 dias de multa;
e Pelo praticado contra(D) em 30 dias de multa;
2. Mais o condenar, ainda em concurso efectivo, pela prática de um crime de dano, vai o argüido condenado na pena de 20 dias de multa;
3. Em cúmulo jurídico destas penas, considerando em conjunto os factos e a personalidade do agente, é o arguido condenado na pena única de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz a quantia de € 400,00, com 53 dias de prisão subsidiária.
4. Condená-lo ainda nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 D.C., acrescida de 1 %, nos termos do art. 13° n.° 3 do DL n.° 423/91, de 30/10, fixando-se a procuradoria nos mínimos legais.
PARTE CIVEL:
5. Julgo o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante Centro Hospitalar de Torres Vedras provado e procedente, e, em consequência, condena-se o arguido e aqui demandado cível a pagar-lhe a quantia de € 137,75 (cento e trinta e sete euros e setenta e cinco cêntimos), acrescidos de juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
6. Custas pelo demandado.

*

Remeta, após trânsito, boletim ao registo criminal. *

Proceda ao depósito da presente sentença na secretaria, nos termos do n.° 5 do art. 372° do Código de Processo Penal.»

O arguido (A) não aceitou esta decisão e dela recorreu (cfr. fls. 288 a 307), extraindo da motivação as seguintes conclusões:

«1 - Questão Prévia:
a) Deve revogar-se a douta sentença recorrida por violação do princípio "in dubio pro reo".
b) Mais se devendo proferir decisão que julgue a acusação improcedente e não provada absolvendo-se o arguido dos crimes que lhe são imputados e do pedido de indemnização civil contra si deduzido.
II - lmpugna a douta sentença recorrida sobre a matéria de facto, especificando os seguintes pontos da matéria de facto que, salvaguardado o devido respeito, considera incorrectamente julgados:
c) Deverão ser adicionados à matéria de facto considerada provada os seguintes factos:
1 - Logo após o primeiro tiro disparado pelo arguido, (B) ou (C) utilizou uma pistola, calibre 6.35 mm, que tinha em seu poder, e disparou dois tiros na direcção do arguido (A).
2 - A pedreira e toda a zona envolvente onde os factos ocorreram não eram iluminados.
d) - Deverá ser alterada a matéria de facto considerada provada pela douta sentença nos pontos números 4, 10, 11, 12, 13, 16, 17 e 18 nos termos seguintes:
4. - À noite (em substituição de "já perto da noite") dirigiram-se novamente à pedreira, onde chegaram entre as 20h 30m e as 21 horas, e com intenção de assaltarem os escritórios ou os veículos da empresa Eurobritas, Lda., decidiram entrar.
10. - Logo após o primeiro tiro disparado pelo arguido, (B) ou (C) utilizaram uma pistola, calibre 6.35 mm, que tinham em seu poder, e dispararam dois tiros na direcção do arguido (A).
11. - De seguida (B) e (R) separaram-se um para cada lado, ficando (B) dentro das instalações da pedreira, tendo-se (C) dirigido ao veículo automóvel, que, entretanto, entrou nas instalações da pedreira.
12. - O arguido (A) dispara mais dois tiros em direcção à viatura, que estava a mais de 30 metros, para evitar que o veículo e as pessoas que se encontravam no seu interior entrassem na pedreira e voltassem a atirar contra ele – o que se lhe afigurou eminente – e para impedir que os ofendidos assaltassem as instalações da pedreira que guardava.
13. - O arguido (A) acertou nos vidros e na chapa do lado esquerdo do veículo, tendo (C) e (S) sido atingidos com chumbos, esta última no braço esquerdo.
16. - A pedreira e toda a zona envolvente onde os factos ocorreram, não eram iluminados.
17. - Com os tiros que disparou, o arguido atingiu (C), (S) e (B), causando-lhes ferimentos, sem, todavia, ter actuado com esse propósito, nem sequer ter previsto que lhes causaria dores e ferimentos.
18. - Com os tiros que disparou, o arguido atingiu o veículo, causando-lhe danos, sem, todavia, ter actuado com esse propósito, nem sequer ter previsto o evento.
e) Para tanto requer a renovação da prova, devendo o Tribunal, nos termos das alíneas b) e c) do n° 3 e n° 4 do art° 412 do C.P.P., atender ao depoimento das testemunhas (V), que depôs com isenção e credibilidade, e, (AV), que depôs com isenção e credibilidade, depoimentos que foram gravados na sessão de julgamento realizada no dia 19/11/2002, respectivamente na cassete 1, Lado A – rotação 990 a 2076 e cassete 1, Lad A – rotações 2076 ao fim e Lado B – rotações 000 a 799.
f) O Tribunal deverá, ainda, atender ao depoimento das testemunhas (B) e (S), depoimentos gravados na sessão de julgamento de 12/11/2002, respectivamente na cassete 2 – rotação n° 1483 até ao fim, do lado A e do lado B – rotação 000 a 4300, e cassete 3, rotação 000 até 1539 do lado A, e, ainda, às declarações das testemunhas (Y), (B), (S) e (C), gravadas na cassete n° 3, Lado B – rotações 1744 a 2622.
No mais se mantendo a factualidade considerada provada nos números 1 a 3 e 5 a 9, 18 e 19 da douta sentença recorrida.
III - Enquadramento jurídico-penal dos factos
g) Deve julgar-se que o arguido agiu em legítima defesa verificando-se "in casu" todos os pressupostos da legítima defesa.
h) Tendo actuado em legítima +efesa e não em excesso de legítima defesa, verifica-se uma causa de exclusão da ilicitude do comportamento do arguido, que deve ser absolvido quer dos crimes que lhe são imputados, quer do pedido de indemnização civil contra si deduzido.
i) Ao decidir como decidiu a douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 32 e 33 do Cód. Penal, pois enquadrou juridicamente o comportamento do arguido no artigo 33 do Cód. Penal, quando o mesmo se enquadra no artigo 32 do mesmo diploma.
j) Caso assim não se entenda, deverá julgar-se que o arguido agiu em legítima defesa putativa, porque agiu sem erro grosseiro, por erro desculpável, sobre os pressupostos da defesa, actuou em errónea convicção de que estava eminente uma agressão a tiro por parte dos ofendidos e o assalto aos escritórios às instalações da pedreira.
k) Verifica-se uma causa de exclusão da culpa do agente que deverá conduzir a que se profira decisão absolvendo o arguido quer da acusação, quer do pedido de indemnização civil, pois verifica-se "in casu" uma situação de erro, enquadrando-se o comportamento do arguido no disposto no n° 2 do art° 16 do Código Penal.
1) Devendo dar-se provimento ao recurso e, consequentemente, revogar-se a douta sentença recorrida proferindo-se decisão que absolva o arguido quer da acusação, quer do pedido de indemnização civil.
COMO E DE DIREITO E INTEI" JUSTIÇA».

Admitido o recurso (cfr. fls. 312) e efectuadas as necessárias notificações, apresentou resposta o M° P°, na qual conclui que se deve negar provimento ao recurso interposto, mantendo-se a sentença nos seus exactos termos (cfr. fls. 315 a 321).

Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância o Exm.°
Procurador-Geral Adjunto teve vista no processo (cfr. fls. 335), relegando o seu parecer para a audiência.
Proferido o despacho preliminar e não havendo quaisquer questõês a decidir em conferência, prosseguiram os autos, após os vistos dos Exm.°s Desembargadores Adjuntos, para julgamento em audiência, nos termos dos Art.°s 419° e 421° do C.P.Penal.
Realizado o julgamento com observância do formalismo legal, cumpre agora apreciar e decidir.

*


O objecto do recurso, em face das conclusões da motivação, reporta-se:
1 ® à pretensa existência de violação do princípio in clubio pro reo;
2 ® à pretensa incorrecção no julgamento da matéria de facto;
3 - à pretensa verificação dos pressupostos da legítima defesa ou, pelo menos, da legítima defesa putativa, o que deveria ter levado à absolvição do recorrente, quer da acusação, quer do pedido de indemnização civil.

No que ora interessa, é do seguinte teor o acórdão recorrido:

«II - FUNDAMENTAÇÃO.
2e1 - Factos provados
Da discussão da causa resultou provado o seguinte facto:
2.1 Matéria de facto provada:
1 O arguido (A), desde Abril de 2001, que exerce as funções de guarda nocturno na pedreira da empresa "Eurobritas", sita na Rocha Forte, Lamas, Cadaval, sendo titular de licença de uso e porte de arma de caça com o n.° 118.
2 O escritório e os veículos da empresa "Eurobritas", designadamente o combustível, haviam sido no passado várias vezes roubados, o que determinou que o dono contratasse dois guardas, que trabalham por turnos, sendo um deles o arguido.
3 No dia 23 de Setembro de 2001, um Domingo de tarde, (Y), (B), (C) e(D), quando vinham da praia, por volta das 17 horas, pararam na pedreira entraram e tiraram fotografias junto a uma elevação, após o que abandonaram o local e pararam num café numa localidade próxima, e aguardaram a chegada da noite.
4 Já perto da noite, dirigiram-se novamente à pedreira, onde chegaram por volta das 20I-I15m, e com intenção não apurada, decidiram entrar.
5 Todos viajavam no veículo de marca VW Passat, com a matrícula GPC 197, da Lituânia, pertencente a (C).
6 Assim, aproximaram-se da entrada da pedreira. (B) e (C) saíram da viatura e entraram a pé.
7 (Y) e(D) ficaram no veículo.
8 Foi quando (B) e (C) entravam na pedreira que o arguido (A), que estava no seu turno de guarda nocturno, se apercebeu da presença daqueles, bem como da viatura.
9 Por acreditar que se tratavam de pessoas que pretendiam mais uma vez assaltar o escritório ou os veículos da empresa Eurobritas, (A), que estava a cerca de 30 metros dos ofendidos, pegou na espingarda caçadeira que tinha em seu poder - marca Fabram, calibre 12 mm, 1 cano, com o n.° 916124 e 292375 -, pertencente ao seu patrão, de nome (AV), disparou pelo menos um tiro para o ar e depois mais dois tiros na direcção de (B) e (C), tendo este sido atingido com vários chumbos.
10 Logo após o primeiro tiro, (B) fugiu e (C) fugiram em direcções opostas, este para a viatura e o aquele para o arvoredo.
11 De seguida (A) disparou mais, pelo menos, dois tiros em direcção à viatura, que estava a mais 15 metros, acertando nos vidros e na chapa do lado esquerdo, tendo (C) e(D) sido atingidos com chumbos, esta última no braço esquerdo.
12 Em consequência de serem atingidos pelos chumbos dos disparos do arguido:
a) (D) sofreu dores e ferimentos no braço esquerdo, que lhe determinaram 5 dias de doença, com igual incapacidade para o trabalho
b) (B) sofreu dores, feridas nos membros inferiores, punho esquerdo e região púbica, que lhe determinaram 15 dias de doença, com igual incapacidade para o trabalho
c) (C) sofreu dores, ferimentos dispersos pelo corpo, nomeadamente nos membros inferiores, região púbica, parede abdominal e na face. As lesões determinaram-lhe um edema no joelho esquerdo com marcha claudicante, e 15 dias de doença, com igual período de incapacidade para o trabalho.
13 O veículo em que circulavam ficou com os três vidros do lado esquerdo destruídos e a chapa com marcas de chumbos, desde o guarda lamas dianteiro do lado esquerdo até ao guarda lamas traseiro do mesmo lado, não tendo sido apurado o valor da reparação.
14 (A) pretendia impedir que os ofendidos assaltassem as instalações que guardava.
15 O arguido quis agir como agiu, e admitiu que poderia atingir(D), (B) e (C) no corpo, e que desse modo lhes causaria dores e ferimentos, como aconteceu.
16 E sabia igualmente que a sua acção necessariamente acertaria e danificaria o veículo, como de facto ocorreu.

17 Agiu de forma livre e voluntária, bem sabendo ser proibida a sua conduta.
18 O arguido é casado, tem uma filha menor e aufere por conta da EUROBRITAS cerca de E 400 mensais.
19 Do seu certificado de registo criminal nada consta.
2.2 - Matéria de facto não provada:
a) Que no dia 23 de Setembro de 2001, Domingo, cerca das 20H15m, (Y), (B), (C) e(D), enquanto se deslocavam para a sua residência, no Cartaxo, por ser já de noite e estarem cansados da viajem, decidiram descansar na zona da pedreira, que confronta com a estrada pública.
b) Que (B) e (C) saíram da viatura e entraram a pé para verem o melhor local para pararem.
c) Que o arguido agiu com intenção de atingir(D), (B) e (C) no corpo.
23 - Fundamentação da matéria de facto.
O Tribunal alicerçou a sua convicção nos seguintes meios de prova: L Prova documental e pericial
I.a) Pericial: - auto de exame de fls. 101 a 104.
I.b) Documental: boletins clínicos de fls. 47 a 52 e 68 a 72; fotografias de fls. 56 a 59, 196 e 197.
I.c) C. R. Criminal de fls. 112.
II. Prova por declarações orais:
II.a) Do arguido;
II.b) Das testemunhas:
Il.b.l (C), ofendido;
II.b.2 (Y), ofendido;
ILb.3 (B); ofendido;
II.b.4(D), ofendido;
II.b.5 (P) - soldado da GNR, com domicílio profissional no posto da GNR do Cadaval, e depôs com isenção e credibilidade.
II.b.6(JP) - Cabo da GNR, Chefe do NIC do Destacamento Territorial da GNR de Alenquer; e depôs com isenção e credibilidade.
II.b.7 (V), e depôs com isenção e credibilidade.
II.b.8 (AV), e depôs com isenção e credibilidade.
II.b.9 Sobre a sua Personalidade e condição (PV) e (NC)
*

Razão de ciência dás respostas dadas:
- Factos provados, pela conjugação dos documentos e perícias acima identificadas, e pelos depoimentos prestados em audiência.
No essencial e na parte onde os factos provados diferem da versão da acusação e dos ofendidos, e da apresentada pelo arguido em julgamento, o tribunal teve em conta o seguinte:
O arguido confessa que atirou sobre os ofendidos, mas diz que o fez depois de, primeiro, ter disparado para o ar, e de seguida os ofendidos terem atirado sobre ele dois tiros de pistola.
Quanto a estes factos, o tribunal considerou que não existia prova suficiente de assim ter acontecido.
De facto, a prova produzida em audiência não foi suficiente para em consciência o tribunal, e para além de qualquer dúvida razoável, afirmar que o arguido agiu em sua defesa na sequência de terem disparado contra si. E as dúvidas decisivas surgem no facto de os invólucros das balas não terem sido encontradas na noite da prática dos factos, pois sendo de latão, os holofotes utilizados, parece-nos, permitiriam localizá-los de imediato, o que não aconteceu. Aparecem depois, no outro dia, mas qualquer pessoa as poderia ali ter colocado, sendo certo que a sua presença nesse local seria muito conveniente.
No entanto, existe ainda outro elemento de prova ou de falta dela, que nos levou a não considerar como verdadeira a versão do arguido. E que ele nunca refere quem dispara. Diz que um dispara, mas qual? Não era ainda noite, do sítio onde está visualiza ambos os ofendidos de forma perfeita, que após os tiros saírem em direcções contrária, pelo que a identificação do alegado atirador poderia ser efectuada, designadamente através da referência aos lados da fuga dos ofendidos. E o arguido não o fez em julgamento, nem disse quem atirou, nem referiu que não conseguiu identificá-lo. Falta pois, notoriamente, realidade, nesta parte, nas declarações prestadas pelo arguido.
O facto é que, conforme já referido, alguns pormenores importantes ficaram longe de ser esclarecidos e a situação em si apresenta contornos de difícil compreensão, designadamente também no que concerne às verdadeiras intenções que tinham os ofendidos ao se deslocar ao local.
Senão vejamos: os ofendidos não efectuaram um depoimento isento de ilogicidades. Primeiro os homens dizem que passaram no Sábado na pedreira da primeira vez e a segunda já no Domingo. Curiosamente as mulheres dizem que tudo terá acontecido no Domingo, e uma delas refere que a primeira visita à pedreira acontece cerca de duas horas antes de lá voltarem.
Depois, e de forma surpreendente, no fim declara uma delas que o arguido não é o atirador, mas sim outra pessoa, e que havia um outro em cima de um alto, que imediatamente dá para a estrada pública, e desse local atirou sobre o carro, que, pela proximidade, lhe permitiu fixar os traços fisionómicos, ao ponto de afirmar peremptoriamente que o arguido não é a pessoa que atirou sobre eles.
Então como ficamos?!
Isso, a ser verdade, mostra, por um lado, a proximidade com que a ofendida estava do atirador (que já não os 30 metros iniciais), o que revela que existe uma deslocação do Romanas para a viatura, que não estava no recinto da pedreira, mas fora da mesma.
Depois, tantos as ofensas no Romanas, como os danos no veículo, mostram que o arguido nesta altura dos acontecimentos já não está a 30 metros, mas a menos, aos tais cerca 15 metros provados.
Pergunta-se, por outro lado, que sentido dar a esta "viragem" no depoimento da ofendida. A situação é tensa e tudo pode passar de uma noção criada pela testemunha e ofendida. Até porque se bem virmos. o facto das versões não coincidirem podem também dar para concluir de que falam a verdade, pois a terem algo a esconder, as versões apareceriam alinhadas, o que não aconteceu.
E isso acontece também nas explicações que dão da razão para se deslocarem ao local, embora aqui surjam dúvidas sérias. Dizem que pretendiam dormir no local, alegadamente cada um com o seu companheiro. Mas se tinham estado no local apenas há 2 horas, e tiraram fotos, para quê entrarem apenas os dois homens, segundo referiram, para encontrar um sítio adequado para ficarem, se já o conheciam?! Natural seria levarem desde logo o carro para dentro da pedreira. E com que objectivo ficaram duas horas num café à espera que se fizesse noite?! Era apenas para chegar a noite, ou porque pretendiam, por exemplo, furtar algo no local?
As testemunhas indicadas pelo arguido, designadamente o patrão, confirmam as razões porque foi necessário contratar guardas, isto é, a pedreira terá sido já assaltada várias vezes.
Quanto aos elementos subjectivos, a distância a que os primeiros tiros são efectuados, por um lado, e contra o carro depois, já mais perto, considerando pois a dispersão natural do tiro e a presença do veículo, levou-nos a considerar que o arguido age com a noção pode atingir os ofendidos em ambas as situações.
Os factos não provados resultam da falta de prova, designadamente no que concerne aos motivos que os ofendidos tinham para se deslocarem à pedreira, considerando ainda as contradições e dificuldades probatórias acima referidas.
No que concerne aos elementos subjectivos, parece-nos claro que ao atirar sobre o veículo sabe que necessariamente lhes criaria danos, e que admite que poderia acertar nas pessoas que estavam dentro do mesmo, daí termos afastado os elementos de facto que apontavam no sentido do dolo directo.

14 - O Direito
Sendo aquele o quadro factual que resultou provado, importa agora subsumí-lo às pertinentes normas do direito penal, já que a tal, nada obsta.
Vem imputado ao arguido a prática, como autor material, em concurso real e na forma consumada, a prática de:
- três crimes de ofensa à integridade física simples, pe e p. no art. 143°, nm° 1, do Código Penal; e
- um crime de dano, p® e pa no art. 212°, no° 1, do Cód® Penal.
2.4.1. Quanto ao crime de ofensa à integridade física simples:
De harmonia com o disposto no art. 143°-1 do Código Penal comete este crime quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa... ".
Os termos literais que constam do segmento previsivo do preceito permitem afirmar o carácter relativamente lacónico do mesmo, evidenciado pelo facto de dele constar a descrição do acto de causar uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem, sem que, porventura, a expressão legal tenha um conteúdo imediatamente preceptivo, que não aquele que resulta do próprio sentido das palavras empregues.
Numa perspectiva metodológica, norteada por critérios valorativos, a interpretação dos tipos legais de crime passa forçosamente por uma indagação prévia do, ou dos, bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora.
Assim, considere-se, desde logo, a outorga de dignidade constitucional ao direito à integridade física e à integridade moral, tal como flui do art. 25° da Constituição da República Portuguesa: reconhecendo uma concordância axiológica entre o direito penal substantivo e a Constituição podemos retirar do preceito em questão duas linhas de força para a construção do bem jurídico, tutelado pelas normas dos arts. 143° a 152° na versão do actual Cód. Penal, que assentam na saúde física lato senso e na saúde mental.
A incriminação contida no tipo legal do art. 143, n.° 1, do Cód. Penal deve ser classificada como crime comum, de dano, de resultado e de forma livre.
No plano da ilicitude, o tipo-base da ofensa à integridade física prevê: - um acto agressor - desvalor da acção;
- uma lesão cuja gravidade não importa a subsunção do facto concreto à incriminação mais grave - desvalor do resultado.
Os elementos constitutivos do tipo de crime em questão assentam, assim, na existência de uma acção e de um resultado desvalioso, mediados pelo necessário nexo de imputação objectiva (tipo objectivo), e no conhecimento e vontade de realização de lesão à integridade física de outrem (tipo subjectivo doloso).
E o crime de ofensa à integridade física simples é um crime material, ou seja, exige a verificação de um resultado ou evento lesivo que se consubstancia numa concreta ofensa no corpo ou na saúde alheia, pelo que não basta qualquer pancada ou agressão para afirmar a consumação do crime se não for provocada doença ou incapacidade para o trabalho, qualquer mal na saúde ou uma sensação dolorosa, devendo esse resultado danoso ser objecto do dolo do agente em qualquer das suas modalidades (conhecimento e vontade de realização dos elementos objectivos do tipo de crime).
Por outras palavras, "a vontade de bater significa vontade de causar uma sensação dolorosa e não simplesmente vontade de atingir fisicamente uma pessoa, de exercer determinados actos desligados da finalidade aos quais são dirigidos" ou, ainda, "não basta a voluntariedade da acção ou omissão desacompanhada da vontade positiva de ofender, ou pelo menos, da aceitação do risco do previsto evento lesivo" (respectivamente, Tullio Galiani, "Lesioni Personali e Percose", Enciclopédia dei diritto, XXIV, p. 142- Nelson Hungria, "Comentários ao Código Penal", vol. V, p. 326 e 327, apud Ac. RL de 26.9.1990, C. J., ano XV, tomo 3, p. 172).
O arguido ao disparar sobre os três ofendidos, àquela distância, preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de que vinha acusado, pois causou-lhes, por força dessa acção, as lesões provadas nos autos.
Quanto aos elementos subjectivos, age com dolo eventual quanto a todas as ofensas.
No entanto o arguido age na convicção de que os ofendidos pretendiam assaltar a pedreira.
Não sabemos sequer se está em erro.
Sabemos no entanto, que mesmo sem qualquer erro, o modo de execução configuraria de forma inequívoca sempre um excesso dos meios empregados na legítima defesa.
E sempre chegaríamos a esta mesma conclusão ainda que os ofendidos tivessem disparado numa primeira fase sobre o arguido, como este alega. Pois se os ofendidos fogem, designadamente o que corre para o carro, mostrando assim que pretendiam abandonar o local, pelo que o arguido ao atirar o Romanas e o veículo, com duas pessoas dentro, utilizou em qualquer circunstância meios excessivos, sendo certo que nunca refere que tenha ficado com medo ou receio: tal realidade não transpareceu uma única vez das suas declarações e, principalmente, da sua expressão.
Nestes termos, embora tenhamos de aceitar que preenche directamente o tipo justificador previsto no artigo 32.° do Código Penal, com erro ou sem ele (pois aqui a dúvida só o pode beneficiar), os meios utilizados mostram-se inequivocamente excessivos, pelo que o facto é sempre ilícito (cfr. artigo 33.°-1 do Código Penal).
Constata-se pois a existência dos elementos do tipo objectivo e do tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física simples, pelo que pratica pois o arguido os crimes de ofensas à integridade física de que vinha acusado.
2.4.2. Quanto ao crime de dano:

Sendo aquele o quadro factual que resultou provado, importa agora subsumí-lo às pertinentes normas do direito penal, já que a tal, nada obsta.
Vem imputado ao arguido a prática, em autoria material, um crime de dano p. e p. no art. 212° do Cód. Penal.
Dispõe este normativo que:
"Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena até 3 anos ou com pena de multa". Os elementos do tipo são os seguintes:
Tal como no crime de furto, nos elementos objectivos do tipo, a coisa tem de ser alheia e móvel. E a acção do arguido tem de ter danificado, desfigurado ou tornado não utilizável essa coisa.
Quanto aos elementos subjectivos, exige-se o dolo genérico em qualquer modalidade (directo, necessário ou eventual).
Assim sendo, resta comprovar se o arguido preencheu, objectiva e subjectivamente, o tipo de crime "sub judice".
Os factos provados revelam efectivamente a possibilidade de subsunção do comportamento do arguido à previsão normativa em referência.
Com efeito, dos tiros sobre o veículo necessariamente (elemento intencional) resultam os danos no mesmo, como resultaram provados.
A mesma questão se coloca aqui quanto o tipo justificador, mas aqui, atenta a natureza do bem jurídico, em estado de necessidade.
Mas as considerações sobre este "estado de necessidade defensivo" (conforme a doutrina alemã configura estas situações, como tipo "supra-legal", atenta a lacuna legal), acabam por esbarrar nas mesmas dificuldades que o preenchimento do tipo justificador acima tratado a propósito dos crimes de ofensas à integridade física.
Pois também neste artigo 34.° do Código Penal tem de se ponderar a adequação da acção do arguido para afastar o perigo, sendo certo que aqui já não existia qualquer perigo para os bens patrimoniais do patrão, pois eles queriam colocar-se em fuga e nada tinham furtado.
Constatada então a existência dos elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime, agora com dolo necessário, e tendo agido de forma livre e conscientemente, ciente da censura penal da sua conduta, praticou, pois, o arguido o crime de dano de que vem acusado.

23. Da medida concreta da pena.
Efectuada a operação de subsunção jurídico-penal da conduta do arguido, resta proceder à escolha e determinação da medida concreta da pena a aplicar no caso sub judice.
A moldura abstracta da pena que cabe aos crimes de ofensas à integridade física e dano é, em ambos os ilícitos, de prisão até 3 anos ou pena de multa.
Importa antes de mais escolher qual das penas se mostra adequada às finalidades da punição, sendo certo que o artigo 70.° do Código Penal cria uma preferência pelas penas não privativas da liberdade, isto é, da multa em detrimento da prisão, sempre que aquela "realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
No caso, o arguido é primário, estava no exercício das suas funções e a situação é no mínimo suspeita, pelo que a acção não apresenta, em termos globais, exigências de prevenção geral ou especial que exijam a aplicação ao arguido de uma pena de prisão, optando-se assim por aplicar ao arguido uma pena de multa.
Tanto no crime de dano como nas ofensas, este por força directa do artigo 33.° do Código Penal, as circunstâncias com que o arguido pratica os ilícitos demonstram uma acentuada diminuição da ilicitude, culpa e até de necessidade da pena, considerando o quadro defensivo como actua, e até a quantidade de pessoas no local que julga serem ladrões, projectando assim uma imagem global especialmente atenuada da conduta, permitindo-nos considerar aqui o preenchimento da atenuação especial da pena prevista nos artigos 72.° a 73.° do CP.
Desta forma, o arguido, no que concerne às respectivas penas, obterá a redução prevista no artigo 73.°-1-c) do mesmo diploma legal, ficando a pena abstracta máxima reduzida de um terço, isto é, cada um dos ilícitos terá como valor máximo 160 dias de multa e mínimo 10 dias.
Feita a opção pela pena de multa, importa agora determinar a pena concreta a aplicar ao arguido, e, na determinação desta, recorre-se ao critério global previsto no n.° 1 do artigo 71 ° do Código Penal, que dispõe que tal determinação da medida da pena se fará em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes.
Por sua vez, determina o n.° 2 do mesmo normativo legal, "na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (...)".
Assim, neste caso, e como factores de graduação da pena importa considerar:
- As necessidades de prevenção geral, sendo esta uma situação de pretensa justiça privada que no fundo é a semente da própria desorganização de uma sociedade.
- O dolo eventual na prática dos crimes de ofensas e o necessário quanto ao dano.
Os resultados concretamente verificados nas lesões sofridas pelas vítimas e os danos verificados e expressos nas fotos juntas aos autos.
- E atenuante o quadro com que o arguido se depara. Quatro pessoas perto da noite, claramente suspeitos; entram dois e dois ficam no carro: típico de um furto. A pedreira havia sido várias vezes assaltada. Fogem em direcções diferentes, deixando a sua posição claramente desfavorecida; não sabia o que tinham consigo, e até dentro do carro, designadamente armas. A sua própria formação para executar aquela tarefa não parece existir e mexer com armas é algo que exige um conhecimento, frieza e capacidade de avaliar situações que o arguido notoriamente não tem, como aliás resulta dos factos praticados.
A ausência de antecedentes criminais do arguido.
- As suas condições pessoais.
Assim, ponderadas as exigências de prevenção referidas, as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido, fica a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade do ordenamento jurídico assegurada com a imposição ao arguido das seguintes penas parcelares:
- Pelo crime de ofensas à integridade física praticado contra (B) vai o arguido condenado na pena de 40 dias de multa;
- Pelo crime de ofensas à integridade física praticado contra (C) vai o arguido condenado na pena de 40 dias de multa;
Pelo crime de ofensas à integridade física praticado contra(D) vai o arguido condenado na pena de 30 dias de multa;
- Pelo crime de dano vai o arguido condenado na pena de 20 dias de multa. Em cúmulo jurídico, e nos termos do artigo 77.0, impende sobre o arguido a pena mínima de 40 dias de multa e a máxima 130.
Ponderando em conjunto os factos e a personalidade do arguido, vai o mesmo condenado na pena única de 80 dias de multa.

Cumpre, de seguida, fixar o montante diário da multa entre € 1 e 498,80.
Ora, ao abrigo do artigo 47°, n°s 1 e 2 do Código Penal, fixa-se em € 5,00 o quantitativo diário da multa, pelo que será o arguido condenado numa pena de multa global de € 400,00, ou, subsidiariamente, em 53 dias de prisão.

206. Pedido de Indemnização Civil
Conforme referido, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 6.°-2 do Decreto-Lei n.° 218/99, de 15-6, o Centro Hospitalar de Torres Vedras deduziu pedido de indemnização cível contra o arguido, peticionando a condenação deste a pagar-lhe a quantia global de 137,75 (cento e trinta e sete euros e setenta e cinco cêntimos), acrescidos de juros vencidos e vincendos até integral pagamento, a título de ressarcimento pelos tratamentos médicos prestados aos ofendidos, na sequência da conduta ilícita perpetrada.
Dispõe o art. 129° do C.P. que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
A este respeito, estabelecem as leis civis que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, devendo reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, fixando-se a indemnização em dinheiro, sempre que não seja possível a reconstituição natural, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (arts. 483, 562, 563 e 566, todos do Cód. Civil).
Tem, pois, o artigo 483.° do Código Civil como pressuposto um facto culposo do agente causador dos danos: "aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ... fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação", e do qual podemos isolar os seguintes elementos da responsabilidade civil subjectiva extracontratual ou aquiliana:
o facto: facto voluntário do agente, facto objectivamente dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana, pois só um acto concebido desta forma poderá constituir suporte da aplicação das ideias de ilicitude, culpa e causa de produção do dano;
a ilicitude: categoria dogmática, que exprime, em termos formais, o carácter anti-jurídico do facto, e consiste na violação do direito de outrem, quando reprovada pela ordem jurídica, ou na violação da lei que protege interesses alheios;
o nexo de imputação subjectiva do facto ao lesante: para que o acto ilícito gere efeitos jurídicos é necessário que o agente tenha agido com dolo ou negligência, entendida, em termos clássicos, como o nexo de imputação do facto ao agente lesante;
- o dano: entendendo-se por dano a supressão ou diminuição de uma situação favorável, revista a mesma ou não contornos patrimoniais;
o nexo de causalidade entre o facto do agente e o dano sofrido pela vítima: que se traduz na averiguação, do ponto de vista jurídico, de quando é que um prejuízo se pode qualificar como consequência de um dado facto, e exprimindo-se essa relação entre o acto ilícito e o dano por um conceito de teor normativo, vulgarmente designado como causalidade adequada;
- as causas de exclusão da ilicitude ou da culpa: também nesta sede é necessário que não existam factos que preencham os tipos de uma das causas de exclusão da ilicitude e da culpa.
Atento o enquadramento legal referido e a posição e legitimidade do demandante civil, que assume aqui a posição de credor por força da prestação de serviços médicos que efectuou aos ofendidos, face ao preenchimento de todas os elementos da causa de pedir, dúvidas não temos que é o arguido e aqui demandado civil condenado na quantia peticionada € 137,75 (cento e trinta e sete euros e setenta e cinco cêntimos), acrescidos de juros vencidos e vincendos até integral pagamento....».

E, por isso, foi proferida a decisão que se deixou transcrita no início do presente acórdão.
Vejamos:

O âmbito dos recursos delimita-se pelas conclusões da motivação em que se resumem as razões do pedido. Sendo as conclusões proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação (cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Edição de 1981, Pág. 359).

Em face da questão que se prende com a impugnação da matéria de facto, toma-se, de imediato, necessário ver se alguma razão assiste ao
recorrente, tendo em conta a prova produzida em julgamento e documentada nos autos.
Ora, após ponderada análise da mesma, afigura-se-nos ser de
eliminar os pontos 15 a 17 da factualidade dada como assente na sentença recorrida.
Ao invés, é forçoso considerar como provado que:
15 - A pedreira e toda a zona envolvente não tinha qualquer espécie de iluminação;
16 - O arguido agiu com o único e exclusivo propósito de defender
de assalto as instalações que guardava, o qual se lhe configurou como eminente;
17 - Com os tiros que disparou, o arguido atingiu (C),(D) e (B), causando-lhes ferimentos, sem que esse propósito tenha estado subjacente à sua actuação;
18 - Com os tiros que disparou, o arguido atingiu o veículo, causando-lhe danos, sem que tal desígnio tenha estado subjacente à sua conduta;
19 - Ao disparar na direcção do veículo, o arguido apenas pretendeu evitar que o mesmo, bem como as pessoas que nele se encontravam, entrassem na pedreira a fim de se consumar o assalto que suspeitou estar em vias de realização.
Em consequência destas alterações, há que proceder a nova numeração dos pontos 18 e 19 da sobredita matéria fáctica que passarão, assim, a 20 e 21, respectivamente.
Por outro lado, somos, também, da opinião que o ponto 10 da factualidade dada como assente deverá passar a ter a seguinte redacção: "Logo após o primeiro tiro, (B) e (C) fugiram em direcções opostas, este para a viatura e o aquele para o arvoredo que se situava ainda dentro do perímetro das instalações da pedreira".
E perfilhamos o entendimento que deixámos expendido porque o mesmo resulta indubitavelmente da prova produzida, nomeadamente da consideração global que se fez das declarações do arguido, as quais tiveram de ser ponderadas, de forma escrupulosa, com as das testemunhas, ofendidas nos autos, (C), (Y), (B) e(D) e, ainda, do depoimento das também testemunhas (V) e (AV).
E que não existiu qualquer explicação minimamente plausível, por parte dos supra aludidos ofendidos, para a circunstância de terem regressado ao local, ao cair da noite, depois de ali já terem estado, sendo certo que, para esse efeito, aguardaram, durante cerca de duas horas, num café situado nas imediações.
Para mais, ainda que a intenção dos ofendidos não fosse a de assaltar os escritórios e/ou os veículos da empresa Eurobritas, é bom de ver que o modo como os mesmos agiram, tendo saído apenas os dois homens da viatura em que ficaram as duas mulheres, sempre levantaria essa legítima suspeita no arguido encarregue, como estava, da guarda das mencionadas instalações que sabia já terem sido objecto de furto por diversas vezes anteriormente, o que, aliás, motivou a sua contratação.
Também não podemos deixar de referir que o arguido se terá visto na contingência de ter de disparar na direcção da viatura, uma vez que se apercebeu que um dos ofendidos ficou ainda dentro do perímetro das instalações da pedreira e, perante a patente falta de iluminação, receou que os restantes, com o auxílio da mesma, nelas entrassem, a fim de melhor levarem a cabo o assalto.
Por conseguinte, impõe-se dizer que o recorrente tem, em parte, razão quando pugna pela alteração da matéria de facto considerada como provada na sentença em crise.

Relativamente à outra questão, que cabe agora analisar, ninguém, de certo, porá em dúvida que, para que se esteja perante a existência de legítima defesa, é necessário, tal como se sustenta na sentença em crise, que se verifiquem os seguintes requisitos: a) existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro, que deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou eminente, e ilícita, no sentido de o seu autor não ter o direito de o fazer; b) circunscrever-se a defesa ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor, aqui se incluindo a impossibilidade do recurso à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio e c) "animus deffendendi", ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente, no caso concreto, e perante o crime que lhe é imputável (cfr. Art.° 32° do C. Penal).
Compulsada a matéria fáctica dada como provada, já com as devidas alterações que supra se efectivaram, resulta claro que o arguido intervém por suspeita de assalto aos escritórios e/ou aos veículos da pedreira da empresa Eurobritas para a qual trabalhava como guarda nocturno.
E tal suspeita tinha razão de ser porque, naquele local, mais nada havia que justificasse a entrada dos ofendidos (B) e (C) na pedreira a um domingo ao cair da noite, sendo certo que toda a zona envolvente da mesma não tinha qualquer espécie de iluminação.
Foi, por isso, que pegou na espingarda caçadeira que tinha em seu poder e disparou pelo menos um tiro para o ar e, depois, mais dois tiros na direcção de (B) e (C), tendo este sido atingido com vários chumbos, sem que essa finalidade tenha estado subjacente à sua actuação.
Logo após o primeiro tiro, (B) e (C) fugiram em direcções opostas, este para a viatura e o aquele para o arvoredo que se situava ainda dentro do perímetro das instalações da pedreira.
De seguida, o arguido disparou mais, pelo menos, dois tiros em direcção à viatura, que estava a mais 15 metros, acertando nos vidros e na chapa do lado esquerdo, tendo (C) e(D) sido atingidos com chumbos, esta última no braço esquerdo, sem que/tal desígnio tenha estado subjacente à sua conduta.
O arguido agiu com o único e exclusivo propósito de defender de assalto as instalações que guardava, o qual se lhe configurou, ainda que de forma errada, como eminente.
Ao disparar na direcção do veículo, o arguido apenas pretendeu evitar que o mesmo, bem como as pessoas que nele se encontravam, entrassem na pedreira a fim de se consumar o assalto que suspeitou estar em vias de realização, apesar da ausência de sinais objectivos nesse sentido.
Contudo, não podemos deixar de relevar, para justificação da conduta do arguido, a circunstância deste se ter apercebido que um dos ofendidos tinha ficado ainda dentro das instalações da pedreira.
Por conseguinte, a factualidade dada como assente conduz necessária e logicamente à conclusão de que o arguido agiu em legítima defesa putativa, uma vez que a respectiva conduta se ficou a dever à errónea convicção de que estava eminente urna agressão actual e ilícita de um interesse juridicamente protegido de terceiro, o que o fez usar, de forma que lhe pareceu justificada, de um meio necessário para a fazer cessar, neutralizando, assim, a hipotética actuação dos atacantes, tudo apenas com o intuito de salvaguardar a integridade da coisa que guardava.
Deste modo, é forçoso concluir que se está em face de uma situação de erro desculpável sobre os pressupostos da legítima defesa, a qual só pode conduzir à absolvição do recorrente, quer dos crimes que lhe são imputados, quer do pedido de indemnização civil, por se verificar que o mesmo, com o respectivo comportamento, incorreu, legitimamente, em erro sobre a ilicitude.

Perante a expendida decisão de absolvição do arguido, mais nada nos resta senão considerar como prejudicada a análise da questão que se suscitou em primeiro lugar.

*


Pelo exposto, acordam os juizes em conceder provimento ao recurso, com os fundamentos supra indicados e consequentemente:
- Absolver o arguido (A) dos três crimes de ofensas à integridade física e do crime de dano, pelos quais vinha acusado, bem como do pedido de indemnização cível contra si formulado.
Sem custas.

Lisboa, 6 de Julho 2004

Simões de Carvalho
Gaspar de Almeida
Pulido Garcia