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CHEQUE
RESPONSABILIDADE CIVIL
Sumário
I- O banqueiro que cobra um cheque cruzado de um cliente nos termos do artigo 38º/3 da L.U.Ch. pode incorrer em responsabilidade extracontratual face a terceiro, aquele a favor de quem foi emitido o cheque cruzado, se não usar da diligência que as circunstâncias concretas do caso justificam ( legibilidade das assinaturas apostas no endosso, montante do cheque, capacidade económica evidenciada pela sua cliente, ritmo de cheques cruzados depositados pela cliente provindos de uma empresa que, pela actividade e dimensão, não é suposta endossar cheques e muito menos continuadamente à mesma pessoa singular etc). II- Assim sendo, a responsabilidade do banqueiro não fica excluída liminarmente com a demonstração de que o título, designadamente o endosso (falsificado), não revelavam adulterações materiais (falso grosseiro).
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Fina Portuguesa-Óleos e Carburantes, SA propôs acção declarativa com processo ordinário contra (P), Creyf Interim (Portugal) Trabalho Temporário, SA, Banco Mello, SA, Finibanco, SA, Banco Borges & Irmão (ao qual sucedeu o BPI-SA), Banco Espírito Santo,SA, Banco Português do Atlântico,SA (relativamente ao qual a instância veio a ser julgada extinta por inutilidade superveniente da lide: decisão transitada de fls 169), Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Silves, CRL e Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Santo Tirso, CRL pedindo a condenação solidária dos RR no pagamento à A. de 17.090.334$00 no que respeita aos RR (P), Creyf e Banco Mello, de 3.408.200$00 no que respeita ao Réu Finibanco,SA, 1.902.800$00 no que respeita ao Banco Espírito Santo,SA, de esc. 1219.206$00 no que respeita ao Banco Borges & Irmão,SA, de esc. 7.223.288$00 no que respeita à CCAM de Silves, de esc. 3.217.500$00 no que respeita à CCAM Santo Tirso, de esc. 119.340$00 no que respeita ao BPA mais os juros que à taxa legal de 7% sobre elas se vencerem desde a data da citação até integral pagamento.
Alegou a A. que contratou com a Ré Creyf Interim a cedência para utilização temporária dos serviços profissionais da Ré (P) que foi substituir trabalhadora da A. que se encontrava na situação de baixa; a Ré (P) iniciou as suas funções nas instalações da A. em 27-5-1998 e cessou as funções em Novembro de 1998 depois de comunicar à A. a sua intenção nesse sentido.
A Ré (P) foi destacada para o serviço de crédito da A. competindo-lhe o registo informático de pagamentos efectuados pelos clientes da A., a efectivação do lançamento dos cheques enviados pelos clientes da A. para pagamento das diversas facturas emitidas pela A.
A A. constituiu vários procuradores com poderes para sacar e endossar cheques bancários.
Verificou a A., depois da referida (P) ter cessado as suas funções, que esta ré relativamente a vários cheques emitidos à ordem da A., uns cruzados, outros não, procedeu da seguinte forma: lançava o cheque na ficha informática do cliente, mas não o entregava para depósito na conta da A. Em vez disso, na posse do cheque, apunha no seu verso carimbo com indicação da firma da A. procedendo à imitação da assinatura dos procuradores da A. autorizados a endossar o cheque.
Depois depositava os cheques na conta de que era titular no Banco Mello que solicitou o pagamento aos Bancos sacados que pagaram as importâncias constantes dos cheques por compensação bancária assim se creditando a conta da (P) com as referidas quantias.
Os Bancos e instituições de crédito sacadas foram os ora RR Finibanco,SA, CCAM Silves, CRL, CCAM Santo Tirso,CRL, Banco Borges & Irmão, SA, Banco Espírito Santo, SA.
Considera a A. que tais instituições de crédito são responsáveis pelo pagamento das importâncias dos cheques sacados porque não conferiram as assinaturas apostas no verso dos cheques no sentido de verificar se eram verdadeiras ou falsas; o Banco Mello, onde os títulos foram depositados, solicitou o seu pagamento sem conferir tais assinaturas cuja falsificação seria facilmente detectável.
A acção foi julgada procedente no que respeita à Ré (P), mas improcedente (logo no despacho saneador) no que respeita às instituições de crédito demandadas e, na sentença final, no que respeita à Ré Creyf Interim.
Foi interposto recurso pela A. da decisão absolutória (ver fls 460/468) das referidas instituições de crédito sustentando a recorrente, nas respectivas alegações (fls 574/587), que os autos devem prosseguir com produção de prova sobre a matéria de facto controvertida.
Considera a recorrente, tratando-se de cheques cruzados, que o Banco que paga, adquire ou cobra por conta de quem é seu cliente um cheque cruzado, pode ser responsabilizado se do pagamento, aquisição ou cobrança do cheque tiver resultado prejuízo para o proprietário indevidamente desapossado do título; na verdade, se pelo menos implicitamente a lei quis que o cheque cruzado fosse pago, adquirido ou pago por conta de quem oferecesse condições de honradez e solvabilidade, o facto de um banco pagar, adquirir ou cobrar um cheque cruzado por conta de quem, embora tido como seu cliente, se veio a averiguar não oferecer realmente tais condições, poderá só por si fundar a responabilidade do Banco “ até uma importância igual ao valor do cheque”.
Apreciando:
2. A recorrente pretende responsabilizar os bancos sacados pelo pagamento dos cheques que lhes foram apresentados para pagamento porque não conferiram as assinaturas apostas, nos respectivos versos, pela recorrente à ordem da qual os títulos foram emitidos.
No caso do Banco Mello,SA, instituição onde a referida (P) era titular de conta bancária à ordem da qual depositou os cheques, que foram cobrados aos bancos sacados, a responsabilização deste funda-se nessa falta de conferência e ainda num conjunto de factos alegados que, segundo a recorrente, imporiam ao banco certificar-se da idoneidade da sua cliente.
No entender da recorrente a referida conferência entre as assinaturas dos seus procuradores, autorizados a endossar os cheques emitidos à ordem da recorrente, e as assinaturas apostas no verso dos títulos, permitiria verificar a grosseira falsificação que a Ré (P) efectuou.
Podemos, assim, no caso vertente, considerar duas situações de distinta responsabilização.
- Aquela a que são chamados os bancos sacados aos quais foram apresentados a pagamento cheques emitidos a favor da recorrente.
- Aquela a que é chamado o Banco Mello junto do qual a Ré (P) depositou chques com falsificação da assinatura do endossante, ora recorrente.
3. No que respeita à primeira situação verifica-se que não está em causa qualquer falsificação da assinatura dos emitentes dos cheques; assim, não seria por esse motivo que os bancos sacados deixariam de efectuar o pagamento do cheque.
Da convenção de cheque que os Bancos celebraram com os seus clientes, com quem prévia ou simultaneamente acordaram o provisionamento ( que pode ser realizado por meio de contrato de depósito, abertura de crédito, conta corrente, desconto etc.) e com base no qual a instituição de crédito disponibiliza fundos de pagamento, resulta um conjunto de deveres cuja violação pode implicar responsabilização.
Um desses deveres é precisamente o de verificar, apresentado um cheque a pagamento, se o título está falsificado designadamente com falsificação de assinatura do sacador.
No caso vertente, a falsificação que se verificou não foi a assinatura dos respectivos sacadores ou emitentes; a falsificação foi a da assinatura do beneficiário/tomador do cheque.
Prescreve o artigo 35º da Lei Uniforme sobre Cheques: “ o sacado que paga um cheque endossável é obrigado a verificar a regularidade da sucessão dos endossos, mas não a assinatura dos endossantes”.
Os bancos sacados têm de confirmar a assinatura dos seus clientes, que são os sacadores dos títulos, apostas nos cheques, confrontando-as com a assinatura que consta dos ficheiros desses mesmos bancos sacados.
Mas já não têm, nem podem, confrontar as assinaturas dos tomadores beneficiários dos cheques.
O dever de verificação que é imposto pelo artigo 35º da L.U.C. consiste, assim, na mera verificação formal da legitimidade do portador justificada pela regularidade da sucessão de endossos.
Essa regularidade não poderá ser comprovada, faltando então a pretendida diligência, se firma e assinatura apostas pelo endossante se revelarem ilegíveis (ver “Accertamento della regolare continuità delle girate e responsabilità della banca trattaria e di quella girataria per l’incasso por Diego Rufini in Banca Borsa e Titoli di Credito, Ano LX, 1997, pág 113/119).
Já a verificação material (não apenas formal) dessa legitimidade, cuja omissão pode fazer incorrer o banco sacado em responsabilidade face ao sacador/emitente do cheque, pode impor-se na situação a seguir referida que, no caso vertente, não se verificou (O ora recorrente não alegou nenhum facto a este propósito).
Essa situação resulta da circunstância de não estarmos, atento o prescrito no artigo 35º da L.U.C., face a uma irresponsabilização absoluta; na verdade, se o Banco sacado for de algum modo advertido de que o portador adquiriu o cheque de má fé ou com falta grave, pois então o Banco deve recusar-se a pagar o cheque por já não merecer o portador (endossado) a presunção de boa fé (artigo 21º da L.U.C.).
Tem sido afirmada a sujeição das instituições de crédito aos princípios da responsabilidade civil (Títulos de Crédito, Pinto Furtado, Almedina, 2000, pág 2679 e “ Da Problemática da Responsabilidade Civil dos Bancos Decorrente do Pagamento de Cheques com Assinaturas Falsificadas”, Pedro Fuzeta da Ponte, Revista da Banca, Nº 31, pág 65 e seguintes).
Este ponto é considerado pacífico: “ sendo a convenção de cheque um contrato e não se encontrando regulamentadas na L.U. sobre cheques as consequências do pagamento de cheques falsificados, é ao direito dos contratos, designadamente aos princípios gerais da responsabilidade civil que temos de recorrer para resolver os problemas que daí decorrem. Quer dizer pelos danos causados com o pagamento de cheque falsificado responde aquele contraente cujo comportamento seja passível de censura por integrar violação dos deveres contratuais e legais que lhe incumbia observar” - “Responsabilidade do banco apresentante (ou cobrador) e do banco sacado pelo pagamento de cheques com endosso falsificado” por António Caeiro e Nogueira Serens ,Revista de Direito e Economia, 1983,Separata do nº 9)
Já se tem afirmado nesta matéria uma responsabilidade na ausência de culpa que recairia sobre o Banco sempre que efectuasse o pagamento de um cheque “ falsificado por terceiro” (Direito Comercial, Oliveira Ascensão, Vol III, 1992, pág 255/256).
Mas, a ser assim, parece que uma tal responsabilização não se justifica fora do âmbito da responsabilidade contratual banco/cliente.
É que se o Banco pagou ao portador (falsificador) em conformidade com as disposições da Lei Uniforme, exigir-lhe novamente o pagamento dessa quantia, mas agora àquele a favor de quem o cheque fora emitido (portador originário), pressuporia uma cláusula geral de responsabilização objectiva do Banco em face de terceiros.
No caso de recusa de pagamento, justificada ou não, defende-se inclusivamente que o portador nada pode exigir ao banqueiro sacado: “ o pagamento do cheque pode ser recusado pelo sacado com base numa justificação válida (antes de todas, a inexistência de fundos) ou mesmo sem qualquer justificação (por erro ou até por mero arbítrio)”, distinção que tem interesse “pelo que toca à definição da responsabilidade do Banco perante o sacador, dada a existência de convenção de cheque”, “ pelo contrário, a mesma distinção não tem qualquer importância, segundo a tese absolutamente prevalecente na doutrina e na jurisprudência, no que toca ao portador do cheque, em face do qual o banco não incorre em qualquer responsabilidade pelo facto de lhe recusar injustificadamente o pagamento. Com efeito, é opinião geralmente aceite que o portador do cheque não tem nenhuns direitos contra o sacado; não tem nenhuma acção, cambiária ou extra-cambiária, para o constranger ao pagamento da soma inscrita no cheque, ainda que tao-só até ao limite dos fundos existentes na conta-corrente do sacador” (“Cessão de créditos. Emissão de Cheque. Compensação”, Ferrer Correia e Almeno de Sá, C.J.,1990, pág 43).
Assim, se o portador do cheque fosse o beneficiário (ou seja, o portador originário, aquele a favor de quem o cheque é emitido), não poderia este constranger o sacado ao pagamento.
Do mesmo modo, dir-se-á, efectivado o pagamento sem culpa ao portador/endossado (portador não originário), não se vê que os riscos que resultam da circulação do título, a serem suportados, tenham de recair sobre a instituição sacada designadamente nos casos em que nenhuma responsabilidade pode ser exigida ao titular da conta que foi sacada (sacador do cheque).
Se o portador não pode responsabilizar o Banco sacado pela recusa de pagamento do cheque que lhe haja apresentado, ele, agora sem título, ao querer receber do Banco o valor desse mesmo cheque (impondo ao Banco um duplo pagamento), continuaria sempre a agir no campo da responsabilidade civil extracontratual em que só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei (artigo 483º/2 do Código Civil)
A tese da irresponsabilidade do banco sacado face ao portador, afirmada no plano cambiário e logicamente no plano da responsabilidade civil extracontratual, tem oponentes: veja-se “ O Problema da Responsabilidade Civil dos Bancos por Prejuízos que Causem a Direitos de Crédito, Alberto Luís, R.O.A.,Ano 59, 896-914).
No entanto, afigura-se-nos que, mesmo para os que admitem a possibilidade de o banqueiro sacado responder pelos prejuízos decorrentes do pagamento de um título de crédito falsificado perante terceiros lesados (v.g. aqueles a favor de quem o cheque foi emitido), pressupõe-se uma actuação culposa do banqueiro.
No caso em análise, porém, nenhum acto ilícito culposo pode ser apontado aos Bancos que pagaram os cheques que lhes foram apresentados a pagamento pois não se comprova desrespeito da verificação formal (da regularidade da sucessão dos endossos, mas não da assinatura dos endossantes) a que alude o artigo 35º da L.U.C. e, como se disse, não há matéria alegada que permita concluir que os Bancos foram advertidos da falta de legitimidade material da Ré (P) enquanto portadora dos cheques por endosso.
Por isso, inexistindo um regime de responsabilidade aquiliana objectiva que imponha a um banco sacado indemnizar os lesados de cheques em que houve falsificação de actos cambiários, não se vê que possam ser responsabilizadas as instituições de crédito que pagaram os cheques sem terem incorrido na violação de qualquer norma de direito cambiário ou de direito material.
4. Quanto ao Banco Mello a sua responsabilização, designadamente no que toca aos cheques cruzados que a (P) depositou na qualidade de portadora (com endosso em branco por si falsificado), funda-se, segundo a recorrente, no facto de este Banco, que cobrou às outras instituições de crédito os cheques depositados em conta que a referida (P) abriu numa sua agência, não ter conferido se as assinaturas apostas no verso do referido cheque eram verdadeiras ou falsas. E acrescentou: “ a falsificação das referidas assinaturas é grosseira, não tendo as assinaturas apostas no verso do referido cheque qualquer semelhança com as assinaturas autênticas dos referidos procuradores da A. sendo a falsificação facilmente detectável por mera comparação com as assinaturas verdadeiras” (artigos 40º, 67º, 100º, 102º, 116º, 117º, 126º, 127º, 147º da petição inicial).
Não se limitou, porém, à questão da conferência das assinaturas a alegação de facto da recorrente; nos artigos 152º a 154º da petição inicial a recorrente alega ainda que o Banco Mello não averiguou da existência ou inexistência de qualquer relação entre a A. e a Ré (P) que justificasse o depósito dos referidos cheques na conta da (P), não averiguou se os valores dos referidos cheques correspondiam aos valores normalmente envolvidos na conta da ré (P) no Banco Mello, não averiguou da possibilidade ou impossibilidade da actividade profissional exercida pela Ré (P) proporcionar depósitos na referida conta de valores tão elevados, não averiguou da idoneidade ou falta de idoneidade da R. (P) para aceitar o depósito dos referidos cheques e o pedido de pagamento dos mesmos.
O artigo 38º da L.U.C. prescreve que um cheque com cruzamento geral só pode ser pago pelo sacado a um banqueiro ou a um cliente do sacado e que um banqueiro só pode adquirir um cheque cruzado a um dos seus clientes ou a outro banqueiro e que não pode cobrá-lo por conta doutras pessoas que não sejam as acima indicadas.
A inobservância dessas disposições responsabiliza o sacado ou o banqueiro pelo prejuízo que daí possa resultar até uma importância igual ao valor do cheque.
Tenha-se, no entanto, em atenção que, nesse preceito, a par da responsabilização que decorre da inobservância daqueles deveres cambiários, há a responsabilização que decorre da omissão dos deveres de diligência do banqueiro, no que toca a terceiros (responsabilidade civil extracontratual).
Se um banqueiro só pode adquirir um cheque cruzado a um dos seus clientes ou a outro banqueiro e se não pode cobrá-lo por conta de outras pessoas que não sejam as indicadas, tais limitações hão-de ter na sua base uma razão de ser que é afinal a de garantir o emitente do cheque contra riscos de extravio e de falsificação o que significa que uma tal norma de protecção impõe ao banqueiro uma responsabilidade acrescida. Pois se o banqueiro cobra apenas os cheques cruzados dos seus clientes, ele apenas os deve cobrará não tendo razão para duvidar da idoneidade do cliente pela qual o banqueiro se responsabiliza.
Assim sendo, a questão que se suscita é a de saber se o Banco Mello, junto do qual a Ré depositou para cobrança cheques emitidos com cruzamento geral a favor da A., agiu licitamente apresentando os cheques à cobrança às entidades bancárias sacadas sem efectuar qualquer diligência ou se, pelo contrário, atentos os factos invocados, é susceptível de incorrer na aludida responsabilidade civil extracontratual.
A resolução desta questão passa de igual modo por se entender que, nessas condições, o controlo a exercer pelo banco não pode ser meramente formal (e, no caso vertente, porque o Banco Mello não dispunha de fichas com as assinaturas dos procuradores da A. autorizados a endossar cheques, o controlo formal limitava-se ao exame do título, ou seja, um mero controlo de aparência), pois há-de ir um pouco mais além impondo-se-lhe certas actuações quando seja razoável à luz da diligência exigível em face das circunstâncias do caso (artigo 487º/2 do Código Civil) admitir que o seu cliente poderá não oferecer garantias de honorabilidade ou de solvabilidade
Há efectivamente de acordo com o referido artigo 38º/3 da L.U.C. uma equiparação do banqueiro ao cliente no sentido em que o banqueiro só pode cobrar um cheque cruzado por conta doutro banqueiro ou de um seu cliente.
Se do título resultar, na expressão da sua literalidade, desconformidade que suscite dúvidas quanto à sua regularidade, o Banco pode incorrer em responsabilidade junto do beneficiário/tomador do cheque que ficou lesado.
Assim se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no Ac. de 14-4-1999 (Simões Freire),B.M.J. 486-279 também na C.J.,Ano VII, 2, pág 52). Neste acórdão a portadora falsificou o título apagando a palavra inicialmente inscrita no local destinado ao nome do beneficiário e substituindo-a pelo seu próprio nome considerando-se que tal emenda era facilmente detectável por qualquer funcionário bancário.
No entanto, no caso vertente, não está alegada qualquer desconformidade nos cheques que pudesse permitir ao Banco suspeitar do seu cliente pelo mero exame dos títulos. É que a Ré, que trabalhava para a A., carimbou os cheques com a firma da A. e falsificou a assinatura dos procuradores autorizados. A falsificação é, segundo a A., grosseira só que o Banco Mello não podia comprovar essa grosseira falsidade pois não dispunha de possibilidade de conferir as assinaturas.
Em tais circunstâncias poderá ainda assim responsabilizar-se o banqueiro cobrador de cheque cruzado?
Afigura-se-nos que, a comprovar-se que nada resulta de assinalável da própria literalidade do título, que o banqueiro algo mais deve diligenciar designadamente confrontando a situação normal corrente da conta bancária do seu cliente com os valores apresentados em depósito para cobrança. E daí, se houver uma anormal discrepância, o Banco deverá diligenciar no sentido de saber se o endosso é ou não regular o que facilmente conseguirá contactando a própria entidade a favor da qual foi emitido o cheque cruzado.
Mas não é apenas o mero confronto da conta da cliente e dos valores apresentados que nos podem levar a um juízo de conteúdo sobre a diligência (ou falta de diligência) do banco onde os cheques foram apresentados.
A própria apresentação ao banco num período temporal limitado de cheques de elevado montante, todos dirigidos a uma empresa, muitos deles cruzados, com endosso a uma cliente que não seria conhecida no “seu” banco por actividade comercial justificativa de tais movimentações, parece ser mais um dado a impor reflexão.
E naturalmente as apreensões do banco seriam ainda mais justificadas dando-se o caso de a cliente ter conta aberta há pouco tempo.
No caso vertente a referida (P) deposita cheques de 3.408.200$00, 3.972.000$00, 3251.288$00, 3.972.000$00, 3.217.500$00 etc, valores que não são irrisórios, mal se compreendendo a razão que leva uma empresa de revenda de produtos petrolíferos a endossar cheques a um não comerciante, muitos dos quais cruzados.
Revelariam os movimentos bancários da (P) uma assim tão intensa azáfama comercial? E acaso esses depósitos se conservavam na sua conta ou, pelo contrário, dela iam sendo imediatamente levantadas as quantias depositadas?
Não impressiona o argumento da celeridade ditado pela apresentação a pagamento, pois o prazo legal é suficientemente amplo para permitir ao banco contactar a própria cliente e a sociedade petrolífera esclarecendo-se sobre a validade do endosso e isto logo numa época, como a presente, em que a facilidade de de comunicação é enorme sabendo-se, como se sabe, que os bancos contactam personalizadamente os seus clientes pelas mais variadas razões.
A responsabilidade do banco, designadamente quando se trata de cobrar cheque com cruzamento geral de um seu cliente, não se esgota, pois, apenas no exame do título, lavando imediatamente daí as mãos se este não evidenciar uma suspeita irregularidade formal; o banco deve preencher o conteúdo dos seus deveres de diligência procedendo também a uma análise objectiva do título em confronto com a conta do cliente para, sendo caso disso, iniciar as indagações que se justifiquem se desse confronto resultar uma situação que não se afigure límpida.
Não olvidemos que nos casos de cruzamento geral é normal o depósito do título para cobrança na conta do beneficiário e, por isso, um endosso em branco com depósito noutra conta, não sendo anormal, não é igualmente procedimento absolutamente corrente.
Não olvidemos também que “ um cheque com cruzamento geral só pode ser pago pelo sacado a um banqueiro ou a um cliente do sacado” (artigo 38º/1 da L.U.) e, por isso, a ré, que falsificou o endosso aproveitando-se da sua situação de empregada da A., não poderia apresentar para pagamento os cheques cruzados directamente aos banqueiros sacados salvo se deles fosse cliente
No assinalado estudo António Caeiro e Nogueira Serens referem precisamente que “ o Banco que se encarrega da cobrança do título, porque não está vinculado à legitimação, não se pode bastar com o mero exame da cártula, devendo antes, sob pena de comportamento culposo, valorar todas as circunstâncias dele conhecidas ou cognoscíveis para atribuir carácter de univocidade à aparência e, desse jeito, afastar toda a dúvida de não correspondência entre ambas as situações (titularidade e legitimação” (pág 97).
O banqueiro não pode escudar-se na aparente regularidade formal do endosso, que será certamente a regra salvo casos de falsificação atabalhoada (com rasuras, emendas etc), pois, a ser assim, a sua responsabilização teria exactamente a mesma medida que a do banco sacado invoca quando se escuda no artigo 35º da L.U.C.
A responsabilização do banco, nos termos do artigo 38º da L.U.C., extracontratual, decorre da inobservância dos deveres de diligência que se lhe impõem e que dão expressão à regra segundo a qual o banqueiro não pode cobrar o cheque com cruzamento geral por conta de outras pessoas que não sejam o seu cliente ou um outro banqueiro.
Não quer isto dizer que o banqueiro não seja igualmente responsável quando cobra a outro banqueiro cheque não cruzado de um seu cliente, pois a “fonte” da sua diligência é essa actuação por conta do cliente que não deve ser uma execução cega.
Se, face a um cheque com cruzamento geral, o banco preenchesse o seu dever de diligência limitando-se a verificar se o endosso era formalmente regular, a responsabilização do banco não se distinguiria dos outros bancos, como se disse; mas levaria a que afinal o cruzamento geral constituísse na prática uma garantia ilusória. Qualquer pessoa com acesso a cheques com cruzamento geral, apossando-se deles, cobrá-los-ia por depósito em conta com a maior das facilidades.
Não queremos com isto dizer que o Banco se transforme num fiscalizador indómito, mas entre a diligência que se satisfaz com o mero exame do título endossado e a possibilidade de se admitir, ponderadas as circunstâncias concretas, um conteúdo mais abrangente dessa mesma diligência, parece-nos que o escopo da lei e o sentido da justiça se preenchem com a necessidade de uma diligência de conteúdo mais amplo.
Assim se entendendo, então deverá ser ponderada a matéria de facto alegada tendo em vista verificar se o Banco Mello incorreu, cobrando junto dos outros bancos os cheques cruzados que a Ré (P), sua cliente, lhe apresentava para o efeito, em responsabilidade civil extracontratual face à A.
Os autos devem prosseguir com averiguação da matéria de facto pertinente, confirmando-se a decisão absolutória no que respeita aos bancos sacados pois, quanto a eles, os factos alegados não permitem, uma vez provados, considerar que agiram culposamente ao pagar os cheques que lhes foram cobrados pelo banqueiro da Ré (P).
Decisão: nega-se provimento ao recurso na parte em que foram absolvidos os bancos sacados demandados, mas dá-se provimento ao recurso, a fim de se averiguar a matéria de facto controvertida pertinente, assim prosseguindo os autos contra o Banco Mello,SA.
Custas na medida do decaimento a apurar a final a suportar pela A e Banco Mello.
Lisboa, 8/7/04
(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)