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LIBERDADE DE IMPRENSA
DIREITO AO BOM NOME
Sumário
Na necessária conjugação entre o exercício do direito de informação e o direito ao bom nome, não se verifica a violação dos limites da adequação e da proporcionalidade se um num artigo publicado em jornal cuja linha editorial abarca “letras, artes e ideias”, a sua autora tece severas críticas à publicação, num outro jornal, de um poema de terceiro como se fosse da pessoa que nesse jornal era identificada. Verificando-se uma situação objectiva de plágio, as críticas inserem-se no quadro da função social e cultural que cabe à imprensa, designadamente à que incide sobre temas literários.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :
1. Relatório :
O. Silva intentou, em 23 de Abril de 1999, acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, que correu termos pelo Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, contra
T. Marques,
J. Vasconcelos,
Publimédia, Lda,
pedindo que os réus sejam condenados, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de 8.000.000$00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da citação, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais que causaram na sua honra com o teor do texto publicado no jornal JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 24 de Fevereiro de 1999, da autoria da 1ª ré, jornal de que os 2º e 3º réus são, respectivamente, director e proprietário. Pediu ainda a autora a publicação da sentença condenatória que vier a ser proferida nestes autos.
Alegou para tanto, e em síntese, que as expressões e imputações constantes do referido artigo jornalístico atingem a sua honra e consideração, apoucando a sua qualidade profissional e auto-estima, sendo comentados no meio académico e círculo de convívio social e familiar da autora, causando-lhe, em consequência, profundo desgosto e sofrimento.
Os réus contestaram.
A ré T. Marques confirmou a autoria do texto em causa, alegando, porém, que a sua única intenção foi a de repor a verdade acerca do poema de David Mourão-Ferreira, denominado Ladainha dos Póstumos Natais, cuja autoria a autora se arrogou pertencer-lhe no jornal A Terra Minhota, facto de que veio a ter conhecimento através da viúva do falecido poeta, cuja obra constitui objecto da sua tese de doutoramento, além de ser responsável pela organização do seu espólio literário, impugnando a alegada ofensa à autora e pugnando pela sua absolvição do pedido.
O réu J. Vasconcelos impugnou a invocada ofensa, alegando, em suma, que o artigo apenas constituiu o meio de arredar o plágio do poema de David Mourão-Ferreira que a autora fez publicar num jornal regional como sendo da sua autoria, terminando pela sua absolvição do pedido. Em reconvenção pediu a condenação da autora no pagamento de indemnização no valor de 500.000$00 e no mais que vier a liquidar-se pelos danos que a propositura da acção lhe causou, alegando que é jornalista, advogado e tem exercido diversos cargos de destaque público, e que sofreu um choque ao ver-se demandado nesta acção como director do JL em condições injustificáveis e sem o mínimo fundamento.
Na sua contestação a ré Publimédia, Lda, excepcionou a sua ilegitimidade e pugnou, igualmente, pela absolvição do pedido.
A autora deduziu a intervenção provocada da Publicações Projornal, Lda, que foi admitida.
A autora replicou impugnando a matéria da reconvenção e mantendo o peticionado.
Proferiu-se despacho saneador que julgou improcedente a excepção da ilegitimidade da ré Publimédia, Lda, cuja denominação passou a Abril Controljornal Editora, Lda., devido a incorporação por fusão.
Após a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou a acção e a reconvenção improcedentes, absolvendo os réus e a autora dos respectivos pedidos.
Desta sentença apelou a autora, sustentando na sua alegação a seguinte síntese conclusiva :
1ª Os textos publicados da autoria da apelada T. Marques são objectivamente ofensivos dos direitos de personalidade da apelante;
2ª E porque o são, a sua publicação corresponde à prática de um ilícito.
3ª A autora daqueles escritos agiu com a intenção de atingir o bom nome da apelante;
4ª A eventual veracidade das imputações feitas não exclui a ilicitude do acto, nem a obrigação de indemnizar.
5ª A apelante sofreu dano por via da publicação dos ditos escritos;
6ª Verifica-se a ocorrência dos requisitos que pressupõem a responsabilidade civil extracontratual, pelo que os apelados se constituíram na obrigação de indemnizar.
7ª Porque assim não decidiu, a sentença recorrida violou as normas dos artigos 483º e 484º do Código Civil;
8ª Pelo que deve ser revogada, proferindo-se decisão que condene os apelados no pedido.
Apelou também, subordinadamente, o réu J. Vasconcelos, formulando na respectiva alegação as seguintes conclusões :
1ª A autora e ré na reconvenção fez publicar sob o seu nome um poema de David Mourão-Ferreira, enganando a responsável pelo joma1 em que logrou fazê-lo e chegando ao requinte de alterar um verso do dito poema para atingir o seu condenável objectivo - por isso estando pronunciada pela prática dos crimes de contrafacção e violação de direito moral;
2ª A ré T. Marques, docente universitária e especialista da obra daquele grande poeta, além de responsável pelo seu espólio, publicou no JL, jornal de letras, artes e ideias, de que o ora recorrente é director, um texto em que denunciava tal situação, em defesa, como lhe competia, da obra davidiana;
3ª O ora recorrente publicou naquele jornal, que dirige, e de que a co-ré era colaboradora, o referido texto, como de seu direito - e, mais, dever;
4ª Não obstante a factualidade descrita de forma muitíssimo sumária, a autora não só não confessou o seu «delito» nem muito menos pediu desculpa pela sua conduta, como moveu o presente processo à prof. T. Marques e ao ora recorrente;
5ª E não obstante ainda, quanto ao ora recorrente, este só poder ser responsabilizado com base em culpa;
6ª Assim, este processo, além dos vulgares incómodos, causou ao ora recorrente não só danos e prejuízos, cuja liquidação se requereu ficasse para execução de sentença, como danos morais graves;
7ª Com efeito, pela soma de factores que emergem dos autos, relacionados com a factualidade descrita, pelo currículo do réu reconvinte como jornalista, que também é advogado, a gravíssima conduta da autora causou-lhe um abalo psíquico, ou comoção, ou “choque”, ou «forte (sentimento) de indignação», o que tudo quer dizer o mesmo;
8ª No entanto, apesar do que atrás fica exposto, e de se ter dado como provada toda a matéria de facto essencial para que tivesse vencimento a pretensão do ora recorrente, dando- -se provimento ao seu pedido, assim não entendeu a decisão recorrida, que violou o artº 496, 1 e 3, do Código Civil;
9ª Esta disposição tem de ser entendida, efectivamente, como destinada a que sejam ressarcidos todos os danos não patrimoniais que mereçam a tutela do direito, pela sua gravidade - e é grave que alguém sem nenhum fundamento, alguém que tem uma conduta mentirosa, indigna, passível mesmo de procedimento criminal, que está em curso, ainda por cima processe quem tem prestígio profissional, assim posto em causa, causando-lhe um legítimo sentimento de forte indignação, com tudo o que isso significa e representa;
10ª Além disso, e pelo exposto, é óbvio que a autora deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia nem podia ignorar, alterou a verdade dos factos e omitiu outros relevantes para a decisão da causa;
11ª Assim, a sentença recorrida, ao não a condenar a autora como litigante de má fé, violou flagrantemente o artº 456, 2, a) e b) do Código de Processo Civil, norma que tem de se entender como destinada a prever e punir actuações como aquelas de que a da autora é expressão máxima, última - e inqualificável;
12ª Quando, porventura, se entenda, o que apenas por hipótese de raciocínio se admite, que a matéria quesitada não foi suficiente para fundamentar o pedido reconvencional, deve-se entender ter sido violado o artº 511, 1, a), do Código de Processo Civil e mandar quesitar a matéria de facto constante dos artºs 43º a 51º e 53º do seu articu1ado, de acordo aliás com a sua reclamação atempadamente apresentada;
13ª Como se deve remeter para execução de sentença, como requerido, o apuramento dos danos patrimoniais do recorrente;
14ª A decisão recorrida violou, pois, os artºs 496, 1 e 3, do Código Civil, 456, 2, a) e b), do Código de Processo Civil (e, eventualmente, o artº 511, 1, a), deste mesmo diploma), pelo que deve ser revogada, sendo a autora, ré da reconvenção, condenada a pagar ao ora recorrente a quantia peticionada, e condenada também como litigante de má fé, ficando para execução de sentença a liquidação dos danos patrimoniais; ou, quanto ao pedido, caso se entenda dever ser quesitada mais a matéria de facto atrás citada, tal ser ordenado para que se faça prova, a ela limitada.
Contra alegou a ré T. Marques, pugnando pela manutenção do julgado.
2. Fundamentos :
2.1. De facto :
Mostram-se assentes os seguintes factos :
a) O jornal quinzenário A Terra Minhota, na sua edição de 15 de Janeiro de 1999, publicou o poema Ladainha dos Póstumos Natais, fazendo-o seguir do nome da autora.
b) Na edição com o nº 741/Ano XIX, do jornal JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, do dia 24 de Fevereiro de 1999, foi publicado a pág. 40/41, na rubrica intitulada Debate-Papo, o escrito da autoria da ré T. Marques, sob o título “A César o que é de César- David Plagiado”, cujo texto se encontra junto a fls. 22.
c) Ao longo do texto a ré T. Marques imputa à autora a prática de plágio, denunciando perante o leitor esse comportamento e enfatizando a sua avaliação como conduta eticamente reprovável e profissionalmente censurável, sendo esta professora.
d) O jornal A Terra Minhota na sua edição de 15/2/99 publicou o texto que se encontra documentado a fls.23, do qual se fez constar, além do mais, o seguinte : “O nosso jornal publicou no passado dia 15 de Janeiro de 1999 o poema de David Mourão Ferreira “Ladainha dos Póstumos Natais” e cometeu sem querer, mas infelizmente, dois lapsos : Um na ortografia e gramática (...), e outro atribuindo o referido poema à Drª. O. Silva, pois por esta nos foi enviado. (...) Por este lamentável incidente pedimos as mais sinceras desculpas à digníssima viúva, Srª. Drª. Pilar Mourão Ferreira, família, amigos e leitores de tão prezado e admirado escritor que deixou a todos nós Portugueses obras notáveis e eternas que muito admiramos.”
e) A ré T. Marques sabia ao tempo da publicação do texto mencionado em b) do esclarecimento publicado no jornal A Terra Minhota referido.
f) A autora, ao abrigo do direito de resposta, enviou ao JL uma carta, que veio a ser publicada na edição de 24/3/99, cuja cópia se encontra a fls. 74, na qual escreveu, além do mais, o seguinte : “ Devo, desde logo, lamentar que nem a autora do texto nem o director do JL (...), tenham, com a mesma presteza que noticiaram a publicação do poema, divulgado também a rectificação inserta na edição de 15 de Fevereiro do citado A Terra Minhota – e portanto anterior à edição desse jornal agora em causa ...”, passando a transcrever o teor da referida rectificação e acrescentando :
“Como se alcançará de quanto vai citado, a gravosa imputação que nas páginas do jornal que dirige me é feita é descabida de fundamento, e, o lapso que se materializou na publicação daquele poema não me é nem pode ser imputável. Outrotanto não se poderá dizer de quanto infundadamente me é assacado e que me atinge de forma grave e dificilmente reparável quer a nível pessoal, quer social e até mesmo profissional.”
g) Na edição com o nº 774 do JL, de 7/4/1999, foi publicado escrito também da autoria da ré T. Marques, sob o título “A resposta de T. Marques – David Plagiado”, que se encontra a fls. 24, do qual se destaca a seguinte passagem :
“Tem por objectivo o presente texto apresentar aos leitores do JL os factos, tal como emergem do texto manuscrito pela drª. O. Silva, e tal como me foram relatados pela administradora/e chefe de redacção do jornal A Terra Minhota, que igulamente os relatou a outra pessoa das relações da família de David Mourão-Ferreira, a qual se prontificou a testemunhá-los nos locais próprios, se necessário for.”
h) A ré T. Marques manteve nesse segundo texto publicado no JL o conteúdo principal do primeiro.
i) Confirmando a intenção da autora em plagiar o poema.
j) A ré T. Marques não descreve no texto qual o processo e circunstâncias que levaram a directora do jornal A Terra Minhota a publicar o referido poema.
k) A ré T. Marques é amiga pessoal da viúva de David Mourão-Ferreira, e é professora de Literatura Portuguesa.
l) A ré T. Marques prepara doutoramento sobre a obra de David Mourão-Ferreira.
m) A ré T. Marques sentiu-se indignada por ver imitar um texto de David Mourão-Ferreira, pretendendo com a publicação denunciar a situação.
n) A redacção do jornal A Terra Minhota havia já anteriormente sido contactada via telefone por terceiro alertando para a situação em causa.
o) Nunca a autora, em momento anterior à interpelação da directora do jornal A Terra Minhota, por escrito ou por outro meio de comunicação, expressou ou informou que o autor do poema “Ladainha dos Póstumos Natais” era David Mourão-Ferreira.
p) A autora omitiu a atribuição da autoria do poema a quem o escrevera e em parte alguma esclareceu não ser da sua própria autoria.
q) O jornal A Terra Minhota, publicou na sua edição de 1/5/1999 o texto intitulado “Para repor a verdade”, junto a fls.45, do qual consta o seguinte : “No passado Natal de 98, recebi no jornal «A Terra Minhota» um postal de Boas Festas em que estava manuscrito um poema, intitulado «Ladainha dos Póstumos Natais». Em baixo do Poema estava escrito Viana do Castelo, 30/12/98. A acompanhar este poema vinha um cartão de visita da Drª. O. Silva em que pedia a publicação do poema. Perguntado telefonicamente se iria ser publicado o poema respondemos que sim, sempre convictos de que o poema era da autoria da Drª. O. Silva. O poema foi publicado no jornal de 15 de Janeiro e poucos dias depois foi recebido um telefonema da Drª. O. Silva informando que tínhamos errado em alguns acentos ortográficos e que em vez de Universo Meu era Um Verso Meu. Não referiu contudo que lhe tinha sido atribuído um poema que não era seu. - Como não referiu que havia alterado o 10º verso do David Mourão Ferreira que dizia « Eu que nem vivo esteja um verso deste livro». Em 27 de Janeiro recebi um telefonema duma pessoa amiga íntima da família de David Mourão Ferreira e de seguida da Srª. Drª. T. Marques, alertando-me para o facto de termos inserido o poema de David Mourão Ferreira no jornal dando a sua autoria à Drª. O. Silva. (...)”
r) O uso de letras minúsculas para designar os títulos académicos faz parte das práticas redactoriais do JL.
s) É junto dos extractos sociais e profissionais de formação académica superior que o jornal JL assume tendencialmente maior divulgação.
t) Na escola onde a autora leccionava à data da publicação dos textos verificaram-se alguns comentários acerca do artigo da ré T. Marques, de conteúdo não apurado.
u) Tendo-se por tal a autora sentido abalada.
v) A autora é professora do ensino secundário, exercendo actividade na Escola Secundária de Monserrate, na Escola Profissional de Stª Marta de Portuzelo.
x) O réu J. Vasconcelos não conhecia à data da publicação do texto referido em b) o texto referido em d), publicado no jornal A Terra Minhota.
y) Sendo considerado um dos mais prestigiados profissionais da informação portuguesa.
z) O réu J. Vasconcelos ao ser demandado como director do JL sentiu-se fortemente indignado.
2.2. De direito :
2.2.1. A acção de que emerge o presente recurso inscreve-se no âmbito da tutela geral da personalidade.
Ao “...titular da personalidade humana é juscivilisticamente reconhecido no art. 70º do Código Civil um feixe de verdadeiros poderes jurídicos de exigir dos demais sujeitos o respeito da sua personalidade, não lhe sendo apenas outorgados meros poderes jurídicos de pretensão ou simples expectativas jurídicas de respeito.” Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, pág.394
Nas relações jurídicas emergentes da tutela geral da personalidade, os sujeitos passivos devem abster-se de praticar actos que criem condições favoráveis ou preencham pressupostos necessários à ocorrência de lesões na personalidade de outrem ou que se traduzam em ameaças ou cominações de males futuros à personalidade alheia e caso “...os sujeitos passivos não observem tais deveres de abstenção, (...) expõem-se a sanções jurídicas, quando não se verifiquem causas de exclusão de ilicitude e ocorram os demais pressupostos da aplicação dessas sanções...”. Rabindranath Capelo de Sousa, loc. cit., pág. 422.
Consagra-se no citado artigo 70º uma cláusula geral de tutela da personalidade Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Universidade Católica Editora, vol. I, pág. 222., resultando claramente do seu nº 2 que à responsabilidade por ofensas à personalidade física ou moral são aplicáveis, em termos gerais, os artigos 483º e seguintes daquele código que regem em matéria de responsabilidade civil extracontratual, a qual tem como pressupostos a ilicitude do acto, o facto voluntário do agente, a imputação do facto ao agente lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (nº 1 do artigo 483º).
Para além dos dois tipos de situações de responsabilidade civil enumerados no nº 1 do artigo 483º, violação dos direitos de outrem e violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, a nossa lei civil recebeu uma série de previsões particulares que concretizam ou complementam aquelas e que são as insertas nos artigos 484º, 485º e 486º. Cfr. Ac. STJ, de 24.02.99, in CJ STJ 1999, Tomo I, pág. 121.
Assim, a ofensa do crédito e do bom nome prevista no artigo 484º apresenta-se como um caso especial de facto antijurídico definido no artigo 483º e subordinado aos pressupostos neste enunciados, os quais são de verificação cumulativa,.
Considera-se expressamente como antijurídica a afirmação ou difusão de um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, afirmando P. Lima e A. Varela que “Pouco importa que o facto afirmado ou divulgado corresponda ou não à verdade, contanto que seja susceptível, dadas as circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou do bom conceito em que seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade”. Os mesmos autores acrescentam, porém, que “A afirmação ou divulgação do facto pode, no entanto, não ser ilícita, se corresponder ao exercício de um direito ou faculdade ou ao cumprimento de um dever...” In Código Civil Anotado, 4ª ed., pág. 486.
A ilicitude circunscreve-se mais directamente à ausência de uma causa de justificação.
A violação do direito de personalidade, com efeito, pode ser afastada quando o facto do lesante é praticado no exercício regular de um direito, no cumprimento de um dever, em acção directa, em legítima defesa ou com o consentimento do lesado. Cfr. Ac. STJ de 3.10.95, BMJ 450, pág. 429.
Coloca-se, assim, aqui a difícil questão da convivência entre o direito de liberdade de expressão e informação e os direitos de personalidade na vertente do direito ao crédito e ao bom nome, ambos com dignidade constitucional e incluídos no elenco dos direitos fundamentais (artigos 26º, 37º e 38º da Constituição).
A liberdade de expressão e informação proclamada na Constituição traduz-se no direito, que a todos é conferido, “de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações”.
Segundo o Ac. do Tribunal Constitucional nº 113/97, In BMJ 464, pág. 121 e segs. “Trata-se, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pág. 225), e na vertente do «direito de expressão», de um direito que, enquanto direito negativo ou de defesa perante o poder público, implica «o direito de não ser impedido de exprimir-se», inculcando ainda, na sua dimensão positiva, um direito «de acesso aos meios de expressão» (...); na vertente de «direito de informação» o direito de informar consiste, desde logo, na liberdade de transmitir ou comunicar informações a outrem, de as difundir sem impedimentos», direito que, no seu actuar positivo, implicará o «direito a meios para informar».
E acrescenta o mesmo acórdão que a liberdade de imprensa expressamente consagrada no artigo 38º da Constituição “...tem sido, de há muito, considerada como uma forma privilegiada quer da liberdade de expressão quer do direito de informação, este, por entre o mais, na dimensão de garantia constitucional de livremente formar a opinião pública (G. Canotilho e V. Moreira, ob. cit., pág. 230 chamam-lhe um «modo de ser qualificado» daqueles direito e liberdade.”
Estes direitos, que são directamente aplicáveis e a todos vinculam, tal como sucede com o “direito ao bom nome e reputação” podem sofrer restrições quando se desenha um conflito, embora estas devam limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. É a própria Lei Fundamental que admite a primazia de certos direitos fundamentais sobre outros, embora de igual hierarquia constitucional, cedendo ou contraindo-se na medida do necessário (artigo 18ºda Constituição).
Perante essa possibilidade de conflito ou de colisão de direitos “...a via indicada será a que harmonize os direitos em conflito ou, se necessário, dê prevalência a um deles, conjugando o princípio da proporcionalidade com os ditames da necessidade e da adequação, de acordo com as circunstâncias do caso concreto...”. Cfr. Ac. STJ de 5.3.96, BMJ 455, pág. 420
Como se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional nº74/84, citado na sentença recorrida, a liberdade de expressão do pensamento e o direito de informação, dos quais a liberdade de imprensa constitui veículo qualificado, “... tendo de conviver com outros direitos fundamentais, há-de sofrer desde logo os limites que decorram das necessidades impostas por uma convivência social ordenada. A ideia de limite vai, assim, implicada no próprio conceito de direito, decorrendo das necessidades que as várias esferas jurídicas têm de (se) limitar reciprocamente, a fim de poderem coexistir no interior do respectivo ordenamento jurídico.” Ac. de 10.7.84 in DR I Série, 211, de 11.9.84.
Volvendo ao caso vertente, e como se escreveu na sentença recorrida, é inequívoco que nos textos publicados no JL “... se imputa à A. a prática de plágio do poema de David Mourão Ferreira, Ladainha dos Póstumos Natais, explicando-se ao leitor que a aqui A. fez publicar no jornal A Terra Minhota aquele poema, arrogando-se da sua autoria, em face do que a R. T. Marques censura e condena semelhante conduta”, imputação que se revela “...objectivamente detonadora de juízo de desonestidade intelectual sobre quem a pratica, agravada pela circunstância relatada nos textos de a alegada plagiante ser professora e possuir formação académica de grau superior.”
Não obstante este “facto pouco abonatório da dignidade e honra de qualquer indivíduo, adensado no caso concreto pelas funções pedagógicas que a visada desempenha”, concluiu-se na mesma sentença pela inexistência de responsabilidade civil extracontratual.
E tal decisão não merece censura.
Está em causa um poema de David Mourão-Ferreira - Ladainha dos Póstumos Natais - cuja publicação, a pedido da autora, na edição de 15 de Janeiro de 1999 do jornal A Terra Minhota surgiu seguida do nome desta, o que para um leitor médio só poderia significar que o referido poema havia sido escrito pela mesma.
Este lamentável equívoco, que o jornal A Terra Minhota atribuiu exclusivamente à autora O. Silvano texto intitulado “Para repor a verdade”, publicado na edição de 1 de Maio de 1999, impunha, necessariamente, à mesma autora um esclarecimento célere e inequívoco no sentido de aos leitores do referido jornal chegar o conhecimento de que o poema em causa pertencia a David Mourão-Ferreira, um dos grande poetas contemprâneos portugueses, cuja obra constitui uma referência na cultura e na literatura portuguesas.
E a exigência de uma tomada de atitude pela autora com vista a um tal esclarecimento era mais premente dada a sua qualidade de professora do ensino secundário, necessariamente, mais consciente dos valores em jogo e da importância de pôr cobro a um engano que não podia persistir.
Não o considerou assim a autora, que, como resultou provado, omitiu a atribuição da autoria do poema a quem o escrevera e em parte alguma esclareceu não ser da sua própria autoria, nunca tendo expressado ou informado, em momento anterior à interpelação da directora do jornal A Terra Minhota, por escrito ou por outro meio de comunicação, que o autor do poema Ladainha dos Póstumos Natais era David Mourão-Ferreira.
Assim, a circunstância de o primeiro texto da ré T. Marques ter surgido depois da rectificação e do pedido expresso de desculpas apresentados pelo jornal A Terra Minhota, na edição de 15 de Fevereiro, não assume a relevância que a autora pretende atribuir-lhe em ordem a intensificar um possível juízo de censura ao comportamento daquela, uma vez que os factos provados revelam que a autora foi alheia a essa rectificação e pedido de desculpas.
Neste contexto é natural e compreensível a indignação da ré T. Marques, amiga pessoal da viúva de David Mourão-Ferreira e conhecedora privilegiada da sua obra, quer por ter em preparação o seu doutoramento sobre a mesma quer por ser professora de Literatura Portuguesa, ao ver imitar um texto de David Mourão-Ferreira, bem como a denúncia da situação feita através da publicação dos seus dois textos, evidenciando os autos que o fez na convicção fundada de que o plágio correspondia à verdade, convicção razoável se tomado por padrão o critério da “diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso”.
E para tal escolheu um meio especialmente qualificado, o JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, publicação que assume tendencialmente maior divulgação junto dos extractos sociais e profissionais de formação académica superior, confinando a questão que denunciou e criticou a um público leitor seleccionado e especialmente vocacionado para a sua compreensão.
A crítica e a censura expressas nos textos da ré T. Marques, ainda que severas e apaixonadas, inserem-se no quadro da função social e cultural que cabe à imprensa com as características do JL, um jornal de letras, artes e ideias, não tendo excedido, no caso concreto, os limites da adequação e da proporcionalidade que se impunha observar.
A tutela do direito ao crédito e ao bom nome da autora, que de alguma forma sempre foram atingidos, embora não tenha resultado provado que com a intensidade e a extensão invocadas e nas quais fundou o pedido formulado, não pode, atentas as circunstâncias que caracterizam a situação vertente, prevalecer sobre a liberdade de expressão e o direito de informação exercidos pela ré T. Marques, que actuou também no cumprimento do dever de não deixar passar em claro um equívoco que não é tolerável, como o não é o silêncio da autora que se lhe seguiu.
Tem-se, assim, por afastada a ilicitude, pressuposto de verificação indispensável em sede de responsabilidade civil extracontratual, pelo que a apelação da autora não pode proceder.
2.2.2. No recurso subordinado que apresentou, também de apelação, pugna o réu J. Vasconcelos pela procedência do pedido reconvencional, alegando que com a propositura desta acção a autora lhe causou danos não patrimoniais que merecem tutela jurídica, e pela condenação da autora como litigante de má fé por ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia nem podia ignorar, ter alterado a verdade dos factos e ter omitido outros relevantes para a decisão da causa.
No que à reconvenção concerne, cumpre, desde logo, adiantar que, in casu, os autos dispõem de toda a matéria de facto relevante para o conhecimento de mérito, não se justificando a ampliação da mesma por forma a incluir a alegada nos artigos 43º a 51º e 53º da contestação/reconvenção, a qual está plasmada, no que verdadeiramente releva, nos artigos 30º, 31º e 32º da base instrutória.
A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais consagrada no artigo 496º do Código Civil tem lugar desde que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito. O seu montante deve ser fixado pelo tribunal segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso (artigo 494º do citado compêndio substantivo), e deve ser proporcionado à gravidade do dano, considerando-se “... na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida”. P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. I, pág. 501.
A gravidade do dano “...há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”, não justificando a indemnização por danos não patrimoniais os simples incómodos ou contrariedades. P. Lima e A. Varela, ob. cit. pág. 499.
Estão em causa os eventuais danos não patrimoniais decorrentes do “choque” que o reconvinte alega ter sofrido ao ser demandado nesta acção na qualidade de director do JL, sendo um dos mais prestigiados profissionais da informação portuguesa e, simultâneamente, advogado.
Sem embargo do inquestionável prestígio profissional que é reconhecido ao Dr. J. Vasconcelos, quer na área do jornalismo, quer na advocacia, o certo é que o exercício das funções de director de um jornal, ainda que com as características do JL, de pendor cultural e artístico, não podia deixar de colocar no seu horizonte a eventualidade de poder ser-lhe movida uma acção como a presente, até pela experiência profissional que tem naquela áreas, podendo até afirmar-se que tal constitui um risco inerente ao exercício de tais funções ainda que exercidas, como será o caso, com estrita observância dos princípios éticos e deontológicos que lhe são próprios.
Assim, a forte indignação ou “choque, como prefere chamar-lhe, que se provou ter sentido ao ver-se demandado judicialmente como director do referido jornal, ainda que relevante, não assume, salvo o devido respeito, gravidade susceptível de merecer a tutela conferida pelo artigo 496º citado.
2.2.3. Resta apreciar se o conduta processual da autora é susceptível de integrar litigância de má fé à luz do disposto no artigo 456º do Código de Processo Civil.
O direito de acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, pág. 163. tem de ser exercido na sua concretização prática dentro do quadro normativo vigente, que impõe àquele que o exerce o respeito dos deveres de probidade e de leal colaboração devidos em abstracto ao tribunal, deveres que visam uma pronta, justa e serena aplicação da justiça.
Assim, à tutela jurisdicional que a ordem jurídica coloca à disposição de todos os titulares de direitos impõe a mesma ordem jurídica uma limitação : que a parte que exerce o direito esteja convencida da justiça da sua pretensão, que o litigante esteja de boa fé ou suponha ter razão A. dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed. - reimpressão, vol. II, pág. 261..
Por isso, o incumprimento doloso ou gravemente culposo do dever de cooperação e/ou das regras de boa fé processual é sancionado civilmente através do instituto da litigância de má fé.
Acontece que os factos provados não evidenciam um comportamento censurável por parte da autora que lhe possa ser assacado a título de dolo ou negligência grave, quer ao interpor a presente acção, dada a carga de subjectividade que, necessariamente, envolve a apreciação da pretensão que deduziu, quer ao nível da alteração/omissão de factos relevantes para a decisão da causa.
É certo que a autora não trouxe a juízo a versão dos factos na sua plenitude, mas não se tem por verificada uma actuação dolosa ou gravemente negligente nessa omissão amplamente colmatada pelos réus na defesa que apresentaram.
Não se verificam, pois, os pressupostos necessários à condenação da autora por litigância de má fé.
Improcedem, por conseguinte, todas as conclusões das alegações dos apelantes.
3. Decisão :
Nesta conformidade, acordam os Juizes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedentes as apelações e confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.