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FURTO
DANO
COMPROPRIEDADE
Sumário
“...Dado que as coisas comuns não pertencem a cada um dos comproprietários de forma plena, mas antes à totalidade dos consortes (artº 1403º e segs., do CC), tais coisas não podem deixar de se considerar alheias, para efeitos da incriminação do comproprietário que actue sob a alçada do disposto no artº 203º/1º, do CP, em detrimento dos demais consortes”.
Texto Integral
Acordam, em audiência, na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I
1. Nos autos de processo comum n.º 146/01.8GFOER, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Oeiras, o arguido, F., foi acusado, pelo Ministério Público, da prática de factos consubstanciadores da autoria material, em concurso real, de «um crime de dano, um crime de introdução em local vedado ao público e um crime de furto p. e p. pelos artigos 212.º e 191.º e 203.º do Código Penal»[1].
Precedendo recurso e sequente decisão, desta Relação[2], o arguido veio a ser submetido a julgamento, perante Tribunal singular e com documentação dos actos de audiência.
A final, por sentença[3], o Tribunal veio a decidir (na parcela que importa ao presente recurso):
a) condenar o arguido, pela prática, em autoria material, de um crime de furto simples, p. e p. pelo art. 203.º/1, do Código Penal, na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, perfazendo € 300,00; b) condenar o arguido, pela prática, em autoria material, de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º/1, do CP, na pena de 50 dias de multa, à mesma taxa diária, o que perfaz a quantia de € 500,00; c) operar o cúmulo jurídico destas penas parcelares, terminando por condenar o arguido na pena única de 60 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, o que perfaz a quantia de € 600,00; d) absolver o arguido do crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191.º, do CP, por que vinha acusado.
2. O arguido interpôs recurso desta sentença.
Pretende que a mesma seja revogada e substituída por decisão que absolva o arguido dos crimes por que foi acusado.
Extrai da motivação do recurso as seguintes (transcritas) conclusões:
1. Ficou provado que foi colocada uma corrente, presa a dois pilares, a fim de impedir a entrada de viaturas, cujos donos não residissem no local. 2. Ficou provado que o arguido é condómino do lote X dos autos. 3. Não foi dado como provado que o pilarete seja comum ao condomínio. 4. É referido na sentença que uma vezes o pilarete «é comum», outras vezes que é «simultaneamente própria e alheia» e, outras ainda, que «nem sequer ainda estava integrado no condomínio». 5. Pertencendo a M., que comprou e colocou no local conforme acta n.º 1 a fls. 40 a 42 dos autos, e que não apresentou queixa. 6. Por tal motivo o queixoso carecia de legitimidade para apresentar queixa. 7. Tal como o MP para exercer a acção penal. 8. Resulta da sentença que o arguido agiu porque «tal lhe dava o direito de exigir que não se fechasse o portão». 9. O arguido não agiu com dolo, justificando o seu comportamento pela violação de um direito – o direito sobre as partes comuns – que o impediu de entrar no parqueamento a que tinha direito. 10. O arguido cometeu somente um ilícito civil. 11. Foram violados os princípios in dubio pro reo e os princípios da tipicidade e legalidade. 12. Foram violadas as normas do art. 1.º, art. 13.º, art. 31.º n.os 1 e 2 al. b), art. 113.º n.º 1, 203.º e 212.º, todos do Código Penal, n.º 1 do art. 29.º da CRP e arts. 48.º, 49.º e 372.º n.º 5, todos do Código de Processo Penal.
3. O recurso foi admitido por despacho de 8 de Outubro de 2004 (fls. 217).
4. O Ministério Público, em 1.ª instância, contra-motivou, propugnando pelo não provimento do recurso.
5. Nesta instância, o Ministério Público não emitiu parecer.
6. Os poderes de cognição deste Tribunal ad quem alcançam, no caso, não apenas a revisão da matéria de direito, mas também a apreciação do julgamento levado, na instância, sobre a matéria de facto – arts. 364.º e 428.º, do Código de Processo Penal.
O objecto do processo é demarcado, no essencial, pelo teor das conclusões que o recorrente extracta da motivação – art. 412.º/1, do CPP.
Isto posto, em face de tais poderes cognitivos e desta parametrização, importa examinar as seguintes questões:
a) da ilegitimidade do queixoso para apresentação da queixa e consequente ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal; b) da inverificação dos crimes por que o arguido foi condenado, por falta de dolo e por violação dos princípios in dubio pro reo, da tipicidade e da legalidade.
Sem embargo, como se deixou advertido em exame preliminar, entende-se que o recurso é de rejeitar, por se afigurar manifesta a sua improcedência – art. 420.º/1, do CPP.
Vejamos porquê – com a contenção recomendada pelo disposto no n.º 3 do mesmo art. 420.º, do CPP.
II
7. Importa, antes de mais, reter o acervo factológico que o Tribunal a quo assentou, como provado e como não provado, bem como fazer lembrete das razões que assim o determinaram.
7.1. O Tribunal assentou, como provada, a seguinte (transcrita) materialidade:
1. Em Queijas existe um bloco habitacional na Rua ..., do qual o arguido é condómino por ser proprietário duma loja. 2. Junto da entrada norte que dá acesso ao parqueamento do lote X que faz parte do bloco habitacional, foi colocada uma corrente, presa a dois pilares, a fim de impedir a entrada de viaturas cujos donos não residissem no local. 3. Discordando da colocação de tal corrente, o arguido, num dia de Maio de 2001, a fim de ali estacionar a viatura, conduzindo a viatura, matrícula ....., dirigiu-se ao local e forçou a entrada destruindo um dos pilares. 4. Em dia posterior, o arguido, com o mesmo propósito, chegado ao local, pegou num dos pilares que, entretanto, estava solto pela pancada que lhe havia dado, e guardou-o na bagageira da viatura. 5. O arguido, embora sendo condómino, sabia que não era o único proprietário e que ao destruir o pilar o fazia contra a vontade dos restantes proprietários. 6. Ao apoderar-se do mesmo fê-lo também contra a vontade dos restantes proprietários. 7. Ao agir da forma descrita fê-lo livre deliberada e conscientemente, sabendo que tais condutas são proibidas e punidas por lei. 8. O arguido é empresário, auferindo um rendimento mensal de cerca de 2.000,00 €. A mulher é doméstica. Tem um filho a seu cargo. Vive em casa própria, pagando uma prestação de cerca de 900,00 €. Tem o 7.º ano do liceu. 9. Já respondeu diversas vezes, nomeadamente, por desobediência, furto e ofensa à integridade física, tendo sempre sido condenado em multa.
7.2. Deixou-se exarado que «não se provou que o arguido ao entrar no espaço reservado o fazia contra a vontade dos seus legítimos proprietários».
7.3. Motivou-se o julgamento da matéria de facto nos seguintes (transcritos) termos:
A convicção do tribunal, no que respeita aos factos dados como provados, assentou na conjugação do depoimento do arguido que, embora negando alguns factos, acabou por na sua exposição, confessar a prática dos mesmos, sendo certo que declarou e é verdade ser também condómino e que tal lhe dava o direito de exigir que não se fechasse o parque.
Assentou, ainda, no depoimento das testemunhas arroladas pela acusação que depuseram de molde a convencer o tribunal, explicando como é que descobriram que o arguido não só partia o pilarete de suporte da corrente, como se referiram ao dia em que o arguido se apoderou do mesmo, sem deixar de se ter em conta que este acabou por confessar que o tinha em seu poder e que o queria devolver.
Quanto aos factos que dizem respeito à sua situação social e económica, assim como aos seus antecedentes criminais, também, nas suas declarações e no CRC, junto aos autos a fls. 78 e seguintes.
Nos factos dados como provados, na prova de que o arguido é condómino e, portanto, também, comproprietário das partes comuns do prédio.
8. Vejamos agora as questões sob exame.
8.1. Da ilegitimidade do queixoso para apresentação da queixa e consequente ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal.
A questão suscitada pelo recorrente foi já arguida, em idênticos termos e veio a ser apreciada, com trânsito, por acórdão desta Relação, de 11 de Fevereiro de 2004 (inserto a fls. 152-157 dos autos) – neste se determinou que, «afirmada a legitimidade do Ministério Público, o Tribunal a quo determine o prosseguimento dos autos com a realização da audiência de julgamento»
Daí que, em vista do julgado, não possa conceder-se a reiteração da mesma questão por esta via recursória.
Improcede pois, com evidência, esta parcela do alegado.
8.2. Da inverificação dos crimes por que o arguido foi condenado, por falta de dolo e por violação dos princípios in dubio pro reo, da tipicidade e da legalidade.
Neste particular, tanto quanto pode ler-se no enrevesamento da motivação[4], o recorrente defende, em síntese: (a) se o Tribunal tinha dúvidas relativamente à titularidade do pilarete objecto do furto e do dano, deveria ter lançado mão do favor rei; (b) o tipo objectivo do furto simples, do art. 203.º, do Código Penal não abrange o furto na compropriedade, nem o arguido teve intenção de fazer seu o pilarete em referência; (c) a coisa comum não se encontra abrangida pelo art. 212.º, do CP, que prevê e pune o crime de dano, para além de que o arguido agiu no exercício do seu direito de acesso ao parqueamento que constitui parte comum do prédio.
Afigura-se que, também neste ponto, é manifesta a improcedência do alegado.
Desde logo por que, não pode dizer-se, como o recorrente, que «não foi dado como provado que o pilarete seja comum ao condomínio».
Com efeito, resulta claramente dos factos provados, arrolados em 2 e 5, que o pilarete constituía bem do condomínio – independentemente de ter sido colocado no local por este ou por aquele condómino, designadamente pelo M..
Isto posto, importa ressaltar que, dado que as coisas comuns não pertencem a cada um dos comproprietários de forma plena, mas antes à totalidade dos consortes (arts. 1403.º e segs., do CC), tais coisas não podem deixar de se considerar alheias, para efeitos de incriminação do comproprietário que actue sob a alçada do disposto no art. 203.º/1, do CP, em detrimento dos demais consortes.
Com efeito, o direito parcial do comproprietário na coisa que foi objecto de apropriação não faz desaparecer o furto – «porque, apoderando-se de uma coisa que lhe não pertence senão em parte, comete necessariamente o furto da parte que lhe não pertence»[5].
Acresce salientar que, no furto de coisa comum, o dolo consiste na intenção de subtrair a coisa do poder de outro/s comproprietário/s, sob animus domini.
No caso, de resto, tanto quanto resulta da materialidade sedimentada em 1.ª instância, o arguido não pretendeu apenas evidenciar, com a apropriação, o pretextado exercício de um direito sobre parte da coisa comum – situação que configuraria um mero ilícito civil[6].
Tais considerações valem, mutatis mutandis, para o crime de dano em presença.
Não se vê, assim, de todo em todo, que o Tribunal a quo haja incorrido em qualquer violação dos invocados princípios in dubio pro reo, da tipicidade e da legalidade, conforme vem alegado.
9. A manifesta improcedência do recurso constitui um fundamento de rejeição do recurso de natureza substancial (e não formal), visando os casos em que os termos do recurso não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada, ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que não pode obter provimento[7].
É o caso sub specie, do recurso interposto pelo arguido, abonado com argumentário que, como vem de expor-se, não pode, de todo, manifestamente, merecer acolhimento.
10. A improcedência do recurso acarreta a condenação da recorrente em custas, nos termos prevenidos nos arts. 513.º/1 e 514.º/1, do CPP, com a taxa de justiça definida nos termos e com os critérios prevenidos nos arts. 82.º/1 e 87.º/1 b) e 3, estes do Código das Custas Judiciais (na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 342/2003, de 27 de Dezembro).
Acresce a sanção processual pela rejeição, nos termos prevenidos no art. 420.º/4, do CPP.
III
11. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se, por unanimidade: a) rejeitar o recurso interposto pelo arguido, F., por manifesta improcedência; b) sancionar o arguido recorrente com 3 (três) unidades de conta; c) condenar o arguido recorrente nas custas, com a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.
Lisboa,26/1/2005
RELATOR: António M. Clemente Lima
ADJUNTOS: Maria Isabel Duarte / António V. Oliveira Simões
__________________________________________________ [1] Fls. 45-47. [2] Acórdão de 11 de Fevereiro de 2004, a fls. 152-157. [3] Assinala-se que a sentença data de 6 de Julho de 2004, dela constando que foi «entregue para depósito em 15.07.2004» (fls. 197), vindo a declaração de depósito datada de 15-9-2004 (fls. 198). [4] Cujo argumentário se não vê sintetizado nas conclusões, como determina o art. 412.º/1, do CPP – salienta-se, v.g., a referência, em epígrafe, a fls. 207, a uma «contradição entre matéria de facto provada e a fundamentação», que, a final da minuta, não vem suportada nas conclusões -, tão pouco cuidando de seguir uma lógica preclusiva de argumentação, distinguindo a alegação de vícios da sentença no plano da matéria de facto da alegação de erro de julgamento em matéria de facto e, este, do erro de julgamento em matéria de direito. [5] Neste sentido, o Acórdão, da Relação de Coimbra, de 26-1-2000 (Proc. 3050/99, in www.dgsi.pt/jtrc). [6] Neste sentido, o Acórdão, da Relação de Lisboa, de 1-2-95 (Proc. 0332343, in www.dgsi.pt/jtrl). [7]Cf. a síntese proposta no Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-5-2003 (Proc. 1666/03 – 3.ª S, Cons. Henriques Gaspar, in www.stj.pt).