CONTRATO
DANO
Sumário

Contrato de fornecimento
1 – O contrato em virtude do qual uma parte se obriga a entregar coisas a outra, de forma periódica ou continuada, e esta a pagar um preço por elas, é um contrato de fornecimento, que consubstancia pela sua natureza e finalidade, uma compra e venda, de carácter duradouro e complexo.
2 - A prova da existência de dano, pressuposto da obrigação de indemnizar, incumbe ao lesado nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil.

Texto Integral

ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – RELATÓRIO
U, sociedade comercial com sede, Cacém, instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, contra K, S.A., sociedade comercial de direito espanhol, com sede em Barcelona, Espanha, pedindo a condenação desta em:
a) indemnização. pelos prejuízos que lhe causou através do incumprimento do contrato de fornecimento de duas mil toneladas de sulfato de alumínio, resultantes do incumprimento pela Autora do contrato com a EPAL, designadamente, de 21.095.000$00 a título de danos emergentes e de 2.100.000$00 a título de lucros cessantes. bem como pelos prejuízos que a Autora venha a sofrer devido ao incumprimento perante a EP AL e ainda pelos lucros cessantes da Autora relativos às restantes 700 toneladas, no valor 4.900.000$00;
b) indemnização. pelos prejuízos causados pela ruptura das negociações relativas ao fornecimento de duas mil toneladas de sulfato de alumínio sólido e de igual quantidade de sulfato de alumínio líquido nos anos de 1995 e 1996, correspondendo ao valor total 56.000.000$00. a título de lucros cessantes;
c) indemnização. pelos prejuízos causados pela ruptura das negociações relativas ao fornecimento de outros produtos da gama produzida pela Ré, no segundo semestre de 1994, em 1995 e 1996, no valor total de 93.050.000$00;
d) pagamento de juros sobre os montantes de todas as indemnizações, a contar da data da citação, à taxa supletiva legal.
Para tanto, alegou, em síntese, que acordou com a Ré, em primeiro lugar, o fornecimento, durante o ano de 1994, de um total de 2.000 toneladas de sulfato de alumínio sólido e a possibilidade de ser efectuado um fornecimento de entre 100 a 200 toneladas de sulfato de alumínio líquido, bem como outros produtos da gama de fabrico desta, nomeadamente colas sintéticas, cloreto de cálcio, ureia, água oxigenada, policloreto de alumínio, entre outros; em segundo lugar, o fornecimento de 2.000 toneladas de sulfato de alumínio sólido e outras 2.000 toneladas de sulfato de alumínio líquido em 1995 e de igual quantidade em 1996.
Que tal acordo foi efectuado na sequência de proposta apresentada pela Ré, após adjudicação pela EPAL à Autora, de uma encomenda de 1.300 toneladas de sulfato de alumínio sólido; que tal proposta veio ajudar a resolver um problema da Autora, cujo produto projectado fornecer fora rejeitado pela EPAL. Por carta de 24.03.1994 a Autora confirmou a encomenda de 1.000 toneladas de sulfato de alumínio sólido, mercadoria que foi expedida por navio, tendo os documentos relativos à venda sido enviados para o despachante indicado pela Autora.
Em 14.04.1994, dia em que o navio com a encomenda expedida estava previsto chegar a Lisboa, realizou-se uma reunião, tendo por objecto os fornecimentos para 1995 e 1996, em que estiveram presentes representantes da Autora, da Ré e dos seus parceiros comerciais portugueses, Grupo Mello e Quimitécnica; que nessa reunião, não obstante a oposição do Grupo Mello aos fornecimentos, a Ré não se manifestou, ficando a Autora com a convicção de que os acordos se mantinham.
Em 15.04.1994 a Ré enviou à Autora um fax em que comunicou que a encomenda expedida devia ser entregue à Quimitécnica, posição que reiterou a 19.04.1994. A Ré não cumpriu o contrato a que se tinha obrigado, o que foi causa de danos de diversa ordem sofridos pela Autora, que aquela tem o dever de indemnizar.

         Na pendência do procedimento de citação da Ré, a Autora veio ainda requerer a apensação do processo nº 582/94 a correr termos também neste tribunal, o que foi relegado para momento posterior à citação da Ré.

Regularmente citada, a Ré impugnou os factos alegados, aduzindo, em síntese, que os contactos comerciais havidos entre a Autora e a Ré deveram-se somente ao facto da EPAL ter recusado o produto apresentado pela Ré e destinaram-se exclusivamente a resolver esse problema. Em Fevereiro ou início de Março de 1994 a Ré foi contactada pela Autora que lhe pediu que lhe fornecesse 1.000 ton. de sulfato de alumínio sólido, informando e justificando o contacto com o facto de haver ganho o concurso para fornecimento desse produto à EPAL, mas que o produto que apresentara fora recusado já depois da adjudicação. A Ré aceitou vender as 1.000 ton. mas condicionou o negócio ao facto de a Autora se obrigar a integrar essas 1.000 ton. exclusivamente no fornecimento que lhe fora adjudicado pela EP AL, o que a A. aceitou.
A Autora manifestou o seu interesse em vir a adquirir à Ré outros produtos, tendo solicitado informações, que a Ré enviou. No entanto, o único acordo concluído foi o relativo ao fornecimento das 1.000 ton. de sulfato de alumínio que a Autora recebeu. A reunião de 14.04.1994 foi marcada porque a Ré foi informada por operadores nacionais que a Autora estava a oferecer no mercado nacional a vários potenciais compradores, sulfato de alumínio Kemira, a um preço muito reduzido, o que constituía uma violação frontal do acordo estabelecido.
Perante a admissão da Autora, a Ré comunicou que dava sem efeito a venda e resolvia o contrato devido ao incumprimento, por a Autora a ter induzido em erro e que as 1.000 ton. seriam vendidas à Quimitécnica. A Autora não esboçou qualquer oposição e aceitou a resolução da venda, percebendo posteriormente a Ré que tal se deveu ao facto de estar segura de receber a mercadoria embarcada, o que veio a acontecer, não obstante os esforços por ela desenvolvidos para o impedir.
Termina pedindo a improcedência da acção.

Nos termos do disposto no artigo 275º CPC, foi determinada a apensação do processo n.º 582/94.
Nesses autos, K, S.A., instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, contra U, Lda., em que pediu:
a) Por virtude da resolução do contrato, a condenação da Ré na devolução à Autora das 1.000 ton. de sulfato de alumínio sólido da marca Kemira que lhe foram entregues e
b) a pagar uma quantia. a título de indemnização pela indisponibilidade desse material pela Autora desde o dia 18.04.94, que deverá corresponder aos juros sobre o respectivo valor – 20.500.000$00 -  até efectiva e integral devolução.
c) Subsidiariamente. por virtude da resolução do contrato e caso não seja possível a restituição em espécie, a condenação da Ré no vazamento de Esc. 20.500.000$00 acrescidos dos juros vencidos desde 18.04.94 que totalizam, na presente data, Esc. 1.025.000$00 e vincendos até efectivo e integral pagamento.
d) Subsidiariamente, no caso de não se provar a resolução do contrato ou esta venha a ser julgada ineficaz ou inválida o que inviabilizará a causa de pedir de qualquer um dos pedidos anteriores, a condenação da Ré a pagar Esc. 20.500.000$00. acrescidos dos juros moratórios vencidos desde 20.07.94. que totalizam, na presente data, Esc. 410.000$00 e vincendos até ao efectivo e integral pagamento, o que corresponderá ao cumprimento da prestação pecuniária a que estava obrigada.
Para tanto, alegou, em síntese, que no início de Março de 1994 foi contactada pela U no sentido de lhe fornecer 1.000 ton. de sulfato de alumínio sólido, informando e justificando o contacto, com a necessidade de aquisição derivada de haver ganho o concurso para fornecimento desse produto à EPAL e que aceitou vender as 1.000 ton. ao preço especial de Esc. 20.500$00 por tonelada, com pagamento a 100 dias da data da factura, com base na afirmação da U de que pretendia adquirir o produto para o integrar, exclusivamente, no fornecimento à EPAL. Habitualmente vende os seus produtos à sociedade portuguesa S.A., com a qual tem relações comerciais estreitas e sedimentadas, a qual investe a vários títulos na promoção do produto K, pelo que seria considerado falta de lisura vender mais barato a terceiros que lhe iriam fazer concorrência. Diferente seria o fornecimento para o vencedor do concurso da EPAL, que estando definido previamente, seria indiferente à Quicom. Após confirmação escrita da encomenda, a mercadoria foi expedida da Finlândia por navio, consignada ao despachante Carlos Constante e com destino à morada da Unifa. No dia 11.04.94 foi emitida a respectiva factura.
Entretanto foi informada que a U estava a oferecer no mercado nacional, a vários potenciais compradores, sulfato de alumínio K, ao contrário do que tinha sido acordado e por isso marcou uma reunião que se veio a realizar em 14.04.94, na qual estiveram presentes representantes da K, da U e da Q, entre outros. Nessa reunião a U foi confrontada com o facto de tentar vender o produto a outros, sabendo que se a K tivesse conhecimento de ser essa a intenção da U o negócio não se teria realizado. Perante a admissão do facto pela U, comunicou-lhe que dava sem efeito a venda, resolvia o contrato devido ao incumprimento e ao facto da U a ter induzido em erro. A U aceitou a resolução do contrato. Porque entretanto o navio havia chegado a Lisboa, não foi lhe possível impedir a U de receber a mercadoria.

Regularmente citada, a U contestou, alegando, em síntese, que a petição é inepta porque existe contradição entre a causa de pedir e o pedido subsidiário.
Impugnou os factos alegados pela K genericamente afirmando o que consta da petição inicial do processo n° 516/94, concluindo que tendo havido uma resolução ilícita do contrato, não tem que devolver a mercadoria, nem tem que indemnizar ou pagar o preço enquanto não for decidida a indemnização por si pedida.
Termina pedindo a procedência da excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, a improcedência da acção e ainda a condenação da K como litigante de má-fé em multa e indemnização de valor não inferior a Esc. 1.500.000$00.

Em réplica, K S.A. impugnou a alegada ineptidão da petição inicial, terminando como na petição.

Em tréplica, U veio alegar a nulidade parcial da réplica.

Os artigos 16º a 100º da réplica apresentada pela K foram julgados não escritos e foi proferido despacho saneador, em que foi declarada improcedente a arguida ineptidão da petição inicial por parte da K.
Foi seleccionada a matéria de facto relevante que se considerou especificada e a que constituiu o questionário, de que foi deduzida reclamação pela Kemira, julgada parcialmente procedente.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal.
Foi proferida sentença que julgou
a) improcedentes os pedidos formulados por U Lda, deles absolvendo a demandada K S. A.
b) improcedente o pedido principal e o pedido subsidiário formulado em primeiro lugar por K S. A., deles absolvendo a demandada U Lda; e
c) procedente o segundo pedido subsidiário formulado K S. A. e condenou a Ré U Lda. a pagar a K S. A. a quantia de 102.253,56 € (20.500.000$00), acrescida de juros, à taxa de 15%/ano até 29-9-1995, de 10%/ano após esta data e até 16-4-1999 e de 7%/ano após 17-4-1999, vencidos desde 20-7-1994, bem como dos vincendos até integral pagamento.

   Inconformada, vem a U apelar da sentença, tendo no essencial, formulado as seguintes conclusões:
            (...).

Contra-alegou a Apelada, que, no essencial, formulou as seguintes conclusões:
(...)
Corridos os Vistos legais,

         Cumpre apreciar  e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste Tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que, conhecendo da Apelação, importa determinar se, a matéria provada permite concluir pela obrigação de indemnizar a cargo da Ré com fundamento em responsabilidade civil contratual.

II – FACTOS PROVADOS
1. A U dedica-se à importação e comercialização de produtos químicos, nomeadamente de sulfato de alumínio sólido e líquido (aI. a) da Especif.).
2. A K dedica-se à produção e comercialização de produtos químicos, nomeadamente de sulfato de alumínio sólido e líquido (aI. b) da Especif).
3. Em 15 de Novembro de 1993, a EPAL abriu concurso para o fornecimento de 1.300 toneladas de sulfato de alumínio sólido para a Estação de Tratamento de Águas de Vale da Pedra (aI. c) da Especif).
4. A U apresentou uma proposta naquele concurso (aI. d) da Especif).
5. Tal proposta foi apresentada com base no sulfato de alumínio sólido comercializado pela Auxiliar Papelera, S.A. (aI. e) da Especif).
6. Na sequência do aludido concurso, nos inícios de Março de 1994, a EPAL adjudicou à U o fornecimento de sulfato de alumínio sólido para a Estação de Tratamento de Águas de Vale da Pedra (aI. f) da Especif).
7. Segundo os termos de tal adjudicação, o sulfato sólido a fornecer à EPAL deveria ter um teor de alumínia (expresso em AL2 03) de 17%, um teor de insolúveis inferior a 0,20%, um teor de ferro inferior a 0,25%, um teor de arsénio inferior a 0,00005%, um teor em chumbo inferior a 0,00005%, um teor em mercúrio inferior a 0,000008%, basicamente em H2 S04 entre 1 e 4%, sendo que todo o produto deveria passar pelo peneiro U.S. Standard, tudo sob pena da EPAL considerar como não cumprido o contrato de adjudicação (aI. g) da Especif).
8. Na sequência do concurso referido e da adjudicação aludida, a U comprometeu-se a fornecer a EPAL, até 31 de Dezembro de 1994, 1300 toneladas de sulfato de alumínio sólido, bem como mais 130 toneladas de tal produto caso tal viesse a ser considerado necessário pela EPAL (resp. ao quesito 1°).
9. Em 21 de Fevereiro de 1994 a U veio a constatar que o sulfato de alumínio sólido fornecido pela Auxiliar Papelera apresentava uma granulosidade superior às exigidas pela EPAL (aI. h) da Especif).
10. Então, a Auxiliar Papelera informou a U que apenas poderia fornecer 130 toneladas de sulfato de alumínio sólido com as qualidades exigidas pela EPAL (aI. i) da Especif).
11. A K teve conhecimento do facto referido na alínea h) (resp. ao quesito 2°).
12. Após a referida adjudicação, a U foi contactada pela K, a qual manifestou o seu interesse em fornecer sulfato de alumínio à U, em reunião que ocorreu em 3 de Março de 1994 (resp. ao quesito 3°).
13. Na sequência daquela reunião de 3 de Março de 1994, a U desenvolveu diligências junto da EPAL com vista à aprovação por esta do sulfato de alumínio sólido comercializado pela K (resp. ao quesito 4°).
14. Aprovação essa que logrou obter da EPAL (resp. ao quesito 5°).
15. Em 17 de Março de 1994, a U e a K, acordaram que durante o ano de 1994 esta forneceria àquela 2.000 toneladas de sulfato de alumínio sólido e haveria ainda a possibilidade de ser efectuado um fornecimento de entre 100 a 200 toneladas de sulfato de alumínio líquido, bem como de outros produtos da gama de fabrico da K, nomeadamente colas sintéticas, cloreto de cálcio, ureia, água oxigenada e policloreto de alumínio, entre outros (resp. ao quesito 6°).
16. Em 17 de Março de 1994 a U e a K acordaram ainda que durante os anos de 1995 e 1996 esta forneceria àquela anualmente 2.000 toneladas de sulfato de alumínio sólido e 2.000 toneladas de sulfato de alumínio líquido, comprometendo-se a Kemira a desenvolver os melhores esforços junto dos seus sócios portugueses na Aliada Química, por forma a afastar quaisquer objecções que estes pudessem levantar a esse fornecimento à U (resp. ao quesito 7°).
17. Naquela reunião de 17 de Março de 1994, as partes acordaram que as mercadorias seriam entregues com a cláusula CIF, correndo o risco do respectivo perecimento por conta da U (resp. ao quesito 8°).
18. No dia 24 de Março de 1994 a U confirmou junto da K a encomenda de 1.000 toneladas de sulfato de alumínio sólido para entrega imediata (resp. ao quesito 9°).
19. A K fez uma comunicação à U, com o seguinte teor: "Na reunião que teve lugar no passado dia 14 de Abril de 1994 (...), foi entendimento de todos que a transacção de 1000 toneladas de sulfato de alumínio não seria realizada com V. Exas, mas sim com a Quim, S. A.. Em virtude disso, emitimos uma factura correspondente à venda desse produto à Quim, S. A. e, em simultâneo, foi anulada a factura que havia sido passada a V. Exas. Oportunamente remeteremos o respectivo documento de anulação. Contudo, devido a factos imprevisíveis, com especial relevância quanto à data de chegada do navio, e que são de todos conhecidos, não foi possível alterar em tempo útil o despacho da mercadoria, a qual acabou por ser entregue a V. Exas. Atento o exposto, vimos solicitar que nos comuniquem, na próxima Segunda-Feira, dia 18, qual o local, dia e hora em que a Quim S. A. poderá levantar a mercadoria, na certeza de que tal, no interesse de todos, deverá ocorrer o mais brevemente possível. Dispomo-nos, desde já, a suportar eventuais despesas em que V. Exas hajam incorrido com o levantamento e transporte da mercadoria." (aI. o) da Especif.).
20. A U integrou no seu património as 1.000 toneladas de sulfato de alumínio sólido provenientes da K (aI. j) da Especif.).
21. Aquando dessa integração de 1.000 toneladas de sulfato de alumínio sólido, a K não entregou à U, o documento EUR 1 (aI. i) da Especif).
22. O facto da K não ter entregue à U o documento EUR 1 levou a que esta pagasse direitos aduaneiros no valor de PTE 1.845.000$00 (resp. ao quesito 24°).
23. O preço acordado, pelo menos para o primeiro fornecimento de 1000 toneladas, era de 20.500$00 por tonelada (resp. ao quesito 27°).
24. As partes acordaram ainda que o pagamento do preço deveria ser efectuado a cem dias da data da factura (resp. ao quesito 30°).
25. Sendo que esta foi emitida em 11 de Abril de 1994 (resp. ao quesito 31°).
26. Em Abril de 1994, a U começou a oferecer o sulfato de alumínio sólido referido designadamente na alínea u) a terceiros que não a EPAL (resp. ao quesito 32°).
27. Em 19 de Abril de 1994, por fax, a K manifestou o seu propósito de não fornecer à U mais sulfato de alumínio sólido (resp. ao quesito 10°).
28. A partir de 19 de Abril de 1994 a K não mais forneceu qualquer mercadoria à U (aI. m) da Especif.).
29. Em 1994, o preço mínimo para revenda da tonelada de sulfato de alumínio sólido praticado pela K cifrava-se em PTE 22.000$00 (resp. ao quesito 34°).
30. Em 1994, a U entregou à EPAL 60,2 toneladas de sulfato de alumínio sólido que havia adquirido à Auxiliar Papelera (aI. n) da Especif.).

III – O DIREITO
1. Impugnação da matéria de facto
Alega a Apelante que se impõe a alteração das respostas dadas aos quesitos 11º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 19º e 23º, no sentido se serem os mesmos dados por provados, uma vez que foi produzida prova bastante.

Pese embora seja genericamente facultado às partes peticionarem a modificação da decisão da matéria de facto, mostra-se necessário que seja observado o ónus da discriminação fáctica e probatória – art. 690º-A do CPC e o ónus conclusivo – arts. 684º, 3 e 690º, 4 do CPC.
            Cabe assim ao recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e bem assim os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão diversa da recorrida.
            Por outro lado, sendo certo que este Tribunal só pode apreciar as questões que se mostrem vertidas nas conclusões, qualquer lacuna conclusiva pode vir a inviabilizar a sindicância deste Tribunal sobre a respectiva decisão.
(...)
Se tal prova não foi feita e a Apelante não indica meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão diversa da recorrida, não pode ver alterada a decisão proferida quanto à matéria de facto.

A fundamentação apresentada pela Apelante com vista à alteração da decisão da matéria de facto, parece esquecer que a nossa lei adjectiva consagra o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art. 655º do CPC, permitindo que o julgador aprecie livremente a prova e responda segundo a sua convicção, referindo, como foi o caso, quais os factos e os meios de prova que concorreram para a sua convicção, as razões da escolha de uns e desprezo de outros desses instrumentos probatórios [1]  [2].
As provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgador quanto à natureza delas, excepto se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que o julgador não poderá motivar-se indistintamente por qualquer dos meios de prova produzidos (cfr. art. 347º do CC) [3].
Ainda de harmonia com este princípio, de nada adianta valorizar este ou aquele documento este ou aquele depoimento testemunhal.
Por último, não se pode confundir o erro na apreciação da matéria de facto, com a mera discordância quanto ao convencimento do julgador e é só isso que, afinal, aqui está em causa.
Assim, apenas importa, tendo em conta a matéria dada por assente, verificar se foi correctamente aplicado o direito.

2. Dos efeitos da compra e venda
"A qualificação de um contrato é um juízo predicativo. O contrato é qualificado através do reconhecimento nele de uma qualidade que é a qualidade de corresponder a este ou àquele tipo, a este ou àquele modelo típico . A qualificação legal traz consigo, assim, sempre um processo de relacionação entre a regulação contratual subjectiva estipulada e o ordenamento legal objectivo, onde o catálogo dos tipos contratuais legais se contém" [4].
Da factualidade apurada conclui-se pela existência de um acordo entre as partes, pelo qual uma adquiriria e outra forneceria, nos anos de 1994 a 1996, 2.000 toneladas de sulfato de alumínio sólido e ainda sulfato de alumínio líquido e outros produtos da mesma linha de fabrico.
Em concreto nestes autos, e enquadrando esta matéria na factualidade apurada, resulta claro que estamos diante de um contrato de fornecimento de diversos produtos.
Não tem este tipo contratual um conceito preciso e diferenciado definido na lei, mas pode considerar-se como "o contrato em virtude do qual uma parte se obriga a entregar coisas a outra, de forma periódica ou continuada, e esta a pagar um preço por elas"[5], o que o aproxima vincadamente do contrato de compra e venda [6].
Segundo Cunha Gonçalves, o contrato de fornecimento caracteriza-se por um dos contraentes se obrigar a consignar ao outro uma quantidade fixa e determinada, para cada vez, ou ilimitada ou posteriormente determinável, de mercadoria de espécie e qualidade convencionadas, ou em períodos pré-estabelecidos ou à requisição do segundo contraente, por um preço antecipadamente estipulado e igual para cada prestação parcial ou a convencionar-se em cada ocasião.
Em qualquer caso, o certo é que do contrato celebrado, tal como na compra e venda[7], existem dois tipos de efeitos: um real (consistente na transferência da titularidade de um bem ou direito para outrem) e, outro, obrigacional (para o fornecedor, entregar o fornecimento; para o fornecido, pagar o correlativo preço - uma obrigação pecuniária - art. 550º CC).
Este tipo de contrato é, assim, integrado por múltiplos contratos de compra e venda, referentes a cada um dos concretos fornecimentos, sendo o respectivo cumprimento ou incumprimento aferido pela globalidade do acordado, sem prejuízo da apreciação do cumprimento de cada um dos contratos parcelares, em que se consubstanciam as respectivas prestações.
Sucede que, na execução desse acordo, apenas foi realizada única prestação, que consistiu no fornecimento das 1.000 toneladas referidas nos autos, sendo certo que as partes haviam acordado a prestação de maior quantidade e durante um prolongado período de tempo, além de que, sensivelmente ao tempo da realização de tal prestação, aquela também informou a Unifa de que não lhe forneceria mais qualquer produto.
Nos termos do disposto no artigo 406°, n° 1 do Cód. Civil, "O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contra entes ou nos casos admitidos na lei ".
Ao incumprimento deste contrato aplicam-se as normas do contrato de compra e venda. Refere, neste particular, o art. 798º que "o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor".
Tal como bem refere a sentença recorrida, tendo havido acordo quanto às obrigações de aquisição e fornecimento, só por novo acordo poderia uma das partes desistir ou modificar o mesmo, pelo que a manifestação do propósito da Kemira de não fornecer mais sulfato de alumínio sólido, não pode deixar de não ser interpretada como uma declaração antecipada de não cumprimento do acordado, incumprimento este que se tem por definitivo, sendo certo que, de todo o modo, no domínio da responsabilidade contratual a lei estabelece uma presunção de culpa do devedor
Ao incumprimento deste contrato aplicam-se as normas do contrato de compra e venda.
Refere, neste particular, o art. 798º que "o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor", pelo que a inexecução definitiva da prestação, imputável à K, toma-a responsável pelo prejuízo que, com o incumprimento, tenha causado à U.
Aqui, a obrigação de indemnizar reveste natureza claramente contratual ou obrigacional, porquanto, subordinada embora aos pressupostos comuns a todas as formas de responsabilidade - acto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano - ela resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico (ou de um contrato)[8].

3. O nexo de causalidade e os danos
Provada que a K ao resolver unilateralmente o contrato, praticou um acto ilícito e culposo, importa verificar se o incumprimento definitivo do contrato causou à Apelante danos.
A resposta da lei ao problema da causalidade vem dada no art.º 563.º do C.C. Pelo seu espirito, colhido nos trabalhos preparatórios do Código, tal disposição quer sem dúvida consagrar o recurso ao prognostico objectivo, nos termos da doutrina da causalidade adequada.
Quando a lesão proceda de facto ilícito, é a formulação negativa dessa teoria que, em princípio, deve reputar-se adoptada no nosso direito [9].
O dano aparece definido, segundo as palavras do Prof. Vaz Serra [10], como todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos de carácter patrimonial ou não. Já na fórmula do Prof. Pereira Coelho, "por dano pode entender-se, por um lado o prejuízo real que o lesado sofreu in natura, em forma de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem corpóreo ou ideal" [11].
Rege, quanto a estes, como se sabe, em primeira linha, o princípio da reposição natural, expresso no art. 562º do CC. E, quando este não for possível, não for bastante ou não for idóneo (art. 566º nº 1) há que lançar mão da indemnização em dinheiro a fixar de acordo com a teoria da diferença (art. 566º nº 2), em que a indemnização tem como medida, em princípio, a diferença entre a situação patrimonial real do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a situação hipotética que teria, nessa data, se não tivesse ocorrido o facto lesivo gerador do dano.
O dano apresenta várias configurações, segundo a natureza dos bens jurídicos violados. Aquele que é susceptível de avaliação pecuniária, "traduzido numa abstracta diminuição do património", distinguir-se-á por patrimonial. Aquele que afecta bens não patrimoniais (bens de personalidade) insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária e cuja reparação só pode alcançar-se por mera compensação, designar-se-á por não patrimonial.
Com profundas raízes no nosso ordenamento jurídico, o dano patrimonial desdobra-se em duas categorias (art. 564º, n.º 1, do C. Civil) - o dano emergente ou positivo, caracterizado por uma perda ou desfalque de valores que já constituíram o património do lesado; o lucro ou frustrado, caracterizado pelo corte ou frustração no rendimento ou patrimonial.
Os danos não patrimoniais correspondem a lesões que não acarretam directamente consequências patrimoniais imediatamente valoráveis  em termos económicos, lesões que redundam em dores físicas e sofrimento psicológico, num injusto turbamento de ânimo na vítima e são indemnizáveis, nos termos do art. 496º, nº 1 do CC, quando, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.

Cabia, obviamente, ao lesado, a aqui Apelante, a prova da existência de danos, como decorre do disposto no art. 342º, nº 1 do CC.
A este respeito a U peticionou os seguintes danos emergentes no total de 21.095.000$00, por força do incumprimento contratual por parte da K:
- 18.200.000$00 por dano de imagem por ter incumprido o contrato que celebrara com a E.P.A.L e outros fornecedores de (arts. 124 a 126 da p.i.);
- 1.845.000$00, resultantes do pagamento de direitos aduaneiros no valor de face à não entrega do doc. EUR1, por parte da K (art. 130º da p.i.);
- 1.050.000$00, correspondente à parte proporcional às 300 ton. na garantia bancária de 4.550.000$00 prestada pela U (art. 131º da p.i.).

3.1. Porém, a verdade é que não se provou que a U, aqui Apelante tenha incumprido o contrato com a E.P.A.L. (as respostas aos quesitos que tratavam tal matéria - designadamente 11° a 14°, foram "não provados"), sendo certo que apenas se sabe que as 300 ton. alegadamente em falta para o ano de 1994, não foram fornecidas pela K. No entanto, desconhece-se se a EPAL exigiu à K as restantes 300 ton., ou se a Apelante chegou a fornecer o produto proveniente de outro fornecedor.
Assim, para além de não parecer adequado à quantificação do dano de imagem - relacionado com fenómenos de quebras de vendas ou perda de clientes em consequência de determinado facto prejudicial à imagem pública de determinada empresa - o critério utilizado para o cálculo deste dano, que teve por base as expectativas de venda e crescimento da Apelante relacionadas com os alegados negócios a celebrar, a verdade é que não se provou que a posição no mercado da Apelante tenha sofrido em função da relação entre o facto prejudicial à sua imagem e os respectivos resultados ou vendas.

3.2. Relativamente aos danos conexos com a prestação de garantia bancária, também não logrou a A., provar quaisquer danos, até porque, que se saiba, não foram accionadas quaisquer medidas sancionatórias e, como se disse, a Apelante não demonstrou que a EPAL tenha exigido as referidas 300 ton. em causa.
Não foi, assim, feita prova da execução da garantia bancária, pelo que, também, nesta parte não pode a Apelação obter vencimento.

3.3. Já quanto ao pagamento de 1.845.000$00 de direitos aduaneiros, em consequência de não lhe ter sido entregue o documento EUR 1, verifica-se que a A. fez prova não só desse pagamento, como também que o mesmo ocorreu em consequência do comportamento da Kemira, Ré, que assim causou à A. um prejuízo no montante peticionado.
E a verdade é que a A. descriminou o referido valor no art. 130º da petição, que englobou no pedido relativo a danos emergentes (na alínea a) do pedido de condenação), pese embora não tenha usado da melhor técnica para o efeito, porque não descriminou as parcelas relativas aos danos emergentes, decorrentes do incumprimento do acordado com a EPAL.
Verifica-se, porém, que o valor peticionado de 21.095.000$00 é o resultado da soma do valor do dano de imagem (18.200.000$00), com os valores relativos à garantia bancária (1.050.000$00) e aos encargos aduaneiros (1.850.000$00).
Assim sendo, considerando que a A., ora Apelante, na acção que intentou contra a K, peticionou a condenação desta no pagamento da quantia de 1.850.000$00, relativa a encargos aduaneiros, tem direito ser ressarcida pelo correspondente prejuízo causado, no valor de 1.850.000$00, valor este acrescido de juros vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento, à respectivas taxas legais em vigor, conforme peticiona.
Procede, nesta parte, a Apelação.

3.4. Quanto aos demais prejuízos peticionados, a fls. 35, quer os referentes a lucros cessantes, constantes da alínea a), de 2.100.000$00 e de 4.900.000$00, quer nas alíneas b), de 56.000.000$00 e c), de 93.050.000$00, reportados a prejuízos decorrentes da ruptura de negociações relativas ao fornecimento de sulfato de alumínio e restantes produtos, a A. U, não logrou provar qualquer facto que consubstancie algum dos prejuízos que alegou e em que fundamentou os demais pedidos.
Assim sendo nem sequer se trata de um problema de quantificação indeterminada, o que conduziria a uma condenação em quantia a liquidar em execução de sentença.
Com efeito os factos que nessa sede articulou, e que constituem a matéria dos quesitos 15° a 23°, não ficaram provados, pelo que a falta de prova da existência de prejuízos por parte da Autora U determina a não obrigação de indemnização por parte da Ré K e a consequente improcedência do pedido, excepto, no que concerne ao montante de 1.850.000$00, pelas razões supra referidas.
IV – DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar parcialmente procedente a Apelação, e em consequência:
a) julga-se parcialmente procedente por provada a acção em que é A. a aqui Apelante U e, consequentemente, condena-se a Ré K a pagar à U a quantia correspondente em EUROS a 1.850.000$00, acrescida de juros, vencidos e vincendos à respectiva taxa legal em vigor, desde a citação até integral pagamento.
b) confirma-se, no mais, a sentença recorrida.
Custas em ambas as instância a cargo da U e K, tendo em atenção os respectivos decaimentos.

            Lisboa, 3 de Fevereiro de 2005.

(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)

________________________________________
[1] Rui Rangel, A Prova e a Gravação da Audiência no Direito Processual Civil, Cosmos, Lisboa, 1998, pag. 111.
[2] Vide despacho decisório da matéria de facto, a fls. 670-674.
[3] Vide A. Reis, Código de Processo Civil anotado, Coimbra Editora, Vol. IV, 3ª ed., pag. 544.
[4] Pedro Paes de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, 1995, pags. 164-165.
[5] Gabriel Stiglitz, Contrato de Suministro, in, Rúben Stiglitz, Contratos -Teoria General, I, Depalma, Buenos Aires, 1994, pag. 209.

[6] "Apresenta, na maioria dos casos, notáveis semelhanças com a compra e venda, ainda que o fornecimento venha essencialmente caracterizado pela periodicidade ou continuidade das várias prestações singulares de dar que pesam sobre o fornecedor" - ob. loc. cit.
[7] Sobre a noção de compra e venda e efeitos podem consultar-se entre outros Raúl Ventura, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, ROA, ano 43, 1983, pags. 261 a 318 e 587 a 643 ; Pedro Romano Martinez, Contratos em Especial, Universidade Católica Portuguesa, 1995, 1ª edição, pags. 16 a 63; Menezes Cordeiro (com Pedro Albuquerque e Carneiro da Frada, Direito das Obrigações, 3º volume - Contratos em Especial - AAFDL, 1990, pags. 9 a 85.
[8] Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª Ed., págs. 321 a 325.
[9] A. Varela, Das Obrigações em Geral, 9.ª ed., págs. 929-930.
[10] In BMJ 84º-8.

[11] "Dano será, por exemplo, a perda ou deterioração de uma certa coisa, o dispêndio de uma certa soma em dinheiro para fazer face a uma despesa tornada necessária, o impedimento da aquisição de um determinado bem, a dor sofrida" cfr. "O Problema da Causa virtual na Responsabilidade Civil”, pp. 250.