1 - O contrato de seguro de vida que visa, além do mais, a captação de aforro, por um determinado prazo, com rendimento pago apenas e em regra no termo desse prazo é, no fundo, um produto de poupança de médio/longo prazo, sob a forma de seguro de vida que investe os seus prémios nomeadamente em fundos de investimento, garantindo em regra a total liquidez.
2 - Trata-se da figura do contra-seguro, modalidade de seguro de vida que prevê o reembolso dos prémios pagos pelo ou ao tomador/segurado, com ou sem capitalização. O contra-seguro de prémios é, portanto, uma garantia do reembolso dos prémios de um seguro em caso de vida ou de um seguro dotal, quando se verifica a morte do segurado antes da data de exigibilidade do capital ou da renda.
3 - A característica de contra-seguro, permitindo o resgate, pelo tomador do seguro, leva a concluir que o valor em causa faz parte do património do de cujus e, como tal, faz parte da sua herança.
I – RELATÓRIO
MARIA intentou acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra o BANCO e contra Companhia de Seguros, alegando que é a filha mais velha de Arlindo, falecido em 8 de Junho de 1999 e por isso exerce as funções de cabeça de casal, pelo que, tendo este aberto uma conta numa agência do 1º R. e realizado um seguro na 2ª R., aliado á referida conta, nos termos do qual, em caso de morte, os herdeiros eram os seus beneficiários, vem pedir a condenação da 1ª R a entregar-lhe o saldo da referida conta e ainda o valor do seguro.
Contestou a primeira Ré alegando que nunca se opôs à devolução do saldo da conta pelo que o peticionado pela autora nestes autos não tem fundamento dada a falta de oposição pela R.
A 2ª R. veio também contestar, por excepção, alegando que o montante do seguro não existia no património do “de cujus", uma vez que o mesmo só "nasceu” com a morte daquele e já na esfera dos herdeiros, não tendo a A., enquanto cabeça de casal, legitimidade para reivindicar o montante em causa, pelo que esse valor só pode ser pago a todos os beneficiários ou a quem estes indicarem.
Mais tarde veio a A. desistir do pedido quanto ao 1º R., tendo, por sentença, sido homologada a desistência.
Foi proferido despacho saneador que proferiu decisão sobre a questão jurídica suscitada nos autos, julgando a acção parcialmente procedente por provada e condenou a Ré Seguradora a entregar à A. a quantia de Esc: 600.000$00, correspondente a € 2.992,78, absolvendo-a do restante contra ela peticionado.
Inconformada a A. apelou da sentença, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:
1. Segundo clausula contratual ajustada entre o de cujus e a Apelada esta, em caso de morte daquele, garantia o saldo do pagamento de prémio de seguro, no caso, 3.000.000$00, aos herdeiros legais daquele e, em vida, o seu pagamento ao mesmo, no prazo de vencimento.
2. Pelo exposto e por força do contrato de seguro ajustado, o de cujus era titular de um direito de crédito que lhe seria satisfeito no prazo de vencimento, caso fosse vivo e entregue aos seus herdeiros legais caso falecesse entretanto, integrando-se, assim, no âmbito da sucessão (artigo 2.024º do Código Civil).
3. A designação feita pelo de cujus segundo a qual os seus herdeiros legais seriam os beneficiários, é nula, por ofender disposições legais que estatuem que só por contrato sucessório ou testamento se pode dispor mortis causa (artigos 2.028.°, 2.179.°, 1.689.°, 946.°, 219.° e 220.° todos do Código Civil).
4. Se assim não fosse, tal disposição permitiria situações de fraude à lei, designadamente às normas que consignam a capacidade sucessória.
5. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 2.024.°, 2.028.°, 2.179.°, 1.689.°, 946.°, 219.° e 220.° todos do Código Civil.
6. Mas, ainda que se entenda ser tal disposição válida, então, tendo ela como objectivo expresso a designação dos herdeiros legais do de cujus como beneficiários, demonstra que o de cujus quis remeter para o âmbito das regras da sucessão, a qual, encontrando-se sob a administração do cabeça de casal, permite que seja este a reclamá-la em nome dos herdeiros, nos termos do artigo 2.079º do Código Civil, preceito que a sentença recorrida violou.
Contra-alegou a Ré Seguradora que no essencial concluiu:
1. Consta da proposta do contrato de seguro denominado "capital rendimento" referido nos autos que os respectivos beneficiários são em vida Arlindo e em caso de morte, os herdeiros do falecido Arlindo.
2. O referido contrato de seguro constitui contrato a favor de terceiro.
3. Os herdeiros do falecido Arlindo adquiriram directamente no seu património o direito ao pagamento do capital seguro, em consequência do óbito.
4. O direito ao pagamento do capital seguro nunca existiu no património do referido Arlindo.
5. O direito ao pagamento do capital seguro não integra a herança deixada pelo falecido Arlindo.
6. Não se verificou a substituição do falecido Arlindo pelos beneficiários do referido contrato de seguro denominado "capital rendimento", em consequência do óbito daquele na posição jurídica de que aquele era titular relativamente ao mencionado contrato de seguro denominado "capital rendimento".
7. A cláusula beneficiária para o caso de óbito do referido Arlindo inserta no mencionado contrato de seguro denominado "capital rendimento" não constitui pacto sucessório.
8. No despacho saneador-sentença decidiu-se - e bem - atribuir à recorrente apenas a parte que lhe incumbe no capital seguro, atenta a sua qualidade de beneficiária do contrato de seguro denominado "capital rendimento".
Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste Tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que, a questão fundamental a decidir consiste em saber se o direito à quantia em causa integra a herança deixada pelo falecido Arlindo, podendo o seu pagamento ser reivindicado, na totalidade pela A. enquanto cabeça de casal, ou se nasceu na esfera jurídica da A. e de seus irmãos, enquanto beneficiários do seguro, só podendo, nesta acção, a A., obter o pagamento da parte a que tem direito.
II – FACTOS PROVADOS
1. Como consta da escritura de habilitação a fls. 9, no dia 8 de Junho de 1999 faleceu Arlindo, no estado civil de viúvo, sem deixar testamento e tendo deixado como únicos herdeiros os seus filhos:
1. Maria, nascida em 24 de Julho de 1949;
2. Dalila, nascida em 23 de Agosto de 1963;
3. Ana, nascida em 8 de Maio de 1970;
4. Rogério, nascido em 3 de Abril de 1976;
5. OrIando, nascido em 22 de Março de 1979.
2. Maria, A., é a filha mais velha do falecido.
3. Arlindo, á data de sua morte, era titular da conta de depósitos à ordem nº 018.23413.000.0, a qual apresentava um saldo de 382$00.
4. Era também titular de um "contrato de seguro intitulado seguro "capital rendimento", titulado pela apólice n° 628191, outorgado com a Ré – Companhia de Seguros, com efeitos desde 6 de Abril de 1999, pelo prazo de 9 anos, sendo beneficiário o falecido, ou, em caso de morte deste, os seus herdeiros.
III- O DIREITO
Em causa está a decisão que entendeu condenar a Seguradora no pagamento da quantia de 2.292,78 €, absolvendo-a quanto ao mais peticionado, por considerar que os herdeiros do falecido Arlindo adquiriram directamente no seu património o direito ao pagamento do capital seguro, não integrando a herança, pelo que a A. só teria direito a reclamar o pagamento da quota-parte do valor que lhe cabe.
Discorda a Apelante, por considerar que o de cujus, era titular de um direito de crédito que lhe seria satisfeito no prazo de vencimento, caso fosse vivo e entregue aos seus herdeiros, caso falecesse. Daí que, o valor reclamado, se integre no âmbito da sucessão, pelo que, enquanto cabeça de casal e ao abrigo do disposto no art. 2079º e 2088º do CC tem a faculdade de reclamar, em nome dos herdeiros, a entrega da referida quantia, na sua totalidade.
1. O contrato de seguro é, como decorre do art. 426º C.Com., um negócio jurídico rigorosamente formal, nomeadamente sujeito ao art. 238º, nº1º, C.Civ., de tal modo que, emitida a apólice, vale com o conteúdo que dela consta[1].
A prestação da seguradora tem um destinatário que as mais das vezes é o próprio segurado.
A designação do beneficiário é um direito próprio e exclusivo do tomador do seguro, que só ele pode exercer.
O terceiro beneficiário do seguro pode resultar directamente da apólice ou depender de uma determinação indirecta.
Assim, o beneficiário é directamente determinado quando a prestação da seguradora deva ser feita a pessoa certa, identificada na apólice. A determinação do beneficiário é indirecta quando assegurada a indemnização de eventual terceiro, em determinadas circunstâncias constantes da apólice[2].
De sublinhar, ainda, que, de acordo com o art. 427º Código Comercial, o tipo de contrato em análise se regula pelas disposições da respectiva apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste Código, sendo certo que, a apólice é o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador de seguro e a seguradora e é integrada pelas condições gerais, especiais e particulares acordadas.
Trata-se, portanto, de um contrato bilateral ou sinalagmático, formal e aleatório, na medida em que a prestação da seguradora fica dependente de um evento futuro e incerto.
2. Do contra-seguro
No caso sub judice, verifica-se que de acordo com a apólice junta aos autos a fls. 51 a 53, foi celebrado contrato de seguro designado por “Capital Rendimento” (Ramo Vida), cujo beneficiário era, o próprio segurado e no caso de morte deste, os seus herdeiros.
Estamos, aqui, perante uma modalidade de contrato de seguro de vida que visa, além do mais, a captação de aforro, por um determinado prazo, com rendimento pago apenas e em regra no termo desse prazo. É, no fundo, um produto de poupança de médio/longo prazo, sob a forma de seguros de vida que investem os seus prémios nomeadamente em fundos de investimento, garantindo em regra a total liquidez.
Não estamos aqui perante um contrato de seguro do ramo vida tradicional, que é efectuado sobre a vida da pessoa segura, que permite garantir, como cobertura principal, o risco morte ou de sobrevivência ou ambos[3], visto que, como se referiu, prevê-se o reembolso dos prémios pagos pelo segurado, com ou sem capitalização.
No dizer do acórdão desta Relação e Secção [4], que aqui seguimos de perto, estamos perante “...um contrato de seguro especial, uma vez que o pressuposto do contrato de seguro comum, que é ser “aleatório”, característica que consiste em os seus efeitos dependerem da ocorrência de um facto futuro e incerto, não se verifica em pleno neste tipo de contratos”.
É que, como se constata da leitura das cláusulas 4ª e 11ª das Condições Gerais (fls. 52/53) prevê-se o reembolso dos prémios pagos pelo ou ao tomador/segurado, com ou sem capitalização.
E ainda na cláusula 8ª é permitido o resgate, podendo, assim, o tomador do seguro fazer cessar antecipadamente o contrato de seguro, sendo reembolsado pela seguradora, a Companhia de Seguros Tranquilidade, no montante devido e de acordo com as condições previstas no contrato.
Trata-se da figura do contra-seguro, “... modalidade de seguro de vida que prevê o reembolso dos prémios pagos pelo ou ao tomador/segurado, com ou sem capitalização.”.
“De acordo com a cláusula de contra-seguro, no caso de falecimento do tomador ou do beneficiário antes do prazo do contrato, a seguradora obriga-se a restituir a totalidade dos prémios pagos”[5].
O contra-seguro de prémios é, portanto, uma garantia do reembolso dos prémios de um seguro em caso de vida ou de um seguro dotal, quando se verifica a morte do segurado antes da data de exigibilidade do capital ou da renda.
E não estando, como vimos, perante um contrato do ramos vida tout court, também se não pode concluir, como na sentença recorrida, que o direito ao pagamento do capital seguro não integra a herança deixada pelo falecido Arlindo Ferreira e que os seus herdeiros adquiriram directamente no seu património o direito ao pagamento do capital seguro, em consequência do óbito.
De facto, a característica de contra-seguro, permitindo o resgate, pelo tomador do seguro, leva a concluir que o valor em causa faz parte do património do de cujus e, como tal, faz parte da sua herança.
O tomador do seguro pretendeu que a referida quantia pertencente ao seu património e caso não fosse por si resgatada, fosse entregue, quando ocorresse a sua morte, aos seus herdeiros (no caso os seus filhos), devendo tal entrega ser efectuada por terceiro, no caso a Apelada.
Mesmo que se considere que a cláusula, constante da apólice de seguro, integra uma doação, (arts. 940.º e 945.º, do C.C.), não pode deixar de ter-se como nula, na medida em que se destina a produzir efeitos após a morte do doador, sendo certo que são proibidas as doações por morte (art. 946.º n.º1 do CC.) e que também não estamos perante uma deixa testamentária, visto que não são observadas regras relativas à forma (arts. 219º e 220º do CC).
Vale isto por dizer que não poderia a sentença recorrida, antecipando a partilha, condenar a Apelada no pagamento da parcela correspondente ao “quinhão” da A.
3. Da administração da herança
Conforme preceitua o art. 2079°, do Cód. Civil, a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal.
O cabecelato é exercido pelo cônjuge sobrevivo, ou, na sua inexistência, pelo testamenteiro caso o haja, ou, se não houver testamenteiro, pelos seus herdeiros legais, dando-se primazia aos herdeiros mais próximos em grau, e no caso de todos se encontrarem em igualdade de circunstâncias, ao mais velho (cfr. art. 2080° do CC).
Face a tal enquadramento jurídico e à matéria considerada assente, designadamente o teor da escritura de habilitação, dúvidas não se suscitam que Maria da Conceição Ferreira, ora Apelante, é a herdeira a quem, nos termos legais, incumbe a função de cabeça-de-casal, por ser entre os herdeiros que se encontram em igualdade de circunstâncias (todos filhos do falecido Arlindo), o mais velho (cfr. art. 2080º CC).
Ora, o art. 2088º, sob a epígrafe "Entrega de bens", prescreve, no seu nº 1, que o “cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído".
Tem-se, assim, como essencial que a entrega material dos bens seja realmente necessária ao exercício da gestão que os artigos 2079º e 2087º confiam ao cabeça-de-casal como administrador da herança[6].
Como se deixou dito, o de cujus encarregou terceiro, a Seguradora/Apelada de proceder à entrega da referida quantia aos herdeiros.
E estando provado que a A. reúne as condições para exercer o cabeçalato, competindo-lhe administrar os bens da herança, deverá esse encargo ser cumprido pela Apelada, cpm a entrega do valor depositado `Apelante, por forma a que esta, no âmbito dos seus poderes de administração, possa, se for caso disso, rentabilizar o capital que faz parte do património deixado por morte de Arlindo Ferreira, da maneira que entender mais adequada.
Enquanto cabeça de casal, a Apelante tem legitimidade para assim reivindicar a entrega do capital depositado na Apelada.
Assim, procedem as conclusões apresentadas pela Recorrente, competindo à Companhia de Seguros Tranquilidade, com vista ao cumprimento do encargo determinado, proceder à entrega do capital na sua totalidade à Apelante, enquanto cabeça de casal da herança aberta por óbito de Arlindo Ferreira.
O referido capital de 3.000.000$00 deve ser entregue acrescido de juros de mora, tendo presente os termos dos artigos 804º e 805º do CC., que são devidos desde a citação da Ré/Apelada.
IV – DECISÃO
Por todo o exposto acorda-se em julgar procedente a Apelação, alterando-se a sentença recorrida, nos seguintes termos:
Condena-se a Ré Tranquilidade a entregar à À, enquanto cabeça de casal da herança aberta por óbito de Arlindo Ferreira, a quantia equivalente em Euros a 3.000.000$00, acrescida de juros de mora, desde a citação e até integral pagamento, à taxa legal.
Custas em ambas as instâncias a cargo da Ré Tranquilidade.
Lisboa, 14 de Abril de 2005.