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ARRENDAMENTO POR CURTO PERÍODO
DENÚNCIA
ABUSO DE DIREITO
Sumário
1 – Tendo o senhorio, por acordo escrito, cedido aos réus o gozo da fracção identificada nos autos, mobilada, pelo prazo de seis meses, pela renda mensal de 3.500$00, e com destino a habitação de férias e época balnear, trata-se de um contrato de arrendamento para habitação ocasional ou transitória do arrendatário, não sendo, pois, um arrendamento vinculístico. 2 – Ao contrato sub judicio, não obstante a entrada em vigor do RAU, aplicam-se as normas do regime geral de locação, previstas nos artigos 1022º a 1063º do CC. 3 – Não existindo qualquer norma legal no âmbito do regime de locação civil que sujeite o direito de denúncia a um qualquer prazo de caducidade, não caducou o direito de denúncia do contrato em causa, apesar do réu ter deixado de ali pernoitar, tomar refeições e receber amigos, mesmo em período de férias, desde o ano de 1996, até ao ano de 1999.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1.
(A), litigando com o apoio judiciário, demandou, no Tribunal Judicial de Almada, (J) e (M), pedindo que seja declarado resolvido o contrato de arrendamento respeitante à fracção autónoma correspondente ao 7º andar esquerdo do prédio sito no nº ... da Avenida General Humberto Delgado, na Costa da Caparica, e, consequentemente, os Réus sejam condenados no despejo da casa arrendada no termo do contrato, em 30 de Maio de 1999.
Fundamentando a sua pretensão, alegou a autora, em síntese, que é dona da fracção em causa, a qual havia sido dada de arrendamento pelo anterior proprietário, mobilado e por seis meses, com destino a habitação de férias e época balnear.
Os Réus contestaram, alegando existir contradição na factualidade alegada como causa de pedir, e ainda que o Réu (J) fez do locado, desde 1975, a sua residência habitual e casa de morada de família. Assim, o direito de denúncia da Autora já caducou há muito, questão que, alias, já foi discutida noutro processo que correu termos neste Tribunal, pelo que existe caso julgado quanto à mesma.
Pugnam, assim, pela improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções de caso julgado e de ineptidão da petição inicial, relegando-se para final a apreciação da invocada excepção de caducidade.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida decisão quanto a matéria de facto, que não foi objecto de qualquer reclamação, e, em seguida, a sentença, que, julgando a excepção de caducidade invocada improcedente e procedente a acção, decidiu:
a) – Declarar cessado, por denúncia, o contrato de arrendamento respeitante à fracção autónoma correspondente ao 7º andar esquerdo do prédio sito no nº ... da Avenida General Humberto Delgado, na Costa da Caparica.
b) – Condenar os réus a despejar de imediato o locado acima referido e a restituí-lo à autora, livre de pessoas e bens.
Inconformados, apelaram os réus, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O contrato alegado é de férias;
2ª – Ao regime de desocupação não é aplicável o RAU mas a reivindicação;
3ª – O contrato não foi aqui decidido como controvertido em contrato de arrendamento comum, que fosse aplicável o RAU.
4ª – O RAU é inaplicável às duas situações, confirmando-se a absolvição de instância.
5ª – O arrendamento aos réus evidencia a caducidade pelo conhecimento da autora, desse facto, há mais de 40 anos.
6ª – Por sua vez, essa situação contratual da autora só foi assim porque a ré (M) arrendou a casa por esse motivo para o réu (J), doente esquizofrénico com pensão de invalidez, que, em períodos de evasão, pára algum tempo com a ré (M).
7ª – Os dois fundamentos eram assim conhecidos da mãe da autora que, com esse fundamento, não pode denunciar o contrato, nem resolvê-lo, por manifesto abuso de direito.
A autora contra – alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
2.
Na 1ª instância consideraram-se provados os seguintes factos:
1º - Encontra-se inscrita, pela apresentação 42/901128, a aquisição a favor de(A) da fracção autónoma designada pela letra “X”, a que corresponde o 7º andar esquerdo do prédio urbano sito na Avenida General Humberto Delgado, nº ..., descrito sob o n.º 00890/901128 da 2ª Conservatória do Registo Predial.
2º - Por acordo escrito, denominado “Arrendamento”, datado de 1 de Dezembro de 1975, (C) cedeu o gozo da fracção identificada em 1 aos Réus, mobilada, pelo prazo de seis meses, pela renda mensal de 3.500$00, e com destino a habitação de férias e época balnear.
3º - À data da propositura da acção - 28/04/1999 - a renda era de 12.760$00.
4º - A ré (M) não faz uso da fracção identificada em 1.
5º - O réu (J) deixou de usar a referida fracção, tendo deixado de ali pernoitar, tomar refeições e receber amigos, mesmo em períodos de férias ou descanso, desde o ano de 1996, ate ao ano de 1999.
6º - A ré (M) vive na Rua ..., nº...., em São João da Caparica, há cerca de 40 anos.
7º - O réu (J) viveu na fracção identificada no ponto 1, ali recebendo os seus filhos, amigos e parentes, ali tomando as suas refeições e pernoitando, desde 1975 até ao ano referido no ponto 5.
8º - A autora teve conhecimento de que o réu (J) vivia na fracção identificada no ponto 1 pelo menos desde 1986.
3.
Os recursos visam o reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida e não o julgamento de questões novas, pelo que, em recurso, o tribunal ad quem não pode conhecer de questões não submetidas à apreciação do tribunal recorrido, que não sejam de conhecimento oficioso.
Para além desta delimitação, o âmbito do recurso restringe-se às conclusões do recorrente (artigos 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 CPC), só abrangendo as questões que nelas se contêm, ainda que outras tenham sido afloradas nas alegações propriamente ditas, salvo tratando-se de questões que o Tribunal deva conhecer oficiosamente (artigo 660º, n.º 2, ex vi artigo 713º, n.º 1 CPC).
Assim, tendo em conta estas delimitações, não pode este Tribunal reapreciar a alegada contradição entre o pedido e a causa de pedir, já que tal questão foi omitida nas conclusões.
Aliás, as conclusões dos recorrentes não primam pela clareza, parecendo-nos que com elas pretendem colocar à apreciação deste Tribunal as seguintes questões:
a) – Qualificação do contrato.
b) – Lei aplicável ao contrato.
c) – Tempestividade e validade da denúncia.
d) – Abuso de direito da autora.
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Tal como ficou provado, (C), por acordo escrito, cedeu aos réus o gozo da fracção identificada nos autos, mobilada, pelo prazo de seis meses, pela renda mensal de 3.500$00, e com destino a habitação de férias e época balnear.
Trata-se de um contrato de arrendamento, na medida em que o proprietário do imóvel se obrigou, mediante retribuição, a proporcionar aos réus o gozo temporário de uma coisa imóvel (artigos 1022º e 1023º CC). Quanto ao fim do arrendamento, a vontade dos contraentes foi inequívoca, explicitando numa das cláusulas do contrato que o arrendamento visava o “destino a habitação de férias e época balnear”.
Assim, como muito bem considerou a sentença, o contrato de arrendamento foi celebrado com vista a habitação não permanente para vilegiatura.
Trata-se, portanto, de contrato de arrendamento para habitação ocasional ou transitória do arrendatário, por oposição aos arrendamentos para residência permanente, não sendo, pois, um arrendamento vinculístico[1].
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À data da celebração do contrato, o arrendamento urbano tinha a sua regulamentação no Código Civil, nos artigos 1083º e seguintes. Desde então, houve sucessão de leis no tempo, até que, em 15/11/90, entrou em vigor o Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto – Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro.
Este diploma revogou o direito anterior relativo às matérias reguladas no RAU, que passa a reger o arrendamento urbano (cfr. artigo 3º, n.º 1).
Assim, o arrendamento urbano passou a reger-se pelo disposto no RAU e, no que não esteja em oposição com este, pelo regime geral da locação civil (artigo 5º, n.º 1 do RAU).
O artigo 5º, n.º 2, determina, porém, a não aplicabilidade do RAU aos “arrendamentos para habitação não permanente em praias, termas ou outros lugares de vilegiatura, ou para outros fins especiais transitórios”, explicitando o artigo 6º, n.º 1 do RAU que a estes arrendamentos se aplicam as normas do regime geral da locação, previstas nos artigos 1022º a 1063º do Código Civil e as constantes dos artigos do RAU referidas nesse artigo, com as devidas adaptações, significando isto que ao contrato de arrendamento celebrado pelas partes se aplicam as normas previstas nos artigos 1022º a 1063º do Código Civil.
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Tal como considerou a sentença, não restam dúvidas que o direito que a autora pretende exercer é o direito de denunciar o contrato de arrendamento, tal como o direito que os réus dizem já ter caducado é o direito de denúncia do contrato.
A denúncia corresponde a uma declaração negocial por via da qual se obsta à renovação automática do contrato de locação (artigo 1055º, n.º 2 CC).
O contrato de locação, como negócio jurídico de execução continuada, é celebrado por um determinado período e, tratando-se de arrendamento, se as partes nada disserem, o negócio jurídico renova-se automaticamente por um período idêntico (artigo 1054º CC).
Assim, sempre que as partes não procedam à denúncia do contrato, haverá renovações automáticas do mesmo por prazo idêntico ao inicialmente ajustado, desde que não exceda um ano (artigo 1054º, n.º 2 CC).
Logo, quando uma das partes não pretende que a renovação automática opere, poderá recorrer à denúncia do contrato. O direito de denúncia assiste, portanto, a ambas as partes, locador e locatário.
Apesar da denúncia ser, em princípio, livre, ela deverá respeitar um prazo de antecedência, ou seja, tem de ser feita previamente em relação à data do termo do período de vigência do contrato, em que a renovação se verificaria, ou antes do fim de cada renovação, cujo prazo é igual ao do contrato (artigo 1054º CC).
A denúncia é uma declaração negocial recipienda sem forma especial estabelecida por lei (artigo 219º CC).
Assim, o que a lei exige é que a denúncia seja comunicada ao outro contraente e com uma determinada antecedência mínima, o que nada tem a ver com a caducidade. Se um dos contraentes comunicar a denúncia tardiamente, o único efeito que daí advirá é a intempestividade e consequente invalidade da denúncia, mas não a perda do direito de denunciar o contrato, o qual poderá exercer para o fim do prazo da renovação seguinte.
Ora, não existindo qualquer norma legal no âmbito do regime de locação civil (previsto nos artigos 1022º a 1063º CC) que sujeite o direito de denúncia a um qualquer prazo de caducidade, não tem qualquer sentido a alegação dos recorrentes, de que teria caducado o direito de denúncia do contrato.
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As partes estabeleceram que o contrato era celebrado pelo prazo de seis meses, tendo o seu início em 1 de Dezembro de 1975.
Como a autora veio denunciar o contrato através da presente acção, a denúncia opera findo o prazo da renovação contratual em curso à data do conhecimento que dela tiveram os réus, ou seja, com efeitos a partir de 1 de Dezembro de 1999, por a citação ter ocorrido em 18/05/99, nos termos do disposto nos artigos 1054º, 1055º, n.º 1, al. c) e 224º CC, uma vez que a comunicação prevista no artigo 1055º se considera efectuada no momento em que se demonstre que os réus dela tomaram conhecimento ou a tiveram em seu poder.
Logo, o direito de denúncia foi tempestivamente exercido, pelo que não podia deixar de ser julgado procedente, como foi, o pedido de denúncia do contrato e ordenar-se o despejo do locado.
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Alegam, em último lugar, os recorrentes que a autora estaria a exercer o seu direito com óbvio abuso.
Segundo dispõe o artigo 334º CC, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (cfr. artigo 334º CC).
O abuso do direito traduz-se, pois, num acto ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido.
Isto significa que o abuso é algo que ocorre no exercício de um direito: exerce-se um direito e é quando se exerce o direito que se abusa dele.
Assim, se aqui se tratasse de um exercício abusivo de um direito, quer dizer que esse direito existiria e seria válido, o que constitui uma contradição manifesta com o que os recorrentes sustentaram durante este processo.
Por outro lado, os recorrentes não concretizaram quais, e de que forma, é que os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes foram violados, sendo certo que, apelando este normativo a conceitos indeterminados, se lhes impunha a indicação de factos donde se pudesse retirar a conclusão que a autora, ao exercer o seu direito, estaria a ultrapassar os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé ou pelos bons costumes.
4.
Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirma-se a douta sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 9 de Junho de 2005
Granja da Fonseca
Alvito de Sousa
Pereira Rodrigues
__________________________________________________________ [1] São arrendamentos vinculísticos os dos prédios em que o senhorio não poderá resolver o contrato nos termos gerais, mas vinculado a casos taxativamente enumerados na lei, nem os poderá denunciar no seu termo de duração senão também em condições legalmente fixadas, prorrogando-se automaticamente, se o arrendatário não quiser usar em tempo da sua livre faculdade de denúncia (cfr. Pinto Furtado, Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos, 2ª edição, 119).