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INVENTÁRIO
Sumário
I - A colação, como instituto que visa igualar os herdeiros, deve ser suscitada no processo de inventário; II - Findo este, não pode vir um dos herdeiros exigir de um outro que proceda à colação do valor de bens que recebeu, por doação em vida, do autor da herança.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.
Relatório
(J), divorciado, empresário, demandou em acção com processo ordinário na comarca de Cascais, (F), casado, empresário, pedindo:
A condenação do Réu a entregar a quantia de cinco milhões de escudos, acrescida de juros de mora sobre a referida quantia a contar da citação.
Para tanto alegou, em síntese, o seguinte:
O Réu, de quem é irmão, recebeu por doação de seus pais um conjunto de bens móveis, no valor de 10.000.000$00, sem que a doação tenha sido acompanhada de qualquer declaração dos doadores no sentido de imputar tal liberalidade nas quotas disponíveis dos mesmos. Assim, o Réu, para entrar na sucessão de seus pais, entretanto falecidos, deveria restituir à herança o valor dos bens doados ou os próprios bens, o que não fez. O Autor, atenta a sua qualidade de herdeiro e de cessionário de quinhões hereditários, tem direito a metade do valor que o Réu deveria ter restituído à massa da herança.
Na contestação o Réu, depois de excepcionar a ilegitimidade do Autor por estar desacompanhado dos restantes herdeiros, alegou:
No inventário a que se procedeu por óbito dos pais do Autor e Réu, foi lavrada uma transacção na qual os herdeiros consignaram que as relações de bens constantes do processo de inventário estão completasnão havendo mais bens a relacionar o que não pode deixar de significar a renúncia do Autor a exigir a colação; por outro lado, estando na posse dos bens desde 1979 o Réu adquiriu a propriedade deles por usucapião, não estando os mesmos sujeitos à colação. Se assim não se entender, há que considerar o facto de a doação ter sido manual, em que a colação se presume dispensada. Por último, o Réu impugnou os valores atribuídos pelo Autor aos bens, os quais, em seu entender, não têm valor superior a 3.000 contos.
Replicou o Autor a rebater a contestação do Réu.
No despacho saneador julgou-se válida a instância e legítimas as partes, assim se desatendendo a excepção dilatória deduzida pelo Réu.
Fixaram-se os factos já assentes e elaborou-se a base instrutória com os controvertidos.
Na audiência de discussão e julgamento, as partes acordaram em considerar provados quase todos os pontos incluídos na base instrutória com excepção de dois, os quais, após a produção de prova, foram julgados não provados.
O Réu apresentou alegações escritas e de seguida foi proferida sentença a julgar a acção improcedente.
Inconformado, o Autor apelou finalizando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª. Na chamada de bens a colação está apenas em questão o valor dos bens doados e é portanto possível recorrer ao processo comum para suscitar a colação de bens doados a herdeiro;
2ª. A colação é uma obrigação legal que impende sobre descendente que entra na sucessão do(s) ascendente(s) e como tal o facto de todos os herdeiros chegarem a acordo nas partilhas não preclude, salvo remissão ou outra causa extintiva da obrigação, o direito de suscitar a colação;
3ª. No caso dos autos, não foi apurado qualquer facto que possa configurar uma renúncia do Autor ou qualquer circunstância que permita fundar a conclusão de que este abusa do seu direito ao suscitar a colação;
Nestes termos, ...deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogada a douta sentença recorrida e substituída por decisão que condene o Réu no pagamento da quantia de € 3.372,5 acrescida de juros de mora e ainda na quantia, a liquidar em execução de sentença correspondente a metade do valor dos bens cujo valor não pôde ser apurado.
Contra alegou o Réu pugnando pela improcedência do recurso e a manutenção da sentença.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Fundamentação de facto
A sentença recorrida assentou no seguinte acervo factual:
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Fundamentação de direito
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do Apelante (art.ºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil), passa pela análise e resolução das seguintes questões:
- possibilidade de em processo comum, findo que está o processo de inventário, suscitar a colação de bens doados;
- se a pretensão do Autor consubstancia abuso de direito.
O instituto da colação está previsto no nº1 do art. 2104º do Cód. Civil nos termos do qual:
“ Os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhe foram doados por este; esta restituição tem o nome de colação.”
“A colação faz-se pela imputação do valor da doação ou da importância das despesas na quota hereditária, ou pela restituição dos próprios bens doados, se houver acordo de todos os herdeiros” – art. 2108º, nº1.
Visto o disposto neste artigo diz-se que a colação é uma reunião fictícia dos bens doados, uma vez que o donatário não é obrigado a restituir os bens em espécie doados, mas tão só os respectivos valores à data da abertura da sucessão ( art. 2109º).
O Prof. Pereira Coelho, in Direito das Sucessões, 1992, pág. 267, ensina que “o fundamento do instituto está, segundo a doutrina corrente, na vontade presumida do de cujus, o qual, ao fazer uma doação a um dos descendentes, não terá querido avantajá-lo em face dos outros; a doação terá sido, segundo a vontade presumida do autor da sucessão, mera antecipação da quota hereditária do donatário.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 03.10.95, CJ AcSTJ, ano 1995, tomo 3, pag. 39, para que se verifique a hipótese de colação é cumulativamente necessário:
a) que haja doação feita pelo autor da sucessão a favor de descendentes que na data da mesma sejam seus herdeiros legitimários;
b) que não tenha havido dispensa de colação (art. 2113º do Cód. Civil);
c) que haja abertura de sucessão hereditária em que concorram diversos descendentes, alguns beneficiados com aquelas liberalidades.
Escreveu-se na sentença recorrida que no caso vertente se verificam todos os requisitos para que se verifique a hipótese de colação, mas que não é possível agora, findo que está o processo de partilha, numa acção de processo comum, vir exigir-se ao donatário que proceda à colação.
Julgamos ter a sentença decidido bem, não procedendo os argumentos que, em contrário, o Apelante aduz.
A colação, apesar de ter por objecto liberalidades em vida, só é passível de realização após a abertura da sucessão, aquando da partilha hereditária e uma vez definidos quais os herdeiros descendentes capazes e aceitantes (cfr. Capelo de Sousa, Direito das Sucessões, II, pag. 274).
O que se compreende pois a colação tem por fim a igualação na partilha, do descendente donatário com os demais descendentes do autor da herança.
Ora, no caso dos autos – em que houve um processo de inventário instaurado por óbito do pai do Autor e do Réu, no qual foi feita uma transacção extrajudicial – era no processo de inventário referido, em que o Réu entrou na sucessão de seu pai sem ter conferido os bens doados ou o seu valor, que deveria ter-se operado a colação.
Afigura-se-nos indiscutível que agora se mostra ultrapassado o momento para a restituição dos bens por banda do Réu com vista à igualação da partilha, que aliás, já está feita.
É que a colação, com todas as regras que lhe estão associadas, maxime a do art. 2108º, que regula o modo como se faz a conferência, pressupõe um processo de partilhas hereditário. Findo este, ou fora deste, já não faz qualquer sentido invocar a obrigação de um dos herdeiros à colação.
A questão do abuso de direito.
Dispõe o art. 334º do Cód. Civil ser ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Um caso típico de comportamento abusivo no exercício de um direito considerado ilegítimo pelo art. 334º é a proibição de venir contra factum proprium.
“Esta variante de abuso de direito que radica numa atitude contraditória da mesma pessoa, pois que pressupõe duas atitudes dela, espaçadas no tempo, sendo a primeira delas (o factum proprium) contrariada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprovabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação os limites impostos pelo princípio da boa fé” (Ac. do STJ de 02.06.96, BMJ 459/519).
Da matéria de facto apurado poderá concluir-se estar o Apelante a agir com abuso de direito?
Afigura-se-nos que sim.
Os factos referidos nos nºs 16 a 18 da matéria de facto revelam que todos os herdeiros consideraram que os bens doados ao Apelado estavam fora do acervo hereditário, sem que tenha sido suscitada a colação por parte do Réu.
O Réu, ao outorgar na transacção extrajudicial referido no ponto nº 18 da matéria de facto, fê-lo no pressuposto de que estavam decididas as questões relativas à partilha dos bens herdados dos seus pais.
A propositura desta acção por um herdeiro, após a partilha, é uma contradição com o comportamento anteriormente por todos assumido, o qual legitimou o Apelado a crer que não teria que conferir na partilha o valor dos bens que recebera.
A pretensão do Apelante deduzido na acção configura, tal como decidiu a sentença, um caso de abuso de direito.
Com o que improcedem na totalidade todas as conclusões da alegação do Apelante.
Decisão.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença apelada.
Custas pelo Apelante.