ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
GRADUAÇÃO DE CULPAS
Sumário

1 - No caso de colisão de um veículo ligeiro de mercadorias cujo condutor se encontrava sob a influência do álcool (0,6g/l) num tractor parado parcialmente na estrada sem a sua presença assinalada pelo chamado triângulo de pré-sinalização, há concorrência de culpas.
2 - É maior a do condutor do tractor considerando que a própria lei qualifica a contra-ordenação em que incorreu o condutor do tractor de muito grave e apenas de grave aquela em que incorreu o condutor do outro veículo.
3 - Assim sendo, deve fixar-se uma percentagem de 70% de culpa para o condutor do tractor e de 30% de culpa para o condutor do veículo colidente.

Texto Integral

     Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

     1.L… intentou acção declarativa com processo sumário contra Companhia de Seguros… pedindo a sua condenação no pagamento de 40.000.000$00 com juros, à taxa legal, desde a citação (verificada no dia 19-9-1997), valor correspondente aos danos morais sofridos em consequência de acidente que o vitimou quando no dia 21-11-1996, pelas 20.20, o veículo ligeiro de mercadorias de caixa aberta embateu na parte traseira do lado esquerdo do tractor conduzido pelo A; no momento do embate o tractor estava estacionado parcialmente na faixa da rodagem encontrando-se o A. no chão, de pé, à frente do tractor, a reparar as luzes dos faróis da frente que, entretanto, tinham falhado.
     A acção foi julgada improcedente.
     Da decisão recorreu o A. que apresentou as seguintes conclusões:
     1 O A. parou o tractor a mais de 50 metros do cruzamento para reparar a avaria nas luzes dos faróis da frente que tinham falhado.
     2 Imobilizou o tractor o mais possível encostado à berma da estrada por forma a ocupar o menos possível a sua faixa de rodagem e permitir a livre circulação dos veículos na estrada.
     3 A qual tem 7,60 metros de largura, 2 faixas de rodagem para cada lado, é uma recta com boa visibilidade. fazia bom tempo e o piso encontrava-se em boas condições de manutenção e aderência.
     4 Colocou a chapa reflectora ao alto na parte de trás do tractor por forma a ser facilmente visível seguramente a mais de 50 metros por quem circula na via.
     5 O condutor do AQ encontrava-se alcoolizado.
     6 Por isso, só viu o tractor a meio metro, nada tendo feito para evitar o acidente, apesar das condições da via, estado de tempo e sinalização existente no tractor, visível a mais de 100 metros não fora o cruzamento existente na via
     7 E se o condutor do AQ não viu a chapa reflectora no alto do tractor do A, muito pior veria o triângulo de pré- sinalização caso estivesse colocado no chão.
     8 Por todo o exposto, a culpa do acidente terá que ser totalmente assacada ao condutor do AQ.
     9 O A.,em consequência do acidente, foi projectado para dentro de uma pastagem a cerca de 20 metros da estrada
     10 Sofreu fractura de 9 arcos costais do hemotórax direito, o que lhe determinou quadro clínico de insuficiência respiratória aguda, ficando internado 19 dias na unidade de cuidados intensivos do Hospital de Ponta Delgada sob ventilação assistida e medicamentado com analgésicos potentes para combater as fortes dores que teve, e que ainda hoje tem, e que perdurarão de forma mais intensa durante largos meses, reclamado tratamentos contínuos
     11 Antes do acidente era um homem alegre, jovial, trabalhador e estimado por todos.
     12 Agora encontra-se, e para sempre, com uma incapacidade permanente de 10% e impossibilitado de fazer grandes esforços.
     13 O A. anteviu a morte como possível desfecho do acidente.
14 Deve ser-lhe fixada indemnização a título de danos morais em quantia nunca inferior a 50.000 € atendendo à gravidade e consequências decorrentes para o A. até ao fim dos seus dias.

     2. Factos provados:


     1- No dia 21 de Novembro de 1996, pelas 20.20, José… conduzia o veículo ligeiro de mercadorias de caixa aberta, da marca Toyota, com a matrícula…, propriedade de José Francisco… e com o conhecimento e autorização deste, na estrada regional Ponta Delgada/Ribeira Seca/Ribeira Grande, no sentido Sul-Norte
     2- O tractor agrícola, sem reboque, com a matrícula…, propriedade da Câmara Municipal da Ribeira Grande, à responsabilidade de L…, encontrava-se estacionado no mesmo sentido.
     3- A estrada referida tem a largura de 7,60 metros, sendo uma recta com boa visibilidade.
     4- No dia e hora em que ocorreu  o acidente fazia bom tempo e o piso encontrava-se em boas condições de manutenção e aderência.
     5- O acidente ocorreu fora de uma localidade, não existindo iluminação pública no local.
     6- O veículo de matrícula JZ-...-20 estava estacionado cerca de 50 metros após passar o cruzamento que dá para o cemitério da Ribeira Seca, com os dois pneus do lado direito em cima da “valeta” de cimento para escoamento da água, o que corresponde à designação berma constante do croquis junto aos autos.
     7- O AQ foi embater com a frente do lado direito na traseira lateral esquerda do JZ.
     8- L… encontrava-se no chão, de pé, à frente do tractor, a reparar as luzes dos faróis da frente que tinham falhado.
     9-Após o embate, foi projectado para dentro da pastagem existente à sua direita, ficando inanimado, a cerca de 20 metros da estrada.
     10- Do embate resultou-lhe a fractura de 9 arcos costais do hemitórax direito, o que lhe determinou o quadro clínico de insuficiência respiratória aguda.
     11- Esteve internado na unidade de cuidados intensivos do Hospital de Ponta Delgada, sob ventilação assistida, durante 7 dias e medicamentos com analgésicos potentes para combater as dores.
     12- Ficou internado mais 12 dias, tendo recebido alta médica no dia 9 de Dezembro de 1996.
     13- Foi tratado ao abrigo de uma apólice de acidente de trabalho.
     14- Em consequência do acidente ficará com uma incapacidade permanente de aproximadamente 10% e impossibilitado de fazer grandes esforços.
     15- Sofreu dores durante largos meses, as quais  perduravam em 3 de Julho de 1997, tendo sido sujeito a tratamentos contínuos.
     16- Antes do acidente era um homem jovial, trabalhador, estimado por todos e alegre.
     17- É pobre, a mulher é doméstica, tendo 4 filhos a seu cargo, sendo duas delas diabéticas, dependentes de insulina e sujeitas a tratamentos contínuos e dispendiosos.
     18- Nasceu no dia 25 de Dezembro de 1943.
     19- O JZ ocupava parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito que circula no sentido em que seguia o AQ.
     20- O JZ tinha uma placa reflectora na sua traseira.
     21- O L… não assinalou a paragem do JZ  com triângulo de pré-sinalização em condições de tornar o tractor visível a cerca de 100 metros.
     22- O José… avistou o JZ a apenas meio metro, não tendo tido tempo de travar e não tendo deixado no piso qualquer rasto de travagem.
     23- José… acusou uma taxa de alcoolémia de 0,60 g/l.
24- Do embate resultaram danos no AQ nomeadamente no guarda lamas direito, pára-choques, grelha, capô, pás de ventoinha, protecção da ventoinha, tampa do comando, depósito de água dos vidros, alimentador do alternador, feixe de protecção eléctrico, suporte da bateria, escova do limpa pára-brisas, volante, automático da bomba de água, poli do alternador, poli da direcção assistida, regulador de tensão, correia de comando, coluna de direcção, apoio do motor, grelha, jogos dos tubos da forra, tampa da caixa dos fusíveis, alternador, rolamento e esticador da correia.
     25- Para a reparação e substituição dessa peças gastou José Francisco Soares Pereira em mão-de-obra a quantia de 148.700$00.
     26- Com a aquisição de peças novas gastou 533.446$00
     27- Na reparação da chapa e pintura despendeu 477.150$00
     28- A tais montantes acresce o valor de IVA que ascendeu aos 139.117$00.
     29 A responsabilidade por acidentes de viação com os veículos…AQ e JZ… encontra-se transferida para a companhia de seguros… através das apólices…, respectivamente.


     Apreciando:


     3. No dia 21 de Novembro de 1996  um veículo ligeiro de mercadorias  embateu na parte lateral traseira de um tractor que se encontrava parcialmente estacionado na faixa de rodagem que no local era uma via recta com boa visibilidade e com a largura de 7,60 metros.

     O tractor estava estacionado  porque tinham falhado as luzes dos faróis da frente e o seu condutor estava, quando se deu o embate, a reparar as luzes.

     O tractor dispunha de uma placa reflectora na sua traseira, mas o veículo, apesar de estacionado parcialmente na faixa de rodagem (dois dos pneus do lado direito estavam em cima da “valeta” de cimento para escoamento de águas), não assinalava a paragem com triângulo de pré-sinalização   visível a cerca de 100 metros.

     Considerou-se na decisão recorrida que o condutor do tractor, por não assinalar a sua presença com o triângulo de pré-sinalização, infringiu o disposto no artigo 53º/1 do Código da Estrada de 1994 em conjugação com o disposto no artigo 3º,alínea b) do Decreto-Lei nº 45299 de 9 de Outubro de 1963 que introduziu a obrigatoriedade do sinal de pré-   -sinalização. Uma tal infracção constitui contra-ordenação muito grave (artigo 149º,alínea c) do CE/94).

     A obrigatoriedade do triângulo de pré-sinalização tem por objectivo permitir a sua visibilidade a uma distância de, pelo menos, 100 metros, sobrando ainda mais 30 metros de distância desde o sinal ao veículo parado, o que constitui aviso indispensável aos que conduzem na via pública advertindo-os da presença de outro veículo imobilizado forçadamente por avaria ou acidente.

     Mas significa isto que a inexistência do aludido sinal exime imediatamente o condutor de veículo de responsabilidade decorrente do embate no outro veículo imobilizado na via pública?

     A resposta há-de depender das concretas circunstâncias em que se verificou o acidente.

     No caso em apreço o condutor do ligeiro de mercadorias circulava por uma estrada com 7,60 metros de largura que no local era uma recta (3)

     Era noite, mas fazia bom tempo e o piso encontrava-se em boas condições de manutenção e aderência (4).

Assim, circulando o veículo de noite em estrada sem iluminação pública  (1 e 5), o condutor não podia deixar de circular usando os dispositivos de sinalização luminosa e de iluminação (artigo 59º do CE/94) sendo certo que os máximos devem emitir um feixe luminoso que atinja, de noite, por tempo claro, pelo menos 100 metros e os médios devem emitir um feixe luminoso que, projectando-se no solo, o ilumine eficazmente numa distância de 30 metros, por forma a não causar encadeamento aos demais utentes das vias públicas, qualquer que seja a direcção em que transitem (Portaria nº 851/94, de 22 de Setembro).

Significa isto que o condutor do veículo que embateu no tractor não podia deixar de se aperceber da presença do tractor na pior das hipóteses a 30 metros, se conduzisse em médios, mas em princípio a 100 metros, pois, ressalvados os casos em que se impõe nas estradas a condução em médios, a regra é a da condução em máximos (artigo 80º do CE/94).

     Por isso, não se compreende como é que o condutor do ligeiro de mercadorias avistou o tractor apenas a meio metro o que obviamente não lhe permitiu travar não havendo, por isso, nenhum rasto de travagem (22).

     Ou melhor: compreende-se que assim as coisas se tenham passado considerando que o condutor do veículo ligeiro de mercadorias circulava desatento o que se explica precisamente por conduzir alcoolizado (com 0,60g/l) desrespeitando, assim, o disposto no artigo 87º/1 do CE/94.

Não se provou, é verdade, que os seus reflexos estivessem diminuidos por se encontrar alcoolizado (resposta negativa ao quesito 33), mas daqui não decorre que o estado de alcoolémia do condutor do ligeiro de mercadorias não estivesse na origem da forma desatenta como conduzia, pois esta ilação afigura-se, no caso vertente, lógica e única susceptível de explicar a razão por que o condutor do ligeiro não se apercebeu da presença do tractor.

     Se o tractor estivesse parado a seguir a uma curva, se o tempo estivesse chuvoso, se o trânsito em sentido contrário fosse intenso impondo a utilização de médios e uma visibilidade não superior a 30 metros, porventura aquém de tal distância, então as ilações seriam diferentes.

     Um condutor atento não deixaria de se aperceber da presença do tractor à alguma distância e certamente tentaria evitar o embate ou travando, ou desviando-se um pouco para o centro da faixa de rodagem.

     Não se aperceber de um obstáculo - que é nada mais nada menos do que um tractor com dispositivo reflector - a não ser quando o veículo já está a embater nele - a 50cm - não tem outra explicação que não seja a da total falta de atenção à circulação por parte do condutor do veículo colidente.

É certo que os condutores não podem ser responsabilizados pela imprevidência alheia, mas aqui trata-se de responsabilizar quem conduz sob a influência do álcool evidenciando o acidente essa influência.

     Há, pois, uma concorrência causal de comportamentos culposos que originaram este acidente.

     No plano da culpabilidade verifica-se que a lei considera contra-ordenação muito grave  a não utilização do sinal de pré-sinalização de perigo, quando obrigatório, fora das localidades, considerando apenas contra-ordenação grave a condução sob influência do álcool (artigos 148º/m9 e 149º/c) do CE/94 na redacção anterior à revisão de 1998).

     Aceitam-se, deste modo, as conclusões 2ª, 4ª, 6ª, 7ª que justificam a qualificação jurídica exposta, mas  não se aceitam as conclusões 3ª (se foi essa a intenção do condutor do tractor, nada vimos alegado nesse sentido), 5ª (ausência de alegação), 8ª  (a inferência não nos parece legítima precisamente porque um condutor mesmo com pouca ou nenhuma atenção, como era o caso, pode aperceber-se  de um sinal de aviso particularmente evidente como é o triângulo de pré-sinalização) e discorda-se da pretendida atribuição de culpa exclusivamente ao condutor do ligeiro de mercadorias (conclusão 9ª).

     Assim, face ao exposto, fixamos a proporção das culpas em 70% para o condutor do tractor e 30% para o condutor do ligeiro, percentagem que já tinha sido a considerada na decisão de 19-5-1999.

     No que respeita ao montante indemnizatório considerou o recorrente que não deveria ser inferior a 7.500.000$00 (ver alegações de recurso a fls. 140) pedindo agora um mínimo de 50.000 euros.

     Ficou o A. com uma incapacidade permanente de 10% e impossibilitado de fazer grandes esforços (14), sofreu dores durante largos meses tendo sido sujeito a tratamentos contínuos; o embate foi violento visto que o A. que se encontrava à frente do tractor - o embate deu-se na parte traseira deste - foi projectado a uma distância de 20 metros da estrada, sofreu fractura de 9 arcos costais do hemitórax direito ficando com insuficiência respiratória aguda e durante 7 dias esteve internado sob ventilação assistida.

     Afigura-se-nos, pois, razoável a indemnização de € 30.000 (valor actualizado à data da presente decisão) atribuindo-se ao A. a quantia de 30% , ou seja, € 9.000.
Decisão; concede-se provimento ao recurso condenando-se a Ré a pagar a quantia de 9000 euros com juros desde a presente decisão até efectivo pagamento


     Lisboa, 16 de Junho de 2005.

     (Salazar Casanova)
     (Silva Santos)
     (Bruto da Costa)