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CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO POR SER DADO DESTINO DIVERSO AO LOCADO E CEDÊNCIA DO USO A TERCEIROS
POSSE DO ARRENDATÁRIO
Sumário
I - Não basta uma atuação material sobre a coisa para se criar a situação jurídica “posse”, a qual nunca se verifica nos detentores ou possuidores precários, exceto traditio brevi manu ou inversão do título de posse. II - O arrendatário é um possuidor em nome próprio em relação ao arrendamento e um possuidor em nome alheio em relação ao direito de propriedade, pelo que tem uma posse precária, exercendo sobre a coisa poderes materiais, mas no interesse de outrem. III - Contando-se entre as obrigações do locatário a de não dar destino diverso ao locado e a de não ceder o uso a terceiros e resultando apurado que esses atos do arrendatário foram praticados com conhecimento do senhorio, que neles consentiu ao longo de mais de 40 anos, foi a inércia do senhorio que incutiu nos réus a fundada convicção e expectativa de que estavam a coberto de uma pretensão de despejo alicerçada nesse quadro factual.
Texto Integral
Apelação n.º 2134/10.4TBVNG.P1
Processo da Comarca do Porto, instância local, seção cível, Vila Nova de Gaia, J2
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
B… e marido, C…, casados no regime de comunhão geral de bens, NIF ……… e ………, respetivamente, residentes na Rua …, n.º …, na freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia;
D…, viúva, NIF ………, residente na Rua …, n.º …, freguesia e concelho de São João da Madeira;
E… e mulher, F…, NIF ……… e ………, respetivamente, residentes na Rua …, número …, na freguesia …, concelho de Gondomar;
G…, solteira, maior, NIF ………, residente na Rua …, n.º …, na freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia;
H… e mulher, I…, NIF ……… e ………, respetivamente, residentes na Rua …, n.º …, freguesia …, concelho de Espinho;
intentaram a presente ação declarativa constitutiva, sob a forma de processo sumário, contra J… e mulher, K..., residentes na Avenida …, número …, …, na freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, pedindo:
A - A resolução do contrato de arrendamento;
B - A condenação dos réus a entregarem, livre de pessoas e coisas, o prédio identificado;
C - A condenação dos réus a pagarem-lhes as rendas vencidas, no montante de €296,82 (duzentos e noventa e seis euros e oitenta e dois cêntimos), e vincendas até à efetiva entrega do prédio.
Alegaram, em súmula, que são exclusivos proprietários, em comum e sem determinação de parte ou direito, e legítimos possuidores de um prédio rústico destinado a pastagem, denominado “L…”, com a área total de 2.000 m2, sito no …, na freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número 3528/20080603, e inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 2.470, o qual, na década de 50, foi dado, verbalmente, de arrendamento a M…, pai do réu J…, pelo pai dos autores, N…. Estipularam, então, que o prédio se destinava à produção de blocos de cimento (comummente designada de atividade bloqueira) e que a renda anual seria de 1.000$00 (mil escudos), a pagar no início de setembro de cada ano. Por volta de 1957, o pai do réu deixou de exercer a atividade bloqueira, tendo a exploração desta passado a ser efetuada pelo réu, o que aconteceu com o conhecimento e sem a oposição do pai dos autores. Após o falecimento do pai dos autores, o réu passou a pagar a estes a renda anual acordada de 3.500$00, mas em setembro de 1993 não efetuou o pagamento da renda anual nem posteriormente e, desde então, não mais lhes pagou qualquer renda. Há mais de 25 anos que o réu deixou de exercer no prédio a atividade para a qual lhe foi dado de arrendamento. Sem conhecimento e sem autorização dos autores nele edificou uma pequena construção, afetada à habitação de terceiros, não obstante a falta de condições de habitabilidade. Nela habita atualmente um filho dos réus, onde tem organizada a sua vida pessoal e familiar. Portanto também a utilização do prédio para fim diverso do arrendado e a cedência a terceiros constituem fundamento para a resolução do contrato de arrendamento.
Juntaram documentos.
Citados, os réus apresentaram contestação, deduzindo defesa por exceção perentória de prescrição e por impugnação. Mais formularam pedido reconvencional de reconhecimento a seu favor da plena propriedade do prédio rústico denominado “L…”, descrito na matriz sob o artigo 2.470 da freguesia …. Invocaram, em síntese, que as rendas reclamadas de 1993 a 2004 já se encontram prescritas ao abrigo do artigo 310º, al. b), do CC, e que, desde 1967, são donos e legítimos proprietários do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo 1.323º, tendo-o adquirido por inventário. E quanto ao prédio rústico denominado “L…”, os autores dele perderam a posse. Desde a data do óbito do seu pai que os autores deixaram intencionalmente de exercer o seu direito de propriedade sobre o prédio, não praticando qualquer ato, notificação do óbito, reclamação de rendas, que configurasse o seu animus possidendi. Perderama posse pelo abandono, pela perda do corpus e do animus, enquanto os réus nele efetuaram obras de ampliação, conservação e manutenção que o valorizaram substancialmente. Só no ano de 2009, despenderam em obras a quantia de €10.354,93 e as recentemente efetuadas valorizaram o prédio urbano que, atualmente tem um valor não inferior a €29.500,00. Concluíram pela improcedência da ação e pela condenação dos autores/reconvindos a reconhecer que:
A - são proprietários do prédio rústico denominado “L...”, descrito na matriz sob o artigo 2.470 da freguesia …, com o consequente cancelamento das inscrições registrais a favor dos autores;
B - Se a reconvenção vier a ser improcedente, a improcedência do pedido de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, atento o depósito oferecido com a contestação e a exceção de prescrição invocada;
C – Em caso de procedência da ação, indemnização pelas benfeitorias existentes no prédio em montante não inferior a €29.500,00 (vinte e nove mil e quinhentos euros), montante esse correspondente ao valor do prédio urbano edificado no prédio dos autos.
Juntaram documentos.
Na resposta, os autores referiram que a “pequena construção” que os réus construíram não é um prédio urbano. Primeiro foi uma taberna e depois foi usada para fins habitacionais. Ademais, o pedido de reconhecimento do direito de propriedade deduzido pelos réus não emerge dos factos jurídicos que servem de fundamento à ação ou à defesa. Aceitando a prescrição das rendas invocada pelos réus, formularam redução do pedido identificado em C. para €87,80 (oitenta e sete euros e oitenta cêntimos). Defenderam a improcedência dos pedidos reconvencionais.
Em prosseguimento dos autos, teve lugar a realização da audiência final, a qual decorreu com observância do legal formalismo. Respondida a matéria de facto controvertida, sem reclamação, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“1. -Julgo a presente acção improcedente e não provada.
2. -Julgo procedente e provado o pedido reconvencional deduzido pelos R.R., e, em consequência, condenam-se os AA./ Reconvindos a reconhecerem os RR./Reconvintes, como legítimos proprietários do prédio rústico denominado “L…”, descrito na matriz sob o art. 2470 da freguesia …, e em consequência:
2.1.-Determina-se o cancelamento das inscrições a favor daqueles na 1.ª
Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia.
2.2-Oficie-se junto da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia o cancelamento das inscrições, conforme supra determinado”.
Inconformados, os autores recorreram da sentença, apresentando, em resumo, a seguinte conclusão alegatória:
1. A matéria de facto dada por provada não traduz nem a confissão dos réus na contestação e em audiência nem a prova produzida, pelo que deve ser alterada, nos muitos pontos referidos ao longo das conclusões.
2. A decisão recorrida assenta na existência simultânea de dois prédios: um prédio rústico, propriedade dos recorrentes, e um suposto prédio urbano, consistente na edificação naquele realizada pelo pai dos réus/recorridos, quando apenas existe um prédio, de natureza rústica, no qual foi realizada uma edificação – um “barraco” -, entretanto afeta à habitação de terceiros.
3. Edificação que não é, por si só, um prédio ou bem imóvel, distinto do solo ou do prédio onde se encontra implantada, e não pode alterar a natureza do prédio onde se incorpora, apesar da sua inscrição junto da Administração Tributária como “prédio urbano”.
4. O prédio encontra-se registado a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número 3528/20080603, como um prédio rústico.
5. Beneficiam da presunção legal de propriedade prevista no artigo 7.º do Código de Registo Predial.
6. A sentença recorrida entende que os autores perderam a posse pelo abandono, por mais de vinte Anos, masa decisão sobre a matéria de facto - pontos 19., 20. e 21. – estão em contradição com as posições assumidas pelas partes nos articulados, com os documentos constantes dos autos, com o depoimento de parte do réu e com o depoimento da testemunha O….
7. De todo o modo, essa conclusão não poderia ser extraída, pois o abandono implica a extinção do corpus e do animus por virtude de ato material intencionalmente dirigido à rejeição da posse ou da coisa possuída, mas não se confunde com a mera inação do titular que não cuida da coisa.
8. No entanto, incluíram o prédio, logo em 1986, na relação de bens que apresentaram junto da Administração Tributária aquando da participação do imposto sucessório por óbito de seu pai.
9. Abordaram o réu, exigindo a demolição do “barraco” e a devolução do prédio, tal como o afirmado pela testemunha O….
10. Carece de fundamento considerar que os réuslograram provar uma aquisição originária do direito de propriedade, por usucapião, quando não estavam a exercitar uma posse em nome próprio, mas uma posse era precária.
11. Pelo menos de 2001 a 2005 e 2009, os réus depositaram as rendas anuais por si devidas em execução do contrato de arrendamento em conta que abriram junto da P… em seu nome (autores), o que confirma que detinham o prédio com a consciência de o mesmo lhes pertencer (aos autores).
12. Concluíram com o pedido de revogação da sentença, declaração de procedência da ação e de improcedência da reconvenção.
Em resposta à alegação dos autores, aduziram os réus, em síntese:
1. A matéria de facto encontra-se bem julgada, designadamente com a consideração de não provado do facto alegado em 23. da petição, já que os recorrentes não são os exclusivos proprietários, em comum e sem determinação de parte ou direito, e legítimos possuidores do prédio rústico destinados a pastagem.
2. Não estando provado que o prédio descrito em 1. da petição seja da exclusiva propriedade dos recorrentes, soçobra toda a argumentação expendida, desde logo porque “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, exceto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”, o que no, caso em apreço, não acontece. Ou seja, a posse anterior ao registo ilide a presunção dele resultante.
3. É jurisprudencialmente pacífico e aceite que: “Havendo conflito de presunções, uma derivada do registo (artº 7º do Código de Registo Predial) e outra emergente da posse (artº 1268º nº 1 do CC), prevalece esta última, que só cede no confronto com a presunção de registo anterior ao início da posse” – Acórdão STJ de 19-02-1992, BMJ, 414º-545.
4. Apesar da presunção beneficiar os recorridos, os recorrentes limitaram-se a negar a propriedade e a posse alegadas por aqueles, sem demonstrarem que não havia uma posse melhor que a sua, ao que eram obrigados, dada a inversão do ónus da prova.
5. Concluíram pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.
II. MÉRITO DO RECURSO
A instância mantém-se válida e regular, nada havendo que obste ao conhecimento do mérito do recurso.
Delimitada a matéria recursiva pelas conclusões alegatórias dos recorrentes, impõe-se a apreciação das seguintes questões:
A. O erro de julgamento da matéria de facto;
B. A usucapião a favor dos réus;
C. O abandono da posse por parte dos autores;
D. A resolução do contrato de arrendamento.
III. FUNDAMENTAÇÃO A. Erro de julgamento da matéria de facto
Para melhor enquadramento da reapreciação da matéria de facto, destaca-se que autores e réus aceitam que aqueles eram donos de um prédio rústico destinado a pastagem, denominado “L…”, com a área total de 2.000 m2, sito no …, na freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 270º, e que o pai dos autores, N…, na década de 50, o deu, verbalmente, de arrendamento a M…, pai do réu J…. Também convergem que, nesse terreno, edificou o M… uma construção, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1.323º da mesma freguesia. Enquanto os autores defendem a resolução do contrato de arrendamento, os réus pugnam pelo reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o terreno e a construção.
Auditada a prova verifica-se que, não discutindo as partes a autoria da execução daquela construção, a produção da prova testemunhal perdeu-se na confusão entre a propriedade da parte rústica e da parte urbana, não obstante os demandantes reconhecerem expressamente que a construção foi executada pelos demandados e, em termos fácticos, a eles pertence. Passa-se, pois, a apreciar a impugnação apresentada pelos autores recorrentes.
Defendem que, não obstante a Senhora Juíza ter evocado a falta de prova dessa matéria, os factos por si alegados nos artigos 4º, 16º, 17º e 19º da petição inicial devem ser dados por provados. Nesses artigos alegaram:
«4.º - Entre o pai dos referidos Autores e o pai do Réu foi estipulado que este último destinaria o PRÉDIO à produção de blocos de cimento (comummente designada de actividade “bloqueira”). 16.º - Há mais de 25 anos, o Réu J… deixou de exercer no PRÉDIO a actividade para a qual o mesmo havia sido dado de arrendamento a seu pai. 17.º - o Réu J… procedeu à edificação de uma pequena construção no PRÉDIO. 19.º A construção edificada pelo Réu J… está há já vários anos afecta à habitação de terceiros, que não dos Réus».
Está provado, por confissão, que N…, pai dos autores, verbalmente, deu de arrendamento a M…, pai do réu J…, o terreno inscrito na matriz sob o artigo 2.470, mediante a renda anual de 1.000$00 (mil escudos), a pagar no início de setembro de cada ano. Embora essa matéria não tenha sido objeto de prova direta, pugnam os autores que seja dada por provada a finalidade estipulada pelas partes contratantes para o arrendamento exercício de atividade bloqueira. Como o arrendamento não foi reduzido a escrito e as partes primitivas já faleceram há muitos anos, são compreensíveis as dificuldades de prova sobre esse concreto segmento alegatório. Os réus impugnaram esse facto na contestação e o depoimento do réu J…, sendo inequívoco na afirmação de que o seu pai ali exerceu, como primeira atividade, a feitura de blocos e, em 55/56, instalou a taberna, frequentada pelos “rapazes que andavam com o gado a pastar”, disse nada saber quanto ao acordado pelos primitivos contratantes. Identificou o prédio objeto do arrendamento, que condiz com definido na ação, e disse que o arrendamento foi para – não sabe se foi para produzir blocos de cimento – porque só entrou no prédio na década de 50. E instado se o arrendamento foi estipulado para a instalação de uma “bloqueira”, o mesmo referiu que não sabe o que foi acordado entre o seu pai e o pai dos autores, mas confirmou que lá foi exercida tal atividade e que ele próprio ali exerceu essa mesma atividade. A propósito, confirmou que, no inventário que correu termos por óbito de seu pai, foi relacionada uma bloqueira, que também funcionou em nome de Q…, seu irmão, dizendo: «Era eu e ele.Funcionava nesse dito sítio.Nesse prédio». Insistindo o ilustre mandatários dos autores se funcionou lá uma bloqueira, respondeu: «Sim. E uma taberna também». - Depois de deixar de existir uma bloqueira, foi? - Isso depois, mais tarde…». Clarificou que a bloqueira acabou lá para “os anos setentas”. A respeito da instalação da taberna, disse: «Venho da tropa em 55/56, mais ou menos, e o meu pai convidou-me: “ó rapaz, essa vida de mar é muito ruim, e tal… isto aqui. Temos aqui isto, se quisesses vinhas para aqui trabalhar e quê. Então conversei com a minha mulher. Pronto, e “olha, vamos trabalhar”, e pronto, fomos para lá trabalhar. Começámos lá a trabalhar até que ele acabou por adoecer… na bloqueira, na bloqueira».
Depoimento que é corroborado pela cópia das peças processuais do referido processo de inventário facultativo (fls. 72 a 94). Com efeito, nesse inventário, o ora réu requereu a exclusão da relação de bens de “um estabelecimento de taberna”, “uma bloqueira” e um imóvel inscrito na matriz predial sob o artigo 1.323º, pedindo que este fosse relacionado como benfeitorias, por o solo ser pertença de N…. Nesse requerimento mais declarou que o primitivo barraco (com 35 m2 de área) foi reparado e ampliado à sua custa, no que despendeu 20.000$00, e que a atividade de bloqueira foi exercida por seu pai até 1957, passou para o seu irmão Q…, que cessou a atividade antes do falecimento do seu pai, em 26-10-1960.
Todos estes elementos, sopesados com a natureza do terreno, confirmada pela descrição matricial e pelos depoimentos do réu e das testemunhas areia e mato permitem inferir, à luz das regras da experiência, que o arrendamento teve em vista aquela atividade exercitada pelo pai do réu. Não se destinando o terreno à agricultura, dispondo de areia e nele exercendo o arrendatário aquela atividade durante anos, prosseguida pelos seus filhos, é seguro que o réu comunicou essa finalidade ao senhorio, que a aceitou, assim perfectibilizando a declaração de que o arrendamento tinha em vista a referida atividade.
Acresce que o depoimento de parte do réu confirmou também a cessação da atividade de construção de blocos desde «os anos setentas», portanto, há mais de 25 anos, conforme a alegação dos autores em 16º, como referiu que o seu pai nela edificou uma pequena construção, que foi sucessivamente afeta à sua habitação, do réu e do seu irmão, do S…, do O… e do seu filho. Afirmou (referindo-se ao S…): «Foi meu inquilino.Na mesma casa. Quando saiu o meu irmão, que foi para França, ele foi para lá (…) trinta escudos, por trinta escudos mensal. (Aludindo ao O…); «Foi também meu inquilino.No mesmo prédio.». A respeito do filho, disse:«Vive um filho meu, sozinho; esteve lá com a minha nora, mas não deu certo e ela foi-se embora. Ele ficou lá sozinho».
Factos que foram também confirmados pelos depoimentos das testemunhas T…, U… e V…. A primeira, dizendo conhecer as partes desde a infância, por viverem no mesmo lugar, e dando mostras de conhecer o terreno, esclareceu tratar-se de um terreno descampado que ia até ao mar, com areia e mato, pois «fazia mesmo fronteira com as dunas». Terreno que sempre foi tido como pertencendo ao N… (conhecido como N1…), mas foi, entretanto, ocupado pelo pai do réu J…, que «começou lá a fazer blocos». Disse ainda: «Quando o pai deste senhor começou a trabalhar lá não havia barraco. Só depois … tiveram de fazer um barraco para pôr lá os blocos de baixo, para quando chovia não desfazer os blocos». Instado pela Senhora Juíza acerca da data da construção, dizendo não saber bem, apontou para 49/51. Mais clarificou que, partindo desse coberto, foram melhorando, viviam lá e «fizeram lá uma tasquinha», a mulher (a K…) «vendia lá umas coisinhas». Disse ainda que, nessa construção, viveu o S….
Identicamente, a testemunha U…, nascido e criado na freguesia de Arcozelo, disse que sempre ouviu dizer que aquilo era do Senhor N1…. O Senhor M… (pai do réu) «teve lá uma bloqueira e aquele tasco. Não sei se ele ocupou o terreno ou como foi… muitos anos, mas muitos anos». Na construção, quando ele de lá saiu, «estava lá um caseiro chamado o S… (S1… …) enchia lá... pagava a renda ao Senhor N1…. Ele disse-me a mim que pagava uma renda ao Senhor N1…. Sei que aquilo era antigamente do Senhor N1…. Agora não sei… não posso dizer nada. (…) No Sr. N1… … já não havia bloqueira».
Também a testemunha V… disse que o pai do réu e os filhos lá «fizeram blocos» e tinham «um tascozinho»; «fizeram um barraco e foram ampliando. Começaram a explorar a taberna e depois foram morar para lá». Admitiu que foram morar naquela construção «(…) em… 55 eles já moravam lá, no tascozinho». E apontando a data da construção para os anos 50, disse: «Andei lá a fazer o tascozinho».
Do mesmo modo, a testemunha O…, vizinho desde há cerca de 45 anos, confirmou que o réu lhe deu de arrendamento a construção, que usou como “oficina” para encher extintores.
Todos estes elementos fácticos permitem, mediante um processo inferencial, ajuizar que o contrato foi estabelecido para a construção de blocos de cimento. Essa foi a primeira atividade exercitada pelo pai do réu, primitivo arrendatário, que inicializou após a ocupação do terreno, com características apropriadas ao efeito – terra de mato e areia, esta essencial para, sem custos de aquisição e transporte, levar a cabo a fabricação dos blocos. O que sustenta que o destino a dar ao terreno foi debatido e acordado pelas partes primitivas. Só assim se compreende a construção de um barraco, justificado pela necessidade de guardar materiais e até o produto da fabricação, ao menos no inverno, durante o período de secagem. Enunciados factuais expressos pela prova pessoal, sustentados pelas máximas da experiência e que facultam a reconstrução do acordo das partes quanto ao destino do terreno. As presunções judiciais, partindo dos factos conhecidos para afirmar o desconhecido, permitem sustentar este juízo (artigo 349º do Código Civil, diploma a que pertencerão todas as normas que se mencionarem sem indicação de proveniência). No recurso de apelação está o tribunal legitimado a recorrer a presunções judiciais para, com base nelas, desenvolver a matéria de facto fixada na primeira instância, declarando como provado algum facto por ilação de outro dado por provado. Antes das alterações introduzidas ao Código de Processo Civil pela reforma de 2013[1], entendia-se que estava vedado à Relação recorrer a presunções judiciais para dar como provado qualquer facto que a primeira instância tivesse considerado como não provado. Assumia-se que a possibilidade de a Relação alterar a resposta à matéria de facto – em vez de a integrar ou completar – com base em presunções judiciais «vibraria um golpe profundo no princípio da imediação na apreciação das provas»[2]. Jurisprudencialmente, foi também essa a linha de pensamento do Supremo Tribunal de Justiça, que reiterou a afirmação de estar fechado à segunda instância dar como provado, pela via de presunções judiciais, um facto que mereceu resposta negativa ou alterar um facto provado em primeira instância e alcançar outro diferente. No fundo, entendia que, sendo lícito à Relação o uso de presunções judiciais ou naturais, era imprescindível a congruência entre a matéria de facto fixada pela primeira instância através da livre valoração da prova produzida, com imediação e oralidade, por forma a que não ocorresse uma alteração direta de respostas dadas aos pontos de facto controvertidos ou um desenvolvimento da base factual do litígio suscetível de criar contradições para com o julgamento da matéria de facto imodificada[3].
Porém, a reforma de 2013 ampliou substancialmente os poderes da Relação na apreciação ou modificação da decisão de facto, estatuindo o artigo 662.º, n.º 1, que pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto fixada pela primeira instância, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. E, ex officio, pode: «a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.».
Assim, a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, que pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos pela primeira instância ou a produção de novos meios de prova, nas condições legalmente previstas. Vale por dizer que a determinação dos factos pela Relação, após a reapreciação da prova, deve decorrer da análise crítica dos elementos probatórios para o efeito apreciados, de acordo com a própria convicção que a Relação sobre eles forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito probatório material, ou seja, pelas regras que atribuem força probatória plena a determinados meios de prova e/ou pelas que impõem que a prova de determinado facto se faça por certo meio probatório[4].
Esta alteração normativa impõe à Relação que forme a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a primeira instância, sem qualquer vinculação ou limitação à convicção que serviu de base à decisão recorrida. O princípio da livre apreciação da prova vigora, ao mesmo nível, para a primeira instância e para a Relação, quando é chamada a reapreciar a matéria de facto (n.º 5 do artigo 607º do NCPC). Compete, pois, ao Tribunal da Relação reapreciar criticamente todos os elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos e, de acordo com a convicção própria que forme, devidamente fundamentada, consignar os factos materiais que julga provados, coincidam eles, ou não, com o juízo alcançado pela primeira instância[5]. Efetivamente, «(…) fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partesou daqueles que se mostrem acessíveis», procedendo a um novo julgamento da matéria de facto impugnada[6].
Considerandos que patenteiam a licitude do uso pela Relação de presunções judiciais ou naturais para alterar factos tidos como provados e/ou não provados (salvo as limitações à sua admissibilidade), desenvolver a matéria de facto dada por provada, declarando provado um novo facto com base nos factos provados em primeira instância, desde que congruente e não colidente com os demais factos provados[7]. «O recurso às presunções judiciais é especialmente relevante nos casos em que seja impugnada a matéria de facto, caso em que, tendo a Relação acesso a todos os elementos que puderam ser ponderados pelo juiz de 1.ª instância, pode não apenas sindicar o uso que este fez das presunções judiciais como ainda fazer uso autónomo desse meio de formação da convicção, reflectindo-o na decisão da matéria de facto que considere em definitivo provada e não provada.»[8]
Assim, em face da matéria articulada partes e da reapreciação de todos os elementos probatórios produzidos nos autos nos termos expostos, fazendo uso das presunções judiciais, para os números 2, 4 e 5 dos fundamentos de facto da sentença julgam-se apurados os seguintes factos: 2. Foi por essa altura que o dono do terreno, N…, pai dos Autores, o deu verbalmente de arrendamento a M…, pai do Réu J…, para nele fabricar blocos de cimento. 4. O Réu J… ampliou e remodelou uma pequena construção levantada no terreno por seu pai na década de 50. 5. A referida construção foi ocupada por S… e O…, mediante contrapartida pecuniária, e, atualmente, nela vive e pernoita M…, filho dos réus.
Para além disso, tendo as testemunhas afirmado e o próprio réu confessado que a atividade de fabrico de blocos de cimento cessou na década de 70, dá-se por apurado, sob o n.º 51, que «Há mais de 25 anos, o réu J… deixou de fabricar de blocos de cimento» (artigo 16º da petição inicial).
Pretendem também os autores a comprovação do facto por si alegado no artigo 12º da petição inicial: «Após o falecimento do pai dos autores, o réu J… passou a pagar a estes a renda anual acordada de 3.500$00». Na sentença está comprovado que N…, pai dos autores faleceu em 30 de novembro de 1985 (n.º 16 dos fundamentos de facto) e que os filhos dos réus e, mais tarde, apenas o réu se manteve no gozo do terreno e da construção que foi melhorando, mas nada foi apurado quanto ao aumento do valor da renda após o óbito do primitivo senhorio. Os réus impugnaram tal facto e as testemunhas nada revelaram conhecer sobre essa concreta questão. Opõem os autores que os réus não impugnaram esse facto na contestação, o que não corresponde à realidade. Embora os autores alegassem que o réu não pagou a renda anual em setembro de 1993 nem, posteriormente, qualquer outra renda (artigos 13º e 14º do petitório) e os demandados o não tivessem impugnado diretamente, não deixaram de articular matéria que o contradiz, designadamente alegando que nenhum dos autores «interpelou ou se apresentou aos RR a reclamar a renda nem aos mesmos deram conhecimento formal de que havia falecido o senhorio, seu pai, e que qualquer um deles assumia essa qualidade ou que seria seu herdeiro». A significar que, ao contraporem o silêncio dos autores quanto ao contrato de arrendamento e seus termos, estão a impugnar a comunicação da alteração da renda e, sem qualquer dúvida, o seu acordo a esse aumento. É certo que, no depoimento de parte, o réu reconhece que deixou de pagar a renda em 1985, após a morte do pai dos autores e que estes lhe pediram para deitar a casa abaixo e devolver o terreno; afirmação que poderia levar a intuir que os autores não lhe propuseram aumento de renda, porque reclamavam a devolução do terreno. Porém, os documentos de fls. 179 a 199, correspondentes a talões de depósitos de rendas desde 1993, patenteiam que os réus depositaram a renda anual de 3.500$00. Tendo os demandados impugnado a genuinidade da assinatura por si aposta em 6 dos talões de depósito de rendas, foi ordenado o exame à escrita, que concluiu que a escrita das assinaturas pode ter sido produzida pelo punho do réu J… (fls. 262). Não obstante esse resultado, a verdade é que a assinatura é, em tudo, muito similar à que o réu apôs em documentos autênticos, por si apresentados para o exame comparativo, sem que tenha alegado qualquer especial contexto que procurasse explicar as razões pelas quais não foram por si produzidas aquelas concretas assinaturas apostas em talões de depósito da renda anual de 3.500$00, que apenas a si interessavam, por diretamente reportados ao terreno em questão e com depósito a favor dos herdeiros de N…. Medida em que se adquire a convicção de que as assinaturas são da sua autoria e que a renda anual, ao menos desde 1993 – o mais antigo ano a que se reporta o depósito , era daquele valor, pedido pelos autores e aceito pelo réu. Doutro modo, teria o réu depositado apenas os 1.000$00 inicialmente estipulados. Assim, dá-se por provado: «Pelo menos desde o ano de 1993, o réu J… passou a pagar aos autores a acordada renda anual de 3.500$00».
Os autores pugnam também pela ausência de prova do facto vertido sob o n.º 7 dos fundamentos de facto, à exceção da instalação da taberna, que assim consta: «Em 1956, o então arrendatário do prédio rústico, M…, pai do R. marido edificou, com total conhecimento e autorização do proprietário do mesmo, pai dos aqui AA, uma pequena construção onde instalou uma taberna». Essa alegação foi impugnada pelos autores na réplica, visando, assim, atacar o conhecimento e autorização do seu falecido pai à construção e instalação da taberna. Na verdade, da prova produzida não resulta que o primitivo senhorio tenha dado autorização para o levantamento da construção e sua utilização sucessiva às diversas finalidades a que foi adstrita. E, no tocante a essa matéria, a motivação probatória do tribunal a quo, fundou-se no documento de fls. 70, que corresponde a um alvará sanitário conferido a um estabelecimento de taberna a favor de M…, falecido pai do réu, e nos depoimentos de testemunhas V… e U…, esclarecedores da instalação da taberna e da autorização e conhecimento do pai dos autores. É certo que estas testemunhas depuseram no sentido de que aquele senhorio teve conhecimento da edificação e da sua utilização, designadamente da instalação da taberna, porquanto o viram a frequentá-la e nunca presenciaram qualquer ato de oposição. Por seu turno, a testemunha T… afirmou que uma vez viu lá o Senhor N1… (como era conhecido o pai dos autores) a falar com o Senhor M…. Também o V… referiu que o pai dos réus «Viveu lá. Tinha um tascozinho. (…) Fizeram um barraco e foram ampliando. Começaram a explorar a taberna e depois foram morar para lá (…) foram para lá morar em … 55 eles já moravam lá, no tascozinho. E à pergunta: «As obras foi com consentimento do Sr. N1…?» disse: «Foi sempre». Afirmação que não mereceu uma instância escalpelizada a ponto de poder gerar um sério convencimento da autorização. Porém, atendendo a que referiram a presença do primitivo senhorio na taberna, que ali se deslocava, sem que tivesse deduzido qualquer oposição, à luz das regras da experiência e da vida, pode ajuizar-se que, se não autorizou expressamente as obras que foram sendo executadas, nelas consentiu, em plena aceitação. Assim, se aceitando o consentimento do senhorio às obras e implantação da taberna, mas afastando a ideia inculcada pela resposta de que a edificação foi levantada para implantar a taberna, quando as testemunhas narraram que o pai do réu construiu um barraco que foi sendo ampliado e remodelado em função das finalidades a que foi sendo votado. Aliás, no inventário a que se procedeu por óbito do M…, pai do réu, este declarou a existência do “primitivo barraco” e instalação da taberna, que lhe foi vendida em 24-04-1959 (fls. 76 a 79). Altera-se, pois, a resposta dada ao n.º 7 para: «Em 1956, o então arrendatário do prédio rústico, M…, pai do R. marido, com conhecimento e consentimento do pai dos AA, instalou uma taberna na pequena construção aludida em 4.
Propugnam os recorrentes que devem ser dados como provados os factos alegados nos artigos 22º e 23º da petição inicial, que assim se reconduzem: «22.º - O referido M… tem a respectiva vida pessoal e familiar centrada no PRÉDIO, dele fazendo a sua habitação.
23.º - Também a afectação do PRÉDIO à habitação – fim diverso àquele para que o PRÉDIO se destinava – e a sua cedência a terceiros foi realizada pelos Réus sem o conhecimento e, portanto, sem a autorização dos Autores».
A esse respeito, a sentença dá por demonstrado, sob o ponto 5., que «Na referida construção vive e pernoita atualmente M…, filho dos Réus». Facto que foi confirmado pelo depoimento de parte do réu, esclarecendo que o seu filho tem ali a sua vida organizada, chegando a viver na casa companheira. Como também referiu que teve lá dois inquilinos: o O… e o S…. Em boa verdade, a prova, até pela confissão do réu, é clara no sentido de que, na construção, habitaram também aqueles dois “inquilinos”, pelo que assiste razão aos autores quando pretendem que fique comprovada a cedência a outros que não apenas o filho dos réus. Já quanto à cedência a terceiros sem conhecimento e autorização dos autores – facto alegado pelos demandantes e expressamente impugnado pelos réus a prova produzida, sem infirmar diretamente essa alegação, faz até pressupor o contrário, pois denota que o pai dos autores sabia da construção e do uso que lhe foi dado. A propósito, sob a instância do ilustre mandatário dos autores, afirmou o réu: «(…) [o Senhor S…] Foi meu inquilino.Na mesma casa. Quando saiu o meu irmão, que foi para França, ele foi para lá (…) trinta escudos, por trinta escudos mensal. «[ o Senhor O…] “Foi também meu inquilino.No mesmo prédio”. Também a testemunha U… confirmou que viveu na edificação «um caseiro... chamavam-lhe o... era o ... a gente chamava-lhe o S2… ou o “S1…” ou não sei o quê...enchia lá garrafas de oxigénio ou qualquer coisa. Ele dizia que pagava a renda ao Senhor N1……»(como é conhecido o réu). Similarmente, a testemunha T… disse: «Ficou! Ficou lá a viver um Senhor chamado... que nós chamávamos S3...”. Não sei se ele ficou lá com a finalidade de tomar conta da casa, ou se como é que foi». E a testemunha O…, sob a instância da mandatária dos réus, relatou: «Eu morava na Avenida …. Morei quarenta anos nos bombeiros. Reformei-me e agora saí de lá há pouco tempo, mas estava lá a morar no coiso. Agora, eu estava num canto, lá em baixo, onde eu tinha os extintores. Arranjei o chão, o quarto de banho, e fiz a oficina de extintores». Instado em que sítio, respondeu: «No terreno que o Senhor N1… (…) A que era no terreno... Lembra-me que era uma bloqueira. Que era uma bloqueira e depois aquilo deixou de ser bloqueira e então ficou aquilo estava vazio e eu pedi-lhe a ele: ó Senhor N1…, o Senhor não me quer alugar ali aquela casita que eu queria pôr lá o material de incêndio, de extintores. E ele disse assim: Está bem. E eu arranjei aquilo». Dizendo que, a determinada altura, os autores lhe perguntaram a que título usava a casa e a quem é que pagava a renda, esclareceu o teor da conversa: «Eu pagava a renda ao Senhor N1…. Então disseram-lhe: (…) mas você está a pagar-lhe a renda mas aquilo não é dele. É nosso! Disseram que o terreno que era deles. Ora, eu não sei de nada. Eu só sei que pago a renda ao Senhor N1…, mais nada (...) Falavam do terreno, que era do Senhor... uns Senhores dali de … ... parece que chamavam até de “N1…». Perguntado pelo mandatário dos autores sobre quem vive agora na casa, respondeu que é o filho do N1…. Em suma a cedência a terceiros está comprovada e já dada por demonstrada sob o ponto 5., mas não há prova de que tenha sido sem autorização dos autores. Os réus não o admitiram na contestação, o réu marido não o confessou no seu depoimento e a prova testemunhal nada acrescenta sobre tal matéria.
Também discordam os recorrentes da resposta dada ao ponto 8 da matéria de facto, assim traduzido: «Tal edificação foi declarada às Finanças competentes tendo ficado inscrita na matriz predial urbana sob o artº 1323». Na verdade, essa alegação e o documento usado pelo tribunal para fundamentar a sua convicção documento de fls. 71 foram impugnados pelos autores. Esse documento, emitido pela Administração Tributária, é relativo à “contribuição predial urbana” então devida por um prédio ou construção, sito na Avenida ..., no …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia. O documento não está datado e é ilegível no tocante à identificação do artigo matricial urbano a que se refere. Pese embora a completa inelegibilidade do artigo matricial, admite-se que possa referir-se à construção implantada no prédio rústico sob discussão. Menciona uma situação de arrendamento para comércio, o valor anual da renda paga, um contrato verbal datado de 15-09-1960 e a participação de 27-05-1963, a justificar que possa ter sido determinada pela necessidade de relacionar os bens da herança aberta por óbito do falecido pai dos réus em 26-10-1960. Examinadas as peças processuais juntas pelos réus relativamente ao inventário para partilha da herança, verifica-se que foi relacionada, como benfeitorias executadas pelo réu marido, a casa inscrita na matriz sob o artigo 1.323º (prova documental de fls. 72 a 94). É certo não se encontrar junta aos autos a respetiva caderneta predial ou certidão matricial, mas estando esse prédio urbano assim relacionado no processo de inventário, forçoso é concluir que nele foi feita a respetiva prova documental, pelo que pode manter-se provada a sua declaração fiscal e inscrição matricial.
Mais contestam o facto dado por demonstrado sob o n.º 12, a saber: «A edificação efectuada pelo pai do R. marido foi, entretanto, ampliada à custa deste, tendo já em 1965 uma área superior a 90 m2 e onde este continuou com a actividade comercial iniciada pelo seu pai e habitou, desde então, com o seu agregado familiar». Com efeito, os autores impugnaram a data em que o réu ampliou a construção levada a cabo por seu pai e a decisão da matéria de facto ateve-se, para tanto, aos depoimentos das testemunhas V… e U…. Aquele referiu que «em … 55 eles já moravam lá, no tascozinho» e «[A]ndei lá a fazer o tascozinho», apontando para os anos 50. Porém, relativamente à data da ampliação levada a cabo pelo réu, nada referenciaram. A verdade é que, nos autos de inventário aberto por óbito de seu pai, como se disse, em 6-10-1966, o réu reclamou da relação de bens, requerendo a relacionação, como benfeitoria, do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 1.323º, o qual foi licitado pelo réu e lhe foi adjudicado por sentença 29-05-1967 (fls. 72 a 94). Todos os documentos relativos à aquisição de materiais de construção são bem ulteriores a essa data, reportando-se o mais antigo a 2007. A ampliação terá ocorrido após a adjudicação, em 1967, aceitando as partes a área de 90 m2, já declarada pelo réu marido quando reclamou da relação de bens no dito inventário. Como a data se reporta à área da construção e coincide com a prova produzida – em 1966 já tinha uma área superior a 90 m2 e os demais factos foram aceitos pelas partes, mantem-se a resposta dada pelo tribunal a quo.
Igualmente discordam da matéria provada sob o n.º 13, por entenderem que não foi feita prova de que o pai dos autores tenha chegado a depor no incidente de exclusão de bens, não obstante resultar ter sido arrolado como testemunha. É certo que não foi junta peça processual que comprove a produção de prova no inventário, nem o réu, no seu depoimento de parte, o clarificou. Ao invés, a ata de conferência de interessados antes dá nota de que pode não ter havido produção de prova, pois o incidente foi decidido por acordo dos interessados. Daí assistir razão aos recorrentes, passando a constar do n.º 13 dos factos provados: «No inventário aberto por óbito de M…, que correu termos na 2ª Secção do 5º Juízo Cível do Porto sob o nº 5406, o pai dos autores N… foi arrolado como testemunha no incidente de reclamação à relação de bens.»
Dissentem ainda da factualidade vertida sob o n.º 15, por considerarem que o conceito “prédio urbano” tem uma natureza jurídica e não de facto e que a sentença homologatória da partilha, proferida no inventário, apenas comprova que a edificação foi partilhada e adjudicada aos réus, «como benfeitoria feita em terreno pertencente a N…». O item em causa assim reza: «Desde pelo menos 1967, que os ora RR são donos e legítimos proprietários do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o art. 1323, tendo-o adquirido no inventário supra Identificado.»
O conceito de prédio urbano é, efetivamente, eminentemente jurídico. Plasmado no artigo 204.º, 1, a), e 2, é definido como qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro. Logo, ao exarar no texto do item tal conceito, a sentença está a qualificar juridicamente o prédio, quando, em rigor, o enquadramento jurídico deve fazer-se em sede de subsunção dos factos ao direito. Aceita-se que, não obstante o seu cariz jurídico, o conceito de prédio urbano entrou na linguagem corrente e é entendido pela generalidade das pessoas da nossa comunidade.
O anterior artigo 646º, 4, do CPC, determinava que «têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito», menção que não tem paralelo no NCPC. No entanto, o atual modelo normativo continua a manter a distinção jurídica entre matéria de facto e matéria de direito, o que inculca o inequívoco juízo de que a decisão de facto não deve incluir «conceitos de direito ou conclusões normativas que possuam virtualidades para condicionar o destino da acção e que definam, por essa via, a aplicação do direito.» (artigo 607º)[9]. Sendo agora admissível com mais naturalidade as asserções que, no contexto da ação, sejam mais do que puras questões de facto e, portanto, uma maior liberdade na descrição da realidade litigada, o julgador continua a não estar dispensado de evitar formulações genéricas, de cariz conceptual ou de natureza jurídica que definam, por essa via, a aplicação do direito, como acontece quando os referidos conceitos se reportam diretamente ao objeto da acção[10]. Destarte, apesar de reconhecer à expressão “prédio urbano” um conteúdo comum, de uso e compreensão da generalidade das pessoas, como a alegação dos réus,correspondente àquela factualidade, remete para a construção a que aludem os anteriores itens, altera-se a redação em conformidade. Do mesmo modo, em rigor, deve reproduzir apenas o conteúdo do documento que suporta o facto e que corresponde à sentença homologatória do mapa de partilha proferida em 29-05-1967, a qual não contém, como pretendem os recorrentes, qualquer referência ao arrendamento e à titularidade do terreno onde foi implantada a construção. Opor outro lado, afirmar, em sede do facto, que os «RR são donos e legítimos proprietários do prédio …», quando esse é um dos pedidos reconvencionais, equivale a decidir juridicamente a reconvenção pela via factual. Eliminam-se, pois, esses conceitos jurídicos, que deverão ser ponderados em sede de aplicação do direito.
No tocante ao facto vertido sob o n.º 28, igualmente se defende que o seu texto deverá retratar aquela mesma realidade, pelo que os dois indicados itens passam a exibir o seguinte texto: 15º e 28º - A sentença homologatória da partilha proferida, em 29-05-1967, no inventário facultativo que correu termos na 2.ª Secção do 5.º Juízo Cível sob o n.º 5406, adjudicou aos réus, como benfeitoria, a construção inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1323º.
Ainda discutem os recorrentes dos factos ínsitos aos n.os 18 a 21, defendendo a sua falta de prova. Neles se exara:
“18 - Até ao vencimento da renda respeitante ao ano seguinte, 1 de Setembro de 1986, nenhum dos AA interpelou ou se apresentou aos RR a reclamar a renda nem aos mesmos deu conhecimento formal de que havia falecido o senhorio, seu pai, e que qualquer um deles assuma essa qualidade ou que seria seu herdeiro. 19 - Desde a data do óbito do seu pai, os AA/Reconvindos deixaram intencionalmente de exercer o seu direito de propriedade sobre o prédio dos autos, não tendo praticado qualquer acto, notificação do óbito, reclamação de rendas, etc., que configurasse por parte destes o animus possidendi sobre o assunto. 20 - Apenas decorridos 19 anos sobre o óbito do N… é que os AA/Reconvindos se habilitaram à herança, não tendo, inclusive, participado o óbito do seu pai, nem relacionado os bens, como lhes competia às Finanças, para apuramento do imposto sucessório, no prazo legal. 21- Tal participação só terá sido efectuada decorridos, pelos menos 19 anos, atento o facto de já ter sido atribuído número fiscal à herança do pai dos AA, o que só passou a ocorrer desde o início de 2004, com a entrada em vigor do chamado imposto de Selo.”
A motivação probatória aduzida na decisão da matéria de facto quanto a estes itens evoca os depoimentos das testemunhas V… e U…. Porém, nem essas testemunhas nem outras fizeram afirmações reconduzíveis ao dado por demonstrado. Acresce que os autos contêm documentos, cuja autenticidade não foi impugnada, e que exibem uma realidade bem diversa. O pai dos autores N… faleceu em 30-11-1985, datando a escritura de habilitação de herdeiros apenas de 12-07-2004, conforme certidão junta a fls. 22 a 24. Admite-se a impressividade do decurso de tão lato período de tempo para regularização da situação patrimonial da herança, mas esse elemento não justifica os juízos eduzidos em primeira instância, tanto mais que o documento de fls. 149 a 151, correspondente a uma certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia, extraído do processo de liquidação de imposto sucessório referente ao óbito daquele N…, evidencia que a participação do óbito foi efetuada, em 27-12-1985, por B…, na qualidade de cabeça-de-casal. Além do mais, tal certidão comprova também a apresentação da correlativa relação de bens em 17-03-1986, na qual se encontra descrito, sob a verba n.º 17, o prédio rústico sob litígio (fls. 152 a 155). Documentos que infirmam, sem qualquer margem para dúvida, o conteúdo da factualidade provada sob os n.os 20 e 21, salvo a data da escritura de habilitação de herdeiros, documentalmente comprovada. Também os factos e juízos conclusivos e jurídicos insertos nos n.os 18 e 19 têm de merecer resposta de não provado. Quanto às rendas, existem nos autos comprovativos do respetivo depósito em diversas datas, o que denota que os próprios réus reconheciam a sua qualidade de arrendatários e se consideravam meros detentores do prédio rústico. Os elementos informativos prestados pela P… revelam que a conta bancária para consignação de rendas foi constituída em 17-09-1993, titulada pelo “inquilino J…” e senhorio herdeiros de N…, e é relativa ao terreno sito na Av. …, …. É certo que a cabeça-de-casal se não apresentou a fazer qualquer levantamento, mas também não lhe foram notificados os depósitos (documento de fls. 179). E do extrato da conta verifica-se que as rendas foram depositadas até 2009, inclusive, ou seja, até à data da propositura da ação, em março de 2010. Ademais, os autos evidenciam, como se antecipou, que as rendas de 2001 a 2005 e 2009 foram depositadas pelo réu J…. Ainda que não houvesse tal evidência, o próprio réu marido confessou ter sido interpelado pelos autores para demolir a edificação e entregar o terreno, num diálogo que assim transcorreu, quando disseque deixou de pagar as rendas e foi instado acerca dos motivos: «Deixei de pagar porque fui para pagar e não quiseram receber e disseram: agora vais deixar ficar a casa, vais deitar isso abaixo que a gente quer o terreno limpo.» À pergunta «Quem é que lhe disse isso?», respondeu «A coisa... a B… ... a filha... Ela disse: vamos fazer partilhas e queremos o terreno. Eu disse: não. A casa é minha. Não vou deitar nada abaixo. Eu não saio daqui.». Logo, o item 20 passa a exibir o seguinte conteúdo: «Provado apenas que, em 12-07-2004, foi lavrada escritura de habilitação de herdeiros por óbito de N…, pai dos autores, ocorrido em 30-11-1985».
No que tange aos n.os 22 a 25 e 27, apontam os recorrentes a confusão entre factos e conceitos jurídicos ao primeiro e pugnam pela falta de prova dos restantes. Nesse n.º 22 consigna-se: «Os RR/Reconvintes mantêm por aquele lapso de tempo, a posse do prédio em nome próprio, usando, fruindo e dispondo do mesmo.» Item que se reporta a um prédio que não identifica, embora a sua inserção sistemática o reporte a “prédio dos autos” referenciado sob o n.º 19. Expressão que pode ter um sentido equívoco, uma vez que nos autos se nomeiam dois prédios – o rústico e o urbano. Porém, como não há discussão acerca de quem levantou o “prédio urbano” e tendo em conta o modo como os factos estão elencados, crê-se que este número se reporta ao prédio rústico. A seu respeito, a prova produzida é toda ela inequívoca no sentido de que os réus, por si e antecessores, na qualidade de seus arrendatários, tratam e cuidam do terreno identificado em 1. desde a década de 50. Donde se não possa dar por provado que têm cuidado dele em nome próprio e como proprietários, num exercício de “posse”, como faz a sentença recorrida. Medida em que, expurgando esse número dos conceitos jurídicos de que está eivado, se dá por demonstrado: «Os réus, por si e antecessores, ocupam, tratam e cuidam do terreno identificado em 1. desde a década de 50».
Quanto à impugnação dos factos dados como provados sob os pontos 26. e 29. a 32., a prova produzida é toda ela no sentido de ter sido o pai do réu a levantar a construção que está inscrita na matriz sob o artigo 1.373º, a qual foi sendo ampliada e melhorada pelos réus, no que gastaram as quantias pecuniárias correspondentes. Por isso, os n.os 26 e 29, despidos dos juízos conclusivos e jurídicos, passam, em conjunto, a ter a seguinte redação: «Provado apenas que os réus suportaram os encargos com as obras de ampliação, conservação e manutenção que realizaram na construção edificada pelo seu falecido pai no terreno identificado em 1.».
No concernente à impugnação da factualidade vertida sob os n.ºs 30 a 32, pretendem os autores resposta de não provado. Neles se consagra: 30º - «Os RR/Reconvintes têm despendido dezenas de milhares de euros na sua manutenção, o que aconteceu, há cerca de dois anos, com a colocação de um novo telhado, construção de uma nova cozinha e casa de banho, pintura, colocação de caixilharias de alumínio lacado nas janelas, entre outras obras necessárias à sua manutenção e conservação.
31. Só no ano de 2009, os RR/Reconvintes despenderam em obras no seu prédio a quantia de €10.354,93.
32. As obras recentemente efetuadas valorizaram o prédio urbano dos RR/Reconvintes o qual atualmente tem um valor não inferior a € 29.500,00».
Os valores pecuniários ínsitos aos antecedentes itens não foram referenciados pelas testemunhas e os documentos juntos aos autos não coincidem com as quantias expressas. Tendo sido impugnados pelos autores, verifica-se que muitos deles, valorados pelo tribunal a quo, são emitidos em nome do réu, mas reportam-se a entregas em locais diversos do prédio em causa, situado em …. No seu depoimento de parte, o réu mencionou ter outras casas e admitiu o eventual lapso na junção de algumas das faturas. De todo o modo, os documentos juntos aos autos não se aproximam sequer dos montantes referidos na factualidade ínsita aos itens 30 a 32. Ademais, teria bastado aos réus, a quem incumbe o ónus da prova dessa matéria factual, requerer perícia no sentido do apuramento do valor da edificação ali implantada e, não o tendo feito, na ausência de prova que sustente os valores em causa, são sérias as dúvidas suscitadas, a justificar respostas restritivas e sem especificação dos valores despendidos, embora as regras da experiência facultem a asserção de que os réus despenderam milhares de euros. Em conformidade, tais itens passam a exibir o seguinte texto:
30. «Os réus despenderam dezenas de milhares de euros nas obras que realizaram.
31. No ano de 2009, em obras os réus ali despenderam quantia não apurada.
32. As obras realizadas pelos réus conferem à edificação um valor não determinado».
Na defluência do exposto, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto, que se transcreve com as alterações introduzidas por esta Relação.
B. Factos provados
1. No início da década de 50 do século passado, o prédio denominado “L…”, com a área total de 2.000 m2, sito no …, na freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número 3 528/20080603, e inscrito na matriz predial respetiva, caracterizava-se por ser um terreno inculto, de areia e mato.
2. Foi por essa altura que o dono do terreno, N…, pai dos autores, o deu verbalmente de arrendamento a M…, pai do réu J…, para nele fabricar blocos de cimento.
4. O réu J… ampliou e remodelou uma pequena construção levantada no terreno por seu pai na década de 50.
5. A referida construção foi ocupada por S… e O…, mediante contrapartida pecuniária, e, atualmente, nela vive e pernoita J…, filho dos réus.
5.a. Há mais de 25 anos, o réu J… deixou de fabricar de blocos de cimento (aditado pela Relação).
6. Os réus procederam ao depósito da quantia de € 445,23.
7. Em 1956, o então arrendatário do prédio rústico, N…, pai do réu, marido, com conhecimento e consentimento do pai dos autores, instalou uma taberna na pequena construção aludida em 4. (alterado pela Relação).
8. Tal edificação foi declarada às Finanças competentes, tendo ficado inscrita na matriz predial urbana sob o artº 1.323.
9. Entretanto, o pai do R. marido, em 1957, deixou de exercer a actividade comercial naquele prédio, tendo entregue a exploração daquele comércio aos filhos J…, ora réu e Q….
10. Em 1959, o irmão do réu marido, Q…, que já não exercia qualquer atividade no prédio, deixou de pagar a renda ao proprietário do terreno, passando a fazê-lo o ora réu marido.
11. Tendo o réu marido sido reconhecido como locatário do prédio rústico pelo pai dos ora autores desde a data supra mencionada.
12. A edificação efetuada pelo pai do réu marido, foi, entretanto, ampliada à custa deste, tendo já em 1965 uma área superior a 90 m2 e onde este continuou com a atividade comercial iniciada pelo seu pai e habitou, desde então, com o seu agregado familiar.
13. No inventário aberto por óbito de M…, que correu termos na 2ª Secção do 5º Juízo Cível do Porto sob o nº 5406, o pai dos autores N… foi arrolado como testemunha no incidente de reclamação à relação de bens (alterado pela Relação).
14. E partilhada (a edificação) como benfeitoria da herança aberta por óbito de M…, tendo sido adjudicada aos ora réus.
15. A sentença homologatória da partilha proferida, em 29-05-1967, no inventário facultativo que correu termos na 2.ª Secção do 5.º Juízo Cível sob o n.º 5406, adjudicou aos réus, como benfeitoria, a construção inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1.323º (alterado pela Relação, com integração do n.º 28).
16. N… faleceu em 30 de novembro de 1985.
17. Naquela data já se mostrava liquidada a renda anual devida, uma vez que a mesma já tinha sido liquidada ao pai dos autores.
18. (dado por não provado pela Relação).
19. (dado por não provado pela Relação).
20. Provado apenas que, em 12-07-2004, foi lavrada escritura de habilitação de herdeiros por óbito de N…, pai dos autores, ocorrido em 30-11-1985.
21. (dado por não provado pela Relação).
22. Os réus, por si e antecessores, ocupam, tratam e cuidam do terreno identificado em 1. desde a década de 50.
23. O que fizeram continuamente (alterado pela Relação).
24. À vista de toda a gente (alterado pela Relação).
25. (dado por não provado pela Relação).
26 e 29. Provado apenas que os réus suportaram os encargos com as obras de ampliação, conservação e manutenção que realizaram na construção edificada pelo seu falecido pai no terreno identificado em 1. (alterado pela Relação).
27. Provado apenas o que conta da resposta aos n.ºs 22 e 26.
28. (Acoplado pela Rela Relação ao n.º 15).
30. Os réus despenderam dezenas de milhares de euros nas obras que realizaram (alterado pela Relação).
31. No ano de 2009, em obras os réus ali despenderam quantia não apurada (alterado pela Relação).
32. As obras realizadas pelos réus conferem à edificação um valor não determinado (alterado pela Relação).
33. Pelo menos desde o ano de 1993, o réu J… passou a pagar aos autores a acordada renda anual de 3.500$00 (alterado pela Relação).
IV. O DIREITO 1. A usucapião a favor dos réus
A ação, delineada pelo pedido de resolução de um contrato de arrendamento referente a um prédio rústico, pressuporia a imediata a análise desse pedido, não obstante os pedidos reconvencionais formulados, designadamente a declaração de abandono da posse sobre esse prédio por parte dos autores e o pedido de reconhecimento do direito de propriedade a favor dos réus. Como alcançaram êxito tais pedidos, por precedência lógica dos mesmos relativamente ao pedido formulado na ação, a fundamentação jurídica iniciar-se-á pela sua análise.
Sem se cuidar, desde já, da factualidade dada por provada, cabe refletir sobre a construção, factual e jurídica, percorrida pela sentença recorrida para declarar o direito de propriedade dos réus sobre o prédio rústico aqui questionado, inscrito na matriz predial respetiva da freguesia de Arcozelo sob o artigo n.º 2.470.
Não discutiam as partes que o prédio rústico pertenceu aos antecessores dos autores, que lhes sucederam nesse direito, e que o seu pai o deu de arrendamento ao pai do réu marido. Como não dissentiam quanto ao levantamento, pelo arrendatário primitivo, de uma pequena construção que veio a dar origem ao dito prédio urbano inscrito matricialmente sob o n.º 1.373. Não diferenciando a discussão sobre a titularidade de um e outro prédios, a sentença conclui – a partir dos factos que, nesse sentido, deu por provados que os réus adquiriram o prédio por usucapião e por sucessão, sem especificar que esta incidiu apenas sobre o “prédio urbano”, para ajuizar pela prevalência da presunção da titularidade do direito fundada na posse sobre o prédio rústico. “Posse” que, na tese da sentença, parece ter derivado do arrendamento e do abandono da posse por parte dos autores.
Estatui o artigo 1287º que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação. É o que se designa por usucapião, prescrição positiva ou aquisitiva, fundamento jurídico da aquisição do declarado direito de propriedade dos réus. Usucapião que, como resulta da definição legal, tem sempre na sua génese uma situação possessória, que pode derivar de constituição ex novo ou de posse anterior. Posse que é delimitada como o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º). Não obstante as críticas efetuadas a esta definição e as subjacentes conceções doutrinárias[11], todos aceitam que a posse se centra no exercício de determinadas atividades sobre uma coisa. Porém, não basta uma atuação material sobre a coisa para se criar a situação jurídica “posse”, a qual nunca se verifica nos detentores ou possuidores precários, exceto achando-se invertido o título de posse, caso em que o prazo para usucapir só corre desde a inversão do título (artigo 1290º). Vale por dizer que o primitivo arrendatário e o réu marido praticaram sobre o prédio rústico os atos físicos correspondentes ao direito de propriedade jus utendi, fruendi e abutendi[12] , mas em situação jurídica de detenção ou posse precária, aquela que lhe era conferida pelo arrendamento.
Tempos houve em que foi objeto de controvérsia a doutrinal a natureza do direito conferido pelo arrendamento – real ou obrigacional[13]. A jurisprudência sempre tendeu para a tese personalista e hoje é pacífico o entendimento de que o arrendatário é um possuidor em nome próprio em relação ao arrendamento e um possuidor em nome alheio em relação ao direito de propriedade[14]. Destarte, na perspetiva que aqui importa, o arrendatário tem uma posse precária, que exerce sobre a coisa poderes materiais, mas no interesse de outrem, e, assim constituída, continua indefinidamente com essa mesma natureza, salvo traditio brevi manu ou inversão do título de posse. Embora o ordenamento civilístico não faça referência à primeira forma de conversão da detenção em posse ela corresponde à conversão da detenção em posse por acordo entre o detentor e o possuidor e resulta do sistema possessório nele consagrado e dos princípios gerais formulados[15]. Por seu turno, a inversão do título de posse dá-se por oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse (artigo1265º). É a chamada intervertio possessionis, que supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio, podendo dar-se, por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, como sucede no caso do arrendatário que se recusa a pagar a renda com o fundamento de que o prédio lhe pertence. E poderá dar-se também por facto de terceiro, como sucede com o arrendatário que compra o prédio, não ao senhorio, mas a um terceiro, assim passando a gozar de um título que lhe confere a posse em nome próprio[16].
Compulsada a contestação, não alegaram os réus qualquer facto recondutível a uma posse em nome próprio, resultando até que continuaram a depositar as rendas a favor dos autores, a significar que mantiveram a posse precária inerente ao seu estatuto de arrendatários, a qual não constitui uma verdadeira posse.
A usucapião redunda de dois elementos nucleares, a posse e o decurso do tempo, correspondendo a um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica duma situação possessória duradoura no direito real correspondente. Posse que se traduz num elemento material de fruição de um direito (o corpus) e de um elemento intencional vertido na intenção de exercer um poder sobre as coisas (o animus sibi habendi). Animus que resulta da natureza do acto jurídico por que se transferiu o direito suscetível de posse, na apelidada teoria da causa[17]. Elemento intencional que se dever aferir não pela vontade concreta do adquirente da posse, mas pela natureza jurídica do ato que originou a posse. Como simplistamente clarificava Manuel Rodrigues[18]: «(…) se a tradição se realizou em consequência de um acto de alienação da propriedade, a intenção que tem o adquirente é a de exercer o direito de propriedade. Se a tradição se realizou em consequência de um acto de locação, pelo qual se transferiu um determinado prédio, a intenção do locatário é a de exercer o direito pessoal de arrendatário». Vale dizer que a vontade concreta do detentor só releva caso tenha invertido o título de posse. Doutro modo, o elemento intencional da posse mede-se pela natureza do ato jurídico que deu lugar à aquisição[19].
Nem a presunção de posse naquele que exerce o poder de facto (artigo 1252º, 2) permite extrair a conclusão firmada pela sentença sindicada. Normativo, cuja interpretação e aplicação deram lugar ao acórdão de uniformização de jurisprudência de 14-05-1996, que firmou doutrina no sentido de que «[P]odem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa»[20]. Mas também está legalmente estipulado que se presume que a posse continua em nome de quem a começou (artigo 1257º, 2), o que coloca sob confronto duas presunções legais, ambas juris tantum, e cujo âmbito de aplicação só aparentemente colide. Enquanto a presunção estabelecida por aquele artigo 1252º supõe que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse, ou seja, desligado de qualquer possuidor anterior, como nos casos de aquisição originária da posse, já nas situações de aquisição derivada da posse, efetuada pelo anterior possuidor, prevalece a presunção prevista por aquele artigo 1257º[21].
Donde a insustentabilidade do “salto” dado pelo tribunal a quo para converter a detenção em posse e conferir ao arrendatário uma posse em nome próprio com vista a declarar o seu direito de propriedade sobre o prédio rústico tomado de arrendamento. Ora, provado o arrendamento, até por confissão judicial dos réus, a aquisição originária da posse só poderia ocorrer por uma das citadas formas, aqui, por inversão do título de posse [artigo 1263º, d)], para transformar a situação de detenção em verdadeira posse, para mudar o título pelo qual eles exerciam os poderes de facto sobre a coisa. Não basta que a detenção se prolongue para além do termo do título que lhe servia de base – o que nem sequer se verifica , antes sendo necessário que o detentor expresse diretamente junto da pessoa em nome de quem possuía a sua intenção de atuar como titular do direito e os réu não evocaram atos ostensivos e suficientes de oposição aos autores suscetíveis de consubstanciar a inversão da posse, de modo a poder concluir-se que de possuidores em nome alheio passaram à qualidade de possuidores em nome próprio. Não é suficiente que o detentor pratique atos de dono; é necessário um ato formal de negação do direito do possuidor em nome próprio. Assim, na ausência de exteriorização de uma vontade categórica de possuir em nome próprio, revelada por atos positivos de oposição ao proprietário, sobrepondo-se à aparência representada pelo arrendamento, seria vedado aos réus adquirir por usucapião. Os réus continuaram a exercer sobre o prédio poderes de facto consentâneos com o arrendamento, sem que tenham transmitido aos titulares do direito de propriedade a modificação da atitude, a manifestação de que passaram a atuar sobre a coisa como proprietários e, por isso, aquela atuação não tem relevância jurídica, porque desconhecida daqueles que poderiam opor-se. Na verdade, «[A] oposição tem de traduzir-se em actos positivos materiais ou jurídicos, inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a que os actos se opõem. Além disso, é necessário que a oposição não seja repelida pelo possuidor através de actos que traduzam o exercício do direito que a este pertence.»[22]. No fundo, tal como a posse relevante para usucapião deve ser pública, também a oposição exercida pelo detentor precário tem de ser ostensiva em relação àquele em nome de quem possuía. Posse pública que não perde a publicidade quando não é conhecida de toda a gente, pois ela deve, acima de tudo, ser conhecida do interessado direto ou indireto. Trata-se de uma relação mais com o próprio interessado do que com o público em geral. Não é necessário um consenso público. Basta que o interessado venha a saber, por qualquer meio, que o sujeito possui a coisa[23].
2. O abandono da posse por parte dos autores
Revisitada a sentença apelada, ela parece construir a aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade pelos réus a partir do abandono da posse pelos autores. Com efeito, a posse perde-se, além do mais, pelo abandono [artigo 1267º, 1, a)]. Ora, o abandono supõe um ato material, praticado intencionalmente, de rejeição da coisa ou do direito. Importa, pois, a existência de um ato material intencional, em virtude do qual o corpus deixa de subsistir, determinando a perda do elemento material e do elemento intencional da posse. Por isso, a mera inação ou inércia do possuidor não basta para conduzir ao abandono da posse; só se converte em abandono quando ela é voluntária e intencional[24]. A sentença não explica os fundamentos para ajuizar pelo abandono da posse, mas parece ter relevado alguma inércia dos autores e a ela se aprisionou para edificar a tese da posse efetiva dos réus sobre o prédio rústico, transmutando-os de possuidores em nome alheio em possuidores em nome próprio para poderem usucapir. Construção que, como se disse, não pode subsistir, porque a detenção, enquanto não se converter em posse, mediante inversão do título, permanece precária, tal como se iniciou, não bastando para tanto a simples vontade do detentor[25]. O exercício do simples poder de facto sobre uma coisa com simples animus detinendi só se converte em verdadeira posse pela inversão do título, passando o seu titular a agir com animus possidendi ou verdadeiro animus[26]. Embora se verificasse nos réus uma atuação exterior compatível com o exercício do direito de propriedade, o corpus,faltou-lhes a intenção de agir como beneficiário desse direito, o animus possidendi. Não tendo invertido o título de posse, ou, pelo menos, não tendo sido alegado e provado qualquer ato como tal qualificável, concludentemente revelador da sua mudança de atitude, os réus continuaram a ser meros detentores do prédio, não podendo adquirir, por usucapião, o correspondente direito de propriedade[27]. Na simples detenção, o sujeito exerce os poderes correspondentes ao direito, mas não os exerce como se fora titular dele e, por isso, esse estado de coisas, por mais tempo que perdure, não pode conduzir à aquisição do direito, de que o interessado não se apresenta como beneficiário[28]. A relação material é idêntica na posse e na detenção e o que eleva a detenção a posse é o animus sibi habendi. Sem ele, a relação material é pura detenção e não pode invocar-se para justificar qualquer efeito possessório.
E não pode olvidar-se que a perpetuidade do direito de propriedade não o extingue pelo não uso; ainda que o proprietário deixe de fazer qualquer utilização do prédio, o seu direito de propriedade não se extingue pelo não uso nem pela renúncia, sendo esta uma causa de extinção da propriedade própria dos direitos sobre coisa alheia.
3. A resolução do contrato de arrendamento
Decaindo os réus no reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio rústico, cabe verificar se subsiste o contrato de arrendamento ou se, ao invés, como pedem os autores, há fundamento para a sua resolução.
Embora destoando no fim do contrato, é sem discordância que as partes convergem terem os seus pais acordado um contrato de arrendamento sobre o prédio rústico denominado “L…”, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 2.470 da freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia. Não obstante a discussão acerca do fim do contrato, as partes sempre aceitaram que o prédio se não destinou a exploração agrícola; antes foi usado para a “atividade bloqueira” e, após a remodelação de um barraco, para a exploração de taberna e, ulteriormente, para a habitação.
O arrendamento é urbano ou rústico consoante recai sobre um prédio urbano ou sobre um prédio rústico, entendendo-se este como uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica e aquele como qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro (artigo 204, 2). Estando em causa um arrendamento rústico, a circunstância de, ulteriormente, nele ser edificada uma construção não altera a natureza do contrato celebrado. Assim sendo, é manifesto que o arrendamento tem de ser classificado como rústico, na medida em que teve por objeto um prédio rústico e tem a natureza de um contrato de arrendamento rústico (não rural nem florestal) para o exercício da indústria.
O contrato remonta à década de 50 do século passado, pelo que foi celebrado no domínio da lei 2030, de 22 de junho de 1948. Não obstante o princípio geral de que a lei só dispõe para o futuro e, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se a ressalva dos efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular, a verdade é que quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos, mas quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (artigo 12º). Distinguem-se duas categorias de normas: as que regulam factos e as que regulam direitos; as primeiras só valem para futuro e as segundas abrangem as próprias situações jurídicas existentes, podendo modificar ou até suprimir o respetivo conteúdo[29]. Daí que a lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, denominada NRAU, entrada em vigor em 28 de junho, (desconsideradas as alterações introduzidas pela lei 31/2012, de 14 de agosto, dada a sua vigência ser ulterior à interposição da ação), preveja a sua aplicação aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias (artigo 59.º). Normas estas que dispõem que as normas do capítulo II e as do artigo 26º se aplicam aos arrendamentos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro (artigos 27º e 28)[30]. Como os factos que fundam a pedida resolução se prolongaram no tempo e culminaram na vigência desse diploma, sempre seria o incumprimento a convocar o regime substantivo aplicável.
A essa luz, o artigo 110º do NRAU estatui que se considera realizado para comércio ou indústria o arrendamento de prédios ou partes de prédios urbanos ou rústicos tomados para fins diretamente relacionados com uma atividade comercial ou industrial, qualificando-se o contrato em apreço como contrato de arrendamento sobre prédio rústico para o exercício da atividade industrial, o que vai de encontro à posição dos autores e não difere muito do alegado pelos réus, que o qualificaram como contrato de arrendamento de prédio rústico para fins não agrícolas.
Os autores invocam como fundamento da pedida resolução o não pagamento das rendas, a aplicação da coisa a fim diverso daquele a que ela se destina e o proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato.
Na verdade, a falta de pagamento de renda, porque constitui a violação de uma das obrigações do locatário, integra fundamento de resolução do contrato de arrendamento [artigos 1038º, a), e 1083.º]). Está comprovado que o primitivo senhorio, N…, faleceu em 30 de novembro de 1985 e, nessa data, mostrava-se paga a renda desse ano. Aliás, os autores evocam como fundamento da resolução o não pagamento das rendas vencidas desde 1 de setembro de 1993 (artigo 15.º da petição inicial) e, a tanto, opõem os réus que estão prescritas as rendas devidas de 1993 a 2004 e que, por cautela, procedem ao depósito das rendas ulteriores e da correspondente indemnização. As primeiras foram declaradas prescritas, o que alcançou aceitação das partes, e o depósito das restantes e da indemnização legalmente fixada, não impugnado pelos autores, determinou a cessação da mora do locatário. Efetivamente, o locatário pode pôr fim à mora oferecendo ao locador o pagamento das rendas ou alugueres em atraso, bem como a indemnização fixada no n.º 1 do artigo 1041º, assim afastando esse fundamento de resolução. Aliás, embora tal facto não fosse articulado por qualquer das partes, está documentalmente comprovado o depósito das rendas, embora sem notificação ao senhorio.
Desta feita, como o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da ação declarativa ou para a oposição à execução, destinadas a fazer valer esse direito, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no n.º 1 do artigo 1041.º (artigo 1048º, 1), carece de interesse prosseguir na análise de tal fundamento resolutivo.
Constituindo fundamento de resolução a aplicação da coisa a fim diverso daquele a que ela se destina ou a cessão, total ou parcial, temporária ou permanente e onerosa ou gratuita, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio [artigo 1083.º, 2, alíneas c) e e)], verifica-se que está demonstrado que o pai do réu marido, na década de 50, levantou uma pequena construção no terreno que lhe foi dado de arrendamento, vindo nela a instalar, em 1956, uma taberna e, ulteriormente, o próprio réu marido a cedeu a terceiros. Foi ocupada por S… e O…, mediante contrapartida pecuniária, e, atualmente, nela vive e pernoita M…, filho dos réus (n.os 4, 5, 7 e 12 dos fundamentos de facto). Dentre as obrigações do locatário contam-se a de não aplicar a coisa a fim diverso daquele a que ela se destina e a de não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, exceto se a lei o permitir ou o locador o autorizar e ainda a de comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada [artigo 1038º, c) e d)]. Contrapõem os réus que os autores são alheios à utilização ou cedência que fazem da construção edificada no prédio rústico, já que o arrendamento não é para fins habitacionais. Aceitando que o arrendamento não é para fins habitacionais, os autores transportam esse uso e cedência a terceiros apenas da construção inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1.371º para o contrato de arrendamento que incide apenas sobre o prédio rústico para, com base nessa conduta, corporizar o uso da coisa a fim diverso e a cedência ilícita a terceiros. Crê-se que lhes assiste razão, porque o único título de ocupação é o contrato de arrendamento do prédio rústico e, dentre as obrigações do locatário, inscreve-se a de não dar destino diverso ao locado e a de não ceder o uso a terceiros. Ora, os réus, em detrimento do acordado, cederam e destinaram o prédio rústico à habitação de terceiros. Porém, só a violação ilícita dessas obrigações constitui fundamento de resolução. E, como resulta apurado, todos esses atos do arrendatário foram praticados com conhecimento do senhorio, que neles consentiu. Com efeito, o senhorio teve conhecimento do levantamento da construção e da utilização que lhe foi sendo dada, tal como os seus sucessores, nela consentindo, tudo ao longo de mais de quatro décadas. Os próprios autores aceitam que a construção foi levantada pelo primitivo arrendatário e ampliada e melhorada pelo atual, sem nunca contra tal se terem revelado.
Consabido que sobre o locatário impende a obrigação de solicitar ao senhorio a correspondente autorização, a verdade é que os réus não alegaram o facto nem sequer que o comunicaram ulteriormente ao senhorio. Julga-se, no entanto, que o provado conhecimento e consentimento do senhorio a uma situação fáctica de mais de 40 anos não pode deixar de constituir o reconhecimento da validade dos atos do arrendatário. Reconhecimento que resulta da reiterada aceitação da mudança operada no uso e na cedência do locado a terceiros, com estabilidade no tempo de uma relação contratual que se alterou, com a tolerância e prolongada passividade do senhorio relativamente aos atos praticados no prédio por arrendatário e terceiros. Pode, então, dizer-se que a inércia do senhorio incutiu nos réus a fundada convicção e expectativa de que estavam a coberto de uma pretensão de despejo, alicerçada num quadro factual há muito conhecido e permitido. Para dizer que o comportamento assumido pelos autores na ação traduz a inversão das expectativas dos réus, confiantes num status quo que parecia inabalável, a ponto de tecerem a tese de que os autores “abandonaram a posse”. Conclusão que não é molestada pelo facto de os autores terem sucedido na posição do primitivo e originário senhorio, confrontando-se, no momento da sucessão, com a existência de uma situação já sedimentada entre as partes primitivas da relação contratual. Outrossim, ao suceder na posição jurídica do primitivo senhorio, não podem os autores desvincular-se das consequências da inação daquele, desde logo pela circunstância de eles próprios só terem reagido após 25 anos do óbito do autor da sucessão. Destarte, ainda que outro fundamento não houvesse, sendo ilegítimo o exercício do direito à resolução do contrato com aqueles fundamentos, sempre traduziria uma inadmissível lesão da confiança o decretamento da pedida resolução contratual[31]. Argumentos que ditam a ação ao inêxito, assim soçobrando o pedido indemnizatório formulado pelos réus a título subsidiário, isto é, para o caso de proceder a resolução do contrato de arrendamento.
De todo o modo, sempre se clarifica que o arrendatário está legitimado a pedir indemnização por benfeitorias que tenha realizado no local arrendado, pois o artigo 1046º, 1, prescreve que, na falta de estipulação em contrário, «o locatário é equiparado ao possuidor de má fé quanto a benfeitorias que haja feito na coisa locada», a significar que tem direito de ser indemnizado pelas benfeitorias necessárias e de levantar as benfeitorias úteis que haja realizado. Quanto a estas, se não for possível o seu levantamento sem detrimento do local arrendado, o senhorio «satisfará (…) o valor delas, calculado segundo as regras doenriquecimento sem causa» (artigo 1273º, 1 e 2). Portanto, pretendendo ser indemnizado por benfeitorias úteis cujo levantamento deteriore o imóvel, cabe ao arrendatário o ónus de provar essa deterioração, o que não foi sequer alegado e até parece contrariado pela natureza da obra edificada no prédio objeto do arrendamento. Os réus articularam em 62º da contestação que «o prédio urbano descrito na matriz sob o artigo 1323 (…) foi ampliado e tem vindo a ser sucessivamente melhorado (…) dada a sua natureza não podem ser levantadas sem detrimento, nos termos do disposto no artigo 1273º, n.º1, do CC», mas essa alegação corresponde ao texto da norma, a qual expressamente se refere ao detrimento da coisa, aqui o prédio rústico, e não às benfeitorias. Quanto a estas, a possibilidade de detrimento não tem relevância jurídica[32]. Condicionantes que sempre arredariam o direito indemnizatório exercitado pelos réus.
Cabe, por fim, o lamento do desfecho da ação manter, in totum, a situação fáctica estabilizada, decerto frustrando as expectativas dos autores, mas o enquadramento aportado não poderia conduzir a outra via de decisão.
Em função do estatuído no artigo 527º, 1, do NCPC, as custas relativas à ação são suportadas pelos autores e as respeitantes à reconvenção ficam a cargo dos réus, enquanto as inerentes ao recurso de apelação incumbem a ambas as partes em igual proporção (artigo 527º, 1, do NCPC).
V. Dispositivo
Ante o expendido, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em dar procedência parcial ao recurso e, em consequência, confirmar a improcedência da ação e declarar a improcedência da reconvenção.
As custas da ação e da reconvenção ficam a cargo dos autores e dos réus, respetivamente, e as da apelação a cargo de ambas as partes em igual proporção.
*
Porto, 13 de setembro de 2016.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
__________
[1] Aprovado pela lei 41/2013, de 26 de junho, doravante designado por «NCPC».
[2] Antunes Varela, in RLJ 125º, ano 123º, pág. 60.
[3] In www.dgsi.pt: Acs. do STJ de 30-06-2011, processo 6450/2005;
[4] In www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 10-12-2015, processo 2367/12.9TTLSB.L1.S1.
[5] Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova por Presunção no Direito Civil”, Almedina, 2.ª edição, pág.163.
[6] António Santos Abrantes Geraldes, ”Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 3.ª edição, pág. 245; Teixeira de Sousa, in “Cadernos de Direito Privado”, n.º 44, pág. 29; in www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 07-06-2016, processo 4140/07.7TVLSB.L1.S1.
[7] Luís Filipe Pires de Sousa, ibidem, pág. 163.
[8] Ibidem, págs. 248 e 249.
[9] In www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 14-01-2016, processo 1391/13.9TTCBR.C1.S1.
[10] António Santos Abrantes Geraldes, ibidem, págs. 260 e 261.
[11] Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1979, págs. 384 a 405.
[12] José de Oliveira Ascensão, “Direitos Reias”, 1978, pág. 427.
[13] Pela natureza real, Menezes Cordeiro, in “Revista da Ordem dos Advogados”, ano 40, pág. 61; pela natureza obrigacional ou personalista, Pinto Furtado, “Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos”, 2.ª ed., pág. 60, e Henrique Mesquita, “Obrigações Reais e Ónus Reais”, 1990, pág. 176.
[14] Manuel Rodrigues, “A Posse, Estudo de Direito Civil Português”, 4.ª ed., pág. 230.
[15] Manuel Rodrigues, ibidem, pág. 231; Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, III volume, 2.ª ed. Revista e atualizada, pág. 28.
[16] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, págs. 30 e 31.
[17] Manuel Rodrigues, “A Posse”, pág. 259.
[18] Manuel Rodrigues, ob. e loc. cit.
[19] Henrique Mesquita, ibidem, pág. 100, nota 1.
[20] Publicado no DR, II Série, n.º 144, de 24-06-1996.
[21] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 8; in www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 09-06-2016, processo299/05.6TBMGD.P2.S1.
[22] Henrique Mesquita, pág. 98 e 99.
[23] Orlando de Carvalho, “Introdução à Posse”, in RLJ 123º, págs. 73 e 74.
[24] Manuel Rodrigues, ibidem, pág. 266; José de Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 1978, pág. 288.
[25] Manuel Rodrigues, “A Posse”, pág. 269.
[26] Orlando de Carvalho, ibidem, pág. 261.
[27] Luís Carvalho Fernandes, “Lições de Direitos Reais”, 2ª ed., pág. 267; Ac. R. Ev., 22.01.2009, in CJ online, ref. 2747/2009.
[28] Galvão Telles, in “O Direito”, 121º, pág. 650.
[29] Baptista Machado, “Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil”, pág. 354.
[30] In www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 24-09-2013, processo 317/09.9TBOLH.E1.S1.
[31] In www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 19-11-2015, processo 884/12.0TVLSB.L1.S1.
[32] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 42; in www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 08-02-2011, processo 12/09 9T2STC.E1.S1.