CONTRATO ATÍPICO
Sumário

1 - No contrato de concessão de ajuda – financiamento a fundo perdido- não existe verdadeiro sinalagma entre as prestações, na medida em que uma parte se obriga a investir em coisa sua, certo capital, recebendo uma percentagem a fundo perdido, como incentivo.
2 - O facto de se ter acordado que o promotor deveria manter o projecto afecto à actividade pelo período mínimo de cinco anos, só pode significar que estava obrigado a manter o estabelecimento onde prosseguia a sua actividade, cujo processo de produção se visava modernizar, pois só assim poderia o contrato ser executado.
3 - Tendo o promotor alienado o estabelecimento dentro do prazo acordado, sem o acordo do outro contraente, incumpriu definitivamente o contrato

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

GR..., intentou acção sob a forma sumária, contra M... e mulher A... , pedindo a condenação destes, a pagar à A., a quantia de 2.173.506$00, correspondente a: 1.505.145$00 de incentivo recebido pelo R; 388.360$00 de juros vencidos; 200.000$00 de honorários de advogado. Pede ainda a condenação nos juros vincendos, calculados sobre o montante de 1.585.145$00.
Como fundamento da sua pretensão, alega em síntese o seguinte:
A A. tem a seu cargo a gestão dos incentivos e subvenções concedidos aos promotores das Ilhas Terceira e Graciosa, no âmbito do programa comunitário LEADER II E.
O R. marido celebrou contrato para concessão de incentivos, para modernização do processo produtivo, de indústria de que é titular.
Ao R., promotor, foi feita a entrega de uma parte da subvenção contratada, no valor de 1.585.145$00, no final de 1998.
O promotor desfez-se do estabelecimento, em data anterior a Maio de 2001.
De acordo com o contrato, deveria manter o projecto afecto à actividade por um período mínimo de 5 anos.
Nos termos da cláusula 6ª, o R. é obrigado a repor, devolvendo-a, a quantia recebida de 1.585.145$00, acrescida de juros e ainda das despesas judiciais para cobrança do crédito, que se fixam quanto a honorários em 200.000$00.

Contestaram os RR. (fol. 19 e segs), dizendo em síntese o seguinte:
O R. sofre de doença oncológica que determinou a alienação a que procedeu em 02.05.2001.
O prazo que exige que o promotor mantenha o projecto afecto à actividade durante um período de 5 anos não é incompatível com a cessação da actividade por impossibilidade fortuita de a exercer.
O objectivo do programa LEADER é o de incentivar a modernização da actividade económica.
Após resposta da A., procedeu-se à realização de audiência preliminar (fol. 52), não se tendo obtido o acordo das partes.
Foi proferido despacho saneador (fol. 95), seleccionada a matéria assente e a base instrutória, sem que tenha sido apresentada qualquer reclamação.
Procedeu-se a julgamento (fol. 152 e segs), após o que foi proferida decisão da matéria de facto (fol. 196), sobre que não recaiu reclamação.
Foi proferida sentença (fol. 203 e segs), em que se julgou a acção procedente por provada, condenando-se os RR.
Inconformados recorreram os RR. (fol. 215), recurso que foi admitido como apelação (fol. 217).
Nas alegações que apresentou, formularam os apelantes as seguintes conclusões:
1- Se as obrigações contratuais do recorrente fossem intuitu personae, seriam infungíveis e a impossibilidade superveniente de as cumprir levaria à sua inexigibilidade.
2- Hipótese em que o contrato se extinguiria, desaparecendo os direitos e deveres que a sua vigência pressupunha.
3- Não sendo intuito personae, a obrigação de manter o estabelecimento a funcionar, é legítima a substituição do respectivo operador, seja a que título for.
4- E apenas deixando o transmissário do estabelecimento de o manter a funcionar, haveria incumprimento dessa obrigação contratual do recorrente.
5- Ao alienar o estabelecimento por não poder continuar a operá-lo, devido a doença comprovadamente impeditiva, o recorrente procurou assegurar que o mesmo continuasse a funcionar por via do terceiro a quem o vendeu.
6- Tendo aliás informado previamente uma funcionária da recorrida do seu propósito de alienação, o que não provocou qualquer reacção desta.
7- A recorrida ficou com tanta possibilidade de acompanhar o funcionamento do estabelecimento, como a que teve durante o tempo em que o mesmo foi dos recorrentes.
8- O recorrente agiu sem violar o contrato que o ligava à recorrida, respeitando os objectivos do programa LEADER II, sem procurar benefícios ilegítimos nem prejudicar os interesses que à recorrida cumpre defender.
9- A conduta da recorrente jamais, a qualquer luz, poderia fundamentar a rescisão do contrato decidida pela recorrida.
10- A sentença violou os art. 711, 790, 791, 795 CC e os art. 490 e 505 CPC, pelo que deve ser revogada.

Contra alegou a apelada, sustentando a improcedência da apelação.
Corridos os vistos legais, há que apreciar e decidir.

FUNDAMANTAÇÃO.
É a seguinte a matéria de facto julgada assente:
1- A Autora é uma associação de desenvolvimento regional e que tem a seu cargo, entre outros, a gestão dos incentivos e subvenções concedidos aos promotores das Ilhas Terceira e Graciosa, no âmbito do programa LEADER-GRATER – (alínea A).
2- Nesse âmbito, o R. marido, que é titular de uma indústria de produção de especialidades e produtos típicos locais de salsicharia e outros enchidos, celebrou um contrato para a concessão de incentivos, para a modernização do processo produtivo, com a autora (B).
3- Nos termos desse contrato, a primeira cláusula diz que o contrato tem por objecto a concessão ao promotor de um incentivo financeiro, que reveste a forma de subsídio a fundo perdido, para aplicar na execução de um projecto de investimento, no montante global de 7.272.263$00 (C).
4- A segunda cláusula prevê que o incentivo total a conceder pelo programa LEADER II seria de 2.908.905$00, o qual foi calculado na base de 40,00% das aplicações relevantes, que correspondem a realizar pelo promotor (D).
5- Na terceira cláusula procede-se à identificação e características do projecto objecto de apoio que são as seguintes: nº projecto – PJ 0009 e IC0031; Designação do projecto – Salsicharia – Actualização Tecnológica do Processo Produtivo; local da realização – morada do promotor, prazo de execução – de 12.01.95 a 30.04.98 (E).
6- Na cláusula 4ª prevê-se que o financiamento do projecto será efectuado pelo promotor nos seguintes termos: Capitais próprios: 4.363.358$00; Subsídio do LEADER II: máximo de 2.908.905$00 – (F).
7- Concluído o projecto em finais de 1998 (em 14 de Novembro de 1998 o projecto ainda não estava completo), e feito pela Autora ao promotor a entrega de uma parte da subvenção contratada, mais precisamente no montante de 1.585.145$00 (um milhão quinhentos e oitenta e cinco mil cento e quarenta e cinco escudos) no final de 1998 (G).
8- De acordo com o contrato propriamente dito, e ainda de acordo com as condições gerais, que fazem parte integrante do referido contrato, aceites sem qualquer reserva pelo referido promotor, ora R., consta a obrigação, entre outras (cláusula 5ª alínea a), de manter o projecto afecto à actividade a que se propõe durante o período mínimo de 5 anos a contar da entrada em funcionamento do referido projecto – que segundo apurou em Novembro de 1998 ainda não estava completo (H).
9- Por carta datada de 02.05.2001, a Autora, informou o R., de que «o contrato de incentivos referente ao projecto nº 031 «Ampliação de Salsicharia » foi rescindido visto que esta Associação tomou conhecimento da venda do estabelecimento» (I).
10- Na mesma carta, a autora informou o R., nos seguintes termos: «Posto isto, terá de devolver no prazo de 60 dias a comparticipação comunitária recebida, sendo que, nos termos da cláusula 6ª, alínea c) do Contrato de Concessão de Incentivos Financeiros, assinado entre Grater e o promotor Sr. Manuel Furtado Mendes Cardoso, com as necessárias adaptações, de pagar juros desde a data em que as verbas foram colocadas à disposição do promotor até à data em que este vendeu o estabelecimento» (J).
11- O R., não devolveu à Autora as quantias recebidas (L).
12- Por escritura pública datada de 02.05.2001, os RR., declararam vender à sociedade «Costa Salsicharia – Sociedade Industrial de Carnes Lda» com sede na Lagoa, o prédio urbano composto por casa de um piso destinada à indústria pecuária, com a área coberta de 124 metros quadrados e descoberta de 1107 metros quadrados, constituindo o lote nº 10-A, sita na Canada de S. Vicente, freguesia de S. Mateus (M).
13- Pela referida escritura pública a R. declarou aceitar tal contrato e que a aquisição em causa é conveniente e necessária à prossecução dos seus fins, destinando-se à transformação e comercialização de carne de porco e bovino (N).
14- O R. sofre de doença do foro hematológico, que se agravou em 2001, ao ponto de o incapacitar para a sua actividade profissional de salsicheiro (quesito 1).
15- O facto referido no ponto 14) determinou o R. à alienação do seu estabelecimento em 2 de Maio de 2001 (quesito 2).
16- O comprador do estabelecimento subsidiado do R., manteve-o inteiramente afecto à actividade de salsicharia - actualização tecnológica do processo produtivo – para que foi concebido e apoiado (quesito 3).
17- O contrato celebrado entre A. e R., teve em conta as condições que reunia o R., promotor (quesito 7).
18- Os RR. vivem juntos (quesito 8).
19- O R., sempre usou os rendimentos da sua salsicharia para se sustentar e à sua esposa (quesito 9).
20- A Ré não tem ocupação (quesito 10).

O DIREITO.
O âmbito do recurso afere-se pelas conclusões das alegações do recorrente, art. 660 nº 2, 684 nº 3 e 690 CPC. Assim, só das questões postas nessas conclusões, há que conhecer.
Atento o teor das alegações a questão posta é a de saber se a apelada, teve ou não fundamento para rescindir unilateralmente o contrato de atribuição de ajuda e exigir a devolução das ajudas e acréscimos.
Como decorre da matéria de facto considerada assente, entre apelante e apelada, foi celebrado contrato para a concessão de incentivo financeiro, que reveste a forma de subsídio a fundo perdido, para aplicar na execução de um projecto de investimentos, com a finalidade de modernização do processo produtivo de uma indústria de produção de especialidades e produtos típicos, de que o apelante era titular (2 e 3).
A lei consagra em termos gerais o princípio da liberdade contratual, art. 405 CC.
Uma vez celebrado o contrato, é lei entre as partes, que o devem cumprir pontualmente, art. 406 CC, apenas podendo modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei. O cumprimento ocorre, quando o devedor realiza a prestação a que está vinculado, art. 762 CC.
No caso presente, está-se perante contrato de «concessão de ajuda – financiamento a fundo perdido», pelo que não existe verdadeiro sinalagma entre as prestações. Uma parte obriga-se a investir em coisa sua, certo capital, recebendo uma percentagem a fundo pedido, como incentivo. Assim, acordaram as partes, nomeadamente o seguinte:
a) O contrato tem por objecto a concessão ao promotor de um incentivo financeiro, que reveste a forma de subsídio a fundo perdido, para aplicar na execução de um projecto de investimento no montante global de 7.272.236$00, sendo o incentivo total de 2.908.905$00 (3 e 4).
b) O prazo de duração do contrato é de cinco anos a contar da data da sua assinatura ( Condições Gerias nº 2).
c) O promotor, obrigou-se a manter o projecto afecto à actividade a que se propõe durante um período de cinco anos a contar da data da entrada em funcionamento do referido projecto (8).
d) O projecto foi concluído em finais de 1998, tendo a apelada, entregue ao apelante (promotor) uma parte da subvenção, no valor de 1.585.145$00 (7).
e) Por escritura de 02.05.2001, o promotor (apelante) declarou vender a terceiro, o prédio, onde tinha instalada a indústria de produção de especialidades e produtos típicos locais de salsicharia, a que se refere o contrato de concessão do incentivo (2, 12 e 13).
Como já se referiu, o contrato deve ser «pontualmente» cumprido, querendo com isso significar-se que o cumprimento deve coincidir «ponto por ponto» com a prestação a que o devedor se obrigou.
Confrontando os termos do contrato, com o comportamento assumido pelo devedor (promotor - apelante), fácil é verificar-se que inexiste o «cumprimento pontual», no sentido supra referido.
Com efeito, o apelado celebrou com a apelada, contrato de concessão de incentivo financeiro, a fundo perdido, tendo para o efeito apresentado um projecto de investimento, que analisado, foi aprovado, tendo-se em conta as condições que o «promotor» reunia (17). Em contrapartida exigiu-lhe a entidade que aprovou a concessão do incentivo, a aplicação para o fim constante do projecto, e ainda que este fosse mantido pelo período mínimo de cinco anos (8).
O facto de se ter acordado que o promotor deveria manter o projecto afecto à actividade a que se propõe durante o período mínimo de cinco anos a contar da entrada em funcionamento do referido projecto, só pode ter o significado de que estava obrigado a manter a estabelecimento onde prosseguia a sua indústria de produção de especialidades e produtos típicos de salsicharia, cuja processo de produção se visava modernizar com o contrato celebrado. Só assim, poderia o contrato ser executado, pois que tinha a duração acordada de cinco anos. Aliás, do incentivo contratado, (2.908.905$00) apenas tinha sido entregue parte (1.585.145$00).
Não tendo o promotor mantido os requisitos que foram pressupostos da concessão do incentivo financeiro, nomeadamente não mantendo o estabelecimento (que alienou a terceiro), durante o prazo acordado de cinco anos, o que fez, sem o acordo do outro contraente, incumpriu definitivamente o contrato.
Este incumprimento, não se reconduz a uma simples situação de mora. Com efeito, tendo as partes acordado que o contrato teria o prazo de cinco anos e que durante esse período o «promotor» manteria o projecto afecto à actividade a que se havia proposto, ao alienar a terceiro o estabelecimento, quando tinham decorrido cerca de três anos e quando nem se tinha completado a atribuição do «incentivo financeiro a fundo perdido», o promotor inviabilizou a manutenção do contrato e a sua própria prestação (na abrangência supra referida), art. 801 CC. O terceiro a quem foi vendido o prédio, não é parte no contrato celebrado com a apelada, não podendo por isso, esta exigir-lhe no domínio do mesmo contrato, o que quer que seja.
Verificando-se o incumprimento definitivo, perde relevância a questão de se saber se estamos perante contrato celebrado «intuitus personae», ou não, sendo certo que a obrigação contratual em causa, pela sua natureza, não pode ser prestada por terceiro. O apelante era titular de prédio onde tinha instalada certa indústria, e no seguimento de contrato de concessão de incentivo financeiro, obrigou-se a manter o projecto afecto à referida actividade, pelo período mínimo de cinco anos que era o prazo acordado para contrato. Sem o acordo do outro outorgante, não é possível passar a aparecer na posição de devedor outra entidade estranha ao contrato, no período de vigência do mesmo. Foi o devedor que inviabilizou a prestação, pelo que o incumprimento lhe é imputável. Não se trata de impossibilidade superveniente.
Também o facto de o apelante ter visto agravado o seu estado de saúde, por si só, não inviabiliza o cumprimento da referida cláusula, mesmo verificando-se incapacidade para o exercício da sua actividade. Como se refere na sentença, sendo a actividade a «indústria de salsicharia», sempre poderia nela prosseguir o apelante, mediante a utilização de outros trabalhadores, (na correspondência que travou com a apelada, invoca a criação de postos de trabalho), mantendo no entanto o projecto afecto à actividade pelo prazo acordado.
À apelada assiste pois o direito a rescindir o contrato e a exigir, nos termos acordados a devolução do incentivo já pago com os acréscimos também acordados.
O recurso não merece provimento.

DECISÃO.
Em conformidade, decide-se:
1- Negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida;
2- Condenar o apelante nas custas

Lisboa, 10 de Novembro de 2005.
Manuel Gonçalves
Aguiar Pereira
Urbano Dias.