A transmissão do arrendamento ao cônjuge, nos termos consignados no art. 84º do RAU, tem em vista salvaguardar os interesses de protecção da casa de morada de família, sobrepondo-os aos interesses do locador.
A lei não determina em que prazo deve ser celebrado o acordo aí referido ou apresentada a comunicação a respeito do destino da casa de morada de família.
Por isso, apesar de os cônjuges não terem celebrado acordo judicial sobre o destino da casa de morada de família, deixando de aí viver o cônjuge arrendatário, mas continuando a morar no locado o cônjuge não arrendatário tal não constitui fundamento de resolução do contrato por parte do senhorio.
5. Houve contra-alegações.
6. Colhidos os Vistos legais,
Cumpre Apreciar e Decidir.
II – Enquadramento Fáctico:
- Provaram-se os seguintes factos:
1. O A. é proprietário de uma fracção autónoma destinada à habitação, correspondendo ao 2º andar direito do prédio urbano sito na R. 5 de Outubro, n.º 72, em Alhandra, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alhandra, concelho de Vila Franca de Xira sob o art. 1332-F;
2. A mencionada fracção encontra-se registada a favor do A.;
3. O prédio era novo e encontrava-se à venda; porém, o A. foi forçado a arrendá-lo dado que o mesmo fora ocupado;
4. O contrato de arrendamento para habitação foi celebrado nos termos do Dec. Lei n.º 445/74, de 12 de Setembro, na sequência de um ofício da Junta de Freguesia de Alhandra que comunicou ao A. a ocupação da fracção habitacional supra mencionada;
5. Apesar de a Junta de Freguesia de Alhandra só ter enviado o contrato de arrendamento ao A. em 16-9-75, o contrato é datado de 16-4-75, com início retroactivo a 6-4-75;
6. O contrato foi celebrado com o primeiro R. por um período de seis meses, renovável automaticamente por período e condições iguais;
7. Foi acordada a renda mensal a ser paga pelo R. ao A. no valor de 1.850$00, actualmente fixada em € 52,20;
8. O contrato encontra-se plenamente em vigor na presente data e foi celebrado com fiança;
9. O A. teve conhecimento que o 1º R. há já mais de um ano que não habita no locado, encontrando-se a residir e a exercer a sua profissão no estrangeiro;
10. É no estrangeiro que o R. passou a ter a sua residência permanente e a ter instalada a sua vida social por forma habitual, contínua e duradoura, deixando o R. de praticar as actividades quotidianas no locado;
11. Aquando da celebração do contrato, o R. era casado com Maria Fernanda …, 2ª R.;
12. Os RR. divorciaram-se por sentença datada de 9-5-94 e transitada em julgado em 19-5-94;
13. O A. nunca recebeu qualquer tipo de notificação do Tribunal ou comunicação por parte dos RR. dando conta da transmissão do direito ao arrendamento;
14. O A. não autorizou o subarrendamento do locado, nem lhe foi comunicada a celebração de tal contrato;
15. O A. havia estipulado que a renda mensal seria paga num determinado local – escritório de seguros do Sr. Carlos … – em Alhandra, o que efectivamente tem acontecido;
16. Por vezes têm sido terceiros, ou seja, não os RR., a proceder ao pagamento das rendas;
17. Após o divórcio dos RR., a R. continuou a residir no locado com os dois filhos do casal, nascidos em 1973 e 1976;
18. A R. reside no local desde 1975, o que é do conhecimento do A.;
19. A R. passa alguns períodos de tempo no estrangeiro;
20. A R., por vezes, desloca-se a Londres por períodos de duas semanas a um mês, sendo que uma vez por ano, nos anos de 2002 a 2005, teve consulta marcada no Guy’s Hospital naquela cidade;
21. A R. não tem outra casa que não seja o locado;
22. De facto, é aí que vive e faz a sua vida quotidiana;
23. É aí que a R. tem tudo o que lhe pertence, as mobílias, as roupas, os utensílios domésticos e os objectos pessoais, desde 1975;
24. É aí e só aí que tem instalada e organizada a sua vida doméstica;
25. É aí que faz a sua lide doméstica, que lava, que estende e passa a roupa, que tem e trata das flores, que vê TV;
26. É aí e só aí que vive e recebe visita dos seus familiares, dos amigos e dos vizinhos;
27. É aí que recebe a correspondência e tem os seus momentos de lazer ou descanso;
28. A R. explora o Café Palmeira desde meados de 2004, tendo estado desempregada e inscrita no Centro de Emprego de Vila Franca de Xira desde 22-3-04.
III – Enquadramento Jurídico:
1. A questão jurídica reside em saber, no caso sub judice, se o facto de os ex-cônjuges não terem celebrado acordo judicial sobre o destino da casa de morada de família continuando a morar no locado o cônjuge não arrendatário, e deixando de aí viver o cônjuge arrendatário, integra, ou não, fundamento de resolução do contrato de arrendamento, sendo causa de despejo.
A resposta a esta questão não é fácil e exige uma reflexão séria e ponderada acerca do Regime de Arrendamento Urbano e sobre os interesses protegidos pelo legislador em situações de natureza similar, em que se desfaz o vínculo matrimonial e se pretende preservar a casa de morada de família, como núcleo habitacional e reduto de conservação da família desmembrada.
2. No âmbito da legislação de arrendamento urbano diz-nos o art.º 64º, n.º 1, al. i) do RAU, que o senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia.
Porém, nos termos do n.º 2, al. c), do mesmo artigo, estabelece-se que não tem aplicação o disposto na alínea i), do número anterior, se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares deles, desde que, neste último caso, com ele convivessem há mais de um ano.
Para além da consagração desta excepção à resolução do contrato de arrendamento, a lei do arrendamento urbano prevê igualmente formas de transmissão do arrendamento.
Formas essas que constituem igualmente excepções ao princípio da incomunicabilidade do arrendamento. (1)
E, não obstante este princípio, com o alcance de que seja qual for o regime matrimonial a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge – princípio ínsito no art.º 83º do RAU – o n.º 1 do art.º 84º permite que, obtido o divórcio, podem os cônjuges acordar quanto à posição de arrendatário e esta pode ficar pertencendo a qualquer deles.
Prevendo-se também que, na falta de acordo, cabe ao Tribunal decidir, tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos e a culpa imputada ao arrendatário na separação ou no divórcio – cf. n.º 2 do art.º 84º.
Estipulando-se, ainda, no seu n.º 3, que a transferência do direito ao arrendamento para o cônjuge do arrendatário, por efeito de acordo homologado pelo juiz (ou pelo conservador do registo civil, consoante os casos), ou por decisão judicial, deve ser notificada oficiosamente ao senhorio.
3. Da análise aos normativos legais citados pode dizer-se que a transmissão do arrendamento ao cônjuge, nos termos consignados no art.º 84º do RAU, constitui uma medida excepcional criada pelo legislador tendo em vista salvaguardar os interesses de protecção da casa de morada de família, sobrepondo estes aos interesses do próprio locador.
Prevalência que vai ao ponto de permitir ao Tribunal, independentemente de qualquer acordo, que, em qualquer caso, possa manter o direito ao arrendamento não só na titularidade do cônjuge arrendatário, mas transferi-lo para o cônjuge não arrendatário, conforme considere mais adequado à satisfação dos interesses familiares em causa.
Conforme se reconhece no Acórdão da Relação do Porto, de 27/01/2004,(2) esta transferência do direito ao arrendamento para o cônjuge não arrendatário acaba por redundar numa cessão da posição contratual duplamente forçada, uma vez que nem o senhorio, nem o próprio arrendatário a ela podem obstar.
E, nessa medida, temos para nós que uma vez que a lei permite que o direito ao arrendamento possa ser transmitido ao cônjuge do arrendatário, operando-se a respectiva transmissão mesmo independentemente da vontade do senhorio, não faz, pois, qualquer sentido, reconhecer ao senhorio o direito a obter a resolução do contrato e o consequente despejo com o alegado fundamento de falta de residência permanente do primitivo arrendatário.
4. Ora, está assente nos autos que o contrato de arrendamento foi celebrado pelo R., e que este não tem residência permanente no locado, aí continuando a viver, contudo, a sua ex-cônjuge e filhos, após o referido divórcio.
E assim sendo, a questão que se discute é a de saber se a permanência no locado de tais pessoas - ex-cônjuge e filhos do arrendatário - poderá obstar a tal resolução, dado que o referido ex-cônjuge não deu conhecimento ao senhorio, nem este nunca recebeu qualquer tipo de notificação do Tribunal, ou qualquer outra comunicação por parte dos RR., dando-lhe conta da transmissão do direito ao arrendamento.
Sabido que, nos termos do n.º 3 do art.º 84º do RAU, a transferência do direito ao arrendamento para o cônjuge do arrendatário deve ser notificada oficiosamente ao senhorio, e uma vez que tal notificação ao senhorio não foi feita, impõe-se decidir se, no caso sub judice, pode ser decretada a resolução do contrato de arrendamento e o consequente despejo.
Desde já se adianta que entendemos que a referida resolução não pode, in casu, operar.
5. Com efeito, conforme se deixou já antever em ponto anterior, nesta matéria da casa de morada de família constata-se que o legislador optou por proteger a posição do cônjuge através de diversas formas – umas mais mitigadas que outras, mas que considerou bastantes (v.g., art.º 84º do RAU, e art.º 1682º-B do CC), tornando a relação de arrendamento habitacional alegadamente menos atribulada do que seria no caso de haver comunicabilidade.(3)
A razão de ser desse regime radica na protecção do direito à habitação e na necessidade de satisfazer e preservar os interesses, não apenas do arrendatário mas sim da própria família, maxime os filhos, ou como afirma Pinto Furtado, o regime dessas normas resulta, não de se reconhecer ao ex-cônjuge a qualidade de co-arrendatário, mas duma ingente necessidade de tutela dos interesses da família, para além de razões de justiça social.(4)
Os normativos citados têm, pois, em vista, salvaguardar e proteger a habitação da família, permitindo a transferência do direito de arrendamento para o cônjuge não arrendatário nos casos em que haja quebra ou interrupção da vida patrimonial.
Apresentando-se, nestes termos, o quadro legal do nosso direito, mais conforme com a política de protecção da casa de morada de família com carácter global e integrado (5), e naturalmente também mais consentâneo com os princípios constitucionais – cf. art.º 67º, n.º 2, alínea g), da CRP.
Contudo, para que essa salvaguarda se dê é necessário que efectivamente se opere a referida transferência no próprio processo – acção de divórcio ou separação – através dos meios que a lei prevê – acordo ou decisão do Tribunal.
O problema, in casu, coloca-se, porquanto inexiste nos autos qualquer comunicação dessa natureza ao respectivo senhorio/Autor.
E não o tendo feito, será que a mesma ainda está em tempo?
6. A este propósito constata-se que a lei (art. 84º do RAU) não determina, nem prevê, em que prazo deve ser celebrado o acordo aí referido ou apresentada a comunicação a respeito do destino da casa de morada de família.
E, nessa medida, em face da inexistência legal de fixação de um certo lapso de tempo para a prática do acto, consideramos que é defensável que a falta dessa comunicação ou a sua ocorrência, em fase ainda que tardia, não pode servir de fundamento à resolução do contrato de arrendamento.
Aliás, este entendimento é aceite por Aragão Seia, na sua obra,(6) onde se pode ler expressis verbis que a falta de notificação ou a notificação tardia não faculta nem permite ao senhorio obter a resolução do contrato de arrendamento com fundamento na cessão ou transmissão não consentida do direito ou com falta de residência permanente do primitivo arrendatário ou cessionário.
Embora Aragão Seia não invoque as razões jurídicas que o determinaram, estamos em crer que essa conclusão radica na própria redacção do n.º 4 do art.º 84º do RAU, no qual não se prevê a fixação de qualquer prazo para esse efeito de notificação do senhorio, ao contrário do que acontecia no regime legal anterior, na Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948.
Com efeito, se analisarmos o art.º 45º desta Lei, constatamos que a sua redacção é semelhante à do art.º 84º do RAU, quer quanto ao seu n.º 1, quer quanto ao seu n.º 2, mostrando-se de idêntico conteúdo relativamente ao n.º 1 do art.º 45º da Lei n.º 2030.
Por sua vez o n.º 3 deste preceito apresentava a seguinte redacção:
“A transmissão do direito ao arrendamento para o cônjuge do arrendatário, por acordo ou decisão judicial, só produzirá efeitos em relação ao senhorio, se for requerida a sua notificação dentro de 30 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença de separação ou de divórcio, ou da decisão proferida pelo Tribunal de menores” (sublinhado nosso).
Ora, contrariamente ao que aí se previa, o art.º 84º do Regime do Arrendamento Urbano não contempla tal prazo e substituiu a expressão “só produzirá efeitos” pela seguinte redacção: “.... deve ser notificada oficiosamente ao senhorio”.
Numa redacção que se afigura menos redutora e em que nenhum prazo está previsto ou foi estabelecido pelo legislador, pelo que só pode ser entendida como tendo o objectivo de se pretender afastar essa limitação temporal.
Alterações que decerto tiveram como objectivo evitar a perda do reconhecimento desse direito pelo mero decurso de um qualquer prazo.
Defender-se entendimento contrário seria frustrar a ratio inerente ao regime legal previsto nesta matéria, de natureza manifestamente excepcional e que protege sobretudo os interesses da família e da casa de morada desta, bem como os princípios constitucionais do direito à habitação, e redundaria numa penalização indevida do ex-cônjuge do arrendatário, na sequência da ruptura e termo da relação jurídica conjugal.
7. Por outro lado, e dado que a ex-cônjuge do primitivo arrendatário, após o divórcio, continuou a morar na casa de habitação da família, com os respectivos filhos do primitivo arrendatário, e aí manteve a sua residência permanente, com a prática de todos os actos que tal conceito jurídico pressupõe, conforme decorre de forma clara da matéria de facto provada, sempre se poderia ventilar a hipótese, em abstracto, da inexistência da falta de residência permanente, atento, inclusivamente, o disposto na excepção da alínea c), do n.º 2, do art. 64º, do RAU, que excepciona o que decorre do n.º 1, al. i).
É que a situação da mulher não é a de cessionária do direito de arrendamento, antes a de ex-cônjuge que, vivendo no locado, aí continuou a viver depois do divórcio conjuntamente com os dois filhos do casal, fazendo-o, inequivocamente, com o acordo do Réu arrendatário, seu ex-cônjuge.
8. Mas para a solução do caso sub judice o que releva, em sede de subsunção jurídica, e de acordo com a nossa interpretação expendida nos pontos anteriores, é a de que não estando a ex-cônjuge, e aqui Ré, vinculada a prazo legal quanto à notificação a efectuar ao respectivo senhorio, para os efeitos do art.º 84º do RAU, falece, nestes termos, o fundamento jurídico para a resolução do contrato de arrendamento.
9. Em Conclusão:
- Pelo exposto se conclui que, no caso sub judice, a falta de comunicação ao senhorio não é fundamento de resolução do contrato de arrendamento.
IV – Decisão:
- Termos em que se acorda em julgar procedente a Apelação e, em consequência, se revoga a sentença recorrida, absolvendo os RR. do pedido.
Custas a cargo do Autor.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2006.
Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
Fátima Galante
Ferreira Lopes
______________________
(1).-Sobre a problemática do princípio da comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge do arrendatário vejam-se os Acs. da Relação do Porto, de 28/10/2004, in www.dgsi.pt.JTRP00037320 e de 06/10/2005, JTRP00038387.
(2).-Acórdão proferido no âmbito do Proc. n.º 326592, e sumariado in http://www.dgsi. JTRP00036809.
(3).-Cf., a este propósito, Januário Gomes, in “Arrendamentos para Habitação”, págs., 42 e 44.
(4).-Veja-se “Manual do Arrendamento Urbano”, págs. 282 e segts.
(5).-Neste sentido Pereira Coelho, in RLJ, 122-138 e segts.
(6).-Cf. “Arrendamento Urbano”, pág. 375.