SERVIÇO DOMÉSTICO
CONTRATO DE TRABALHO
CADUCIDADE
COMPENSAÇÃO
Sumário

I. o contrato de serviço doméstico configura-se como um contrato de trabalho com regime especial pelo que as regras gerais do Código do Trabalho (CT) apenas lhe são aplicáveis quando não sejam incompatíveis com a especificidade deste contrato.
II. A norma do nº 5 do art. 390º do CT que prevê a existência de compensação legal nos casos de cessação do contrato por caducidade, em consequência da morte do empregador é de todo incompatível com a natureza das relações do serviço doméstico, não lhe sendo, por isso, aplicável.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

(A), intentou a presente acção declarativa, em processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra :
(F), pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de €8.197,75.

Para o efeito alegou, em síntese, que desde 1978 trabalhou como empregada doméstica, a tempo inteiro, para (C), que esta, entretanto, faleceu, sem sucessores que permitissem a continuação da relação laboral. A falecida tinha como seu único bem a casa onde habitava que legou à ré, era também esta quem movimentava a conta bancária em vida da falecida porém recusa-se a pagar-lhe a compensação pela caducidade do contrato, operada pelo óbito da entidade empregadora.

Na contestação a ré defendeu-se, por excepção, alegando a sua ilegitimidade, fundada no facto de apenas ser legatária e existirem herdeiros da falecida e, por impugnação, alegou não ser devida qualquer compensação pela caducidade do contrato.

A autora requereu a intervenção de terceiros a fim de assegurar a legitimidade passiva, intervenção que foi indeferida, nos termos constantes do despacho de fls. 74.

No saneador foi conhecido do pedido e absolvida a ré do mesmo.

A autora, inconformada, interpôs recurso, tendo nas suas alegações de recurso formulado as a seguir transcritas

Conclusões

« A) Tendo em conta a Resolução do Conselho de Ministros n.° 18412003, de 6 de Novembro Aprova o II Plano Nacional para a Igualdade (2003­/2006), pela Presidência do Conselho de Ministros Diário da República. - S.1-B n.° 273 (25 Novembro 2003), p. 8018 a 8032, pelas Direitos Fundamentais Plano Nacional para a Igualdade 2003-2006; Promoção da igualdade; Igualdade de oportunidades entre as mulheres e os homens; Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres; Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego; Administração Pública; Actividade profissional; Vida familiar; Trabalho; Emprego; Protecção da maternidade e da paternidade; Cidadania; Inclusão social.
B) Tendo em conta a COM(2005) 44 final, Bruxelas, 14 de Fevereiro de 2005, RELATÓRIO DA COMISSÃO AO CONSELHO, AO PARLAMENTO EUROPEU, AO COMITÉ ECONÓMICO E SOCIAL EUROPEU E AO COMITÉ DAS REGIÕES sobre a igualdade entre homens e mulheres, 2005, da UNIÃO EUROPEIA. Comissão, Igualdade entre homens e mulheres - 2005; Emprego feminino; Emigrantes; Demografia; Mercado de trabalho; Profissões; Empresas; Cargos; Tempo de trabalho; Filhos; Poder de decisão; Estados-Membros das Comunidades Europeias; União Europeia
C) Tendo em conta o n.° 1, quinto travessão, do artigo 137.° do Tratada CE,
D) Tendo em conta: a Convenção C 177 da OIT sobre o trabalho no domicílio.
E) Tendo em conta a Classificação Internacional dos Tipos de Profissão CITP-88 do Gabinete Internacional do Trabalho.
F) Tendo em conta a sua Resolução de 4 de Novembro de 9999 sobre o projecta de relatório conjunto sobre o emprego 1999 apresentado pela Comissão (SEC(1999) 1380 - C5-02151999).
G) Tendo em conta a sua Resolução de 21 de Setembro de 2000 sobre a comunicação da Comissão sobre trabalho não declarado (COM(98) 219 - C5-0566/1998 - 1998/2082(COS).
H) Tendo em conta o artigo 163.° do seu Regimento.
i) Tendo em conta o relatório da Comissão dos Direitos da Mulher e da Igualdade de Oportunidades (A5-030112000).
J) Tendo em conta a Resolução do Parlamento Europeu sobre a normalização do trabalho doméstico numa economia informal (2000/2029(1Nr)).
K) Tendo em conta a Decisão do Parlamenta Europeu que aprova a Cartados Direitos Fundamentais da União Europeia (C5-057012000). Tendo em conta o projecto de Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (C5-0570/2000),
M) Tendo em conta a sua Resolução de 16 de Março de 2000 sobre a elaboração de uma Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
N) Tendo em conta a sua Resolução de 13 de Abril de 2000 sobre as propostas do Parlamento Europeu para a Conferência Intergovernamental.
O) Tendo em conta a sua Resolução de 3 de Outubro de 2000 sobre o projecto de Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
P) Tendo em conta os artigos: 9 alíneas d e h; 13; 47n.°1; 58; 59; todas da Constituição da República Portuguesa.
Q) Considerando o carácter indefinido da noção de «trabalho doméstico».
R) Considerando que se tem verificado um aumento constante do nível de participação das mulheres no mercado de trabalho.
S) Considerando a dificuldade de avaliar o volume efectivo da economia subterrânea e do trabalho doméstico não declarado.
T) Considerando as repercussões consideráveis do trabalho não declarado nas contas dos Estados e nos rendimentos dos seus habitantes.
U) Considerando a própria natureza do trabalho doméstico, ao qual se aplicam com maior facilidade horários flexíveis ou mesmo fragmentados, prestado a vários patrões, por um salário mínimo, geralmente sob a forma de trabalho não declarado.
V) Considerando o número de agregados familiares em que ambos os parceiros trabalham a tempo inteiro.
W) Considerando o aumento do número de agregados familiares monoparentais.
X) Considerando o aumento considerável da procura em relação ao trabalho doméstico, em resultado de alterações na situação familiar ou profissional, na ocupação do tempo e nos interesses tanto dos homens como das mulheres.
Y) Considerando o princípio " favor laboratoris” como critério imperativo das normas de direito de trabalho.
Z) Não restam dúvidas que a relação profissional específica dos trabalhadores domésticos, designadamente o isolamento em que se encontram e a relação atípica com os respectivos empregadores não faz qualquer sentido.
AA) Pelo que desde 2000, que a CE, exorta os Estados - Membros a melhorar a imagem do trabalho doméstico, promovendo a um estatuto de profissão com todos os direitos e garantias como qualquer outro trabalhador.
88) Assim sendo, estamos perante uma omissão do Estado Português em transpor para o ordenamento Português a Regulamentação Europeia, equiparando os mesmos direitos dos trabalhadores domésticos a qualquer outro trabalhador.
CC) Pelo que há um manifesto desleixo do Estado Português em não transpor para o ordenamento Português as directrizes da legislação Europeia, mas que a Apelante não pode ser prejudicada.
DD) Pelo que deve ser aplicado o Novo Código de Trabalho.
Nestes termos, nos melhores de direito sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, deve o presente recurso obter provimento, e ser revogada a sentença proferida pelo juiz " a quo " e substituindo por outra que defira no provimento ao presente recurso, decretando­ se a concessão da compensação, mês por cada ano de trabalho, aplicando, o novo Código de Trabalho.»

Não houve contra-alegações

O Exmº Procurador-geral-adjunto deu parecer no sentido da conformação do decidido.

Colhidos os vistos legais


CUMPRE APRECIAR DE DECIDIR

I – A questão solicitada nas conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto, ao abrigo dos art.ºs 684, n.º3 e 690, n.º1 do CPC, é a de saber se ocorrendo a caducidade do contrato de serviço doméstico, por óbito da entidade empregadora, assiste à autora o direito à compensação prevista no n.º5 do art.º 390, do Código do Trabalho.

II - Fundamentos de facto

Resultaram provados os seguintes factos :
1. (C) faleceu em 19/10/2003.
2. À data do óbito a autora prestava a sua actividade de empregada doméstica a (C), desde há alguns anos.
3. (C) não deixou sucessores que permitissem continuar com a actividade da autora.


III - Fundamentos de direito

Como acima se referiu a única questão a apreciar é a de saber se ocorrendo a caducidade do contrato de serviço doméstico, por óbito da entidade empregadora, assiste à autora o direito à compensação prevista no n.º5 do art.º 390, do Código do Trabalho.
Na sentença recorrida foi entendido que : “continuando o contrato de serviço doméstico a configurar-se como um contrato de trabalho com regime especial, as regras gerais do Código do Trabalho apenas lhe são aplicáveis quando não sejam incompatíveis com a especificidade deste contrato – cfr. art. 11º do CT”. Referiu ainda que: “ a norma do n.º5 do art.º 390 do CT, que prevê a existência de compensação legal nos casos de cessação do contrato por caducidade, em consequência de morte do empregador ou encerramento da empresa, foi pensada para os casos em que a relação laboral se insere numa actividade lucrativa, seja em nome individual ou sociedade, situação que é de todo incompatível com a natureza das relações de serviço doméstico, marcadamente, de carácter pessoal e não lucrativas, não sendo por isso aplicável ao trabalho doméstico.”
A autora-recorrente veio porém, em sede de alegações de recurso, enunciar diversos diplomas internacionais a fim de justificar a equiparação dos direitos dos trabalhadores domésticos aos do regime geral, fazendo apelo a declarações de princípios, bem como, a normas internacionais e constitucionais que promovem a igualdade no trabalho e no emprego entre homens e mulheres, econcluiu pela aplicação do novo código do trabalho à situação sub-judice.
Vejamos então
O contrato de serviço doméstico foi regulado pelo Código Civil de 1867, até á entrada em vigor do DL n.º 508/80, de 21 de Outubro, este revogado pelo DL n.º 235/92, de 24 de Outubro. Constitui assim aquele decreto-lei uma primeira tentativa de regular coerentemente a prestação do trabalho do serviço doméstico, tendo sido actualizado, cerca de 10 anos depois, face à dinâmica das relações laborais e às melhores condições de vida dos agregados familiares, conforme decorre das razões enunciadas no preâmbulo do citado DL n.º 235/92,
Mas o novo código do trabalho também não revogou o regime especial do trabalho doméstico, estipulando apenas o seu art.º11, que: “Aos contratos de trabalho com regime especial aplicam-se as regras gerais deste Código que não sejam incompatíveis com a especificidade desses contratos.”
Ora, a circunstância de o trabalho doméstico se caracterizar por ser prestado a agregados familiares ( art.º2, do DL n.º 232/92), e por isso gerar relações profissionais com acentuado carácter pessoal que pressupõem uma permanente relação de confiança exige, a par das condições económicas dos agregados familiares, que o seu regime se continue a considerar como especial em determinadas matérias, sendo que em muitas outras, nomeadamente férias, faltas e subsídios se promoveu a igualdade com o regime geral.
A razão de ser da diferenciação dos regimes parte assim da natureza das relações iminentemente pessoais que se estabelecem por força do trabalhador prestar o seu trabalho na habitação do empregador e de não se inserir numa actividade lucrativa, uma empresa, seja em nome individual ou sociedade.
Afigura-se-nos por isso que os regimes aplicáveis reflictam essa diferenciação; assim, no regime geral, a morte do empregador em nome individual faz caducar o contrato, salvo se os sucessores do falecido não continuarem a actividade ou se se verificar a transmissão da empresa ou do estabelecimento, e o trabalhador tem direito a uma compensação pela qual responde o património da empresa, cfr. n.ºs 1 e 5 do art.º 390, do CT.; já no serviço doméstico a cessação do contrato por caducidade só permite o direito a uma compensação do trabalhador no caso da al. d) n.º1 do art.º 28, do DL n.º 232/92 - ocorrendo alteração substancial das circunstâncias da vida familiar do empregador que torne praticamente impossível a subsistência da relação laboral - e mesmo nesse caso a indemnização é bem inferior, à prevista no regime geral, pois corresponde apenas à retribuição de um a mês por cada três anos de serviço até ao limite de cinco anos .
Na verdade, porque está em causa uma actividade iminentemente pessoal e não lucrativa a lei especial trata as consequências da caducidade do contrato de serviço doméstico de forma diversa. Com efeito, de jure constituendo não nos repugna que tal disposição possa sofrer alterações de forma a que em mais situações, para além da prevista na al. d) do n.º1, do referido art.º28, se contemple ao trabalhador o reconhecimento de um montante indemnizatório em outras situações de caducidade.
No entanto, as declarações internacionais e preceitos legais internacionais e constitucionais invocados pela recorrente, para a não aplicação do regime especial contemplado no Decreto-lei n.º 232/93, inserem-se no âmbito da promoção do princípio da igualdade no trabalho e no emprego entre homens e mulheres. Daí que não sejam susceptíveis de justificar a interpretação pretendida pois que o regime especial em causa baseia-se na diferenciação da relação laboral estabelecida no serviço doméstico face à sua natureza iminentemente pessoal não inserida numa actividade lucrativa, e não na base de quaisquer factos de natureza discriminatória, sendo certo que o diploma em causa é aplicável a trabalhadores de ambos os sexos.
Aliás, a recorrente limita-se, em sede de alegações de recurso, a enunciar diversos diplomas, normas internacionais e constitucionais, mas sem estabelecer qualquer nexo que justifique a revogação do regime especial em causa para concluir por uma reclamada igualdade de tratamento dos trabalhadores do serviço doméstico com os demais sem, contudo, explanar as razões ou a argumentação para tal interpretação, o que nos impossibilita de avaliarmos a sua pertinência.
O principio da igualdade que tem a ver fundamentalmente com igual posição em matéria de direitos e os deveres, exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes. E ao legislador pertence dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Assim, só quando uma medida legislativa não tem o adequando suporte material é que existe uma violação do princípio da igualdade, ver anotações ao art.º 13 da Constituição Anotada, Gomes Canotilho e Vital Moreira.
Na verdade, o que se exige é que as medidas de diferenciação o sejam materialmente fundamentadas e não se baseiam em qualquer motivo constitucionalmente impróprio, podendo ser legítimas quando se baseiem numa distinção objectiva de situações, não se fundamentem em qualquer motivo discriminatório, designadamente os enunciados n.º 2 do art.º 13 da CRP, e tenham um fim constitucionalmente legítimo.
Ora, no caso, o legislador laboral consignou um regime especial para o trabalho doméstico face às relações iminentemente pessoais que nele se estabelecem e desinseridas de uma actividade lucrativa que integram, por isso, realidades factuais bem diversas das que ocorrem numa relação laboral comum, sujeita ao regime geral.

Improcedem assim os fundamentos do recurso.


IV – Decisão

Face ao exposto, julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida

Custas pela recorrente

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006

Paula Sá Fernandes
José Feteira
Filomena Carvalho