ABUSO DE DIREITO
CASO JULGADO
Sumário

I. Os conceitos de abuso de direito e de litigância de má fé não são coincidentes, sendo a proibição desta uma consequência ao nível processual do princípio geral da proibição do exercício abusivo de um direito.
II. Para que haja abuso de direito é necessário que o ilegítimo exercício do direito exceda de forma manifesta a boa fá, os bons costumes ou o fim económico ou social do direito;
III. O abuso do direito de recurso aos Tribunais é sancionado nos termos do artigo 456º e 457º do Código de Processo Civil e no próprio processo em que ele se verifica.
IV. Havendo entre o objecto de dois processos uma relação de prejudicialidade a decisão proferida sobre o objecto prejudicial vale com autoridade de caso julgado na acção em que é apreciado o objecto dependente.
Quando não se verifiquem os pressupostos do caso julgado quanto a um dos réus, deve considerar-se que se lhe impõem com força de caso julgado os fundamentos da decisão (prejudicial) proferida num processo em que ele foi parte e em que a questão discutida - a da propriedade do mesmo imóvel – constituíam o antecedente lógico do reconhecimento do direito invocado no processo posterior.

Texto Integral

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
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I – RELATÓRIO

a) Júlia L A L P C A e marido, Luís F A L P e António A e esposa, todos devidamente identificados nos autos intentaram a presente acção declarativa contra Camilo S A e esposa, residentes em (…) Lisboa, formulando o seguinte pedido:
1. Ser declarado “que o prédio urbano com o nº 154 da Rua (…) em Lisboa, descrito na 3ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº (…) e inscrito na matriz urbana da freguesia dos Prazeres sob o nº (…) é propriedade dos autores enquanto sucessores de Joaquina P, com expressa exclusão dos réus”;
2. Ser ordenado “o cancelamento do registo a favor dos réus”;
3. Serem condenados “os réus a pagar aos autores uma indemnização para ressarcimento dos danos causados pelo seu abuso de direito de intervenção processual, a liquidar em execução de sentença, compreendendo uma parte para ressarcimento dos danos emergentes da impossibilidade de restauro do imóvel e outra o pagamento das despesas que os autores foram e são obrigados a fazer com advogados, em razão do desrespeito dos réus pela decisão judicial que conferiu à Joaquina o direito de preferência”.
b) Citados os réus contestaram o pedido formulado pedindo que o mesmo fosse julgado improcedente.
c) Os autores ainda apresentaram outro articulado no qual concluem como na petição inicial.
d) Foi entretanto requerida a habilitação dos herdeiros de Luís F A L P, sendo, em consequência da procedência do incidente, admitidos a intervir nos autos Gonçalo F V L P e Gisela V S L P.
e) Teve depois lugar uma audiência preliminar na qual se conheceu oficiosamente da excepção do caso julgado, com a consequente absolvição dos réus da instância.
Interposto o competente recurso de agravo pelos autores, por acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Março de 2004, confirmado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Setembro de 2004, foi tal decisão revogada, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
f) Foi então proferida douta decisão que julgou a acção parcialmente procedente, declarou serem os autores titulares do direito de propriedade sobre o imóvel já identificado e ordenou o cancelamento da inscrição da aquisição da propriedade a favor dos réus, absolvendo-os do demais, designadamente do pedido de condenação no pagamento da indemnização peticionada.
g) Inconformados recorreram dessa douta decisão os autores e os réus, tendo os recursos sido admitidos como de apelação.
h) Os autores formulam a rematar as suas alegações, as seguintes conclusões:
“I. O pedido de indemnização, alegado e peticionado pelos AA., resulta de um longo litígio com início na década de 80.
II. Joaquina P. intentou contra o vendedor Henrique S e o comprador Camilo A. uma acção de preferência, pedindo ao Tribunal que lhe fosse reconhecido o direito de haver para si, nas mesmas condições em que o primeiro vendeu ao segundo, o prédio dos presentes autos.
III. Camilo A. não apresentou em juízo elementos probatórios de que era casado e com quem.
IV. O Supremo Tribunal reconheceu à Joaquina o direito de preferência, declarando que tinha o direito de “haver para si o prédio com o nº 154 da Rua (…), em Lisboa, inscrito na matriz urbana de Santos-o-Velho sob o artº …º, substituindo-se ao comprador Camilo S A” (vd. doc. nº 13 junto com a petição inicial).
V. Camilo A isoladamente ou em conjunto com a Maria L. e esta isoladamente passaram a sustentar a inoponibilidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à Maria L, por alegadamente, ela não ter sido citada para a acção de preferência.
VI. De forma pacífica e coerente, diversos tribunais e em diversas acções se pronunciaram sobre essa questão produzindo arestos entretanto transitados em julgados nos quais decidiram que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça atrás referida é oponível à R. Maria L.
VII. A decisão proferida no Processo nº 14395-A da 3ª Secção do 11º Juízo Cível, aliás, confirmada pela Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça, produziu efeito de caso julgado relativamente à R. Maria L., que dele era parte.
VIII. Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa, “Assim, por força da decisão do STJ de 21/07/1987, ficou a A. preferente substituindo o R. adquirente no contrato de compra e venda relativo ao prédio em questão; e porque esta substituição opera ex tunc, tudo se passa como se o dito prédio não tivesse entrado no património do casal do R. e tivesse sido adquirido directamente pela A. aos primitivos proprietários (vendedores) do imóvel.”
IX. A R. Maria L decaiu no processo nº 9153 da 2ª Secção do 2º Juízo Cível de Lisboa, em que se decidiu que “inexiste o direito de propriedade sobre o imóvel invocado pelos AA.” (vd. artº 62º e 63º da petição inicial).
X. Ambos os RR. foram vencidos, outrossim, no processo que correu sob o nº 3216 da 2ª Secção do 12º Juízo Cível de Lisboa, cuja decisão foi confirmada pela Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça.
XI. Em todas estas decisões, que transitaram em julgado muito antes do acórdão da Relação de Lisboa de 12/06/1997 (que correu termos sob o nº 8285), a Joaquina substitui-se ao Camilo.
XII. Tendo a sentença, na acção de preferência, efeito ex tunc, não chegou o prédio a entrar na esfera patrimonial do casal.
XIII. Decisões que os aqui apelados não respeitam e não cumprem, invocando a nulidade do registo da aquisição por preferência, decidida pelo Tribunal da Relação bem como com a invocação de que as decisões proferidas não constituem caso julgado para a aqui Ré, uma vez que esta nunca foi parte na acção de preferência.
XIV. Os aqui apelados, apesar das inúmeras decisões proferidas e transitadas em julgado, têm vindo a recorrer aos Tribunais de uma forma abusiva, pois sabem não ter direito ao que invocam.
XV. Objectivamente, é fácil alcançar que os apelados utilizam o direito de agir perante uma decisão há muito proferida e transitada em julgado, que claramente viola o direito de propriedade dos aqui apelantes.
XVI. Ao contrário do que é dito na sentença, é hoje concepção dominante que o direito à acção é um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer actuar em juízo – vd. a este respeito o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/12/2003, disponível em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ .
XVII. Contudo, o exercício deste direito conhece limites de ordem moral, que se traduzem no facto de a parte estar ou não de boa fé, pois que se litiga de má-fé, exerce aquele direito de forma ilícita, logo passível de responsabilidade civil.
XVIII. Atento os factos dados como assentes, de toda a prova documental junta nos autos, bem como da consideração feita pelo Tribunal a quo de que a conduta dos RR. é censurável, resulta que os aqui apelados litigam com manifesta má-fé, pois que sabem que o direito de propriedade do imóvel dos autos não lhes assiste e no entanto, continuam a interpor recursos e arrastar os AA. pelos Tribunais. E sabem-no desde o trânsito em julgado do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, desde 1989.
XIX. Fazem-no, claramente, por capricho, intentando acções e interpondo recursos cujo fim conhecem, o da improcedência, levando os AA. a terem avultados prejuízos no imóvel, não podendo este ser sujeito a obras de remodelação, bem como a terem avultados prejuízos com despesas e honorários aos advogados.
XX. Ou seja, o Mmº Juiz a quo teve consciência que é necessário de uma vez por todas colocar um ponto final nos argumentos dos aqui apelados que, teimosamente, se arrogam num direito de propriedade que não é seu, bem sabendo, de um lado, que o registo não tem efeito constitutivo, e de outro lado, que a sentença que reconheceu a propriedade do imóvel sub judice tem efeitos ex tunc, tudo se passando como se o primitivo vendedor tivesse vendido o prédio à falecida Joaquina P.
XXI. Com a sua actuação nos Tribunais, os apelados exercem o seu direito abusivamente, conforme nos diz o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/06/1993 “Existe abuso de direito quando este se exerce em termos clamorosamente ofensivos de justiça ou, quando, com esse exercício, se ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante.”, disponível em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ . No mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/05/1994, disponível em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ .
XXII. A concepção objectivista de abuso de direito, adoptada no nosso Código Civil, traduz-se na simples constatação de que se excederam os limites impostos pela boa fé, não é necessária consciência de que foram excedidos tais limites. Basta, pois, que o excesso seja manifesto .
XXIII. E o Tribunal a quo é o primeiro a afirmar, a fls. 8 da sentença “Em todo o caso, pensamos que a actuação dos RR., ainda que censurável...” (sublinhado nosso)
XXIV. O Tribunal a quo ao considerar que a conduta dos RR. é censurável, atenta a fundamentação apresentada, tendo no entanto optado por concluir que não há abuso de direito, violou o disposto na alínea c) do nº 1 do artº 668º do CPC, pelo que a sentença é nula.
XXV. Se assim não se entender, o que não se concede mas se equaciona pelo mais elementar dever de patrocínio, o Mmº Juiz a quo, violou o disposto nos artº 334º do CC e artºs 456º, nº 1 e nº 2, alíneas a) e d) e 483º, ambos do CPC.
XXVI. Os AA. alegaram e peticionaram nos presentes autos o pagamento de uma indemnização dos danos causados pela actuação abusiva dos RR. no que respeita à sua intervenção processual.
XXVII. Os presentes autos são consequência directa do facto dos RR. não cumprirem as decisões judiciais e se arrogarem de um direito que sabem não ter.
XXVIII. Fizeram prova dessa actuação abusiva, e que o Tribunal considerou uma vez que reconheceu que a actuação dos RR. é censurável.
XXIX. O Tribunal decidiu, de acordo com as duas primeiras pretensões dos AA.
XXX. Atenta a prova produzida, o Tribunal a quo podia e devia ter decidido pelo abuso de direito e respectiva indemnização peticionada.
XXXI. Se alguma dúvida o Tribunal tinha no que respeita ao quantitativo da indemnização aquando da elaboração da sentença, podia sempre ter recorrido ao dispositivo do nº 2 do artº 457º do CPC, ao não fazê-lo violou este normativo.
XXXII. Nenhum eterno retorno existirá, uma vez que está decidido a quem pertence o imóvel.
XXIII. Nestes termos, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça o abuso de direito por parte dos RR., e os condene no pagamento de indemnização aos AA.”.

i) Os réus apresentaram as suas contra alegações que concluem pela forma seguinte:
“Se a antecessora dos AA., Joaquina P, houvesse demandado também, como devia, a R. Maria L na acção de preferência, a decisão que viesse a ser proferida -­fosse ela qual fosse - vinculando ambos, arrumaria definitivamente a questão e o litígio terminaria aí. Culpa pois dos AA. no prosseguimento da lide.
A R. Maria L. não podia conformar -se com a perda do prédio em tais circunstâncias e o acórdão de 12/6/97 desta Relação deu-lhe razão.
Os AA. não esgotaram a via de recurso, deixando transitar este acórdão.
Vêm depois com a presente acção que não passa de um expediente grosseiro para colmatar as falhas na condução da acção de preferência e de torpedear este acórdão de 12/6/97.
Nela, demandam o R. Camilo para ver declarado o direito de propriedade deles sobre o prédio com o fundamento só – veja-se! – na decisão proferida na acção de preferência em que ele Camilo já tinha sido condenado a ver declarado esse direito (pescadinha de rabo na boca), sem a alegação de um facto, só, que demonstre estar o R. Camilo a pôr em causa o seu direito.
Juntam umas tantas decisões Judiciais proferidas em acções em que o R. não foi parte e em todo o caso não versam sobre a questão da propriedade do prédio.
Aliás, tratando-se de decisões Judiciais ou elas reconhecem o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio e nesse caso são inúteis para o efeito pretendido, (para quê uma nova decisão declarando esse direito?) ou não reconhecem e são inócuas. E de facto não reconhecem.
Depois, fazem contra o R. o pedido de anulação do registo, questão que ao R. não diz manifestamente respeito, sendo que o registo é consequência directa da acção proposta pela R. Maria L, e só por ela, e, portanto, só com ela devendo ser discutida.
Demandam a R Maria L para reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio com fundamento na decisão proferida na acção de preferência em que ela não interveio, não fazendo, por isso, a decisão caso julgado para ela, como, aliás, bem se salienta no acórdão do Supremo de fls. dos autos e no acórdão desta Relação de 12/6/97.
Aliás, reconheceu-se neste acórdão ser ela proprietária do prédio sem o que a anulação do registo com fundamento na violação dos princípios do litisconsórcio necessário e do trato sucessivo não faria qualquer sentido.
Invocam uma decisão de 1996, proferida nuns embargos de terceiro, deduzidos preventivamente para defesa da posse de dois andares do prédio – só dois.
Tratou-se apenas de posse dos andares, corno se salientou no dito acórdão do Supremo de fls. e não da propriedade do prédio.
Esta decisão é anterior ao acórdão de 12/6/97, não há caso julgado entre eles visto que não são as mesmas as pretensões. Mas se os AA. entendem que o acórdão é contrário a essa decisão anterior de 1996, podiam ter recorrido daquele com esse fundamento ou então, transitado aquele, pedido a sua revisão nos termos da alínea g) do artigo 771º do Código de Processo Civil.
Por último, se se reparar bem, a actuação dos RR., com excepção da acção possessória, limitou-se á defesa – mais da R. – nas acções propostas pelos AA.: acção de preferência, acção de posse judicial avulsa, acção de indemnização e agora esta acção de declaração do seu direito de propriedade e de anulação do registo.
Pretenderiam os AA. que os RR. se não defendessem, não defendessem os seus direitos perante as suas reiteradas arremetidas?
São os AA., e não os RR., quem de facto têm abusado do direito de intervenção processual pelo que este recurso não deve ser provido.”

j) Os réus, por sua vez, concluem pela forma seguinte as suas alegações de recurso:
“1) Os autores formulam na acção os dois pedidos de declaração do seu direito de propriedade sobre o prédio situado na Rua (…) nº 154 em Lisboa e a anulação do registo a favor dos réus, os recorrentes.
2) A sentença recorrida julgou procedentes ambos os pedidos com base na decisão proferida no processo nº 2.589 da 3ª secção do 8º Juízo Cível e nº 14.385 da 3ª secção do 11º Juízo Cível.
3) Ora a primeira decisão foi a que reconheceu o direito de preferência à antecessora dos autores Joaquina P, tendo sido demandado e portanto condenado a reconhecer o direito de propriedade daquela, o réu, ora recorrente, Camilo S A.
4) Assim, em nome do princípio “ne bis in idem” não pode o recorrente Camilo ser condenado, outra vez a ver declarado esse direito sob pena de violação do caso julgado tal como se acha definido no artigo 498º do Código de Processo Civil.
5) Ora, tendo a sentença recorrida condenado o recorrente nesse pedido e não absolvido da instância pela procedência da excepção do caso julgado, foi violado o disposto no dito artigo 498º do Código de Processo Civil.
6) Como se diz no acórdão do Supremo de fls. …, não existe caso julgado em relação à recorrente mulher na dita decisão 2589 que reconheceu o direito de preferência. Portanto, a recorrente não está vinculada por essa decisão que, em relação a si, é ineficaz.
7) Assim, teria ela que ser absolvida também do primeiro pedido – declaração do direito – e não condenada a reconhecê-lo pelo que se violaram os artigos 28º, 28º-A e 673º (alcance do caso julgado) do Código de Processo Civil.
8) Pois, ao contrário do que parece ser sugerido na sentença, era a acção de preferência o lugar próprio para discutir esse direito e não esta agora.
9) No acórdão desta Relação de 12/6/97, ao anular-se o registo a favor da preferente Joaquina P partiu-se do pressuposto, aliás afirmado no acórdão, de a recorrente mulher ser contitular do prédio, em comunhão, sem o que a anulação do registo com base na violação do princípio do litisconsórcio necessário e do trato sucessivo não faria qualquer sentido e daí que este pressuposto da decisão tenha também que ser abrangido pelo caso julgado.
10) Assim a sentença recorrida, ao julgar procedente o primeiro pedido contra a recorrente, violou também aqui o caso julgado.
11) A decisão no processo 14.395 não aborda a questão da propriedade do prédio mas só a posse.
12) Mas se se entender, como quer a sentença recorrida (ao contrário do que decidiu o acórdão do STJ de fls. …) que aquela decisão abordou a questão da propriedade, então os réus recorrentes não deviam ser condenados no primeiro pedido, mas absolvidos da instância também da excepção do caso julgado.
13) Deste modo, os recorrentes, devendo ser absolvidos do primeiro pedido, deverão ser também absolvidos do segundo por ser uma decorrência daquele.”

l) Os autores concluíram as suas contra alegações no recurso interposto pelos réus pela forma seguinte:
“I. Não merece censura a douta sentença proferida no que respeita aos dois primeiros pedidos formulados pelos AA..
II. Censura merece a actuação dos RR., que de forma abusiva, utilizam os Tribunais para alcançar uma pretensão que não lhes assiste e que há muito, através de várias decisões em várias instâncias, os Tribunais decidiram a favor dos aqui apelados.
III. É indiscutível, que o direito de preferência em causa se encontra reconhecido, por sentença transitada em julgado.
IV. É pacífico e por isso dominante, quer na doutrina quer na jurisprudência, que a procedência da acção de preferência tem como resultado a substituição, com eficácia ex-tunc, do adquirente pelo preferente, ou seja, tudo se passa como o prédio sub judice não tivesse entrado no património do casal e tivesse sido adquirido directamente por Joaquina P a Henrique S.
V. Esta posição foi a tomada quer pelo Supremo Tribunal de Justiça (doc. 28 junto com a p.i.) quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa (doc. 30).
VI. Isto para dizer que não podem os aqui apelantes continuar a argumentar que o acórdão da Relação de Lisboa de 12/06/1997, que decidiu no sentido de anular o registo a favor da preferente Joaquina A P, foi violado ao se reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre o referido prédio.
VII. Não podemos deixar de salientar que neste mesmo acórdão da Relação decidiu-se, sem prejuízo da questão de fundo que é a propriedade, a nulidade do registo a favor da preferente Joaquina A porque feito com base em “títulos insuficientes”. Sobre a propriedade do imóvel o Tribunal da Relação não se pronunciou.
VIII. Nestes termos, devem as conclusões 9) e 10) das alegações de recurso apresentadas improceder.
IX. Bem como devem improceder as conclusões 11) e 12).
X. Das várias decisões judiciais transitadas em julgado é pacífico que a decisão proferida na acção de preferência é oponível à R. Maria L.
XI. Em primeiro lugar o processo que correu termos sob o nº 14395 não aborda a questão da propriedade mas somente da posse, aliás como é confessado pelos aqui apelantes na conclusão 11), pelo que fica afastada a excepção de caso julgado.
XII. Não se entende como é os apelantes podem alegar que se não se tratar da questão da propriedade, a R. deverá ser absolvida do pedido?
XIII. A decisão proferida no processo nº 14395 constitui caso julgado relativamente à aqui apelante. Por um lado porque nesse mesmo processo, por apenso, deduziu embargos de terceiro, de outro lado porque sempre se arrogou num direito de propriedade que sabia não ter e por esta razão ficou vencida, a título de exemplo, na acção de despejo que intentou contra Joaquina P.
XIV. Quanto às conclusões 3) a 8) pede-se também a sua improcedência.
XV. A questão prende-se com o facto de o Mmº Juiz a quo ter decidido como decidiu tendo por base as decisões, transitadas em julgado, do processos que correram termos sob os nºs 2589 e 14395.
XVI. No primeiro processo foi reconhecido o direito de preferência a Joaquina P, e no segundo foi atribuída àquela a posse do prédio.
XVII. Quanto à primeira decisão, entendem os apelados que nenhuma violação do caso julgado existe.
XVIII. Não só não existe uma relação de identidade de objectos processuais entre os presentes autos e os supra referidos, como é preciso solucionar de uma vez por todas, a controversa decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 12/06/1997, declarando a nulidade do registo de aquisição por preferência.
XIX. Como ensinava o PROF. ALBERTO DOS REIS in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, pág. 91, “O facto jurídico caso julgado consiste afinal nisto: em existir uma sentença, com trânsito em julgado, sobre determinada matéria. Esta sentença pode ser utilizada, numa acção posterior ou pelo autor ou pelo réu…A razão da força e da autoridade do caso julgado é necessária à certeza do direito, da segurança das relações jurídicas. Desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo benefício, certo direito, certos bens, é indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações sociais, que esse direito, esses bens, constituam aquisições definitivas.”
XX. Quanto à segunda decisão é por demais óbvio que não há qualquer ofensa do caso julgado porquanto uma coisa é discutir a posse e outra o direito ou reconhecimento do direito de propriedade.
XXI. Foi o que se pediu ao Tribunal a quo que bem decidiu não merecendo qualquer censura no que respeita aos dois primeiros pedidos dos AA”.

m) Colhidos os vistos legais cumpre agora apreciar e decidir, ao que nada obsta.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
São os seguintes os factos provados, tal como descritos na decisão recorrida:
1. Por escritura pública de 12 de Agosto de 1983, Henrique S vendeu ao réu Camilo S A o prédio urbano com o nº 154 da Rua (…), em Lisboa.
2. No processo nº 2.589 da 3a Secção do 8° Juízo Cível de Lisboa, intentado por Joaquina A P contra o ora réu, proferiu-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Julho de 1987, confirmado por acórdão do Tribunal Pleno de 15 de Fevereiro de 1989, no qual se reconheceu a Joaquina A P o direito de haver para si o aludido prédio urbano, substituindo-se, assim, ao comprador Camilo S A.
3. No processo de posse judicial avulsa nº 14.395, da 3a Secção do 11º Juízo Cível de Lisboa, por sentença de 24 de Janeiro de 1990, foi conferida a Joaquina A P posse sobre o aludido prédio urbano, condenando-se o réu em tal reconhecimento.
4. A ora ré Maria L deduziu, por apenso, embargos de terceiro, que foram julgados improcedentes, com fundamento de que a embargante não alegou factos materiais de que se possa concluir-se pela existência da posse que invoca.
5. Esta decisão foi confirmada pelo acórdão da Relação de Lisboa de 30 de Março de 1995, posteriormente confirmado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 1996.
6. No processo nº 7.877/89 da 2a Secção do 10° Juízo Cível de Lisboa, intentada pela ora ré contra Joaquina A P, proferiu-se o acórdão da Relação de Lisboa de 12 de Junho de 1997, em que se declarou a nulidade do registo de aquisição por preferência, efectuado em 05.09.1989, na 3a Conservatória do Registo Predial de Lisboa, a favor de Joaquina A P, determinando-se o seu cancelamento.
7. Consta do documento de fls. 469-471 que, em relação ao referido prédio urbano, a inscrição de aquisição G-1 a favor de Joaquina A P, por reconhecimento do direito de preferência, foi cancelada (Ap. 17/970917), e que se encontra registada a inscrição de aquisição G-2 a favor de Camilo S A, casado com Maria L, por compra a Henrique S e mulher.

B) O DIREITO
I. A Apelação dos autores:
1. As conclusões das alegações apresentadas pelos recorrentes delimitam, como é sabido, o objecto do recurso.
De acordo com tais conclusões as questões colocadas no recurso interposto pelos autores estão relacionadas com a declarada inexistência, no caso dos autos, dos requisitos do abuso do direito de intervenção processual (de recurso aos tribunais) por parte dos réus, que foi fundamento da sua absolvição.
2. O pedido formulado pelos autores e que não foi julgado procedente era o de condenação dos réus a pagar aos autores uma indemnização relativa aos danos causados pelo abuso de direito de intervenção processual em que os réus teriam ocorrido.
Entendem os autores que o sucessivo recurso aos Tribunais por parte dos réus, constituindo o exercício abusivo do direito de agir, é ilícito e violador do direito de propriedade dos autores, e, em conformidade, gerador da responsabilidade civil nos termos que peticionam.
Pensamos que não lhes assiste razão.
3. Na verdade, apesar de o direito de acesso aos tribunais estar constitucionalmente garantido o exercício de tal direito, como o de qualquer outro, pode não ser tolerado pela ordem jurídica, posto que se verifiquem os requisitos do artigo 334º do Código Civil, que é do seguinte teor: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito
Na ponderação dos interesses em jogo o que torna o exercício do direito ilegítimo é o manifesto excesso dos limites que são impostos por três princípios basilares: a boa fé, os bons costumes e o fim social e económico do direito.
A douta sentença recorrida analisou o alegado excesso na tripla perspectiva indicada para concluir que, apesar de a conduta dos réus ser censurável, o exercício do direito de agir, incluindo o direito de contestar as pretensões dos autores nas várias instâncias em que o diferendo que as opõem se desenvolveu, não ultrapassava manifestamente os limites mencionados e, portanto, que não constituía abuso de direito, não podendo, em qualquer caso, ser invocado o abuso de direito fora do processo em que ele se verifique.
E essas são as questões a decidir: se há ou não abuso de direito e, caso assim seja, se ele pode ser invocado em acção autónoma, como é a presente.
4. A Constituição da República Portuguesa assegura o direito de acesso aos Tribunais para defesa dos direitos que os cidadãos entendam ser titulares, pelo que, mesmo que se venha a demonstrar, em concreto, que os direitos invocados não existem, o recurso aos meios judiciais constitui, em princípio, um facto tutelado pela lei.
No entanto, quando, por exemplo, a parte formula pedidos que sabe serem ilegais, utiliza o processo para fins manifestamente ilegais ou viola gravemente princípios como a boa fé, o exercício do direito de acção torna-se ilegítimo.
Tal ilegitimidade pode revestir duas formas:
a) Ou o exercício do direito de acção é manifestamente excessivo e substantivamente violador da boa fé, dos bons costumes ou do fim social e económico do direito que exerce, preenchendo os requisitos do abuso de direito gerador de responsabilidade civil nos termos conjugados dos artigo 334º e 483º do Código Civil;
b) Ou o exercício de tal direito se contêm dentro da previsão da litigância de má fé, sendo a conduta reprovável valorada essencialmente do ponto de vista processual e tem as consequências previstas nos artigo 456º e 457º do Código de Processo Civil, que são a aplicação de uma multa e a atribuição à parte contrária de uma indemnização.
5. Fora de uma e de outra situação ficam aqueles casos, bem frequentes, em que o recurso à lide se afigura como temerário, as teses em que assentam os direitos invocados se revelam com muito pouca consistência fáctica ou jurídica ou quando pouco mais se vislumbra do que teimosia no defender ao longo da lide de posições que não mereceram vencimento nas instâncias.
6. Ante a matéria de facto provada e acima descrita e na qual se baseou a douta decisão recorrida, há que concluir que os autores deduziram o pedido de condenação dos réus com base no seguinte: depois de, em Julho de 1987 o Supremo Tribunal de Justiça ter reconhecido a Joaquina A P, numa acção intentada contra o réu marido, o direito de preferência na aquisição do imóvel identificado nos autos, a ré mulher deduziu embargos de terceiro no âmbito de um processo de posse judicial avulsa intentado por Joaquina A P (que foram julgados improcedentes por falta de alegação de factos materiais comprovativos da posse e (a ré mulher) intentou contra esta uma acção declarativa visando a declaração de nulidade do registo de aquisição por preferência, acção que foi julgada procedente.
7. O que da matéria de facto se extrai é que a ré não se conformou com o teor da decisão que reconheceu o direito de preferência de Joaquina A P proferido numa acção em que ela não era parte (a acção foi proposta apenas contra o marido), nem com as suas consequências ao nível do registo de propriedade do imóvel.
Ao intentar as duas acções mencionadas (os embargos de terceiro e a acção de declaração de nulidade do registo) a ré, assim se entende, não incorreu em abuso de direito por não ter excedido (e muito menos manifestamente) os limites impostos pelo fim social e económico do direito de recorrer aos Tribunais para definição dos seus alegados direitos substantivos.
Da mesma forma que tal comportamento não violou limites impostos pelos bons costumes ou pela boa fé.
Constitui uma afirmação não suportada pelos factos apurados nos autos o teor da conclusão XIX do recurso dos autores no sentido de que os réus litigam por capricho intentando acções e interpondo recurso que sabem estar destinados à improcedência.
8. Destarte, concluindo como se conclui na douta sentença recorrida, se dirá que não se verificam no caso dos autos os pressupostos do abuso de direito que vem invocado pelos autores como fonte de obrigação de indemnizar.
Com o que se dirá também que improcedem as conclusões do recurso interposto pelos autores e que o recurso não merece provimento, não ocorrendo a invocada nulidade da sentença impugnada.
9. Ainda que a questão não tenha sido expressamente levantada nas alegações de recurso, porque esse foi um dos fundamentos invocados para a improcedência do pedido formulado pelos autores, e que sempre levaria à improcedência do recurso, sempre se dirá que não parece possível a invocação do abuso de direito de recurso aos Tribunais fora do processo em que tenha sido cometido o manifesto excesso no uso desse direito.
A proibição da litigância de má fé é um afloramento da proibição do abuso de direito, ainda que entre um e outro se registem algumas diferenças de regime.
De forma que o meio processual de sancionar o abuso do direito de recurso aos Tribunais consta dos artigos 456º e 457º do Código de Processo Civil. Com a particularidade de nem sequer ser possível deixar de fixar no próprio processo a indemnização que for tida por adequada (cf. artigo 457º 2 do Código de Processo Civil)
Já no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Maio de 1969 (in Jurisprudência das Relações 15º pág. 675) se explicava que “se alguém abusa do seu direito em prejuízo de outrem este reagirá por meio de acção comum, tendente a fazer-se restituir ao estado anterior à lesão”, mas que “se o abuso de direito se verifica no exercício do direito de acção, então o prejudicado terá que defender-se desse abuso na própria acção cujo direito de exercício é abusivo, contra alegando e provando o abuso e pedindo a indemnização que lhe faculta o artigo 456º do Código de Processo Civil”.
No mesmo sentido, salientando que tendo a lei adjectiva concedido um meio de tutela para que alguém receba a indemnização resultante do exercício abusivo do direito de agir não é admissível o recurso a acção própria, se pronunciou também o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Maio de 1977 (in Colectânea de Jurisprudência – 1977 a página 617 – relator Américo Campos Costa).

II. A Apelação dos réus:
1. O recurso de apelação interposto pelos réus assenta, em grande parte, na afirmação da existência do caso julgado formado pelas anteriores decisões.
Dizem os réus nas conclusões 1ª a 5ª que o réu marido foi já condenado a reconhecer o direito de preferência na aquisição do prédio identificado nos autos pelo que violaria o artigo 498º do Código de Processo Civil e o caso julgado anterior proferir nova condenação do réu marido a reconhecer o direito de propriedade dos autores.
Mais dizem os réus (conclusão 10ª) que a sentença violou o caso julgado ao condenar a ré a reconhecer o direito de propriedade nos termos em que o fez quando é certo que ela não foi parte na acção em que foi reconhecido o direito de preferência na aquisição do prédio à antecessora dos autores.
2. Já foi definitivamente decidido nos presentes autos pelo Supremo Tribunal de Justiça que não se verificam os pressupostos do caso julgado, nomeadamente porque não há identidade de sujeitos entre esta acção e a acção em que foi reconhecido o direito de preferência e também por serem diferentes os pedidos e a causa de pedir nesta acção e nos embargos de terceiro e ainda naquela em que foi declarada a nulidade do registo de aquisição por preferência a favor da antecessora dos autores.
Assim sendo, como é, não poderão os recorrentes recolocar a questão para reapreciação deste Tribunal, nem louvar-se na alegação da existência de caso julgado para defender que o réu marido (ou a ré mulher) deveria ter sido absolvido da instância.
3. Numa outra perspectiva de abordagem se dirá, porém, que o réu marido foi efectivamente condenado a reconhecer o direito de preferência da antecessora dos autores na aquisição do prédio dos autos no processo 2.589 da 3ª Secção do 8º Juízo Cível de Lisboa.
Por isso, e não obstante a decisão anterior não integre a excepção do caso julgado não pode deixar de considerar-se que as questões da propriedade e das condições em que foi adquirido o direito de propriedade sobre o prédio dos autos, já foram objecto de contraditório entre as partes nesse primeiro processo (acção de preferência).
E, como é salientado na douta decisão recorrida, existe uma relação de prejudicialidade entre o objecto da acção de preferência e o desta acção: a aquisição do direito de propriedade por efeito da procedência da acção de preferência constitui um pressuposto para o julgamento do objecto destes autos em que se pretende o reconhecimento pelo réu marido de tal direito.
Como escreve o Prof. Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos sobre o Novo Processo Civil” – Editora Lex – 1996 a pág. 335 havendo uma relação de prejudicialidade entre objectos processuais “tem relevância o caso julgado: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial vale como autoridade de caso julgado na acção em que é apreciado o objecto dependente”.
Como decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 1998 in BMJ 474 – 405, o caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo posterior quando o objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é condição para apreciação do objecto processual posterior.
Do que vem dito se conclui que por força da decisão proferida na acção de preferência deve ser declarado nestes autos que o prédio identificado nos autos é propriedade dos autores, com expressa exclusão do réu marido.
4. E quanto à ré mulher?
Também em relação a ela não existe caso julgado formado em qualquer anterior acção em que ela tenha sido parte e que, como excepção, obste à apreciação do mérito nestes autos, como foi já definitivamente decidido.
Já atrás se viu que a circunstância de não se encontrarem preenchidos os requisitos da excepção do caso julgado nem sempre impede que, no processo posterior, se tenham por assentes entre as partes comuns, os factos já discutidos no processo anterior.
Sabido como é que, em regra, o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto da decisão, são reconhecidos casos de excepção “em que os fundamentos de facto, considerados em si mesmos (e, portanto, desligados da respectiva decisão) adquirem valor de caso julgado. Esses fundamentos possuem um valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e um outro objecto (ou entre o efeito produzido e um outro efeito)” (() Prof. Miguel Teixeira de Sousa, obra citada a página 341.).
Como refere o Prof. Miguel Teixeira de Sousa (
() Obra e local citados.), citando diversos arestos que disso são exemplo, “a jurisprudência tem reiterado que são abrangidas pelo caso julgado as questões apreciadas que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença”.
Vejamos, então, tendo em conta o que atrás se deixou dito, se a questão da propriedade do prédio identificado nos autos foi ou não já discutida entre a antecessora dos autores e a ré mulher no processo 14.395-A (embargos de terceiro) e se constituiu fundamento do tipo indicado supra para a decisão ali proferida.
5. Analisando os documentos juntos aos autos pode constatar-se que a ora ré alegou, na petição de embargos de fls. 157, que o prédio dos autos constitui um bem comum do casal por ter sido adquirido na constância do matrimónio dos ora réus, sendo, de resto, o facto de ser co-titular do direito de propriedade e de exercer a posse correspondente ao exercício de tal direito que fez com que não tivesse alegado actos materiais de posse.
Tal facto (a co-titularidade do direito de propriedade sobre o prédio alegadamente integrante do património comum do casal) foi contestado pela antecessora dos ora autores.
Nas alegações de recurso da decisão que julgou improcedentes os embargos a ora ré mulher alegou (cf. fls. 201 e seguintes) ser possuidora do prédio na sua qualidade de co-titular do património comum do casal e que a sua posse é a “inerente ao direito de propriedade”, sendo o prédio um bem comum do casal que constitui com o réu marido.
Do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Março de 1995 que apreciou o recurso consta, nomeadamente, que a recorrente “invoca o seu direito de propriedade como causa da posse”, para depois concluir que com a procedência da acção de preferência só pode extrair-se que o prédio nunca integrou o património dos réus.
Ali se escreve que “a embargante não pode arrogar-se qualquer direito sobre o prédio com origem na aquisição que dele fez, na constância do casamento, o seu marido Camilo” e, mais adiante, que “não é, pois, tal prédio, um bem comum do casal da embargante, já que ele não chegou a ingressar no património comum dela e de seu marido”.
Tal acórdão viria a ser confirmado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 1996 (cf. fls. 212 a 214 dos autos).
6. Pode então dizer-se, em resposta à questão colocada supra, que apesar de não se verificarem os requisitos da excepção do caso julgado, também quanto à ré mulher não pode deixar de considerar-se que a questão da propriedade já foi objecto de contraditório em processo de que ela foi parte e que nesse processo não lhe foi reconhecido, como fundamento da oposição, o direito de propriedade que invocou sobre o prédio.
Ou seja, a ré mulher, no âmbito de um processo que a opunha à antecessora dos autores, viu-lhe ser expressamente negado o direito de propriedade que se arrogava sobre o prédio dos autos.
7. Tudo teria sido mais fácil e inequívoco se nos embargos de terceiro à acção de posse judicial avulsa a embargada tivesse aproveitado a possibilidade de esclarecimento da questão da propriedade para convencer a ré mulher acerca da titularidade de tal direito (artigo 1042º nº 2 do Código de Processo Civil na anterior redacção e actual artigo 357º nº 2 do mesmo diploma).
Ainda assim e apesar de a questão da propriedade não ser o objecto central da decisão proferida, constituiu o seu fundamento e antecedente lógico, pelo que são de renovar aqui as considerações feitas na parte final do ponto II. 3., concluindo-se que a força do caso julgado sobre essa questão releva nestes autos. 7.
8. Aqui chegados fácil se torna perceber que pelo simples facto de a ré não ter sido parte na acção de preferência e de a decisão ali proferida ser ineficaz em relação a ela não decorre, sem mais, como parecem pretender os recorrentes, que a ré deva ser absolvida dos dois primeiros pedidos, nomeadamente no pedido de condenação do reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre o prédio dos autos.
Da mesma forma que se julga clara a afirmação de que apesar de não se verificarem os requisitos da excepção do caso julgado se tem por vinculante para a ré recorrente os factos que serviram de fundamento da decisão proferida nos embargos de terceiro que deduziu, nomeadamente o reconhecimento pelo tribunal do direito de propriedade da antecessora dos autores sobre o prédio, com expressa exclusão do direito de propriedade sobre o mesmo prédio de que a ora ré alegou ser titular.
9. Do que vem de ser exposto se conclui que devem improceder as conclusões 1ª a 5ª (relativas ao réu recorrente), 6ª a 10ª e 11ª a 13º (relativas à ré recorrente), não merecendo provimento o recurso interposto pelos réus.

III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam em:
a) Negar provimento ao recurso de apelação interposto pelos autores;
b) Negar provimento ao recurso de apelação interposto pelos réus;
c) Confirmar a douta sentença recorrida;
d) Condenar os recorrentes nas custas relativas aos recursos em que decaíram.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2006
Manuel José Aguiar Pereira
José Gil de Jesus Roque
Arlindo de Oliveira Rocha