ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
LEGITIMIDADE
HERDEIRO
DIREITO DE REPRESENTAÇÃO
Sumário

Não pode um herdeiro, por direito de representação, obter a qualidade de assistente em processo penal, não obstante o facto de, naquela forma, ser herdeiro da vítima e, assim, poder vir, como parte civil, requer a atribuição de indemnização por morte daquela.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

Nos autos de inquérito nº 569/03.8GTTVD, dos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Loures, arquivado nos termos do artº 277º, nº 2, do CPP, relativos à morte, ocorrida em 31-10-03, de A., requereu B. a sua admissão como assistente.
E, com promoção adversa do Ministério Público, foi proferido despacho judicial que, não reconhecendo à requerente legitimidade para se constituir assistente, não a admitiu a intervir nos autos nessa qualidade.
Inconformada com o assim decidido, recorreu a requerente, concluindo da seguinte forma:
I. A intervenção da Requerente no presente procedimento não foi requerida na sua qualidade de tia, mas antes na qualidade de herdeira e representante da ascendente da Ofendida, C., sobreviva à morte desta, mas falecida no decurso do Inquérito, ao abrigo dos artigos 2039° e 2042°, ambos do Código Civil e conforme os documentos juntos a fls.
II. A ora Requerente tem efectiva legitimidade para se constituir como Assistente, sendo que uma decisão contrária tal como a proferida, além de ilegal, contraria incomportavelmente os princípios fundamentais previstos constitucionalmente de justiça e do Estado de Direito, bem como os princípios e objectivos prosseguidos pelo processo penal.
III. A ofendida deixou como seus únicos sucessores, ascendentes, as duas avós, materna e paterna.
IV. Não tendo a avó materna da ofendida pretendido usar da faculdade de se constituir ela própria Assistente, é a ora Requerente a única pessoa capaz e com legitimidade para intervir no processo na qualidade de Assistente.
V. No caso sub júdice, não nos poderemos cingir à interpretação literal ou restritiva, como o fez o Tribunal a quo. Tal interpretação colide com a previsão do artigo 20° da CRP, sendo, como tal, inconstitucional, por violação daquela norma da Lei Fundamental.
VI. Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão proferido em 7.12.2005, que, “as normas jurídicas só serão correctamente interpretadas se permitirem uma justa decisão do caso concreto”, sendo que “não há interpretação das proposições normativas sem referência a casos concretos.”.
VII. O texto da alínea c) do n° 1 do artigo 68° do CPP, enumera as pessoas com legitimidade para se constituírem Assistentes, devendo no caso dos herdeiros, a qualidade de cada uma ser aferida à data da morte do ofendido.
VIII. Através da previsão legal contida no artigo 68° do CPP; concretamente, alínea c) do n° 1, deve igualmente acautelar-se, na interpretação agora defendida e aplicável ao caso concreto, o direito de os titulares do direito em causa poderem, por morte ou incapacidade, ser representados pelos seus herdeiros e representantes legais.
IX. É na mira da descoberta da verdade, e consciente da importância de prova adicional a realizar, que a Requerente, se quis constituir Assistente e requerer a abertura da instrução.
X. No Acórdão do Tribunal Constitucional n° 690/98, de 15.12.1999, reconheceram os Exmos. Senhores Juizes Conselheiros a legítima existência de um interesse específico do ofendido em constituir-se Assistente em processo penal, mesmo nos crimes públicos e que encontra a sua consagração no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
XI. Concluiu o Tribunal Constitucional, no Douto Acórdão a que supra se faz menção, pela existência de tal garantia para os sucessores do ofendido nas respectivas relações pessoais que persistam após a sua morte, sob pena de a vítima, enquanto tal, não ser substituída, em tal caso no processo penal.
XII. Só uma participação activa por parte da Requerente no presente procedimento permitirá prosseguir os interesses da ofendida, pelo que deverá ser admitida a sua constituição como Assistente, nos termos do artigo 68°, n° 1, alínea c) do C.P.P., prosseguindo os autos para a fase de instrução.
XIII. Caso assim não se entenda, sempre deverá ser julgada inconstitucional a interpretação do artigo 68°, n° 1, alínea c) adoptada pelo Tribunal a quo na medida em que impeça, no caso em apreço, a intervenção da aqui Requerente, na qualidade de herdeira da ascendente da Ofendida falecida, no processo penal, constituindo-se Assistente.
XIV. A Decisão recorrida viola o artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 68°, n° 1, alínea c) do Código de Processo Penal e 9° do Código Civil.
Nestes termos,
(a) Deverá ser concedido provimento ao presente recurso e em consequência ser revogado o Despacho recorrido, sendo substituído por outro que admita a constituição como Assistente requerida pela Recorrente;
(b) Caso assim não se entenda, sempre deverá ser julgada inconstitucional a interpretação do artigo 68°, n°1, alínea c) do Código de Processo Penal adoptada pelo Tribunal a quo no Despacho ora recorrido, por violação do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.

Respondeu a Exma. Procuradora- Adjunta, concluindo:
1- A recorrente coloca em discussão um conjunto de regras de carácter sucessório que tem a haver com as classes de sucessores ou herdeiros, do direito de representação em caso de pré-morte, e na interpretação a dar ao art. 68°. n°.1 al. c) do Código de Processo Penal com base nas referidas normas de direito sucessório inclusas no Código Civil, sendo que nos parece que a interpretação dada pela recorrente sofre, à partida, dum vício que só por si é susceptível de colocar em crise toda a argumentação da mesma.
2- O ponto discordante tem logo a haver com o suposto direito da requerente que na qualidade de filha da avó paterna da falecida e por direito de representação ficaria com o direito pertencente à sua mãe.
3- A falecida à data da sua morte era órfã de pai e mãe, sendo que em direito sucessório faltando os pais, entram em linha de conta os ascendentes em 2°. Grau.
4- Os quais não assumem os beneficios dos filhos falecidos por direito de representação porque os beneficiários da vocação representativa são os descendentes do sucessível faltoso.
5- E o direito de representação aplica-se nas situações de não querer ou não poder suceder ao “de cujus” (renúncia da herança ou pré-morte).
6- No caso dos autos, nunca a requerente poderia invocar o direito de representação porque a avó paterna da falecida ( mãe da requerente ), não estava numa situação de pré-morte. Conforme esclarece a requerente, quando a A,, a sua avó paterna era viva.
7- Apesar da requerente ser filha da C., tendo esta falecido no decurso do inquérito, não pode a requerente invocar o instituto do direito de representação por não ser admissível legalmente.
8- E como não há o direito de representação da sua mãe, apresenta-se a mesma apenas e somente com a qualidade parental de tia.
9- No âmbito da lei processual penal ao faltar qualquer um dos grupos que o art. 68° n°.1 al. c) do Código de Processo Penal menciona, entra em linha de conta o seguinte.
10- Faltando os pais da falecida e não tendo a mesma descendentes, detém o direito de constituição como assistente os irmãos e seus descendentes.
11- A lei não pode permitir interpretações extensivas por forma a subverter as normas substantivas aplicáveis.
12- A recorrente pretende a aplicação do instituto da representação na vocação legitima ao caso concreto, incorrendo em erro quanto à avaliação dos pressupostos da aplicação do direito de representação.
A Exma. Juiz sustentou tabelarmente o seu despacho.
Neste Tribunal, o Exmo. Procurador- Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
“Do despacho que não reconheceu legitimidade à requerente de assistente, tia e alegadamente herdeira da falecida A..
O recurso foi interposto e motivado em tempo.
O recurso mereceu resposta por parte do Ministério Público em 1.ª instância, no sentido da improcedência.
Vai-se emitir parecer:
A recorrente pretende demonstrar ter legitimidade, tendo sido já junta escritura de habilitação de herdeiros relativa à A..
No entanto, apesar de ter junto também algumas certidões, não juntou escritura de habilitação de herdeiros de C., ascendente que àquela sucedeu, nem ofereceu prova bastante para o efeito, nomeadamente, testemunhal.
E, conforme se decidiu no ac. do STJ de 18/8/97, “não dispõe de legitimidade para recorrer as pessoas que não se constituírem assistentes no processo, nem se habilitarem como herdeiros do ofendido falecido” (proc. 765/96-3.ª s.).
Assim, e pese embora se afigurar que a requerente poderia obter legitimidade dentro do enunciado das pessoas referidas actualmente no art. 68.° al. b) do C.P.P., não tendo demonstrado, pelo menos até à presente data, a qualidade de herdeira de ascendente, não pode ser-lhe reconhecida essa legitimidade, sendo apenas de considerar mera colateral.
Nestes termos, parece também que o recurso não poderá proceder, concordando que possa ser desnecessária, por isso, a nomeação de defensor, ao requerido “Luís Baltazar Duarte” cuja identificação também não se encontra totalmente de acordo com o que consta no auto de notícia”.

Cumpriu-se o disposto no artº 417º, nº 2, do CPP, tendo a recorrente respondido nos termos constantes de fls. 271 e segs.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Com relevância para a questão a decidir mostra-se assente que:
- A. faleceu, em consequência de um acidente de viação, no dia 31-10-03- assento de óbito de fls. 29 e relatório de autópsia de fls. 97 a 102;
- Na sequência do inquérito realizado por óbito da ofendida, veio a constituir-se assistente D., irmão uterino da ofendida- assentos de nascimento de fls. 65 e 66, escritura de habilitação de fls. 68 a 73 e despacho de fls. 84;
- O inquérito, por óbito da ofendida, veio a ser arquivado, por despacho de 14-07-04, nos termos do disposto no artº 277º, nº 2, do CPP- fls. 111 a 115;
- À data do óbito, a ofendida deixou como seus únicos sucessores a avó materna, E., a avó paterna, C. e dois irmãos uterinos, D. e F.- assento de nascimento de fls. 66, escritura de habilitação de fls. 68 a 73 e escritura de rectificação de fls. 167 a 170;
- A ofendida era filha de G. e de H.- assento de nascimento de fls. 65;
- À data do óbito, 31-10-03, o pai da ofendida, G., tinha já falecido em 13-02-03- assento de óbito de fls. 177;
- C., avó da ofendida, é mãe de G., pai da ofendida- assento de óbito de fls. 177;
- A requerente B. é irmã do falecido pai da ofendida- assento de nascimento de fls. 175;
- A avó paterna da ofendida, C., viva à data do acidente, veio a falecer, na pendência do presente inquérito, em 16-01-04- assento de óbito de fls. 172;
- Tendo-lhe sucedido como herdeiros, seus filhos B. e I.- escritura de habilitação de fls. 276 a 279.
2. A questão fundamental colocada no recurso é a de saber se a requerente, ora recorrente, na qualidade de herdeira e representante da ascendente da ofendida, C., sobreviva à morte desta, mas falecida no decurso do inquérito, pode ser admitida como assistente.
Vejamos.
É do seguinte (transcrito) teor o despacho impugnado:
“B., melhor identificada a fls. 130 dos autos, requereu a sua constituição como Assistente nos presentes autos, nos termos do artigo 68.°, n.° 1, alinea c) do Codigo de Processo Penal, alegando em suma ser tia de A., falecida em virtude de acidente de viação que deu origem aos presentes autos e ter legitimidade por força do disposto no artigo 2039.° e ss. do Código Civil.
Pagou taxa de justiça.
Juntou documentos.
O Ministério Público promoveu o indeferimento da constituição de assistente, por não ter a requerente legitimidade.
Dispõe o artigo 68°, n° 1, alínea c) que ”Podem constituir-se
assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem
leis especiais conferirem esse direito, no caso de o ofendido morrer
sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado
judicialmente de pessoas e bens, os descendentes e adoptados,
ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes e a pessoa que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, salvo se algumas destas pessoas houver comparticipado no crime.”
No caso, a Requerente invoca a qualidade de tia de A..
No entanto, nos termos da lei processual penal, que rege a situação em apreço, a Requerente nao tem legitimidade para se constituir Assistente.
Nestes termos, indefiro a requerida constituição como assistente (...)”.

Apreciando.
Refere, na parte que interessa, o artº 68º, nº 1, al. c), do CPP.
“Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, no caso de o ofendido morrer sem ter renunciada à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes e a pessoa que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, salvo se algumas destas pessoas houver comparticipado no crime”.
No caso em apreço a ofendida – a vítima – faleceu e deixou como seus únicos sucessores a avó materna, E., a avó paterna, C., falecida na pendência do inquérito, e dois irmãos uterinos, D. e H..
A disposição legal acima transcrita prevê que para defender interesses em processo penal de que uma pessoa falecida era titular em sua substituição se constitua assistente uma das pessoas aí referidas.
Entende a requerente que deve ser admitida como assistente na qualidade de herdeira e representante da ascendente da ofendida, C., sobreviva à morte desta, mas falecida na pendência do inquérito.
E, para tanto, esgrime com o direito de representação previsto nos arts. 2039º e segs. do C. Civil.
Crê-se que sem razão.
De acordo com o artº 2024º, do C. Civil, sucessão é “o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam”.
E dessas relações jurídicas patrimoniais faz parte o direito à constituição como assistente, direito esse de natureza pessoal.
E, como é sabido, nos direitos pessoais a regra é a intransmissibilidade (cfr. Galvão Telles, “Direito das Sucessões”, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 60).
No entanto, o legislador enveredou, no artº 68º, nº 1, al. c), do CPP, por estabelecer quem tem legitimidade para se constituir assistente no caso de o ofendido morrer sem se ter constituído assistente nem renunciado ao direito de queixa.
Assim, entendemos que só uma das pessoas referidas na citada al. c) do nº 1, do artº 68º, do CPP se pode constituir assistente, não sendo lícito exercer tal direito por via da representação como pretende a recorrente.
E tal solução não colide com as regras da sucessão nem retira quaisquer direitos deste tipo ou de natureza civil à recorrente, enquanto herdeira e representante da ascendente da ofendida, C..
É que a recorrente, enquanto lesada, pode deduzir pedido de indemnização civil – pelos danos ocasionados com o crime – ainda que se não tenha ou não possa constituir-se assistente no processo (artº 74º, do CPP).
Por último, refira-se que não vemos que o citado artº 68º, nº 1, al. c), do CPP, interpretado da forma referida viole qualquer preceito constitucional, designadamente o artº 20º da CRP invocado pela recorrente.

III – DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juizes da 9ª Secção deste Tribunal da Relação em:
Negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça.
Lisboa, 11 de Maio de 2006-06-22
Carlos Benido
Ana Brito
Francisco Caramelo