BURLA
CONSUMAÇÃO
Sumário

Tendo em atenção que “…o resultado típico do crime de burla é o empobrecimento do sujeito passivo, através do comportamento astucioso do arguido, sendo que com ele o crime se consuma…”, o “…momento da consumação do crime é, portanto, aquele em que o lesado abra mão da coisa ou do valor, sem que a partir daí se possa controlar o seu destino…”.

Texto Integral

Acordam em Conferência na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa

1. Relatório
1.1. O assistente A. veio requerer a abertura de instrução por não se conformar com o teor do despacho de arquivamento do M.P. que não imputou aos arguidos a prática de um crime de burla qualificada previsto e punido pelos art°s. 217° n°.l e 218° n°.2 a) do CP e de um crime de associação criminosa previsto e punido pelos art°s. 299° CP.
1.2. Realizou-se o debate instrutório com observância do formalismo legal, tendo o Ministério Público e a defesa dos arguidos pugnado pela não pronúncia dos mesmos e o mandatário do assistente em sentido contrário, por existência de indícios.
1.3. A questão dos autos é a de saber se os crimes indiciados estarão prescritos ou não, tendo sido a ocorrência da prescrição que levou o MºPº a proferir despacho de arquivamento com o qual o assistente não concorda.
1.4. Foi proferido despacho de não pronúncia dos arguidos, porquanto considerou o tribunal recorrido o seguinte.
“O resultado típico do crime de burla é o empobrecimento do sujeito passivo, através do comportamento astucioso do arguido, sendo que com ele que o crime se consuma.
O momento da consumação do crime é, portanto, aquele em que o lesado abra mão da coisa ou do valor sem que a partir daí se possa controlar o seu destino, então já sem disponibilidade sobre esse património, como é entendimento jurisprudência 1 -BNU 354, 314; 396, 250 e CJ I; 96, 211.
A consumação da burla operar-se-á, segundo o art°. 217° n°. 1 CP pela entrega indevida que foi determinada pelos meios fraudulentos, qualquer que seja o destino que o agente dê aos objectos entregues.
No que diz respeito ao crime de associação criminosa estamos em presença de um crime de natureza permanente.
Neste tipo de crime o prazo de prescrição só corre desde o dia em que cessar a consumação - art°. 119° n°.2 a) CP. A actividade criminosa teve em vista as burlas estas terminaram 24/4/1994. Mesmo que haja dúvidas este prazo de contagem prevalece por ser mais favorável aos arguidos.
A prescrição do procedimento criminal tem definições legais muito concretas, quer quanto ao seu termo inicial, quer quando cessa ou se interrompe em nome da certeza e segurança do direito.
Pelo exposto, podemos concluir que os crimes de associação criminosa e de burla qualificada indiciado nos autos se consumaram em 24/4/1994 quando o assistente entregou o cheque de Esc.5.890.000S00 ao arguido B. e o crime de burla simples se consumou em 29/11/1995.
Não ocorreu nenhuma causa de interrupção ou suspensão da prescrição, pelo que foi declarado prescrito o procedimento criminal”.
1.5. Inconformado com o despacho de não pronúncia dos arguidos, interpôs recurso o assistente, que motivou, concluindo nos seguintes termos
Os crimes de burla qualificada e de associação criminosa não se consumaram na data em que o ora recorrente entregou os cheques referidos no art° 17° da queixa;
A consumação do crime de burla não deriva, apenas, do resultado consistente na saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo titular, exigindo-se a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro que só é possível de detectar quando a vítima deixa de ter a expectativa inicial de urna contrapartida futura e, em virtude disso, se apercebe de que foi enganada;
No momento em que a vítima entrega ao agente os valores que consubstanciam o seu investimento, o enriquecimento que opera na esfera jurídica do agente e o empobrecimento respectivo que ocorre na esfera da vítima poderão não ser passíveis de ser, desde logo, classificados como enriquecimento ilegítimo e prejuízo patrimonial;
É que a vítima só tem prejuízo patrimonial, numa situação como a dos presentes autos, não quando entrega o dinheiro para ser investido mas antes quando não recebe os lucros desse investimento;
Os arguidos, mercê de vários expedientes, conseguiram manter o ora Recorrente – e o seu advogado, Dr. C., igualmente vítima dos crimes cometidos pelos arguidos – enganado e convencido da bondade e honestidade da sua actuação durante vários anos, acordando sucessivamente novas formas e prazos de pagamento, o que ocorreu desde a entrega do primeiro dinheiro, em 24/4/94, passando pelo "Acordo de encontro de contas", em 7/10/94, pela entrega de cheques mensais, entre Abril de 1995 e Janeiro de 1996, que nunca tiveram provisão, e por nova entrega de dinheiro pelo Recorrente, em 29/11/95 (cheque de 400.000$00), só terminando em meados de 1998, com o súbito desaparecimento dos arguidos após a morte repentina do Dr. Alexandre Gouveia, que até aí, mantendo-se também enganado pelos arguidos, constituíra mais um forte factor de convencimento do Recorrente em aceitar as sucessivas justificações dos arguidos;
A assinatura do "Acordo de Encontro de Contas" em 7/10/94, surge como mais um elemento — e fundamental — do esquema fraudulento montado e executado em proveito da associação criminosa pelos arguidos, do qual a entrega dos cheques no valor de 5.890.000$00 / 29.379,20€ cada pelo Recorrente e demais "investidores" constituiu apenas outro elemento, não se podendo considerar o crime de burla consumado com esse acto;
Também a entrega, em 29/11/95, de mais 400.000$00 pelo Recorrente aos arguidos constituiu outro elemento da burla em que caiu, tratando-se de outro acto enquadrado no referido esquema fraudulento engendrado pelos arguidos para "sacar" todo o dinheiro possível ao Recorrente;
O Recorrente "emprestou" este dinheiro porque os arguidos, actuando de forma concertada, o convenceram de que o mesmo era indispensável para assegurar o correcto investimento da primeira quantia que entregara, sob pena de se perder o respectivo controlo, risco que, evidentemente, o Recorrente não queria correr;
E o pedido deste dinheiro não foi feito de repente, antes obedeceu a uma longa preparação com o intuito de garantir que o Recorrente continuaria enganado e entregaria o dinheiro sem problemas;
Apenas dependente de pequenos pormenores, conseguindo, assim, leva-lo a acordar nestas sucessivas alterações e adiamentos do acordo celebrado;
Com o mesmo intuito, o arguido B. conseguiu aproximar-se mais do Recorrente, tornando-se uma pessoa da sua confiança pessoal para, assim, ganhar maior ascendente sobre ele e melhor o enganar e manter preso ao esquema fraudulento que montou com os restantes arguidos;
E a sua intervenção foi essencial nos momentos em que o Recorrente se mostrava mais céptico e colocava mais dúvidas sobre a actuação e intenções dos arguidos, logrando conseguir restabelecer a confiança do Recorrente e, principalmente, do seu advogado, Dr. C., que, também burlado, acabava por levar o Recorrente a aceitar as sucessivas explicações e justificações dos arguidos, habilmente apresentadas pelo arguido B.;
As justificações engendradas pelos arguidos — primeiro o investimento de alto rendimento e depois a necessidade de pagamento da conta telefónica (da qual não existe qualquer prova nos autos) para poder acompanhar e controlar esse investimento — para convencerem o Recorrente a entregar-lhes o seu dinheiro não podem ser tornadas em consideração para efeitos de se apurar o relacionamento dos factos aqui em causa, pois, como acontece em qualquer burla bem sucedida, tratou-se apenas cenários criados com o único intuito de convencer o Recorrente a entregar-lhes o dinheiro;
Também não releva para esse efeito a declaração subscrita pelo arguido Antunes, junta como doc. n° 24 da queixa, na qual se baseou a douta decisão instrutória, em que este declara que "o montante de 400.000$00 que o Senhor A. me emprestou para fazer face às minhas despesas de telefone, não tem nada a ver com as outras operações que temos em comum pelo que este montante será liquidado por mim na primeira oportunidade que eu tiver.- ;
Tal declaração foi feita a pedido do próprio Recorrente – cfr. doc. n° 2 junto com o pedido de abertura de instrução – com o único intuito de assegurar que o pagamento desta quantia seria feito no mais curto espaço de tempo e sem ficar a aguardar o(s) pagamento(s) relativo(s) ao primeiro negócio;
De tal declaração não resulta que a quantia entregue pelo Recorrente o foi noutro contexto que não o resultante da burla montada pelos arguidos para "sacar" dinheiro ao Recorrente
Foi apenas em meados de 1998, quando os arguidos voltaram a não cumprir com a último acordo feito com o Recorrente de lhe pagar com os lucros obtidos nos investimentos financeiros na Zâmbia e desapareceram, que o Recorrente sofreu efectivamente um prejuízo patrimonial pois não recebeu a contrapartida sucessivamente prometida e acordada;
Ao longo dos anos que passaram desde que o Recorrente entregou o seu dinheiro aos arguidos, estes convenceram-no, por diversas vias, de que o investimento feito lhe renderia elevados juros, garantindo-lhe sempre os respectivos pagamentos e a solvência de todos os compromissos assumidos, assim o levando a aceitar os sucessivos adiamentos e reformulações do negócio inicial;
Isto significa que até à data do desaparecimento dos arguidos o que o recorrente legitimamente esperava não era um prejuízo mas um lucro, ou seja, até essa data não sofreu o recorrente um prejuízo patrimonial;
Se nessa data os compromissos sucessivamente assumidos pelos arguidos tivessem sido cumpridos, não estaríamos de facto perante um prejuízo patrimonial do recorrente e um enriquecimento ilegítimo dos arguidos, o que significa que não estaríamos perante um crime de burla.
Só a partir da data em que definitivamente os arguidos não cumpriram os acordos sucessivamente efectuados e desapareceram se verificou a existência de um efectivo prejuízo patrimonial do recorrente;
Pelo que o prazo de prescrição deste crime apenas deve começar a correr a partir desta altura – meados de 1998 – não se encontrando, assim, prescrito o procedimento criminal;
Sem prescindir, nunca poderia proceder o entendimento do Ministério Publico e do Meritíssimo Juiz de Instrução de que os crimes de burla qualificada e de associação criminosa se consumaram em 24/4/1994, data em que o recorrente entregou a quantia de 5.890.000$00 aos arguidos. É que a actuação dos arguidos não se ficou por um comportamento anterior à entrega desse montante;
De tudo o exposto resulta claramente que os arguidos, ao longo de vários anos, adoptaram urna actuação concertada para manterem o Recorrente - e o seu advogado - enganado e convencido da bondade e honestidade da sua actuação, neles depositando inteira confiança e com eles acordando sucessivas datas e formas de reembolso das quantias que entregou;
E a entrega, em 29/11/1995, de mais 400.000$00 foi mais um elemento da burla em que o Recorrente caiu, enquadrada no esquema fraudulento engendrado pelos arguidos para lhe "sacar" todo o dinheiro possível;
O Recorrente "emprestou" este dinheiro porque os arguidos o convenceram de que o mesmo era indispensável para assegurar o correcto investimento da primeira quantia que entregara, sob pena de se perder o respectivo controlo, risco que, evidentemente, o recorrente não queria correr
A entrega pelo recorrente de mais este montante não é assim um acto isolado e um crime autónomo, surgindo, antes no contexto da burla montada pelos arguidos, obedecendo a uma longa preparação com o intuito de garantir que o Recorrente continuaria enganado e entregaria o dinheiro sem problemas;
Estamos pois perante um único crime de burla qualificada;
Com efeito, toda a actuação dos arguidos obedeceu a uma única resolução criminosa – a de "sacar" todo o dinheiro possível ao recorrente, investindo para isso os arguidos numa relação de confiança durante o tempo em que isso se mostrou rentável e útil – resolução criminosa essa que persistiu ao longo de toda a realização;
Pelo que, mesmo seguindo o entendimento do Ministério Publico e do Meritíssimo Juiz de instrução de que a consumação se dá com a entrega do dinheiro ao agente - o que não se concede - sempre estaríamos perante um único crime cujo último acto ocorreu em 29/11/1995;
Também no que respeita ao crime de associação criminosa não pode o recorrente, com todo o respeito, concordar com a douta decisão instrutória porque as burlas não terminaram em 24/4/94, pois a actividade criminosa dos arguidos continuou, pelo menos, até 29/11/95, altura em que conseguiram pela segunda vez, mercê da actuação concertada entre eles e em favor da associação, convencer o recorrente a entregar-lhes dinheiro;
Razão porque, nos termos do art° 119°, n.° 1, do C.P., o prazo de prescrição do procedimento criminal dos crimes de burla agravada e de associação criminosa deverá começar a correr apenas a partir dessa data; O que equivale a dizer que o procedimento não se encontra ainda prescrito, dado os denunciantes terem sido constituídos arguidos antes do termo do prazo prescricional, o que, nos termos do art. 121º, nº 1 a) do CP interrompeu a prescrição.
1.5. Na sua resposta o MºPº no Tribunal recorrido, concluiu pela não provimento do recurso.
1.6. O Exmº PGA nesta Relação teve Vista nos autos.
1.7. Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº2, do CPP
1.8. Foram colhidos os vistos legais
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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Constam dos autos as seguintes ocorrências, com interesse para o conhecimento do instituto da prescrição.
Com efeito refere o assistente, em síntese, que:
Em finais de 1993, travou conhecimento com B., no Alfeite, tendo este sido-lhe apresentado pelo Senhor Engenheiro D.;
Na sequência do relacionamento que se desenvolveu entre ambos, veio mais tarde o mesmo denunciado a propor-lhe, no escritório do denunciante, sito na Avenida …, n.° 106, 1.°, em Lisboa, que investisse a quantia de USD 100.000 (cem mil dólares) numa aplicação financeira que garantia um alto rendimento;
Tal aplicação financeira consubstanciava-se no acoplamento do investimento feito pelo denunciante a uma operação de alto rendimento que iria ser realizada pela fundação E., de que era representante G.;
Segundo B. esta Fundação teria um Fundo de Investimento através do qual faria elevados investimentos em aplicações financeiras de alto rendimento e para obter dinheiro para tais operações a Fundação pagava elevados juros aos investidores;
B. referiu que a Fundação preparava-se para efectuar mais urna dessas operações de alto rendimento, no valor de vários milhões de dólares. havendo ainda a possibilidade de ser subscrita uma unidade de investimento, no valor dos referidos USD 100.000;
Por essa unidade de investimento, a Fundação obrigava-se a pagar o montante de USD 400.000 por cada operação, ao ritmo de uma por semana até perfazer 12 meses, sendo o pagamento das primeiras tranches semanais efectuado até 45 dias após a data da assinatura do contrato;
Embora considerasse a proposta interessante, o denunciante, por cautela, não quis decidir logo, tendo o B., para o convencer, se deslocado várias vezes ao já referido escritório, tendo numa delas levado consigo o denunciado G., que apresentou como sendo perito em engenharia financeira;
Apesar da grande capacidade persuasiva dos denunciados A. e G., o denunciante resolveu consultar um advogado seu amigo, o Dr. C., já falecido, o qual, depois de ter reunido igualmente com os mesmos denunciados, ficou completamente convencido, de tal forma que propôs ao ora recorrente entrar também, ele próprio, no negócio;
Mais propôs, para diminuir o risco do negócio, que dividissem o investimento por três, sugerindo um amigo comum, o Dr. H.;
O denunciado B., para os convencer, propôs entregar a cada um dos investidores um cheque seu, no montante do investimento, Esc. 5.890.000$00, como garantia de que tinha total confiança no negócio;
Assim, aceitaram o negócio e, no dia 24 de Abril de 1994, entregaram ao denunciado B. três cheques, cada um no valor de Esc. 5.890.000$00, e receberam daquele um cheque de garantia de igual montante, bem como um "recibo-contrato" da E., subscrito pelo denunciado F.;
Os investidores nunca receberam nada, nem o dinheiro que investiram, nem os lucros, sendo que os cheques que receberam não tinham cobertura;
Cerca de um mês depois da entrega do dinheiro, o denunciante recebeu um fax subscrito pelo denunciado B., em que este comunica que o pagamento das primeiras tranches seria efectuado por volta do dia 25 de Junho de 1994;
Porém, decorridos meses continuava sem ser feito qualquer pagamento, tendo os denunciados, após insistência dos investidores, alegado que o negócio tinha corrido mal e que a operação falhara;
Exigiram, então, os investidores, a restituição do dinheiro, sob pena de apresentarem queixa-crime, tendo os denunciados proposto uma reformulação do contrato através de um Acordo de Encontro de Contas bem assim que o denunciado G., mediante os seus conhecimentos, iria efectuar um investimento que, embora menos rentável, permitia um lucro de USD 200.000 por mês durante 12 meses;
Tamanha era a capacidade de persuasão dos denunciados que o denunciante e o Dr. C. acabaram por aceitar tal negócio, tendo o Dr. H. desistido, recebendo a quantia monetária entregue;
Nos termos do acordo o denunciado G. obrigava-se a entregar a quantia de USD 200.000 até ao fim de Outubro de 1994 e igual soma nos onze meses subsequentes;
Os investidores renunciavam à apresentação dos cheques de garantia a pagamento bem assim à quantia que deviam receber da Fundação;
Porém, o referido acordo também nunca foi cumprido;
Em 30 de Abril de 1995, o denunciado G., para acalmar o denunciante, emitiu e entregou a este último, como garantia, um cheque no montante de USD 38.900, bem como começou a enviar, mensalmente, um novo cheque. acrescido de mais 1,5% de juros, para substituição daquele entregue no mês anterior, situação que se manteve até Janeiro de 1996, altura em que deixou de enviar tais cheques;
Nenhum destes cheques tinha provisão, pelo que não os apresentou a pagamento;
O denunciado B. tudo fazia para convencer o denunciante das boas intenções do denunciado G., mantendo-o na ilusão de que iria reaver o dinheiro e os chorudos lucros obtidos;
Tal era a confiança que o denunciante tinha, em especial, no denunciado B. que deu-lhe trabalho durante algum tempo como seu colaborador no ramo imobiliário;
Tendo o denunciado B. levado também o denunciante a, em 29 de Dezembro de 1995, dar a quantia de Esc. 400.000$00 ao denunciado G. para este regularizar o pagamento de uma conta de telefone que, segundo os denunciados, seria essencial para que aquele último denunciado controlasse as operações que decorriam;
Mais comprometeram-se a pagar tal quantia poucos dias depois, mal tivesse sido concretizada uma transferência de fundos para o denunciado G.;
Porém, até à data, não foi reembolsado;
O denunciado G. assinou uma declaração na qual declarava ter recebido do denunciante a quantia de Esc. 400.000$00, a título de empréstimo, para fazer face a despesas de telefone e que tal quantia nada tinha a ver com as outras operações que teriam em comum, cfr. fls. 44;
O denunciado G. também lhe entregou um cheque de USD 3.000 para garantia do pagamento da quantia que o mesmo lhe havia emprestado, cheque que o denunciante apurou não ter provisão;
Mercê de todos estes ardis, os denunciados foram conseguindo manter o denunciante sem reacção e na esperança de que iria receber os elevados lucros prometidos;
O denunciante teve o último contacto com o denunciado G. em 1998, no aeroporto de Genebra, tendo aquele dito então ao primeiro que iria residir para a Zâmbia, onde estava em curso um esquema de engenharia financeira que lhe permitiria solver todos os seus compromissos;
Depois desse encontro nunca mais conseguiu localizar e falar com o denunciado G., tendo o denunciado B. mudado de comportamento, afastando-se do denunciante e alegando que nada tinha a ver com o referido G. bem assim que desconhecia o destino que este último tinha dado ao dinheiro do mesmo denunciante;
Voltou a ter notícias dos denunciados a 20 de Junho de 2002, quando foi ouvido na polícia Judiciária, como testemunha, no âmbito do inquérito n.°11453/99.8TDLSB, tendo então tomado conhecimento de que tal processo dizia respeito a uma burla idêntica;
Nessa altura tomou conhecimento do papel desempenhado pela Fundação I.s bem assim pela sociedade J., Lda., da qual são únicos sócios os denunciados B., L. e M.;
Há fortes indícios da existência de uma associação criminosa de que fazem parte, entre outros, os ora denunciados, que se servem de fundações e empresas por si controladas para burlar as suas vítimas, a quem conseguem extorquir enormes quantias monetárias.
Considerou o denunciante que os factos descritos integravam a prática dos crimes de associação criminosa e de burla qualificada.
Cumpre apreciar e decidir.
Os factos denunciados por A., poderiam, em abstracto, consubstanciar a prática dos crimes de associação criminosa, burla qualificada e burla "simples", p. e p. respectivamente, pelos art.°s 299.°, n.° 1, 218.°, n.° 2, al. a), e 217.°, n.° 1, todos do CP.
Dos factos constantes da denúncia resulta, que o que determinou o assistente a entregar a quantia de Esc. 5.890.000$00, para aplicação num investimento, nada teve a ver com a entrega, a título de empréstimo, da quantia de Esc. 400.000$00, ao denunciado G., para pagamento de uma conta de telefone, facto que resulta, aliás, do documento de fls. 44 que o mesmo juntou bem assim das declarações que este prestou no âmbito do citado NUIPC 11453/99.8TDLSB.
Tal empréstimo de Esc. 400.000$00 foi feito a título pessoal apenas ao denunciado G. e por este, na altura, precisar de pagar o telefone, nada tendo a ver com a aplicação financeira que na altura já teria sido feita.
Na verdade aos ilícitos criminais ora em apreço correspondem penas de prisão, respectivamente, de 1 a 5 anos, de 2 a 8 anos e até 3 anos.
Alega, ainda, a este propósito, o assistente que:
"A conduta que provocou o prejuízo do assistente não foi apenas a que levou à entrega do dinheiro por duas vezes mas toda a conduta posterior dos denunciados de o fazerem acreditar que o investimento estava prestes a render os respectivos lucros";
Só a partir da data em que definitivamente os arguidos não cumpriram os compromissos assumidos, se verificou a existência de um efectivo prejuízo patrimonial do assistente que tomou, assim, consciência de que foi enganado, e
Pelo que o prazo de prescrição deste crime apenas deve começar a correr a partir desta altura.
A consumação do crime de burla depende da ocorrência de um efectivo prejuízo patrimonial que só é possível de detectar quando a vítima deixa de ter a expectativa inicial de uma contrapartida futura e, em virtude disso, se apercebe de que foi enganada", bem assim que "A posição correcta é, pois, a de considerar que a consumação do crime de burla se dá no momento em que a vítima sofreu um prejuízo patrimonial e, em consequência, se apercebe que foi enganada.
Tal consumação teria, assim, ocorrido, apenas, sustenta o recorrente, em 1998”.
Em sede de instrução não foram realizadas diligências probatórias que infirmassem os fundamentos de facto e, muito em especial, de direito que justificaram o despacho de arquivamento, pelo que, após o debate instrutório, o tribunal recorrido entendeu o seguinte:
"Podemos concluir que os crimes de associação criminosa e de burla qualificada indiciados nos autos se consumaram em 24/4/1994, quando o assistente entregou o cheque de Esc. 5.890.000$00 ao arguido B. e o crime de burla simples se consumou em 29/11/1995".
Assim declarou prescrito o procedimento criminal e, consequentemente, determinou o oportuno arquivamento dos autos.
Vejamos:
Ora face ao disposto no art.° 118.°, n.° 1, ais. b) e c), do CP, o prazo prescricional dos ilícitos criminais denunciados é de dez anos, quanto aos crimes de associação criminosa e de burla qualificada, e de cinco anos, relativamente ao crime de burla "simples", a contar da data da sua prática.
O prazo de prescrição, nos termos do disposto no art. 119º, nº1 do CP, corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, ou seja, na data da verificação do crime, isto é, no momento em que o agente actuou por observância do art. 3º do CP.
A prescrição do procedimento criminal tem definições legais muito concretas, quer quanto ao seu termo inicial, quer quanto aos factos que suspende ou interrompe a mesma, não podendo ficar ao sabor dos eventuais riscos de investimento, o que a acontecer, a tornaria num instituto de enorme insegurança, quando não foi isso que pretendeu o legislador.
Com afirma e bem o tribunal recorrido, o crime de burla é tido como um crime de forma vinculada, em virtude de o legislador descrever de forma minuciosa o modo executivo de consumação; de dano, por pressupor um prejuízo patrimonial de quem é sujeito passivo; de resultado, porque se consuma com a saída de bens da disponibilidade fáctica do sujeito passivo, e um crime de resultado parcial, caracterizando-se por uma descontinuidade ou falta de congruência entre os correspondentes tipo subjectivo e objectivo, porque embora se exija no âmbito do primeiro que o agente actue com a intenção de obter enriquecimento ilegítimo, a consumação não depende de tal enriquecimento, bastando o empobrecimento do ofendido – Comentário ao Código Conimbricense, 11, 275-277 e J. António Barreiros, in "Crimes Contra o Património".
Efectivamente o resultado típico do crime de burla é o empobrecimento do sujeito passivo, através do comportamento astucioso do arguido, sendo que com ele o crime se consuma.
O momento da consumação do crime é, portanto, aquele em que o lesado abra mão da coisa ou do valor sem que a partir daí se possa controlar o seu destino, então já sem disponibilidade sobre esse património, como é entendimento jurisprudencial B.M.J. 354, 314 e 396, 250, e C.J., 1, 96, 211.
Este é indiscutivelmente o entendimento correcto, aliás, no seguimento da posição sufragada pelo tribunal recorrido e pelo MºPº.
A posição sustentada pelo recorrente quanto à consumação dos crimes e à forma de contagem do prazo de prescrição, não pode merecer qualquer acolhimento legal, sendo este o único responsável pela situação que criou e em que se colocou, ou seja, a ingenuidade e falta de capacidade para analisar o investimento proposto e os riscos daí derivados não podem ser cobertos por uma interpretação errada ou excessiva dos mecanismos legais aplicáveis.
De facto a consumação da burla operar-se-á, segundo o art.° 217.°, n.° 1, do CP, pela entrega indevida que foi determinada pelos meios fraudulentos, qualquer que seja o destino que o agente dê aos objectos entregues.
Relativamente ao crime de associação criminosa estamos em presença de um crime de natureza permanente.
Com efeito neste tipo de crime o prazo de prescrição só corre desde o dia em que cessar a consumação - art°. 119° n°.2 a) CP. A actividade criminosa teve em vista as burlas e estas terminaram 24/4/1994.
Mesmo que haja dúvidas este prazo de contagem prevalece por ser mais favorável aos arguidos.
Assim, tendo em consideração a data da prática dos factos, em que se consumaram os eventuais ilícitos criminais, 24 de Abril de 1994 no caso dos crimes de associação criminosa e de burla qualificada, (quando o assistente entregou o cheque de Esc.5.890.000S00 ao arguido B.) e 29 de Novembro de 1995 no que concerne ao crime de burla "simples", bem assim o período de tempo entretanto decorrido, concluiu bem o tribunal recorrido ao entender que o presente procedimento criminal encontra-se extinto pelo decurso do prazo de prescrição, na medida em que não ocorreu nenhuma causa de interrupção ou de suspensão da prescrição, sendo certo que quando foi apresentada a respectiva denúncia já tinha decorrido tal prazo.
Com efeito, o ora assistente, apesar de ter conhecimento dos factos em apreço (e também, pelo menos desde 20.06.2002, daqueles outros objecto do NUIPC 11453/99.8TDLSB), só em 23.06.2004, depois de decorrer o prazo de prescrição, apresentou a pertinente denúncia.
Não faz qualquer sentido, à luz do direito aplicável, a argumentação do recorrente, quando alega que "a vítima só tem prejuízo patrimonial, numa situação como a dos presentes autos, não quando entrega o dinheiro para ser investido mas antes quando não recebe os lucros desse investimento", na esteira, aliás, do que já havia sustentado no seu requerimento de abertura de instrução, a fls. 222: "o agente apenas se enriquece ilegitimamente a partir do momento em que não entrega à vítima os lucros que garantiu entregar".
Quanto à eventual prática de um crime de burla "simples", p.e p. pelo art.° 217.°, n.° 1, do CP, convirá dizer que a acção penal não podia ser exercida, não obstante a verificação ou não da prescrição, uma vez que nos termos do disposto no art. 217º., nº 3 do CP o respectivo procedimento criminal depende de queixa, o que não se observou, ou seja, aquela não foi apresentada no prazo de seis meses, conforme dispõe o art. 115,nº 1, do CP. O MºPº não tem legitimidade para promover o processo.
Quanto ao facto sustentado pelo recorrente de que o procedimento criminal não se encontra ainda prescrito, dado os denunciados terem sido constituídos arguidos antes do termo do prazo prescricional, o que, nos termos do disposto no art.° 121.0, n.° 1, al. a), do C.P., interrompeu a prescrição, também não colhe.
De facto os denunciados assumiram a qualidade de arguidos por força do disposto no art.° 57.°, n.° 1, do CPP, isto é, por ter sido, contra aqueles, requerida instrução.
Porém, como afirma o MºPº, não foram os mesmos denunciados formalmente, constituídos como arguidos, nos termos legalmente exigidos, do disposto no art.° 58.°, n.°s 2 e 3, do CPP. Seria necessário que tal tivesse ocorrido, para os efeitos do disposto no art.° 121.°, n.° 1, al. a), do CP.
Acresce, por último, referir que o conhecimento do instituto da prescrição, torna irrelevante apreciar as questões relacionadas com a ausência de indícios e com a natureza civil das relações contratuais entabuladas entre o arguido e o assistente.

3. DECISÃO
Nestes termos acordam os juízes que compõem esta Secção Criminal, em negar provimento ao recurso, mantendo o despacho de não pronúncia dos arguidos.
Custas a cargo do assistente, fixando a taxa de justiça em 6 UC.

Lisboa, 1 de Junho de 2006


Rui Rangel
João Carrola
Carlos Benido